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– É a Vilaça. Bela mulher.

– É a filha?

– A filha?

– Sim, uma loura, clara, com um leque chinês.

– Ah! sim. É filha.

– É o que eu dizia...

– Sim e então?

– É bonita.

– É bonita.

– É gente de bem, hem?

– Sim gente de bem.

– Está bom! Tu conhece-las muito?

– Conheço-as. Muito não. Encontrava-as dantes em casa de D. Cláudia.

– Bem, ouve lá.

E Macário, contando a história do seu coração acordado e exigente e falando do amor com as exaltações de então, pediu-lhe como a glória da sua vida «que achasse um meio de o encaixar lá». Não era difícil. As Vilaças costumavam ir aos sábados a casa de um tabelião muito rico na Rua dos Calafates: eram assembleias simples e pacatas, onde se cantavam motetes ao cravo, se glosavam motes e havia jogos de prendas do tempo da senhora D. Maria I, e às nove horas a criada servia a orchata. Bem. Logo no primeiro sábado Macário, de casaca azul, calças de ganga com presilhas de trama de metal, gravata de cetim roxo, curvava-se diante da esposa do tabelião, Sr.ͺ D. Maria da Graça, pessoa seca e aguçada, com um vestido bordado a matiz, um nariz adunco uma enorme luneta de tartaruga, a pluma de marabout nos seus cabelos grisalhos. A um canto da sala já lá estava, entre um frufru de vestidos enormes, a menina Vilaça, a loura, vestida de branco, simples, fresca, com o seu ar de gravura colorida. A mãe Vilaça, a soberba mulher pálida, cochichava com um desembargador de figura apopléctica. O tabelião era homem letrado, latinista, e amigo da musas; escrevia num jornal de então, a «Alcofa das Damas»: porque era sobretudo galante, e ele mesmo se intitulava, numa ode pitoresca, «moço escudeiro de Vénus». Assim, as suas reuniões eram ocupadas pelas belas-artes – e, numa noite, um poeta do tempo devia vir ler um poemeto intitulado «Elmira ou a Vingança do Venesiano»!... Começavam então a aparecer as primeiras audácias românticas... As revoluções da Grécia principiavam a atrair os espíritos romanescos e saídos da mitologia para os países maravilhosos do oriente. Por toda a parte se falava no paxá de Janina. E a poesia apossava-se vorazmente deste mundo novo e virginal de minaretes, serralhos, sultanas cor de âmbar, piratas do Arquipélago, e salas rendilhadas, cheias do perfume do aloés onde paxás decrépitos acariciam leões. De sorte que a curiosidade era grande – e quando o poeta apareceu com os cabelos compridos, o nariz adunco e fatal, o pescoço entalado na alta gola do seu fraque à Restauração e um canudo de lata na mão – o Sr. Macário é que não teve sensação alguma, porque lá estava todo absorvido, falando com a menina Vilaça. E dizia-lhe meigamente:

– Então, noutro dia, gostou das casimiras?

– Muito – disse ela baixo.

E, desde esse momento, envolveu-os um destino nupcial.

No entanto, na larga sala, a noite passava-se espiritualmente. Macário não pôde dar todos os pormenores históricos e característicos daquela assembleia. Lembrava-se apenas que um corregedor de Leiria recitava o «Madrigal a Lídia»: lia-o de pé, com uma luneta redonda aplicada sobre o papel, a perna direita lançada para diante, a mão na abertura do colete branco de gola alta, e em redor, formando círculo, as damas, com vestidos de ramagens, cobertas de plumas, as mangas estreitas, terminadas num fofo de rendas, mitenes de retrós cheias da cintilação dos anéis, tinham sorrisos ternos, cochichos, doces murmurações, risinhos, e um brando palpitar de leques recamados de lantejoulas. «Muito bonito», diziam, «muito bonito!» E o corregedor, desviando a luneta, cumprimentava sorrindo – e via-se-lhe um dente podre.

