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Globalização e crime (página 3)

Rômulo de Andrade Moreira

Partes: 1, 2, 3

  • O Crime Organizado

Até como uma decorrência do tráfico internacional de drogas e da lavagem de capitais61, mas não somente por causa deles, o crime organizado vem desde algum tempo se desenvolvendo assustadoramente em todo o mundo.

Hoje, apenas para citar alguns exemplos, temos os grandes cartéis das drogas, inclusive na América Latina, as máfias italiana, japonesa e russa, os traficantes de armas, o terrorismo, etc, etc., tudo facilitado pela globalização e pelos seus respectivos instrumentos de atuação.

A grande dificuldade, inclusive doutrinária, é estabelecer exatamente o conceito de crime organizado, até para que possamos utilizar adequadamente os meios repressivos postos à disposição da Polícia e da Justiça criminal no combate a este tipo de atividade e, ao mesmo tempo, impedir que se aplique tais meios operacionais (evidentemente mais drásticos e gravosos) em casos que não são especificamente de "crime organizado".

Apesar de ser uma tarefa relativamente difícil, arriscamo-nos, no entanto, a conceituar crime organizado como uma estrutura criminosa formada por um número razoável de integrantes, ordenados de forma estável e duradoura, tendo como finalidade precípua a prática de um determinado ilícito penal, continuadamente, utilizando-se quase sempre do mesmo modus operandi, além de violência e da alta tecnologia, inclusive bélica.

Após advertir que o conceito de criminalidade organizada possui contornos muito imprecisos e cheios de relativismos, Montalvo estabelece algumas condições fundamentais para que bem se caracterize a existência de uma organização criminal, a saber: "la existencia de un centro de poder, donde se toman las decisiones"; "actuación a distintos niveles jerárquicos"; "aplicación de tecnología y logística"; "fungibilidad o intercambialidad de los miembros"; "sometimiento a las decisiones que emanan del centro de poder"; "movilidad internacional" e " apariencia de legalidad y presencia en los mercados como medio de transformación de los ilícitos benefícios".62

Exatamente por causa desta mobilidade internacional da qual se refere o jurista espanhol e que indiscutivelmente caracteriza o crime organizado, é que, como dizia o Juiz italiano Falcone, "la correcta política-criminal frente a la delicuencia organizada es la destrucción del poder económico de estas organizaciones a través de la cooperación internacional efectiva y eficaz".63

No Brasil temos a Lei nº. 9.034/95 (recentemente alterada pela Lei nº. 10.217/01), que dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas.

Esta lei procurou definir e regular os meios de prova e os procedimentos investigatórios que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo.

Por ela, permite-se, em qualquer fase da persecução criminal, ou seja, tanto no Inquérito Policial, quanto na instrução criminal, em Juízo, e sem prejuízo dos meios de prova já previstos na legislação processual brasileira, os seguintes procedimentos de investigação e formação de provas:

1) A ação controlada, que consiste em retardar a interdição policial do que se supõe ação praticada por organizações criminosas ou a ela vinculado, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações. Permite-se, por exemplo, que não se prenda os agentes desde logo, ainda que em estado de flagrância, quando há possibilidade de que o diferimento da medida possa ensejar uma situação ainda melhor do ponto de vista repressivo. Exemplo: a Polícia monitora um porto à espera da chegada de um grande carregamento de cocaína, quando, em determinado momento, atraca um pequeno bote com dois dos integrantes da organização criminosa (já conhecidos) portando um saco plástico transparente contendo um pó branco, a indicar ser cocaína. Pois bem: os agentes policiais, ao invés de efetuarem a prisão em flagrante, pois há um crime visto, procrastinam o ato, esperando que a "grande carga" seja desembarcada em um navio que se sabe virá dentro em breve. É o chamado flagrante diferido, hoje permitido pela Lei 9.034/95.

2) O acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais. Nesta hipótese, ocorrendo a possibilidade de violação de sigilo preservado pela Constituição ou por lei, a diligência será realizada pessoalmente pelo juiz, adotado o mais rigoroso segredo de justiça. Ainda neste caso, para realizar a diligência, o juiz poderá requisitar o auxílio de pessoas que, pela natureza da função ou profissão, tenham ou possam ter acesso aos objetos do sigilo. Permite a lei que o juiz, pessoalmente, fará lavrar auto circunstanciado da diligência, relatando as informações colhidas oralmente e anexando cópias autênticas dos documentos que tiverem relevância probatória, podendo para esse efeito, designar uma das pessoas referidas no parágrafo anterior como escrivão ad hoc. O auto de diligência será conservado fora dos autos do processo, em lugar seguro, sem intervenção de cartório ou servidor, somente podendo a ele ter acesso, na presença do juiz, as partes legítimas na causa, que não poderão dele servir-se para fins estranhos caso de divulgação. Os argumentos de acusação e defesa que versarem sobre a diligência serão apresentados em separado para serem anexados ao auto da diligência, que poderá servir como elemento na formação da convicção final do juiz. Em caso de recurso, o auto da diligência será fechado, lacrado e endereçado em separado ao juízo competente para revisão, que dele tomará conhecimento sem intervenção das secretarias e gabinetes, devendo o relator dar vistas ao Ministério Público e ao Defensor em recinto isolado, para o efeito de que a discussão e o julgamento sejam mantidos em absoluto segredo de justiça.

Temos aqui uma perigosa e desaconselhável investigação criminal levada a cabo diretamente pelo Juiz. Não é possível tal disposição em um sistema jurídico acusatório, pois que lembra o velho e pernicioso sistema inquisitivo64

caracterizado, como genialmente diz o jurista italiano Ferrajoli, por "una confianza tendencialmente ilimitada en la bondad del poder y en su capacidad de alcanzar la verdad", ou seja, este método "confía no sólo la verdad sino también la tutela del inocente a las presuntas virtudes del poder que juzga".65

Ao comentar este artigo, Luiz Flávio Gomes, pedindo a devida vênia, afirma que o legislador "acabou criando uma monstruosidade, qual seja, a figura do juiz inquisidor, nascido na era do Império Romano, mas com protagonismo acentuado na Idade Média, isto é, época da Inquisição. (...) Não é da tradição do Direito brasileiro e, aliás, também segundo nosso ponto de vista, viola flagrantemente a atual Ordem Constitucional".66

É evidente que o dispositivo é teratológico, pois não se pode admitir que uma mesma pessoa (o Juiz), ainda que ungido pelos deuses, possa avaliar como "necessário um ato de instrução e ao mesmo tempo valore a sua legalidade. São logicamente incompatíveis as funções de investigar e ao mesmo tempo garantir o respeito aos direitos do imputado. São atividades que não podem ficar na mãos de uma mesma pessoa, sob pena de comprometer a eficácia das garantias individuais do sujeito passivo e a própria credibilidade da administração de justiça. (...) Em definitivo, não é suscetível de ser pensado que uma mesma pessoa se transforme em um investigador eficiente e, ao mesmo tempo, em um guardião zeloso da segurança individual. É inegável que ‘o bom inquisidor mata o bom juiz ou, ao contrário, o bom juiz desterra o inquisidor’".67

Parece-nos claro que há efetivamente uma mácula séria aos postulados do sistema acusatório, precipuamente à imprescindível imparcialidade68 que deve nortear a atuação de um Juiz criminal, o que não se coaduna com a feitura pessoal e direta de diligências investigatórias. Neste sistema, estão divididas claramente as três funções básicas, quais sejam: o Ministério Público acusa (ou investiga), o advogado defende e o Juiz apenas julga, em conformidade com as provas produzidas pelas partes. "Este sistema se va imponiendo en la mayoría de los sistemas procesales. En la práctica, ha demonstrado ser mucho más eficaz, tanto para profundizar la investigación como para preservar las garantías procesales", como bem acentua Alberto Binder.69

3) A captação e a interceptação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos, e o seu registro e análise, mediante circunstanciada autorização judicial. Esta medida é novidade em nosso sistema jurídico, que apenas conhecia a interceptação e a escuta telefônicas, disciplinadas pela Lei nº. 9.296/96. Para Luiz Flávio, entende-se "por interceptação ambiental a captação de uma conversa alheia (não telefônica), feita por terceiro, valendo-se de qualquer meio de gravação. Não se trata, como se percebe, de uma conversa telefônica. Não é o caso. É uma conversa não telefônica, ocorrida num gabinete, numa reunião, numa residência etc. Se nenhum dos interlocutores sabe da captação, fala-se em interceptação ambiental em sentido estrito; se um deles tem conhecimento, fala-se em escuta ambiental."70

4) A infiltração por agentes de polícia ou de inteligência, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes, mediante circunstanciada autorização judicial, caso em que a autorização judicial será estritamente sigilosa e permanecerá nesta condição enquanto perdurar a infiltração.

