Nem santos nem demônios. Considerações sobre a imagem social e a auto-imagem das pessoas ditas "deficientes"

Enviado por Rita Amaral 


O principal efeito da força do hábito reside em que se apodera de nós a tal ponto que já quase não está em nós recuperarmo-nos e refletirmos sobre os atos a que nos impele. Em verdade, como ingerimos com o primeiro leite hábitos e costumes, e o mundo nos aparece sob certo aspecto quando o percebemos pela primeira vez, parece-nos não termos nascido senão com a condição de submetermo-nos também  aos costumes; e imaginamos que as idéias aceitas em torno de nós por nossos pais são absolutas e ditadas pela natureza. Dai pensarmos que o que está fora dos costumes está igualmente fora da razão" (MONTAIGNE).

 

INTRODUÇÃO

Sobre normais e deficientes.

Em qualquer sociedade os valores culturais se concretizam no modo pelo qual ela se organiza. São valores que refletem uma imagem do e no pensamento dos homens. Uma das principais características dos valores é a de poderem ser expressos na forma de adjetivos. Sendo assim, o termo "deficiente" é um adjetivo que, como tal, adquire valor cultural de acordo com as regras, padrões e normas estabelecidas nas relações sociais, constituindo uma categoria capaz de agrupar, numa identidade comum, diferentes tipos de pessoas. Oficialmente, a Assembléia Geral da ONU, em 1975, proclamou no artigo I. que:

"O termo pessoas deficientes refere-se a qualquer pessoa incapaz de assegurar por si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal, em decorrência de uma de uma deficiência congênita ou não, em suas capacidades físicas ou mentais." (grifos meus).

A partir de então, passou-se a usar o termo deficiente para indicar todas as pessoas que apresentassem uma imperfeição física ou mental, preferindo-se deficiente visual a cego, deficiente físico a defeituoso, aleijado, deficiente mental a retardado etc. O termo parece opor-se ao adjetivo "eficiente". E portanto o termo deficiente significa, antes de tudo, "não ser capaz", "não ser eficiente". A "ineficiência", numa sociedade capitalista, de classes, de consumo, de exploração do trabalho, sociedade que ainda se pensa como um "corpo" faz, com a deficiência, um contraponto significativo, elaborado há muito tempo por instituições como a Igreja, o Estado e a família. O deficiente foi associado à anormalidade e os não deficientes à normalidade.

A noção de normalidade parece ter tido origem na abordagem médica da humanidade, ou nas tendências das grandes organizações-Estado de tratar como iguais, sob certos aspectos, todas as pessoas. A medicina, aliás, implementou uma série de mal-entendidos durante toda a História. Teve,  entretanto, a consciência de rever suas posições, conforme seus conhecimentos foram avançando e provando que muitas práticas consideradas científicas não passavam de crendices, sem nenhum fundamento. Todavia, é ainda bastante corriqueiro encontrarmos médicos que se apegam a uma noção de normalidade humana que se refere fundamentalmente ao aspecto biológico. Há, evidentemente, setores da medicina que questionam e aos poucos provocam a mudança de perspectiva no pensamento médico. Quaisquer que sejam suas origens, esta noção fornece a representação básica por meio da qual os homens se concebem. 

 Para o senso comum, deficiente é toda pessoa que apresente algum problema visível no corpo, na maioria das vezes no aparelho locomotor. Um membro torto, paralisia, cegueira, amputações, são vistas como "imperfeições" e seus portadores classificados como deficientes. Digo defeito visível, porque o encontro visual entre o  deficiente e o "outro", normal, é muito importante, já que é na relação de alteridade, basicamente, que se estabelece a identidade dos indivíduos e, dessa identidade, sua "carreira moral" (GOFFMAN, 1982). No caso das pessoas deficientes, as conseqüências deste "encontro com o outro" são ainda mais marcantes e, por isto mesmo, elas costumam administrar a seu favor, quando possível, o conhecimento público de sua deficiência.

"Quando estou dirigindo meu carro no trânsito e um cara me segue pra paquera, eu topo. Pego ate telefone e tal. Não digo, e nem teria como, sei, lá, dizer que eu não ando" (Luiza, 27 anos, paraplégica).

"Uma vez eu entrei numa blitz e um guarda me mandou descer do carro. Falei: Não desço. O cara gritou: Desce do carro!!. Aí eu tirei a chave da ignição, dei pra ele e falei: Pega minha cadeira de rodas no porta-malas. O cara ficou mal: Desculpe, você devia dizer..desculpe....[gargalhadas] (Martinho, 28 anos, paraplégico).

"Defeitos" não aparentes, como gaguice, daltonismo, hemofilia, esterilidade, mastectomia, colostomia, AIDS, enfim, aquelas que permitem o que Goffman (1982:16) chama de "manipulação da informação", não incluem a princípio, de modo geral, uma pessoa na categoria dos deficientes. Os próprios deficientes, além disso, constroem uma espécie de "gradação" dos defeitos que coloca alguns em relação de superioridade/inferioridade com referência a outros. O principal critério desta classificação parece ser o quão próximo ele está (ou consegue parecer) da normalidade. Quem consegue passar por "normal" ou tem deficiências ocultáveis ocupa, em geral os "melhores lugares" na classificação. Essa categorização é reforçada pelos familiares e demais pessoas com quem o deficiente convive. Durante a pesquisa de campo, a mãe de Rogério, um menino surdo, declarou-se resignada pois para ela a surdez constituía um mal menor:

"E  se fosse cego? Ou paralítico ? Isso  não vai ser problema pra gente"

O mesmo pensa a mãe de um adolescente surdo:

"Fui visitar uma escola de crianças retardadas e saí aliviada".


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