Depois, a preciosa D. Jerónima da Piedade e Sande, sentando-se com maneiras comovidas ao cravo, cantou a sua voz roufenha a antiga ária de Sully:

Oh Ricardo, oh meu rei,

O mundo te abandona.

O que obrigou o terrível Gaudêncio, democrata de 20 e admirador de Robespierre, a rosnar rancorosamente junto de Macário:

– Reis-víboras!...

Depois o cónego Saavedra cantou uma modinha de Pernambuco muito usada no tempo do senhor D. João VI: « Lindas moças, lindas moças.» E a noite ia assim correndo, literária, pachorrenta erudita, requintada e toda cheia de musas. Oito dias depois, Macário era recebido em casa da Vilaça, num domingo. A mãe convidara-o dizendo-lhe:

– Espero que o vizinho honre esta choupana.

E até o desembargador apoplético, que estava ao lado, exclamou:

– Choupana! Diga alcáçar! Formosa dama!

Estavam, nesta noite, o amigo do chapéu de palha, um velho cavaleiro de Malta, trôpego, estúpido e surdo, um beneficiado da Sé, ilustre pela sua voz tiple, e as manas Hilárias, a mais velha das quais, tendo assistido, como aia de uma senhora da Casa da Mina, à tourada de Salva – terra, em que morreu o conde dos Arcos, nunca deixara de narrar os episódios pitorescos daquela tarde: a figura do conde dos Arcos de cara rapada e uma fita de cetim escarlate no rabicho; o soneto que um magro poeta, parasita da Casa de Vimioso, recitou quando o conde entrou, fazendo ladear o seu cavalo negro, arreado à espanhola, com um xairel onde as suas armas estavam lavradas em prata; o tombo que nesse momento um frade de S. Francisco deu na trincheira alta, e a hilariedade da corte, que até a senhora condessa de Povolide apertava as mãos nas ilhargas; depois el-rei, o senhor D. José I, vestido de veludo escarlate, recamado de ouro, todo encostado ao rebordo do seu palanque, fazendo girar entre os dedos a sua caixa de rapé cravejada, e atrás, imóveis, o físico Lourenço e o frade seu confessor; depois o rico aspecto da praça cheia de gente de Salvaterra, maiorais, mendigos dos arredores, frades, lacaios, e o grito que houve quando D. José I entrou: – Viva el-rei, nosso senhor! – E o povo ajoelhou, e el-rei tinha-se sentado, comendo doces, que um criado trouxe num saco de veludo atrás dele. Depois a morte do conde dos Arcos, os desmaios, e até el-rei todo debruçado, batendo com a mão no parapeito, gritava na confusão, e o capelão da Casa dos Arcos que tinha corrido a buscar a extrema-unção. Ela, Hilária ficara atarracada de pavor: sentia os urros dos bois, os gritos agudos das mulheres, os ganidos dos flatos, e vira então um velho, todo vestido de veludo preto, com a fina espada na mão,... debater-se entre fidalgos e damas que o seguravam, e querer atirar-se à praça, bradando cheio de raiva! «É o pai do conde.» Ela então desmaia nos braços de um padre da Congregação. Quando veio a si, achou-se junto da praça; a berlinda real está à porta com os boleeiros emplumados, os machos cheios de guizos, e os batedores com pampilhos: el-rei já estava dentro, escondido no fundo, pálido, sorvendo febrilmente rapé, todo encolhido com o confessor; e defronte, com uma das mãos apoiadas à alta bengala, forte, espadaúdo, com o aspecto carregado o Marquês de Pombal falando devagar e intimativamente, e gesticulando com a luneta: mas os batedores picaram, os estalos dos postilhões retiniram, e a berlinda partiu a galope, enquanto o povo gritava: – Viva el-rei, nosso senhor! – e o sino da porta da capela do paço tocava a finados! Era uma honra que el-rei concedia à Casa dos Arcos.