A identificação criminal de pessoas envolvidas com a ação praticada por organizações criminosas será realizada independentemente da identificação civil.

Nos crimes praticados em organização criminosa, a pena será reduzida de um a dois terços, quando a colaboração espontânea do agente levar ao esclarecimento de infrações penais e sua autoria.71

Não será concedida liberdade provisória, com ou sem fiança, aos agentes que tenham tido intensa e efetiva participação na organização criminosa.

O prazo para encerramento da instrução criminal, nos processos por crime de que trata esta Lei, será de 81 (oitenta e um) dias, quando o réu estiver preso, e de 120 (cento e vinte) dias, quando solto.

O réu não poderá apelar em liberdade, nos crimes previstos nesta lei.72

Os condenados por crime decorrentes de organização criminosa iniciarão o cumprimento da pena em regime fechado.

V - Globalização e Direito Processual Penal

- A Proteção Internacional do s Direitos Humanos

- Os Tribunais Penais Internacionais

- Os Tratados e Convenções Internacionais

- O Combate Supranacional à Criminalidade

- A Internet e a Teoria Geral da Prova (o e- mail como meio de prova e a possibilidade de sua interceptação).

1. Leo Huberman nota que nesta época (século XVIII) "o crescimento da população, as revoluções nos transportes, agricultura e indústria agiam e reagiam mutuamente. Eram forças abrindo um novo mundo". (História da Riqueza do Homem, Rio de Janeiro: Zahar Editores, 18ª. edição, 1982).

2. Ianni, Otávio, Teorias da Globalização, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 8ª. edição, 2000, p. 13.

3. "O papel da União Européia é fundamental porque é, ao mesmo tempo, o mais desenvolvido e o mais complexamente estruturado dos principais blocos comerciais. A evolução das capacidades da União Européia de ação comum coordenada por seus Estados membros determinará, em grande medida, se a governabilidade da economia mundial é forte ou minimalista". (Hirst, Paul e Thompson, Grahame, Globalização em Questão, Petrópolis: Editora Vozes, 2ª. edição, 1998, p. 235).

4. Ianni, Octavio, ob. cit., p. 119.

5. O Direito visto sob um aspecto fático, ou seja, "em sua efetividade social e histórica", como ensina Miguel Reale (Lições Preliminares de Direito, São Paulo: Saraiva, 1991, 19ª. ed.,, p. 65.

6. "No Brasil, os Projetos de Lei 1.483 e 1.589 pretendem regulamentar a fatura eletrônica, o comércio eletrônico, a validade do documento eletrônico e a assinatura digital.. Tratam -se, pois, dos primeiros moviment os legislativos significativos de construção de uma base sólida para desenvolvimento da indústria nacional de e-commerce". (Barretto, Petrus, "A Regulamentação do Comércio Eletrônico", Revista Pró Consumidor, Dezembro 2000, p. 51). A respeito do tema, conferir também o artigo de Renato M. S. Opice Blum, "Compras Internacionais Realizadas pela Internet", Revista Pró Consumidor, Janeiro 2001, p. 51 e o de Ângela Bittencourt Brasil, "Assinatura Digital não é Assinatura Formal", Revista Panorama da Justiça, p. 18).

7. "As questões que vêm preocupando os operadores do Direito são as seguintes: pode o computador criar, por si, obra intelectual, e, em caso afirmativo, de quem será o direito sobre a forma dela resultante? E mais: como ficam as questões relativas à marca registrada e ao domínio, em site de reprodução de textos jurídicos na internet?". (Maurício Lopes de Oliveira, "Marca Registrada e Nome de Domínio", Revista Consulex, Ano IV, nº. 41, Maio 2000, p. 61. Sobre o assunto, ver também o artigo de Douglas Yamashita, "Sites na Internet e a Proteção Jurídica de sua Propriedade Intelectual", Repertório IOB de Jurisprudência, 2ª. Quinzena de 2000, nº. 18/2000, Caderno 03, p. 391).

8. "A internet oferece apenas uma evolução do modo de transmissão de notícias, logo, a adequação de leis e princípios como a do direito de resposta é fundamental para o bom andamento das relações jurídicas, principalmente aquelas relativas à rede mundial de computadores no caso de veiculação de informações jornalísticas". (Coimbra, Márcio Chalegre, "O Direito de Resposta na Internet", Revista Consulex, Ano IV, nº. 47, Novembro 2000, p. 65).

9. "Os cookies - arquivos de texto enviados pelos sites que gravam informações do usuário - estão entre os assuntos mais discutidos atualmente no mundo todo. Isso se explica porque a maior parte dos sites os utilizam sem que o internauta saiba disso, centrando a questão na violação do direito à informação e da privacidade do usuário". (Nunes, Eunice, " Cookies, O Fim da Privacidade", Revista Pró Consumidor, Dezembro 2000, p. 19).

10. Beltramone, Guillermo e Zabale, Ezequieal, in El Derecho en la Era Digital, Rosario/Argentina: Editorial Juris, 2000, p. 6.

11. Delpech, Horacio Fernández, "Protección Jurídica del Software, Buenos Aires: Abeledo -Perrot, 2000, p. 13.

12. Veja a respeito a obra de Marco Aurélio Greco, "Internet e Direito", São Paulo: Dialética, 2000, onde são abordados temas como a tributação do comércio eletrônico, a tributação do serviço de provimento de acesso à internet, o ICMS e o estabeleciment o virtual. Recentemente, a 1ª. Turma do STJ decidiu que os provedores que comercializam o acesso à internet devem recolher o ICMS, pois ao oferecerem endereço na internet para seus usuários ou, até mesmo, disponibilizar sites para o acesso, os provedores estão prestando serviços de comunicação, ficando isentos apenas aqueles provedores de acesso gratuito (Recurso Especial nº. 323358 - Paraná, Relator Min. José Delgado).

13. Idem.

14. Um determinado candidato à Prefeitura Municipal de São Paulo, nas eleições de 2000, foi multado pela Justiça Eleitoral paulista, mais exatamente pelo Juiz da 1ª. Zona Eleitoral da Capital (Dr. José Percival Albano Nogueira Júnior), por manter site na internet para divulgação de sua plataforma de governo e para responder a perguntas formuladas por internautas. A multa foi estipulada em R$ 21.000,00 (20 mil UFIRs), entendendo o Magistrado que o candidato fez propaganda eleitoral antecipada, pois o site continha "ostensiva manifestação tendente a influenciar e captar a vontade do eleit or".

