Uma frase (in)feliz?: o que é bom para os EUA, é bom para o Brasil?



Ao ser confrontado com uma pergunta marota, no National Press Club, em sua primeira visita a Washington como presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva utilizouse de forma inteligente de uma antiga frase infeliz para revertê-la em seu favor.

Perguntado por que razão o PT havia estabelecido uma parceria com o Partido Comunista da China, Lula saiu-se da seguinte maneira, tendo sido muito aplaudido, durante e após sua resposta: "Eu não conhecia a China muito bem, até que o governo americano fez da China seu parceiro comercial preferencial. E eu pensei comigo mesmo: ‘se é bom para os americanos, deve ser bom para os brasileiros.’ Nós vamos trabalhar muito estreitamente com a China, porque ela é um parceiro importante para os nossos objetivos comerciais." (Transcrição parcial da seção de perguntas e respostas ocorrida no National Press Club, Washington, em 10 de dezembro de 2002.)

Não tenho certeza de que essa resposta tenha sido ensaiada pelo presidente-eleito ou se foi totalmente espontânea, mas vários observadores registraram a recuperação, de modo inteligente, de uma antiga frase infeliz de Juracy Magalhães, antigo tenente dos anos 1920 e militar revolucionário de 1964, que caberia reproduzir em sua integridade e no contexto próprio.

Perguntado por um repórter, em junho de 1964, com que espírito assumia seu novo posto, o então embaixador designado do Brasil em Washington foi cândido: "O Brasil fez duas guerras como aliado dos Estados Unidos e nunca se arrependeu. Por isso eu digo que é o que bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil" (cf. Juracy Magalhães, em depoimento a J. A. Gueiros, O Último Tenente. 3ª ed., Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 325).

Ele foi, então e depois, devidamente "massacrado" por todos, como entreguista e "sabujo" dos interesses americanos e "sua" frase passou à história, senão ao "folclore" político, como a própria confirmação da subserviência do governo militar à política do Império. O então embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon, esquivou-se de comentá-la de modo negativo, mas em privado considerava-a efetivamente como uma expressão infeliz, que em nada ajudou na conformação de uma boa imagem pública em prol do bom relacionamento entre duas nações soberanas.

Antes de voltar ao contexto brasileiro, caberia agora atribuir o devido copyright dessa frase que, como se sabe igualmente, não pertence a Juracy Magalhães, mas procede de afirmação de um dirigente da General Motors, um dos grandes fabricantes americanos de automóveis. Trata-se, na verdade, de uma atribuição indireta, pois que a expressão foi empregada pelo novo presidente da GM, em 1946, Charles Wilson, a propósito da atitude do famoso dirigente da GM entre 1923 e aquele ano, Alfred Sloan, violentamente oposto às políticas de Franklin Roosevelt durante o New Deal. Sloan acreditava piamente, como colocado por Wilson em sua famosa frase, que "what was good for our country was good for General Motors – and vice versa" (cf. David Farber, Sloan Rules: Alfed P. Sloan and the triumph of General Motors. Chicago: University of Chicago Press, 2002).

Ela tornouse um ícone da suposta colusão de interesses entre a grande indústria e o governo dos EUA e, depois da recuperação infeliz de Juracy Magalhães, um exemplo entre outros da colusão de interesses entre os governos do regime militar brasileiro inaugurado em 1964 e os interesses da grande potência americana.

O presidente-eleito efetuou, portanto, por sua vez, uma recuperação bastante feliz de uma frase altamente suspeita e condenável que, agora, volta portanto a ter direito de existência numa relação bilateral que parece marcada por novos patamares de respeito mútuo. A pergunta tinha sido aliás especificamente dirigida ao relacionamento político entre o PT e o Partido Comunista Chinês, e ela foi respondida em sua vertente puramente comercial, o que não estava em causa na indagação feita em Washington (que incluía igualmente uma referência ao Foro de São Paulo).

Não se pode deixar de reconhecer, em todo caso, uma notável capacidade do novo presidente – ou de sua equipe de imprensa – em adaptar de maneira simpática, e com bastante bom-humor, uma frase colocada – de maneira equivocada, aliás – no índex da "sabujice imperialista" ao novo contexto do relacionamento entre os dois maiores países do hemisfério.

Não se pretende questionar aqui a utilização dessa frase no momento preciso em que ela foi "recuperada" para uma nova (e talvez promissora) existência política, mas ela certamente nos oferece a ocasião para uma reflexão mais ampla sobre o seu significado substantivo e sua adequação ao quadro das relações entre os dois países. Parece evidente, agora e no momento em que a frase foi empregada por Juracy Magalhães, que a despeito de qualquer boa intenção de princípio, as relações entre os EUA e o Brasil seguem o curso natural dos interesses concretos de cada um dos países, sem que uma expressão singela possa desviar a afirmação desses interesses do comprometimento de cada governo com objetivos nacionais próprios.

 


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