Quando D. Hilária acabou de contar, suspirando, estas desgraças passadas, começou-se a jogar. Era singular que Macário não se lembrava o que tinha jogado nessa noite radiosa. Só se recordava que ele tinha ficado ao lado da menina Vilaça, que se chamava Luísa, que reparara muito na sua fina pele rosada, tocada de luz, e na meiga e amorosa pequenez da sua mão, com uma unha mais polida que o marfim de Diepa. E lembrava-se também de um acidente excêntrico, que determinara nele, desde esse dia, uma grande hostilidade ao clero da Sé. Macário estava sentado à mesa, e ao pé dele Luísa: Luísa estava toda voltada para ele, com uma das mãos apoiando a sua fina cabeça loura e amorosa, e a outra esquecida no regaço. Defronte estava o beneficiado, com o seu barrete preto, os seus óculos na ponta aguda do nariz, o tom azulado da forte barba rapada, e as suas duas grandes orelhas, complicadas e cheias de cabelo, separadas do crânio como dois postigos abertos. Ora como era necessário no fim do jogo pagar uns tentos ao cavaleiro de Malta, que estava ao lado do beneficiado, Macário tirou da algibeira uma peça, e quando o cavaleiro, todo curvado e com um olho pisco, fazia a soma dos tentos nas costas de um ás, Macário conversava com Luísa, e fazia girar sobre o pano verde a sua peça de ouro, com um bilro ou um pião. Era uma peça nova que luzia, faiscava, rodando e fazia à vista como uma bola de névoa dourada. Luísa sorria vendo-a girar, girar, e parecia a Macário que todo o céu, a pureza, a bondade das flores e a castidade das estrelas estavam naquele claro sorriso distraído, espiritual, arcangélico, com que ela, gira, gira, seguia o giro da peça de ouro nova. Mas, de repente, a peça, correndo até à borda da mesa, caiu para o lado do regaço de Luísa, e desapareceu, sem se ouvir no soalho de tábuas o seu ruído metálico. O beneficiado abaixou-se logo cortesmente: Macário afastou a cadeira, olhando para debaixo da mesa: a mãe Vilaça alumiou com um castiçal, e Luísa ergueu-se e sacudiu com pequenina pancada o seu vestido de cassa. A peça não apareceu.

– É célebre – disse o amigo de chapéu de palha. – Eu não ouvi tinir no chão.

– Nem eu, nem eu – disseram.

O beneficiado, curvado como um F, buscava tenazmente, e Hilária mais nova rosnava o responso de Santo António.

– Pois a casa não tem buracos – dizia a mãe Vilaça.

No entanto Macário exalava-se em exclamações desinteressadas:

– Pelo amor de Deus! Ora que tem! amanhã aparecerá! Tenham a bondade! Por quem são! Então Sr. ͺ D. Luísa! pelo amor de Deus! Não vale nada.

Mas mentalmente estabeleceu que houvera uma subtracção – e atribui-a ao beneficiado. A peça rolara, decerto, até junto dele, sem ruído, ele pusera-lhe em cima o seu vasto sapato eclesiástico e tachado, depois, no movimento brusco e curto que tivera, empolgara-a vilmente. E quando saíram, o beneficiado, todo embrulhado no seu vasto capote de camelão, dizia a Macário pela escada:

– Ora o sumiço da peça, hem? Que brincadeira!

– Acha, senhor beneficiado? – disse Macário parando, absorto de impudência.

– Ora essa! Se acho! Se lhe parece! Uma peça de sete mil réis! Só se o Senhor as semeia! Safa! eu dava em doudo!

Macário teve tédio daquela astúcia fria. Não lhe respondeu. O beneficiado é que acrescentou:

– Amanhã mande lá pela manhã, homem. Que diabo... Deus me perdoe! Que diabo! Uma peça não se perde assim. Que bolada, hem!

E Macário tinha vontade de lhe bater.

Foi neste ponto que Macário me disse, com a voz singularmente sentida:

– Enfim, meu amigo, para encurtarmos razões resolvi-me casar com ela.