15. A Ordem dos Advogados do Brasil reagiu duramente a este ato normativo emitindo a seguinte nota: "A Ordem dos Advogados do Brasil vem a público manifestar o seu repúdio à nova Medida Provisória nº 2.200, de 29/06/2001, que trata da segurança no comércio eletrônico no País. A MP, editada às vésperas do recesso dos Poderes Legislativo e Judiciário, desprezou os debates que vêm sendo realizados há mais de um ano no Congresso Nacional sobre três projetos a esse respeito, um dos quais oferecido pela OAB-SP. Ao estabelecer exigência de certificações para validade dos documentos eletrônicos públicos e privados, a MP não apenas burocratiza e onera o comércio eletrônico, como distancia o Brasil das legislações promulgadas em todo o mundo. Pior: ao outorgar poderes a um Comitê Gestor, nomeado internamente pelo Executivo e assessorado por órgão ligado ao serviço de segurança nacional, o governo subtrai a participação direta da sociedade civil na definição de normas jurídicas inerentes ao conteúdo, procedimentos e responsabilidades daquelas certificações. Tudo isso é motivo de extrema preocupação no que tange à preservação do sigilo de comunicação eletrônica e da privacidade dos cidadãos, num momento em que grampos telefônicos têm se proliferado país afora, afrontando, inclusive, o livre exercício da advocacia. Brasília, 03 de julho de 2001 // Rubens Approbato Machado // Presidente nacional da OAB".

16. "La Globalización y las Actuales Orientaciones de la Política Criminal", in Direito Criminal, Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 38.

17. Montalvo, José Antonio Choclán, La Organización Criminal, Madrid: Dykinson, 2000, p. 14.

18. Montalvo, José Antonio Choclán, La Organización Criminal, Madrid: Dykinson, 2000, p. 15.

19. A expressão tem origem nos EUA quando, na década de 20, a máfia possuía inúmeras lavanderias que serviam, na verdade, para ocultar o capital provindo de suas atividades ilícitas.

20. Lei de Lavagem de Capitais, Cervini, Raúl, Oliveira, William Terra e Gomes, Luiz Flávio, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 29. Nesta mesma obra, o jurista uruguaio explica que para facilitar o movimento destes fundos ilícitos, os delinqüentes os fazem ingressar no sistema financeiro para poderem mais facilmente transferi- los dentro ou fora do país com segurança e velocidade, distanciando- os da sua procedência criminosa.

21. Mohammad Ebrahim Shams Nateri observa que "uno de los problemas más preocupantes que actualmente afectan a Irán es el relacionado con los narcóticos: un problema que abarca tanto el tráfico ilegal transnacional como el uso ilegal de estas sustancias por los jóvenes", in Política Criminal de Irán en Materia de Narcóticos, Drogas e Sustancias Psicotrópicas, Revista Penal nº. 07, La Ley: Salamanca/Espanha, 2001, p. 90. Neste mesmo trabalho, Nateri informa que "en 1999 se aprobó una normativa que obliga a los bancos a realizar el control de facturas enviadas desde países extranjeros con el objetivo de prevenir la existencia de dinero negro y el blanqueo de capitales " (p. 94).

22.23. Ob. cit., págs. 25 e 27.

24. Montalvo, José Antonio Choclán, La Organización Criminal, Madrid: Dykinson, 2000, p. 14.

25. Merino, Cristina e Markez, Iñaki, "Opiáceos y Reducción del Daño: Revisión Jurídica", Dykinson: Madri, 2000, p. 83).

26. Segundo Sandra Gouvêa, "a origem deste grande canal de comunicação se deu na década de 60, durante a Guerra Fria. O governo americano desenvolveu o projeto ARPANET ( Advanced Research Projects Agency) para interligar computadores mil itares e industriais". Conferir sua obra "O Direito na Era Digital", Rio de Janeiro: MAUAD, 1997, p. 36.

27. Jornal A Tarde: Editorial, 22/05/2000, Bahia.

28. Riquert, Marcelo Alfredo, Informática y Derecho Penal Argentino, Buenos Aires: AD-HOC, 1999, p. 142.

29. "Criminalização do Verde", in Revista Consulex, nº. 19, julho/1998.

30. O princípio da legalidade vem insculpido na Constituição Federal, no seu art. 5º., XXXIX: "Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal": é a parêmia nullum crimen, nulla poena sine praevia lege scripta, que representa "uno de los princípios básicos del Derecho penal moderno que surge de la Revolución francesa y de los movimientos codificadores", segundo Manuel Jaén Vallejo, in Los Principios Superiores del Derecho Penal, Madrid: Dykinson, 1999, p. 09. Este princípio, que também vem expresso na Parte Geral do nosso Código Penal, em seu art. 1º., visa a garantir que a conduta humana apenas seja considerada uma infração penal se lei anterior assim a definir; por outro lado, ainda que haja o tipo penal, necessário se faz que o comportamento do agente se amolde perfeitamente à lei material, sob pena de se considerar atípica a conduta (ao menos do ponto de vista penal); este princípio ainda garante a irretroatividade da lei penal, salvo quando benéfica e a clareza na formulação dos tipos penais (taxatividade). Luiz Luisi, após tecer longo comentário a respeito do princípio da legalidade ou da reserva legal, revela que "ao reiterar na Constituição de 1988 o postulado da Reserva Legal, o constituinte brasileiro não somente manteve um princípio já secularmente incorporado ao direito pátrio, mas se aliou às Constituições e aos Códigos Penais "O Inferno do Tráfico", Ponto de Vista, Revista Veja, 21/03/2001, p. 22. da quase totalidade das Nações, já que o mencionado princípio é uma essencial garantia de liberdade e de objetiva Justiça. " (cfr. "Os Princípios Constitucionais Penais", Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 18). Razão assiste ao mestre gaúcho. Tal postulado, por exemplo, está presente na Constituição espanhola em dois dispositivos: art. 9º.-3 ("La Constitución garantiza el principio de legalidad") e 25º.- 1: "Nadie puede ser condenado o sancionado por acciones u omisiones que en el momento de producirse no constituyan delito, falta o infracción administrativa, según la legislación vigente en aquel momento." O Código Penal italiano o proclama em seu art. 1º.: "Nessuno può essere punito per un fatto che non sia espressamente preveduto come reato dalla legge, né con pene che non siano da essa stabilite". O alemão não difere em seu § 1º. (na tradução espanhola): "Un hecho podrá ser castigado sólo cuando se encuentre tipificado previamente a su comisión". Tampouco o suiço ("Nul ne peut être puni s'il n'a commis un acte expressément réprimé por la loi." - art. 1º.), o lusitano ("Só pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática") e, até..., o cubano: "Solo pueden sancionarse los actos expresamente previstos como delitos en la Ley, com anterioridad a su comisión." - art. 2º. Vê-se, pois, a importância e a essencialidade deste princípio do Direito Penal. Adotando-o, como o faz a quase maioria dos países modernos, garante-se que ninguém seja punido sem lei anterior que defina claramente o respectivo fato como uma infração penal. Mas, como se disse acima, o princípio da legalidade também traduz algo mais: a necessidade da perfeita adequação entre a conduta humana e o tipo legal. É que, como diz Luisi, ele também se desdobra no postulado da "determinação ta xativa ", segundo o qual "as leis penais, especialmente as de natureza incriminadora, sejam claras e o mais possível certas e precisas." (ob. cit. p. 18). Assim, em Direito Penal, é indispensável que o comportamento se adeque perfeitamente ao tipo legal, ou seja, que ele seja típico, que haja tipicidade. Como explica Zaffaroni, "el tipo es una figura que resulta de la imaginación del legislador; el juicio de tipicidad la averiguación que sobre una conducta se efectúa para saber si presenta los caracteres imaginados por el legislador: la tipicidad el resultado afirmativo de ese juicio". (cfr. Tratado de Derecho Penal, Vol. III, Buenos Aires: Ediar, 1981, p. 172). Tipicidade, assim, "é a conformidade do fato praticado pelo agente com a moldura abstratamente descrita na lei penal", sendo, outrossim, "uma decorrência natural do princípio da reserva legal", como afirma Cezar Roberto Bitencourt (Manual de Direito Penal, Parte Geral, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 234). Desta forma, se o fato não guarda estreita correspondência com a norma jurídico- penal, evidentemente falta tipicidade e, por conseguinte, crime a punir.

