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Heroína a próxima epidemia de drogas no Brasil? (página 2)

Marcelo Ribeiro

 

Caso clínico

O paciente de 30 anos, branco, masculino, natural e procedente de São Paulo, católico, joalheiro, cursou até o segundo ano do curso de enfermagem. Atividade atual: tráfico de drogas. Atividades anteriores: garimpeiro, piloto de teste de motocicletas, microempresário.

Histórico Escolar: início aos 7 anos; sem reprovações; curso em escolas particulares em bairros de classe média de São Paulo.

Sexualidade: início aos 13 anos; muitas parceiras a use esporádico de preservativos; nega relacionamentos homossexuais; casado por três vezes, pai de três filhos, com 11, 6, 4 anos respectivamente.

Primeiras drogas:

11/12 anos (1977/78). Tabaco, álcool, maconha. Inicialmente aos finais de semana; em 1 mês use diário acompanhado de um ou dois amigos, antes a depois das aulas; 3 a 4 cigarros de maconha/dia; cerveja "até o final do dinheiro".

Evoluindo para:

Segunda droga: 14/15 anos (1980/81). Cocaína aspirada. Uso diário 1g a 2g, sempre antes do trabalho, ao sair e antes da escola; mantinha o use da maconha. Recursos próprio trabalho(balconista de loja de sapatos).

Terceira droga: 15/16 anos (1981/82). Optalidon (propifenazona). Mantinha o use das demais drogas, esta usava semanalmente.

Entre (1984 a 1989), incrementou o use de cocaína aspirada, usando cerca de 5g/dia, conforme a disponibilidade. Chegou a it para um país andino para trabalhar na colheita a refino de coca, recebendo 350g de coca/dia por uma jornada de 8 horas de trabalho, além do use livre durante o dia. Trazia cocaína para o Brasil, vendendo-a a amigos principalmente no garimpo. Em 1991 soube que em São Paulo, na Capital, era possível encontrar heroína. Passa cerca de 4 dias consecutivos no "ponto" onde a droga era vendida, "tentando convencer a vendedora". Segundo ele, esta só the passou a droga após ter se tomado "sua amante".

O preparo era feito em "banho maria", aspirando o vapor. Com uma colher de sobremesa, com um cabo de cada lado, apoiada dentro de uma panela rasa com água, aspirava os vapores da água em ebulição e a cabeça coberta por uma toalha plástica. Não usou a droga de forma aspirada, pois um amigo que assim fez por três dias consecutivos falou que causava perfuração do septo nasal e na asa do nariz. Consumia a droga semanalmente, sempre aos domingos, pois a venda era feita nesse dia em uma barraca de quadros localizada numa feira de artesanato no bairro da Liberdade. Na época, preparava a droga dessa forma para grupos de 10 a 15 pessoas, não sabendo informar quantas gramas eram usadas. Normalmente, cada 4 pessoas compravam 1g por 280 dólares.

Aos 27 anos de idade (1993), passou a fazer use de heroína injetável, por não mais sentir os efeitos da forma inalada. Por 6 meses, conseguiu usar somente de 1 a 3 vezes por semana, a ao final de um ano, de 4 a 5 vezes por semana. Aos 28 anos, passa a fazer use diário, 5 a 6 vezes ou mais usando atualmente cerca 1g/dia. Para não compartilhar seringas, antes mesmo de usar pela primeira vez, mandou confeccionar uma seringa semelhante às usadas por dentista, inclusive com "cartuchos". Preparava os "cartuchos" com antecedência para use próprio e seringas para 18 a 20 pessoas . Usa gotas de casca de limão com ácido para cozinhar a dissolver a heroína em água destilada. Fazia use da droga em casa de amigos, ou no metrô, escondido dos transeuntes. Estas casas são geralmente mansões na zona sul a no litoral norte de SP aparentemente usadas apenas para este fim pois não moram pessoas lá. O grupo era constituído de 6 mulheres a 12 homens, com profissões variadas de modelos a empresários, todos adultos jovens.

Há três anos passou a integrar o "tráfico", fazendo viagens de moto, para Porto Strossner - Paraguai, sem paradas, retomando no mesmo dia. Trazia a droga na carenagem da moto e/ou numa mochila. Cerca de 35 a 40 kg por viagem the rendiam no máximo U$ 1.000, e pelo menos 5 g de heroína. Sabe que a droga vem do Oriente, mas não por onde chega a qual o meio de transporte. Refere, ainda, que há aproximadamente 6 anos, freqüenta com certa regularidade algumas casas do bairro da Liberdade onde se fuma ópio. O preço é alto, cerca de U$ 150,00 a dose, a as casas são freqüentadas quase exclusivamente por orientais.

Queixas físicas decorrentes do use crônico

1. Perda de todos os dentes, o que é referido como um fenômeno comum a todos os "empregados a patrões" desse comércio que usam próteses móveis, pelas quais podem se identificar (são feitas apenas por um protético ou dentista a passam de boca em boca corn pequenos ajustes). Atualmente, a ausência das gengivas quase expõe o osso da arcada superior.

2. Úlcera gástrica que o levou ao hospital "corn risco de cirurgia"(sic).

3. Flebites: no inicio, fazia use da heroína injetável nos braços. Corn a piora gradativa da funcionabilidade das veias, passou a fazer use das veias do pés, principalmente sob a unha do primeiro artelho.