– Mas a peça?

– Não pensei mais nisso! Pensava eu lá na peça! resolvi-me casar com ela!

II

Macário contou-me o que o determinara mais precisamente àquela resolução profunda e perpétua. Foi um beijo. Mas esse caso, casto e simples, eu colo-o – mesmo porque a única testemunha foi uma imagem em gravura da Virgem, que estava pendurada no seu caixilho de pau-preto, na saleta escura que abria para a escada... Um beijo fugitivo, superficial, efémero. Mas isso bastou ao espírito recto e severo para o obrigar a tomá-la como esposa, a dar-lhe uma fé imutável e a posse da sua vida. Tais foram os seus esponsais. Aquela simpática sombra de janelas vizinhas tornara-se para ele um destino, o fim moral da sua vida e toda a ideia dominante do seu trabalho. E esta história toma, desde logo, um alto carácter de santidade e de tristeza.

Macário falou-me muito do carácter e da figura do tio Francisco; a sua possante estatura, os seus óculos de ouro, a sua barba grisalha, em colar, por baixo do queixo, um tique nervoso que tinha numa asa do nariz, a dureza da sua voz, a sua austera e majestosa tranquilidade, os seus princípios antigos, autoritários e tirânicos e a brevidade telegráfica das suas palavras.

Quando Macário lhe disse, uma manhã, ao almoço, abruptamente, sem transições emolientes: «Peço-lhe licença para casar», o tio Francisco, que deitava o açúcar no seu café, ficou calado, remexendo com a colher, devagar, majestoso e terrível: e quando acabou de solver pelo pires, com grande ruído, tirou do pescoço o guardanapo, dobrou-o, aguçou com a faca o seu palito, meteu-o na boca e saiu: mas à porta da sala parou, e voltando-se para Macário, que estava de pé, junto da mesa, disse secamente:

– Não.

– Perdão, tio Francisco!

– Não.

– Mas ouça, tio Francisco...

– Não.

Macário sentiu uma grande cólera.

– Nesse caso, faço-o sem licença.

– Despedido de casa.

– Sairei. Não haja dúvida.

– Hoje.

– Hoje.

E o tio Francisco ia a fechar a porta, mas voltando-se :

– Olá! – disse ela a Macário. que estava exasperado, apopléctico, raspando nos vidros da janela.

Macário voltou-se com uma esperança.

– Dê-me daí a caixa do rapé – disse o tio Francisco.

Tinha-lhe esquecido a caixa! Portanto estava perturbado.

– Tio Francisco... – começou Macário.

– Basta. Estamos a doze. Receberá o seu mês por inteiro. Vá.

As antigas educações produziam estas situações insensatas. Era brutal e idiota. Macário afirmou-me que era assim.

Nessa tarde Macário achava-se no quarto de uma hospedaria da Praça da Figueira com seis peças, o seu baú de roupa branca e a sua paixão. No entanto estava tranquilo. Sentia o seu destino cheio de apuros. Tinha relações e amizades no comércio. Era conhecido vantajosamente: a nitidez do seu trabalho, a sua honra tradicional, o nome da família, o seu tacto comercial, o seu belo cursivo inglês, abriam-lhe, de par em par, respeitosamente, todas as portas dos escritórios. No outro dia foi procurar alegremente o negociante Faleiro, antiga relação comercial da sua casa.

– De muito boa vontade, meu amigo – disse-me ele. – Quem mo dera cá. Mas, se o recebo, fico de mal com o seu tio, meu velho amigo de vinte anos. Ele declarou-mo categoricamente. Bem vê. Força maior. Eu sinto, mas...

E todos a quem Macário se dirigiu, confiado em relações sólidas, receavam «ficar de mal com seu tio, meu velho amigo de vinte anos».

E todos «sentiam, mas...».