31. Beltramone, Guillermo e Zabale, Ezequiel, El Derecho en la Era Digital, Rosario: Editorial Juris, 1997, p. 54.

32. Delpech, Horacio Fernández, Protección Jurídica del Software, Buenos Aires: Abeledo -Perrot, 2000, p. 78.

33. Idem, p. 96.

34. "O hacker é uma pessoa que desfruta da exploração dos detalhes mais íntimos de determinado programa de sistema, sabendo utilizá-lo ao máximo, ao cont rário do usuário comum que opta por aprender o mínimo comum." Daoun, Alexandre Jean e Blum, Renato M. S. Opice, "Cybercrimes", in Direito & Internet, São Paulo: Edipro, 2000, p. 122.

35. No Uruguai, por exemplo, onde não há uma legislação penal específica a respeito do tema, "la jurisprudencia ha sido muy reacia en asimilar a las figuras clássicas del hurto, daño, etc., a los delitos de este tipo cometidos por medios informáticos ". (idem, p. 120).

36. Conforme nos ensina Luiz Luisi, "a vulgarização do direito penal, resultante do abuso da criminalização, já foi detectada entre nós por Maurício de Nassau. E foi denunciada de forma veemente pelos mais eminentes penalistas do século XIX, e do nosso tempo. Basta lembrar que Carrara definiu esse processo como 'monorréia penal'. E mais recentemente F. Carnelutti sustentou que a inflação penal tem sido mais daninha que a própria inflação monetária, por ter desmoralizado a função de prevenção geral da pena." ("Criminalização do Verde", in Revista Consulex, nº. 19, julho/1998).

37. Internet y Derecho Penal: Hacking y Otras Conductas Ilícitas en la Red, Navarra: Editorial Aranzadi, 1999, p. 21.

38. "Sistemas informatizados, grosso modo, dizem respeito à informática, técnica eletrônica desenvolvida com o uso de bits, computadores e microcomputadores ou rede deles, scanner, software, hardware, equipamentos sofisticados em permanente evolução científica". (Martinez, Wladimir Novaes, Os Crimes Previdenciários no Código Penal, São Paulo: LTr, 2001, p. 55).

39. Crimes contra a Previdência Social, São Paulo: Saraiva, 2000, p. 48.

40. Ob. cit., p. 63.

41. Idem, p. 75.

42. http://www.estadao.com.br, 22/05/2000.

43. Jornal A Tarde, 11/04/2000.

44. Jornal A Tarde, 11/04/2000.

45. Jornal A Tarde, 25/05/2000.

46. http://www.estadao.com.br, 28/06/2000.

47. "Os Crimes da Informática", in Estudos Jurídicos em Homenagem a Manoel Pedro Pimentel, São Paulo: RT, 1992, p. 139.

48. Entenda- se o meio ambiente não em sua forma restrita, ou seja, aquela "que lo incorpora al concepto de ambiente natural, o sea, al constituído por el aire, el água, el suelo, la flora y la fauna", concepção que "se ha quedado em el tiempo ". "Entonces, el medio ambiente debe ser entendido en forma amplia, esto es, abarcando todo aquello que rodea al hombre, lo que lo puede influir y lo que puede ser influído por él." (Libster, Mauricio Héctor, Delitos Ecológicos, Buenos Aires: Ediciones Depalma, 2000, p. 6. 43 Tais Organizações são instituições criadas exatamente para suprir as deficiências do setor público (Primeiro Setor), deficiências estas que não puderam ser abarcadas conveniente e efetivamente pelo mercado (Segundo Setor). Nascem, portanto, da vontade de pessoas em imiscuirem- se em determinadas atividades que antes eram exclusivas do Estado e que passaram a não mais depender de ações governamentais. São as conhecidas ONG's ("Non-Governmental Organizations - NGO), surgidas a partir das Nações Unidas, onde pela primeira vez foi o termo utilizado para definir organizações que atuavam supra e internacionalmente em atividades, projetos e programas na área de política de desenvolvimento, "com o objetivo de contribuir para a erradicação das condições de vida desiguais e injustas no mundo, mas sobretudo nos países do Sul. Essas organizações concentram -se em áreas especiais de trabalho que são, sobretudo, dirigidas a pessoas e grupos dentre os mais necessitados e marginalizados".

(Andréa Koury Menescal, História e Gênese das Organizações Não- Governamentais, Estação Liberdade, São Paulo, 1996, p. 23). São basicamente uma iniciativa do setor privado, porém com a peculiaridade de não perseguir primordialmente lucros, como ocorre com o mercado. Têm ao mesmo tempo um caráter público (do ponto de vista teleológico) e privado (estruturalmente considerados). Este aparente paradoxo se justifica com a comprovação histórica do equívoco em simplificar as relações sociais e econômicas tão- somente entre o público e o privado, entre o Estado e o mercado. Elas se destacam nitidamente das ações governamentais, a partir do reconhecimento de que certas atividades, antes em mãos do Estado, podem ser realizadas pela iniciativa da sociedade civil organizada, inclusive com melhor resultado, além de dar ênfase ao conceito de cidadania. Estas organizações, apesar de poderem obter lucros ou outros dividendos econômicos, de regra, não os distribuem entre seus diretores ou coordenadores. O lucro advindo de suas atividades é revertido para a consecução de suas finalidades, bem como pagamento de suas despesas, inclusive com os seus empregados (não voluntários). Observa- se, a propósito, que nos Estados Unidos o salário dos executivos das principais organizações não- governamentais chega a passar de meio milhão de dólares por ano; comentando esta informação, o professor da Fundação Getúlio Vargas, Mário Aquino Alves diz que "no Brasil ainda estamos longe disso, mas o terceiro setor está se desenvolvendo em um ritmo muito acelerado." (Revista Veja, n.º 41/outubro/99, p. 137). O certo é que atividades como a proteção ao meio ambiente (Greenpeace), aos menores de rua (Projeto Axé, Fundação Abrinq), de testemunhas de crimes (PROVITA), a filantropia (Lions Club), a ciência e tecnologia (SBPC), a manutenção de ambulatórios, a educação, etc., etc., podem atualmente ser muito bem realizadas por estes grupos, afastando pouco a pouco a ação governamental. Nesse sentido, os seus defensores afirmam que "não há serviço público que não possa, em alguma medida, ser trabalhado pelas iniciativas particulares. (...) Internalizar essa idéia e universalizá-la tem, evidentemente, implicações profundas para a cultura cívica do país, que se desdobra em novos modos de conduzir as políticas públicas." (cfr. Rubem César Fernandes, in 3º. Setor - Desenvolvimento Social Sustentado, Editora Paz e Terra S/A, Rio de Janeiro, 1997, p. 29, grifo nosso).

50. A Nova Lei Ambiental e suas Aberrações Jurídico-Penais, Revista Literária de Direito, julho/agosto de 1998, p. 29.

51. "Criminalização do Verde", in Revista Consulex, nº. 19, julho/1998.

52. http://www.estadao.com.br, 22/06/2000.

53. Hassemer, Winfried, "A Preservação do Ambiente através do Direito Penal", in Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº. 22. A esse respeito conferir Jesus-Maria Silva Sanchez, "Política Criminal Moderna? Consideraciones a partir del ejemplo de los delitos urbanísticos en el nuevo Código penal español", in Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº. 23.

54. Exemplos: em dezembro de 1999 determinado madeireiro paraense foi multado em R$ 20 milhões por ter sido flagrado extraindo ilegalmente 40 mil árvores dentro da reserva dos índios tembés, em Ipixuna, no leste daquele Estado (Jornal A Tarde, 20/12/1999); antes, no mês de outubro do mesmo ano, uma madeireira foi multada em R$ 700 mil pela extração ilegal de 1.300 metros cúbicos de mogno e de outras espécies nobres de madeira dentro da reserva indígena caiapó Baú, em Altamira, sudoeste do Pará (www.estadao.com.br, 03/10/21999).

