Notas sobre o paradoxo da desigualdade no Brasil

Enviado por Simon Schwartzman


Versão 15/6/01
Apresentado no Rio Workshop on Inequality, Rio de Janeiro, 3 a 6 de julho, 2001

As causas da pobreza

"As causas da pobreza", dizia meu antigo professor de direito, "são duas: as voluntárias e as involuntárias". Para nós, estudantes de ciências sociais, as causas da pobreza não podiam ser individuais, mas estruturais: a exploração do trabalho pelo capital, o poder das elites que parasitavam o trabalho alheio e saqueavam os recursos públicos, e a alienação das pessoas, criada pelo sistema de exploração, que impedia que elas tivessem consciência de seus próprios problemas e necessidades. Quando a TV ainda engatinhava em Belo Horizonte, participei de um programa ao vivo com uma senhora da tradicional família mineira que organizava bailes beneficentes, e fiquei chocado quando percebi que não conseguiria convencer ao apresentador, e muito menos ao público, que o que ela fazia era cínico e nocivo, mantendo os pobres iludidos pelas migalhas que sobravam das festas da alta sociedade. Como ousava este garoto, de mineiridade incerta, duvidar do espírito caridoso da elegante dama? Falar com os pobres não adiantava muito. Visitando um barraco de favela, comentei com o morador sobre as péssimas condições em que ele vivia, tentando estimular sua consciência de classe. A resposta foi de indignação. Ele era pobre, sim, mas tinha orgulho de seu barraco limpo e arrumado. Que direito tinha eu de dizer que ele vivia uma vida miserável?

A pobreza e a desigualdade são tão antigas quanto a humanidade, e sempre vieram acompanhadas de forte sentimentos morais. Menos ingênuo do que imaginávamos, o velho professor participava de uma corrente de pensamento que se tornou famosa na época de Thomas Malthus, na Inglaterra, mas que ainda hoje tem seus fortes adeptos: a de que uma parte, talvez a maior, dos problemas da pobreza, é culpa dos próprios pobres, que não têm determinação e força de vontade para trabalhar(1). Para Malthus, a causa principal da pobreza era a grande velocidade com que as pessoas se multiplicavam, em contraste com a pouca velocidade em que crescia a produção de alimentos. O problema se resolveria facilmente se os pobres controlassem seus impulsos sexuais e deixassem de ter tantos filhos. Minorar sua miséria só agravaria o problema, porque, alimentados, eles se reproduziriam mais ainda. A melhor solução seria educá-los, para que aprendessem a se comportar; ou então deixá-los à própria sorte, para que a natureza se encarregasse de restabelecer o equilíbrio natural das coisas. Uma outra versão desta associação entre pobreza e indignidade era dada pelo protestantismo, que via na riqueza material um sinal do reconhecimento, por Deus, das virtudes das pessoas, e na pobreza uma marca clara de sua condenação.

A visão maltusiana da pobreza era extrema, e colidia com o valor da caridade, tão presente na tradição judaica, cristã e de outras religiões. Em todas as sociedades, sempre se reconheceu a virtude de ajudar aos pobres, ao mesmo tempo em que aceitava a inevitabilidade das diferenças sociais e da miséria humana. Michael Katz, um historiador norte-americano que trata do tema das ideologias da pobreza em seu país, observa que, "antes do século XIX teria sido absurdo imaginar a abolição da pobreza. Os recursos eram finitos, e a vida era dura. A maioria das pessoas nasciam, viviam e morriam na pobreza. As questões eram, então, quem, entre os necessitados, deveria receber ajuda? De que maneira a caridade deveria ser administrada?" (2)

Para responder a estas questões era necessário classificar as pessoas. Katz mostra como na Inglaterra, através das "poor laws" do século XIX(3), assim como nos Estados Unidos na mesma época, dois tipos de classificação foram tentadas. Havia, primeiro, um critério de proximidade - a prioridade deveria ser dada aos parentes, vizinhos e concidadãos, e não aos desconhecidos, estranhos ou estrangeiros. Esta classificação, em si, não tinha um sentido moral, e podia refletir, simplesmente, uma visão realista sobre os recursos finitos disponíveis e as necessidades infinitas dos pobres. Mas sabemos que, na prática, as distinções entre "nós" e "os outros" costumam vir carregadas de preconceitos - os "outros" são vistos não somente como distantes, mas também como desprovidos das qualidades que mais apreciamos, as nossas. A outra classificação distinguia claramente entre a pobreza involuntária - e por isto digna - dos órfãos, doentes e viuvas, da pobreza voluntária - e por isto indigna - das pessoas saudáveis que não queriam trabalhar para se manter. Katz fala da diferença que os autores americanos e ingleses da época estabeleciam entre "poverty" e "pauperism", cuja melhor tradução para o português talvez seja como "pobreza" e "mendicância". A pobreza era entendida como uma condição natural das pessoas, que, em situações especiais, ficavam desvalidas, e merecedoras de amparo; a mendicância, por outro lado, era uma deformação de caráter, e por isto indigna de apoio e ajuda.