Macário dirigiu-se então a negociantes novos, estranhos à sua casa e à sua família, e sobretudo aos estrangeiros: esperava encontrar gente livre da amizade de vinte anos do tio. Mas, para esses, Macário era desconhecido, e desconhecidos por igual a sua dignidade e o hábil trabalho. Se tomavam informações, sabiam que ele fora despedido de casa do tio repentinamente, por causa de uma rapariga loura, vestida de cassa. Esta circunstância tirava as simpatias a Macário. O comércio evita o guarda livros sentimental. De sorte que Macário começou a sentir-se num momento agudo. Procurando, pedindo, rebuscando, o tempo passava, sorvendo, pinto a pinto, as suas seis peças.

Macário mudou para uma estalagem barata, e continuou farejando. Mas, como fora sempre de temperamento recolhido, não criara amigos. De modo que se encontrava desemparado e solitário – e a vida aparecia-lhe como um descampo.

as peças findaram. Macário entrou, pouco, na tradição antiga da miséria. Ela tem solenidades fatais e estabelecidas: começou por empenhar. Depois vendeu. Relógio, anéis, casaca azul, cadeia, paletó de alamares, tudo foi levando pouco a pouco, embrulhado debaixo do xale, uma velha seca e cheia de asma.

No entanto via Luísa de noite, na saleta escura que dava para o patamar: uma lamparina ardia em cima da mesa; era feliz ali naquela penumbra, toda sentado castamente: não a via de dia porque trazia já a roupa usada, as botas cambadas e não queria mostrar à fresca Luísa, toda mimosa nas suas cambraias assentadas, a sua miséria remendada: ali, àquela luz ténue e esbatida, ele exaltava a sua paixão crescente e escondia o seu fato decadente. Segundo me disse Macário – era muito singular o temperamento de Luísa . Tinha o carácter louro como o cabelo – se é certo que o louro é uma cor fraca e desbotada: falava pouco, sorria sempre com os seus brancos dentinhos, dizia a tudo «pois sim»; era mais simples, quase indiferente, cheia de transigências.

Amava decerto Macário, mas com todo o amor que podia dar a sua natureza débil, aguada, nula. Era como uma estriga de linho, fiava-se como se queria: e às vezes, naqueles encontros nocturnos, tinha sono.

Um dia, porém, Macário encontrou-a excitada: estava com pressa, o xale traçado à toa, olhando sempre para a porta interior.

– A mamã percebeu – disse ela.

E contou-lhe que a mãe desconfiava, ainda rabugenta e áspera, e que decerto farejava aquele plano nupcial tramado como uma conjuração.

– Porque não me vens pedir à mamã?

– Mas, filha, se eu não posso! Não tenho arranjo nenhum. Espera. É mais um mês talvez. Tenho agora aí um negócio em bom caminho. Morríamos de fome.

Luísa calou-se, torcendo a ponta do xale, com os olhos baixos.

– Mas ao menos – disse ela – enquanto eu te não fizer sinal da janela, não subas mais, sim ?

Macário rompeu a chorar, os soluços saíam violentos e desesperados.

– Chut! – dizia-lhe Luísa. – Não chores alto!...

Macário contou-me a noite que passou, ao acaso pelas ruas, ruminando febrilmente a sua dor, e lutando, sob a nudenta friagem de Janeiro, na sua quinzena curta. Não dormiu, e logo pela manhã, ao outro dia, entrou como uma rajada no quarto do tio Francisco e disse-lhe abruptamente, secamente:

– É tudo o que tenho. – E mostrava-lhe três pintos. – Roupa, estou sem ela. Vendi tudo. Daqui a pouco tenho fome.

O tio Francisco, que fazia a barba à janela, com o lenço da Índia amarrado na cabeça, voltou-se e, pondo os óculos, fitou-o.

– A sua carteira lá está. Fique – e acrescentou com um gesto decisivo – solteiro.

– Tio Francisco, ouça-me!...

– Solteiro, disse eu – continuou o tio Francisco, dando o fio à navalha numa tira de sola.

– Não posso.