55. Crimes Contra o Ambiente, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 17.

56. "A Inspeção -Geral do Ambiente", Tribuna da Magistratura, julho/agosto de 1999.

57. Pagliuca, José Carlos Gobbis, "Crimes Patrimoniais e Ambientais nos EUA: Ligeiros Apontamentos", Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCrim, nº. 94 (setembro/2000).

58. A Juíza norte- americana Catherine Tinker, atuante na Vara Ambiental de Nova Iorque, mestre e doutora em Direito Ambiental Internacional pela New York University, vê o Brasil "como um líder na comunidade internacional no campo do Direito Ambiental". (Revista Consulex, nº. 46, outubro/2000).

59. Lembram- se do boato que circulou na internet, segundo o qual professores norte- americanos estariam mostrando a seus alunos um mapa onde o Brasil aparece dividido ao meio, e a Amazônia e o Pantanal seriam áreas de proteção internacional? Esta história foi oficialmente desmentida, inclusive pelo embaixador brasileiro na Organização dos Estados Americanos.

60 Palavras do químico americano Gordon Moore, Revista Istoé/1659 - 18/07/2001.

61 Kellens ("L'evolution de la théorie du crime organisé"), citado por Montalvo, José Antonio Choclán, in La Organización Criminal, Madrid: Dykinson, 2000, p. 12, adverte para a estreita vinculação da criminalidade organizada com a lavagem de dinheiro.

62. Montalvo, José Antonio Choclán, La Organización Criminal, Madrid: Dykinson, 2000, p. 09.

63. Apud, Montalvo, ob. cit., p. 13.

64. Parece-nos interessante transcrever um depoimento de Leonardo Boff, ao descrever os percalços que passou até ser condenado pelo Vaticano, sem direito de defesa e sob a égide de um típico sistema inquisitivo. Após ser moral e psicologicamente arrasado pelo secretário do Santo Ofício (hoje Congregação para a Doutrina da Fé), cardeal Jerome Hamer, em prantos, disse-lhe: "Olha, padre, acho que o senhor é pior que um ateu, porque um ateu pelo menos crê no ser humano, o senhor não crê no ser humano. O senhor é cínico, o senhor ri das lágrimas de uma pessoa. Então não quero mais falar com o senhor, porque eu falo com cristãos, não com ateus." Por uma ironia do destino, depois de condenado pelo inquisidor, Boff o telefonou quando o cardeal estava à beira da morte, fulminado por um câncer. Ao ouvi-lo, a autoridade eclesiástica desabafou, chorando: "Ninguém me telefona... foi preciso você me telefonar! Me sinto isolado (...) Boff, vamos ficar amigos, conheço umas pizzarias aqui perto do Vaticano..." (in Revista Caros Amigos - As Grandes Entrevistas, dezembro/2000).

65. Ferrajoli, Luigi, Derecho y Razón, Madrid: Editorial Trotta, 3ª. ed., 1998, p. 604.

66. Crime Organizado, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2ª. edição, 1997, p. 133 67. Lopes Jr., Aury, Investigação Preliminar no Processo Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 74.

68. Como diz o Professor da Universidade de Valencia, Juan Montero Aroca, "en correlación con que la Jurisdicción juzga sobre asuntos de otros, la primera exigencia respecto del juez es la de que éste no puede ser, al mismo tiempo, parte en el conflicto que se somete a su decisión." (Sobre la Imparcialidad del Juez y la Incompatibilidad de Funciones Procesales, Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 186).

69. Iniciación al Proceso Penal Acusatório, Buenos Aire s: Campomanes Libros, 2000, p. 43.

70. Interceptação Telefônica, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 111.

71. À época, e a respeito deste assunto, escrevemos o seguinte texto: "A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA DELAÇÃO NO DIREITO POSITIVO BRASILEIRO" : No ano de 1990, mais precisamente no dia 26 de julho, publicava- se no Diário Oficial da União, o texto completo de uma nova lei, vinda como uma resposta aos anseios populares de diminuição da violência urbana que, já naquela época, beirava a insuportabilidade (tal como hoje, nada obstante os cinco anos de sua vigência).

Sancionada pelo Presidente da República, tentava em seus 13 artigos (dois destes vetados) conter a pressão popular sobre os governantes, através da exasperação das penas de determinados crimes, impossibilitando- se, também, a concessão de benefícios aos sentenciados, tais como, a anistia, a graça e o indulto, além de proibir o gozo de direitos subjetivos individuais (mesmo estando presentes os requisitos específicos para a sua fruição), como a fiança e a liberdade provisória, tudo a atender "ao contagiante clima psicológico de pavor criado pelos meios de comunicação social e aos interesses imediatos de extratos sociais privilegiados", como acentuou Alberto Silva Franco, in Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, 5a. edição, 1995, p. 2074).

Como não poderia deixar de ser, inúmeras vozes, quase em uníssono, levantaram-se contra a sua edição, taxando- a de inoportuna, atécnica e inconstitucional. Estamos a falar da Lei n. 8.072/90 que dispõe " sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5o., XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências", cujos defeitos não iremos aqui abordar, pois não é este o nosso escopo no momento.

Trataremos, tão-somente, de um instituto por ela criado: a delação como causa obrigatória de diminuição da pena em favor de autor, co-autor ou partícipe nos crimes de extorsão mediante sequestro e quadrilha ou bando (este último quando a societas sceleris tiver sido formada com o intuito de praticar os crimes considerados hediondos e outros a eles assemelhados), fato que, aliás, não deixa de ser outro gravíssimo defeito, como explicitaremos adiante. Mas, não é só.

Ainda mais recentemente, em 03 de maio deste ano, o Presidente Fernando Henrique Cardoso, sancionou a Lei n. 9.034/95, dispondo "sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas." Tal como o anterior, este instrumento normativo, criado para definir e regular "meios de prova e procedimentos investigatórios que versarem sobre crime resultante de ações de quadrilha ou bando ", também considera causa compulsória de diminuição da pena a delação de um dos participantes na organização criminosa.

Aliás, na Lei de Crimes Hediondos, o legislador foi mais explícito e utilizou o verbo denunciar como sinônimo da delação, enquanto que nesta segunda norma, preferiu a expressão colaboração espontânea, como que para escamotear a vergonhosa presença da traição premiada em um diploma legal.

Por fim, em 19 de julho deste ano, foi sancionada a Lei n. 9080/95, prevendo, igualmente, a delação como prêmio ao co-autor ou partícipe de crime cometido contra o sistema financeiro nacional ou contra a ordem tributária, econômica e relações de consumo, quando cometidos em quadrilha ou co- autoria. Agora fala-se em confissão espontânea, o que resulta o mesmo.

Apenas para ilustrar, diga- se que alguns doutrinadores costumam distinguir a delação como aberta ou fechada, aduzindo que naquela primeira o delator aparece e se identifica, inclusive favorecendo- se de alguma forma com o seu gesto, seja na redução da pena, seja no recebimento de recompensa pecuniária; nesta, ao contrário, o delator se assombra no manto do anonimato, "propiciando auxílio desinteressado e sem qualquer perigo ", como assevera Paulo Lúcio Nogueira ( Crimes Hediondos, LEUD, 4a. ed., p. 126).