Existe no entanto outra maneira, também antiga, de tratar o problema. A idéia de que as causas da pobreza e os caminhos para sua solução não dependem da vontade ou do caráter dos indivíduos, mas das relações entre as pessoas, sempre esteve presente nas formas mais radicais do cristianismo, e, na época moderna, nos escritos e movimentos políticos socialistas e comunistas. Para uns, a solução dependia ainda de uma regeneração moral, não mais dos pobres, mas dos ricos, cujo egoísmo e acaricia deveriam ser transformados em verdadeira caridade e sentimento de justiça.

Para os marxistas, esta crença no poder transformador das convicções e da força moral era o que caracterizava o "socialismo utópico", que deveria ceder lugar a um "socialismo científico", que entendesse a verdadeira natureza dos conflitos sociais, e os levasse à sua conclusão natural. A história da humanidade, dizia o Manifesto Comunista, era a história da luta de classes, e era através dela que os problemas da pobreza encontrariam sua solução. "Homens livres e escravos, patrícios e plebeus, lordes e servos, mestres e empregados, em uma palavra, opressores e oprimidos, sempre tiveram em oposição, em uma guerra sem fim, às vezes oculta, as vezes aberta, que levava seja a uma reconstituição revolucionária da sociedade como um todo, seja à ruína das classes em conflito."(4) Com o capitalismo, as antigas classes estavam desaparecendo, restando apenas a burguesia e o proletariado, que se confrontariam na luta final pelo fim da pobreza e da desigualdade social.

Pobres dignos e indignos

O problema era com os que ficavam fora, à margem das classes em conflito. Os proletários, no capitalismo, são pobres, mas nem todos os pobres têm o lugar de honra de parteiros do futuro que Marx atribuía ao proletariado. "De todas as classes que se confrontam hoje com a burguesia", dizia Marx, "só o proletariado é realmente a classe revolucionária. As outras classes decaem e finalmente desaparecem ante a Indústria Moderna; o proletariado é seu produto especial e essencial". O que dava aos proletários este lugar especial era seu papel na divisão social do trabalho, como os que efetivamente trabalhavam, como grandes exércitos, na produção da riqueza, que os burgueses expropriavam. Ao lado destes pobres virtuosos, portadores do futuro, estavam os marginais, os decaídos, vítimas da dissolução das antigas classes sociais em decadência: Eram, segundo Marx, "a 'classe perigosa', a escória social, as massas que apodreciam ao serem expelidas pelas camadas mais baixas da sociedade antiga". Estes grupos poderiam, eventualmente, participar dos movimentos revolucionários do proletariado, mas o mais provável é que fossem corrompidos e manipulados pela "intriga reacionária" da burguesia. É desta forma que Marx traz de volta, pela porta dos fundos, a distinção moral entre a pobreza digna, revolucionária, do proletariado, e a pobreza indigna, reacionária, corrompida e corruptível, a escória do lumpenproletariat, os marginais.

Ao longo do século XX, o ímpeto revolucionário do Manifesto passou por transformações inesperadas, com os camponeses e soldados da Rússia e da China tomando a bandeira do proletariado industrial, enquanto o que o proletariado nos países industrializados se aburguesava. Na Europa, a social democracia suplantou, em quase toda parte, os antigos partidos comunistas, e os conflitos e negociações entre o capital e o trabalho redundaram na criação de uma nova ordem social que garantia uma melhor distribuição da riqueza entre burgueses e proletários. Era o Welfare State, ou o Estado do Bem Estar social. Esta nova forma de organização social, que parecia reunir o melhor dos mundos, reduzindo a pobreza sem afetar a riqueza dos burgueses e capitalistas, passou a ser copiada em outras partes, inclusive no Brasil, onde, no entanto, os proletários e burgueses eram poucos, e os pobres, indignos vivendo às margens e ao lado da sociedade criada pelo império comercial português, eram a maioria.

 


Página seguinte 



As opiniões expressas em todos os documentos publicados aqui neste site são de responsabilidade exclusiva dos autores e não de Monografias.com. O objetivo de Monografias.com é disponibilizar o conhecimento para toda a sua comunidade. É de responsabilidade de cada leitor o eventual uso que venha a fazer desta informação. Em qualquer caso é obrigatória a citação bibliográfica completa, incluindo o autor e o site Monografias.com.