– Então, rua!

Macário saiu, estonteado. Chegou a casa, deitou-se, chorou e adormeceu. Quando saiu, à noitinha, não tinha resolução, nem ideia. Estava como uma esponja. Deixava-se ir.

De repente uma voz disse de dentro de uma loja:

– Eh! pst! olá!

Era o amigo do chapéu de palha: abriu grandes braços pasmados.

– Que diacho! Desde manhã que te procuro.

E contou-lhe que tinha chegado da província, tinha sabido a sua crise e trazia-lhe um desenlace.

– Queres?

– Tudo.

Uma casa comercial queria um homem hábil, resoluto, e duro, para ir numa comissão difícil e de grande ganho a Cabo Verde.

– Pronto! – Disse Macário. – Pronto! Amanhã.

E foi logo escrever a Luísa, pedindo-lhe uma despedida, um ultimo encontro, aquele em que os braços desolados e veementes tanto custam a desenlaçar-se. Foi. Encontrou-a toda embrulhada no seu xale, tiritando de frio. Macário chorou. ela, com a sua passiva e loura doçura, disse-lhe:

– Fazes bem. Talvez ganhes.

E ao outro dia Macário partiu.

Conheceu as viagens trabalhosas nos mares inimigos, o enjoo monótono num beliche abafado, os duros sóis das colónias, a brutalidade tirânica dos fazendeiros ricos, o peso dos fardos humilhantes, as dilacerações da ausência, as viagens ao interior das terras negras e melancolia das caravanas que o costeiam por violentas noites, durante dias e dias, o rios tranquilos, donde exala a morte.

Voltou.

E logo nessa tarde a viu a ela, Luísa, clara, fresca, repousada, serena, encostada ao peitoril da janela, com a sua ventarola chinesa. E, ao outro dia, sofregamente, foi pedi-la à mãe. Macário tinha feito um ganho saliente – e a mãe Vilaça abriu-lhe uns grandes braços amigos, cheia de exclamações. O casamento decidiu-se para daí a um ano.

– Porquê? – disse eu a Macário.

E ele explicou-me que os lucros de Cabo Verde não podiam constituir um capital definitivo: eram apenas um capital de habilitação: trazia de Cabo Verde elementos de poderosos negócios: trabalharia, heroicamente, e ao fim poderia, sossegadamente, criar uma família.

E trabalhou: pôs naquele trabalho a força criadora da sua paixão. Erguia-se de madrugada, comia à pressa, mal falava. À tardinha ia visitar Luísa. Depois voltava sofregamente para a fadiga, como um avaro para o seu cofre. Estava grosso, forte, duro, fero: servia-se com o mesmo ímpeto das ideias e dos músculos; vivia numa tempestade de cifras. Às vezes Luísa de passagem, entrava no seu armazém: aquele pousar de ave fugitiva dava-lhe alegria, valor, fé, reconforto para todo o mês cheiamente trabalhado.

Por esse tempo o amigo do chapéu de palha veio pedir a Macário que fosse seu fiador por uma grande quantia, que ele pedira para estabelecer uma loja de ferragens em grande. Macário, estava no vigor do seu crédito, cedeu com alegria. O amigo do chapéu de palha é que lhe dera o negócio providencial de Cabo Verde. Faltavam então seis meses para o casamento. Macário já sentia, por vezes, subirem-lhe ao rosto as febris vermelhidões da esperança. Já começava a tratar dos banhos mas um dia o amigo do chapéu de palha desapareceu com a mulher de um alferes. O seu estabelecimento estava em começo. Era uma confusa aventura não se pôde nunca precisar nitidamente aquele imbróglio doloroso. O que era positivo é que Macário era fiador, Macário devia reembolsar. Quando o soube, empalideceu e disse simplesmente:

– Liquido e pago.

E quando liquidou, ficou outra vez pobre. Mas nesse mesmo dia, como o desastre tivera uma grande publicidade, e a sua honra estava santificada na opinião, a casa Peres & C.ͺ, que o mandara a Cabo Verde, veio propor-lhe uma outra viagem outros ganhos.