Afora questões de natureza prática, como, por exemplo, a inutilidade, no Brasil, desse instituto, por conta, principalmente, do fato de que o nosso Estado não tem condições de garantir a integridade física do delator criminis, nem a de sua família, o que serviria como elemento desencorajador (note-se que, conforme informou o ilustrado Damásio E. de Jesus, quando do III Encontro Estadual do Ministério Público do Estado da Bahia, em Comandatuba, no período de 31 de agosto de 1995 a 03 de setembro do mesmo ano, até aquela data, apenas um caso de delação premiada tinha sido por ele visto, quando de um julgamento do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo), aspectos outros, estes de natureza ético- moral, informam a profunda e irremediável infelicidade cometida mais uma vez pelo legislador brasileiro, muito demagógico e pouco cuidadoso quando se trata dos aspectos jurídicos de seus respectivos projetos de lei, como sói acontecer.

Para nós, é tremendamente perigoso que o Direito Positivo de um país permita, e mais do que isso, incentive os indivíduos que nele vivem à prática da traição como meio de obter- se um prêmio ou um favor jurídico.

Se considerarmos que a norma jurídica de um Estado de Direito é o último refúgio do seu povo, no sentido de que as proposições enunciativas nela contidas representam um parâmetro de organização ou conduta das pessoas (a depender de qual norma nos refiramos, se, respectivamente, de segundo ou primeiro graus, no dizer de Bobbio), definindo os limites de suas atuações, é inaceitável que este mesmo regramento jurídico preveja a delação premiada, em flagrante incitamento à transgressão de preceitos morais intransigíveis que devem estar, em última análise, embutidos nas regras legais exsurgidas do processo legislativo.

Que não se corra o perigo, já advertido e vislumbrado pelo poeta Dante Alighieri, lembrado por Miguel Reale, quando filosofa que o "Direito é uma proporção real e pessoal, de homem para homem, que, conservada, conserva a sociedade; corrompida, corrompe-a. "( in Lições Preliminares de Direito, Saraiva, 19a. ed. 1991, p. 60).

Diante dessa sombria constatação, como se pode exigir do governado um comportamento cotidiano decente, se a própria lei estabelecida pelos governantes, permite e galardoa um procedimento indecoroso? Como fica o homem de pouca ou nenhuma cultura, ou mesmo aquele desprovido de maiores princípios, diante dessa permissividade imoral ditada pela própria lei, esta mesma lei que, objetiva e obrigatoriamente, tem de ser respeitada e cumprida, sob pena de sanção? Estamos ou não estamos diante de um paradoxo? É certo que em outras legislações, inclusive de países desenvolvidos economicamente (embora possuidores de uma sociedade em desencanto, como, por exemplo, a italiana), a figura da delatio já existe há algum tempo (lá, diga-se de passagem, assegura- se inquestionavelmente a vida do denunciante), como ocorre nos Estados Unidos (bargain) e na Itália (pattegiamento), entre outros países. São exemplos, contudo, que não deveriam ser seguidos, pois desprovidos de qualquer caráter moral ou ético, como já acentuamos.

Tão- somente para se argumentar, pode- se dizer que o bem jurídico visado pela delação (a segurança pública), just ificaria a sua utilização, ou, em outras palavras, o fim legitimaria o meio. Ocorre que tal princípio é de todo amoralista, aliás, próprio do sistema político defendido pelo escritor e estadista florentino Niccolò Machiavelli (1469- 1527), sistema este dito de um realismo satânico, na definição de Frederico II em seu Antimaquiavel, tornando- se sinônimo, inclusive, de procedimento astucioso, velhaco, traiçoeiro, etc., etc...

O próprio Rui Barbosa já afirmava não se dever combater um exagero (no caso a violência desenfreada) com um absurdo (a delação premiada). Entendemos que o aparelho policial do Estado deve se revestir de toda uma estrutura e autonomia, a fim de poder realizar seu trabalho a contento, sem necessitar de expedientes escusos na elucidação dos delitos. O aparato policial tem a obrigação de, por si próprio, valer-se de meios legítimos para a consecução satisfatória de seus fins, não sendo necessário, portanto, que uma lei ordinária use do prêmio ao delator (crownwitness), como expediente facilit ador da averiguação policial e da efetividade da punição.

Ademais, no próprio Código Penal já existe a figura da atenuante genérica do art. 65, III, b, onde a pena será sempre atenuada quando o agente tiver "procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as consequências, ou ter, antes do julgamento, reparado o dano ", que poderia muito apropriadamente compensar (por assim dizer) uma atitude do criminoso no auxílio à autoridade investigante ou judiciária.

Além da atenuante referida, há o instituto do arrependimento eficaz que, igualmente, beneficia o agente quando este impede, voluntariamente, que o resultado da execução do delito se produza, fazendo- o responder, apenas, pelos atos já praticados (art. 15).

Pode-se, ainda, referir- se ao preceito do art. 16, arrependimento posterior, bem verdade que este limitado àqueles crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, mas, da mesma forma, compensador de uma atitude favorável por parte do delinquent e, reduzindo- lhe a pena.

Vê-se, destarte, que o ordenamento jurídico existente e consubstanciado no Código Penal já permitia beneficiar o réu em determinadas circunstâncias, quando demonstrasse " menor endurecimento no querer criminoso, certa sensibilidade moral, um sentimento de humanidade e de justiça que o levam, passado o ímpeto do crime, a procurar detê-lo em seu processo agressivo ao bem jurídico, impedindo-lhe as consequências", como já acentuou o mestre Aníbal Bruno (Direito Penal, 4a. ed. t. III, p. 140, 1984). Não necessitava, portanto, o legislador, em lei extravagante, vir a prever a delação premiada, como causa de diminuição da pena. Também por isso foi inoportun A traição demonstra fraqueza de caráter, como denota fraqueza o legislador que dela abre mão para proteger seus cidadãos. A lei, como já foi dito, deve sempre e sempre indicar condutas sérias, moralmente relevantes e aceitáveis, jamais ser arcabouço de estímulo a perfídias, deslealdades, aleivosias, ainda que para calar a multidão temerosa e indefesa (aliás, por culpa do próprio Estado) ou setores economicamente privilegiados da sociedade (no caso da repressão à extorsão mediante sequestro).

Em nome da segurança pública, falida devido à inoperância social do Poder e não por falta de leis repressivas, edita- se um sem número de novos comandos legislativos sem o necessário cuidado com o que se vai prescrever.

Incita- se, então, à traição, este mal que já matou os conjurados delatados pelo crápula Silvério dos Reis; que levou Jesus à cruz por conta da fraqueza de Judas e deu novo alento aos invasores holandeses graças à ajuda infame de Calabar.

Esses traidores históricos, e tantos outros poderiam ser citados, são símbolos do que há de pior na espécie humana; serão sempre lembrados como figuras desprezíveis. Advirta- se, que não estamos a fazer comparações, pois, sequer são, neste caso cabíveis. Apenas tencionamos mostrar a nossa indignação com a utilização da ordem jurídica como instrumento incentivador da traição, ainda que se traia um sequestrador, um latrocida ou um estuprador.

Não podemos nos valer de meios esconsos, em nome de quem quer que seja ou de qualquer bem, sob pena, inclusive, de sucumbirmos à promiscuidade da ordem jurídica corrompida, pelo que procuramos, sucintamente, neste trabalho, condenar a delatio premiada introduzida em nosso Direito Positivo.

72. Sobre esta absurda exigência, assim já nos posicionamos, ao comentar o art. 594 do Código de Processo Penal, que possui semelhante disposição: "O ARTIGO 594 DO CPP - UMA INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO": pela regra imposta no art. 594 do Código de Processo Penal, "o réu não poderá apelar sem recolher -se à prisão, ou prestar fiança, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime que se livre solto." Assim, em relação ao condenado que não seja primário e não tenha bons antecedentes, dois ônus a ele se impõem por força de lei: a prisão automática decorrente da sentença condenatória (salvo se se livrar solto ou prestar fiança, sendo esta cabível) e a impossibilidade de recorrer se não for recolhido à prisão.