Internação

Durante dois meses ficou intemado nun hospital público. Na sua entrada apresentava sintomas de intoxicação aguda leve pelos opiáceos: lentificação global, humor normal, miose, pele seca. Em seguida desenvolveu sintomas de abstinência pelos opiáceos: sudorese, bocejos freqüentes, rinorréia, lacrimejar, midríase, tremores, piloereção, vômitos, cólicas abdominais, diarréias, febre (38°5C), espasmos musculares, taquicardia a hipertensão arterial discreta, ansiedade, inquietação, arrepios, insônia, perda de energia a do apetite, fissura, delirium. Foi medicado corn benzodiazepínicos, prometazina, metoclopramida e metilbrometo de hioscina (Buscopan). Esses sintomas desapareceram progressivamente ao longo da primeira semana. Alguns sintomas como rinorréia, insônia, sudorese e a piloereção só desapareceram na semana seguinte. Foi usado neste período propranolol para alívio dos sintomas simpáticos a manteve benzodiazepínicos em doses altas (100 mg diazepam) devido à irritabilidade a insônia. Após dois meses de intemação houve remissão completa dos sintomas.

Discussão

O encontro de um paciente que relate o use de uma droga não facilmente disponível no mercado pode ser o começo de um novo padrão de consumo de drogas que se instalará numa comunidade. Os estudos epidemiológicos mostram que esses casos sentinelas possam ser importantes na detecção de epidemias. Devido àimportância de uma nova epidemia de uma nova droga no Brasil este caso pode servir como um alerta(4). Existe obviamente a limitação inerente a informação de um único caso que possa estar sujeito a uma série de meias verdades, a excepcionalidade da situação vivida pelo usuário, fantasias e mentira plena. No entanto o caso relatado manteve a versão dos fatos consistente ao longo de toda a intemação e a maior parte das informações foi confirmada pelos familiares. Além disso, apesar dos sintomas de abstinência dos opiáceos não serem absolutamente patognomônicos, a seqüência e o relato dos sintomas foram convincentes de abstinência aos opiáceos.

O que preocupa corn as informações obtidas são duas coisas. Em primeiro lugar uma rede de distribuição regular de heroína corn uma conexão corn o Paraguai. A implicação desta rede pode ser um começo de um sistema de distribuição de heroína que possa atingir um público grande.

Em segundo lugar, pelo relato deste paciente, começa a existir um tipo de usuário de heroína fora do círculo restrito da comunidade oriental paulistana. Esses usuários serum profissionais de classe média alta dispostos a experimentar corn a heroína. Algo semelhante está acontecendo também nos EUA atualmente corn o ressurgimento da heroína Profissionaisbem sucedidos estão deixando a cocaína e passando a usar heroína. A alegação é que a heroína apresenta menores conseqüências no dia seguinte, além do fato de que como esta droga está chegando de uma forma mais pura ela pode ser usada aspirada ou inalada.

Se essas informações forem confirmadas por outros pacientes, podemos estar diante de uma nova onda de use de drogas corn conseqüências imprevisíveis para a saúde pública no Brasil. Os usuários de drogas brasileiros não estão acostumados corn os opiáceos, pois a América Latina, historicamente sempre foi poupada deste tipo de droga. Em oposição à Europa a aos EUA que desde o século passado apresentam um consumo constante de opiáceos. Um dos principais riscos corn essa droga é que no começo, inúmeros usuários despreparados possam ter overdose, por desconhecerem a dose que deveriam usar ou a real pureza da droga. Além disso o use crônico e o aparecimento dos sintomas de abstinência, corn o predomínio de desconforto físico, possa ser mais um fator envolvido na criação de um grupo de usuários desorganizados a que possam envolver-se em comportamentos antisociais para conseguir a droga.

O desafio para os organizadores da saúde pública que estão envolvidos na prevenção de drogas a na organização de serviços aos usuários de drogas é enorme. Podemos ter em alguns centros urbanos um novo grupo de usuários de drogas, corn problemas que se aglutinarão aos enormes problemas já existentes relacionados ao crack e à cocaína. Devemos nos próximos meses monitorar muito de perto novos casos que eventualmente possam surgir para não repetirmos a demora exagerada na organização de serviços e políticas preventivos que ocorreu nos últimos vinte anos.

Referências

1. LARANJEIRA R. - Bases para uma política de tratamento dos problemas relacionados ao álcool a outras drogas no Estado de São Paulo. J Bras Psiq, 45(4):191-199, 1996.

2. DUNN J, LARANJEIRA R. - The epidemic that was allowed to happen. Addiction, 91(8):1089-1099, 1996.

3. DUNN J, et al. - Crack cocaine: an increase in use among patients attending clinics in Sao Paulo: 19901993. Substance Use & Misuse, 31(4):519-527, 1996.

4. LARANJEIRA R e cols. - Êxtase (3,4 metilenodioximetaanfetamina, MDMA): uma droga velha a um problema novo? Revista da ABPAPAL, 18(3):77-81, 1996.

Ronaldo Laranjeira /1, Lilian Ratto /2, John Dunn /1
laranjeira[arroba]uniad.org.br
1. UNIAD (Unidade de Pesquisas em Álcool a Drogas), Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo (EPM-UNIFESP).
2. Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Ciéndas Médicas da Santa Casa de São Paulo.



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