Na verdade, se nos limitarmos a interpretar literalmente este artigo chegaremos forçosamente à conclusão que ele afronta a Constituição (e, portanto, é inválido) em pelo menos duas oportunidades: 1ª.) quando o texto constitucional garante a presunção de inocência (Tucci, respaldado pelas lições de Guglielmo Sabatini, prefere a expressão não-consideração prévia de culpabilidade, pois "l'imputato è sempre e solo imputato ai fini dello svolgimento del processo. Quindi non va considerato nè come innocente, nè come colpevole." (in Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro, São Paulo: Saraiva, 1993, p. 401. Outros autores falam em princípio da não-culpabilidade e, como Dotti, em princípio da incensurabilidade) e 2ª.) quando assegura a ampla defesa, com os recursos a ela inerentes.

Ora, se o art. 5º., LVII, da Constituição proclama que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória", é de todo inadmissível que alguém seja preso antes de definitivamente julgado, salvo a hipótese desta prisão provisória se revestir de caráter cautelar, independentemente de primariedade e de bons antecedentes. Soa, portanto, estranho alguém ser presumivelmente considerado não culpado (pois, ainda não foi condenado definitivamente) e, ao mesmo tempo, ser obrigado a se recolher à prisão, mesmo não representando a sua liberdade nenhum risco seja para a sociedade, seja para o processo, seja para a aplicação da lei penal. Mais estranho se nos afigura ao atentarmos que aquela presunção foi declarada constitucionalmente.

Desta forma, esta prisão provisória, anterior a uma decisão transitada em julgado, só se revestirá de legitimidade caso seja devidamente fundamentada (art. 5º., LXI, CF/88) e reste demonstrada a sua necessidade, o periculum libertatis, expressão preferida pelos italianos, ao invés do periculum in mora (cfr. Delmanto Junior, Roberto, in As Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de Duração, Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 67).

No mesmo passo, há a segunda questão: se a Constituição também assegura aos acusados em geral a ampla defesa com os recursos a ela inerentes, parece-nos também claro que uma lei infraconstitucional não poderia condicionar este direito de recorrer àquele que não tem bons antecedentes e não é primário, ao recolhimento à prisão. Observa-se que esta regra legal está complementada no artigo seguinte, segundo o qual "se o réu condenado fugir depois de haver apelado, será declarada deserta a apelação." (art. 595, CPP).

Da mesma forma, agora igualmente soa estranho para nós não se permitir ao acusado o acesso ao duplo grau de jurisdição, quando não seja primário e não tenha bons antecedentes.

Não esqueçamos que a "adoção do duplo grau de jurisdição deixa de ser uma escolha eminentemente técnica e jurídica e passa a ser, num primeiro instante, uma opção política do legislador." (Moraes, Maurício Zanoide de, Interesse e Legitimação para Recorrer no Processo Penal Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 29).

Apesar do texto constitucional não conter expressamente a garantia do duplo grau de jurisdição (como ocorre com a presunção de inocência), é indiscutível o seu caráter de norma materialmente constitucional, mormente porque o Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) que prevê em seu art. 8º., 2, h, que todo acusado de delito tem "direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior", e tendo - se em vista o estatuído no § 2º., do art. 5º., da CF/88, segundo o qual "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte." Ratificamos, também, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova Iorque que no seu art. 14, 5, estatui que "toda pessoa declarada culpada por um delito terá o direito de recorrer da sentença condenatória e da pena a uma instância superior, em conformidade com a lei".

É bem verdade que a doutrina se debate a respeito da posição hierárquica que ocupam as normas advindas de tratado internacional. Parte dela entende que caso a norma internacional trate de garantia individual, terá ela status constitucional, até por força do referido § 2º. Fábio Comparato, por exemplo, informa que "a tendência predominante, hoje, é no sentido de se considerar que as normas internacionais de direitos humanos, pelo fato de expressarem de certa forma a consciência ética universal, estão acima do ordenamento jurídico de cada Estado. (...) Seja como for, vai-se afirmando hoje na doutrina a tese de que, na hipótese de conflitos entre regras internacionais e internas, em matéria de direitos humanos, há de prevalecer sempre a regra mais favorável ao sujeito de direito, pois a proteção da dignidade da pessoa humana é a finalidade última e a razão de ser de todo o sistema jurídico" (Apud Sylvia Helena de Figueiredo Steiner, A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e sua Integração ao Processo Penal Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 91): é o chamado princípio da prevalência da norma mais favorável ("Este princípio, perseguido pelo direito internacional geral, e vigorosamente defendido por setores da doutrina brasileira, parece não haver ganho, até o presente, expressiva concreção na jurisprudência brasileira, devendo ser lembrada a questão do depositário infiel": Bahia, Saulo José Casali, Tratados Internacionais no Direito Brasileiro, Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 116). O STF, reiteradamente, combate- o.

Ada, Dinamarco e Araújo Cintra, após admitirem a indiscutível natureza política do princípio do duplo grau de jurisdição ("nenhum ato estatal pode ficar imune aos necessários controles") e que ele "não é garantido constitucionalmente de modo expresso, entre nós, desde a República", lembram, no entanto, que a atual Constituição "incumbe-se de atribuir a competência recursal a vários órgãos da jurisdição (art. 102, II; art. 105, II; art. 108, II), prevendo expressamente, sob a denominação de tribunais, órgãos judiciários de segundo grau (v.g., art. 93, III)": in Teoria Geral do Processo, São Paulo: Malheiros Editores, 1999, 15ª. ed., p. 74.

Resta- nos, então, já que legem habemus, interpretar este dispositivo legal (infraconstitucional e fruto de uma lei de 1973) à luz da Constituição Federal, a fim de que possamos entendê-lo ainda como válido, fazendo, porém, uma leitura efetivamente garantidora.

Ora, se temos a garantia constitucional da presunção de inocência, é evidente que não pode ser efeito de uma sentença condenatória recorrível, pura e simplesmente, um decreto prisional, sem que se perquira quanto à necessidade do encarceramento.

Como sabemos, entre nós, cabível será a prisão preventiva sempre que se tratar de garantir a ordem pública, a ordem econômica, ou por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal. São estes os requisitos da prisão preventiva e que configuram exatamente o periculum libertatis. Estes requisitos, portanto, representam a necessidade da prisão preventiva, que não é outra coisa senão uma medida de natureza flagrantemente cautelar, pois visa a resguardar, em última análise, a ordem pública, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal (há, ainda, os pressupostos desta prisão, que não nos interessam no presente estudo).

Se assim o é, fácil é interpretar este artigo 594 da seguinte forma e nos seguintes termos: a prisão será uma decorrência de uma sentença condenatória recorrível sempre que, in casu, fosse cabível a prisão preventiva contra o réu, independentemente de sua condição pessoal de primário e de ter bons antecedentes; ou seja, o que definirá se o acusado aguardará preso ou em liberdade o julgamento final do processo é a comprovação da presença de um daqueles requisitos acima referidos.

Conclui-se que a necessidade é o fator determinante para alguém aguardar preso o julgamento final do seu processo, já que a Constituição garante que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória." Por outro lado, como a ampla defesa (e no seu bojo a garantia do duplo grau de jurisdição) também está absolutamente tutelada pela Carta Magna, o artigo ora analisado não pode ser interpretado literalmente, porém, mais uma vez, em conformidade com aquele Diploma, lendo- o da seguinte forma: não se pode condicionar a admissibilidade da apelação ao recolhimento do réu à prisão, mesmo que ele não seja primário e não tenha bons antecedentes. Aqui, vamos, inclusive, mais além: mesmo que a prisão seja necessária (e se revista, portanto, da cautelaridade típica da prisão provisória), ainda assim, admitir- se-á o recurso, mesmo que não tenha sido preso o acusado, ou que, após ser preso, venha a fugir.

Observa- se que, agora, mesmo sendo cabível o encarceramento provisório (por ser, repita- se, necessário), o não recolhimento do acusado não pode ser obstáculo à interposição de eventual recurso da defesa, e se recurso houver, a fuga posterior não lhe obstará o regular andamento (não pode ser considerado deserto).

Não concordamos, outrossim, que a exigência da prisão para recorrer seja uma "regra procedimental condicionante do processamento da apelação", como pensa Mirabete (Processo Penal, São Paulo: Atlas, 10ª. ed., 2000, p. 649), pois, como contrapõe Luiz Flávio Gomes, "se não ofende a presunção de inocência ou a ampla defesa, indiscutivelmente ofende o princípio da necessidade de fundamentação da prisão, inscrito no art. 5º., LXI." (Direito de Apelar em Liberdade, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2ª. ed., p. 32).

Vê-se que não optamos pela interpretação literal do art. 594, o que seria desastroso, tendo em vista as garantias constitucionais acima vistas. Por outro lado, utilizamo-nos do critério da interpretação conforme a Constituição, procurando adequar o texto legal com o Texto Maior e evitando negar vigência ao dispositivo, mas, antes, admitindo- o válido a partir de uma interpretação garantidora e em consonância com a Constituição.

Afinal de contas, como já escreveu Cappelletti, "a conformidade da lei com a Constituição é o lastro causal que a torna válida perante todas." (apud José Frederico Marques, in Elementos de Direito Processual Penal, Campinas: Bookseller, 1998, Vol. I, p. 79).

Devemos atentar que o presente artigo foi inserido em nosso código processual penal pela Lei nº. 5.941/73, época em que vigiam em nosso País a Constituição anterior a 1988 (que não trazia o princípio da presunção de inocência) e um regime não democrático.

Naquele contexto histórico, portanto, fácil era entender que uma lei ordinária viesse a dificultar o direito ao recurso e a prever a prisão automática decorrente de sentença condenatória recorrível. Bastava a sentença condenatória e a prisão impunha-se automaticamente, por força de lei, presumindo- se a culpabilidade ou a periculosidade do réu (ocorre que "nenhuma presunção emanada do legislador infraconstitucional pode prevalecer sobre a presunção constitucional", como diz Luiz Flávio Gomes, ob. cit., p. 26).

Ocorre que desde 1988 temos outra Constituição, com outros princípios, muitos dos quais expressamente previstos (o que não impede a existência de princípios constitucionais implícitos, como, v.g., o da proporcionalidade). A lei anterior, então, tem que ser interpretada segundo este critério, ou seja, em conformidade com a nova ordem constitucional (sob pena de ser considerada não recepcionada e, logo, inválida), evidentemente sem ultrapassar o seu sentido literal, apenas conformando- a com a Constituição.

Como dissemos, no tempo em que foi inserida em nosso sistema jurídico, a lei traduzia, em verdade, o momento histórico em que vivia o País, cabendo, por isso mesmo, atentarmos, agora, para o elemento histórico-teleológico (concepção subjetivista da interpretação, ou teoria da vontade), segundo o qual a lei obedece ao tempo em que foi intencionalmente (finalisticamente) concebida, devendo ser interpretada preferencialmente em conformidade com aquela realidade.

Devemos, então, buscar abrigo neste elemento histórico, acomodando a lei às "novas circunstâncias não previstas pelo legislador", especialmente aos "princípios elevados a nível constitucional" ("Estes são, sobretudo, os princípios e decisões valorativas que encontram expressão na parte dos direitos fundamentais da Constituição, quer dizer, a prevalência da ‘dignidade da pessoa humana’ (...), a tutela geral do espaço de liberdade pessoal, com as suas concretizações (...) da Lei Fundamental": Larenz, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 3ª. ed., 1997, p. 479).

Só poderíamos interpretar este artigo literalmente se este modo interpretativo fosse possível à luz da CF/88. Por outro lado, não entendemos ser o caso de, simplesmente, reconhecer inválida a norma insculpida naquele artigo de lei. A nós nos parece ser possível interpretá- la em conformidade com o texto constitucional, sem que se o declare inválido e sem "ultrapassar os limites que resultam do sentido literal e do contexto significativo da lei" (idem, p. 481).

Se verdade é que "por detrás da lei está uma determinada intenção reguladora, estão valorações, aspirações e reflexões substantivas, que nela acharam expressão mais ou menos clara ", também é certo que "uma lei, logo que seja aplicada, irradia uma acção que lhe é peculiar, que transcende aquilo que o legislador tinha intentado. A lei intervém em relações da vida diversas e em mutação, cujo conjunto o legislador não podia ter abrangido e dá resposta a questões que o legislador ainda não tinha colocado a si pr óprio. Adquire, com o decurso do tempo, cada vez mais como que uma vida própria e afasta-se, deste modo, das idéias dos seus autores." (grifo nosso): teoria objetivista ou teoria da interpretação imanente à lei (72 idem, ibidem, p. 446).

Portanto, não se pode ler o artigo 594 e inferir, hoje, o que se traduz gramaticalmente desta leitura. A interpretação literal efetivamente deve ser o início do trabalho, mas não o completa satisfatoriamente ("Toda a interpretação de um texto há -de iniciar-se com o sentido literal", idem, p. 450).

Em reforço à tese ora esboçada, ilustra- se dizendo que o projeto de lei de reforma do Código de Processo Penal, expressamente, revoga os arts. 594 e 595 do atual CPP. Na respectiva exposição de motivos, justifica-se a revogação afirmando que teve "como objetivo definir que toda prisão antes do trânsito em julgado final somente pode ter o caráter cautelar. A execução ‘antecipada’ não se coaduna com os princípios e garantias do Estado Constitucional e Democrático de Direito." São os novos tempos...

Vê-se que "las leyes son e deben ser la expresión más exacta de las necesidades actuales del pueblo, habida consideración del conjunto de las contingencias históricas, en medio de las cuales fueron promulgadas." (grifo nosso): Fiore, Pascuale, De la Irretroactividad e Interpretación de las Leyes, Madri: Reus, 1927, p. 579 (tradução do italiano para o espanhol de Enrique Aguilera de Paz).

Ademais, atentando-se, outrossim, para o sistema jurídico e fazendo uma interpretação sistemática do dispositivo ("Consiste o processo sistemático em comparar o dispositivo sujeito a exegese, com outros do mesmo repositório ou de leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto", segundo nos ensina Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro: Freitas Bastos S/A, 1961, 7ª. ed., p. 164), assinalamos que, posteriormente a ele, surgiu no cenário jurídico brasileiro a Lei nº. 8.072/90 (Crimes Hediondos), dispondo que "em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade." (art. 2º., § 2º., com grifo nosso).

Atenta-se, com Maximiliano, que o "Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio." (idem, p. 165).

Para finalizar, recorremos, mais uma vez, a Larenz:

"Mediante a interpretação ‘faz -se falar’ o sentido disposto no texto, quer dizer, ele é enunciado com outras palavras, expressado de modo mais claro e preciso, e tornado comunicável. A esse propósito, o que caracteriza o processo de interpretação é que o intérprete só quer fazer falar o texto, sem acrescentar ou omitir o que quer que seja. Evidentemente que nós sabemos que o intérprete nunca se comporta aí de modo puramente passivo." (Ob. cit., p. 441).

 

Rômulo de Andrade Moreira
romuloamoreira[arroba]uol.com.br
Rômulo de Andrade Moreira
Promotor de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais do Ministério Público do Estado da Bahia.
Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador-UNIFACS na graduação e na pós -graduação (Cursos de Especialização em Direito Público
e em Processo). ]
Pós -graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha e pela UNIFACS (Especialização em Processo, coordenado pelo Professor Calmon de Passos).
Membro da Association Internationale de Droit Penal e do Instituto Brasileiro de Direito Processual.
Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim e ao Movimento do Ministério Público Democrático.


Partes: 1, 2, 3


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