– Faz outra vez fortuna, homem. O senhor é o Diabo! – disse o Sr. Eleutério Peres.

Quando se viu assim, só e pobre, Macário desatou a chorar. Tudo estava perdido, findo, extinto; era necessário recomeçar, pacientemente a vida, voltar às longas misérias de Cabo verde, tornar a tremer a tremer os passados desesperos, suar os antigos suores! E Luísa? Macário escreveu-lhe. depois rasgou a carta. Foi a casa dela: as janelas tinham luz; subiu até ao primeiro andar, mas aí tomou-o uma mágoa, uma covardia de revelar o desastre, trémulo de uma separação, o terror de ela se recusar, negar-se, hesitar! E quereria ela esperar mais?! Não se atreveu a falar, explicar, pedir; desceu, pé ante pé. Era noite. Andou ao acaso pelas ruas: havia um sereno e silencioso luar. Ia sem saber: de repente ouviu, de uma janela alumiada, uma rabeca que tocava a xácara mourisca. Lembrou-se do tempo em que conhecera Luísa, do bom sol claro que havia então, e do vestido dela, de cassa com pintas azuis! Esta na rua onde eram os armazéns do tio. Foi caminhando. Pôs-se a olhar para a sua antiga casa. A janela do escritório estava fechada. Quantas vezes dali vira Luísa, e o brando movimento do seu leque chinês! Mas uma janela, no segundo andar, tinha luz: era o quarto do tio. Macário vai observar mais de longe: uma figura estava encostada, por dentro, à vidraça: era o tio Francisco veio-lhe uma saudade de todo o seu passado simples, retirado, plácido. Lembrava-lhe o seu quarto, e a velha carteira com fecho de prata, e a miniatura de sua mãe, que estava por cima da barra do leito; a sala de jantar e o seu velho aparador de pau-preto, e a grande caneca de água, cuja asa era uma serpente irritada. Decidiu-se e, impelido por um instinto, bateu à porta. Bateu outra vez. Sentiu abrir a vidraça, e a voz do tio perguntar:

– Quem é?

– Sou eu, tio Francisco, sou eu. Venho dizer-lhe adeus.

A vidraça fechou-se, e daí a pouco a porta abriu-se com um grande ruído de ferrolhos. O tio Francisco tinha um candeeiro de azeite na mão. Macário achou-o magro, mais velho. Beijou-lhe a mão.

– Suba – disse o tio.

Macário ia calado, cosido com o corrimão.

Quando chegou ao quarto, o tio Francisco pousou o candeeiro sobre uma larga mesa de pau-santo, e de pé, com as mãos nos bolsos, esperou.

Macário estava calado, anediando a barba.

– Que quer? – gritou-lhe o tio.

– Vinha dizer-lhe adeus; volto para Cabo Verde.

– Boa viagem.

E o tio Francisco, voltando-se as costas, foi rufar na vidraça.

Macário ficou imóvel, deu dois passos no quarto, todo revoltado, e ia sair.

– Onde vai, seu estúpido? – gritou-lhe o tio.

– Vou-me.

– Sente-se ali! E o tio Francisco falava, com grandes passadas pelo quarto:

– O seu amigo é um canalha! Loja de ferragens! Não está má! O senhor é um homem de bem. Estúpido, mas homem de bem. Sente-se ali! Sente-se! O seu amigo é um canalha! O senhor é um homem de bem! Foi a Cabo Verde! Bem sei! Pagou tudo. Está claro! Também sei! Amanhã faz favor de ir para a sua carteira, lá para baixo. Mandei pôr palhinha nova na cadeira. Faz favor de pôr na factura Macário & Sobrinho. E case. Case, e que lhe preste! Levante dinheiro. O senhor precisa de roupa branca e de mobília. E meta na minha conta. A sua cama lá está feita.

Macário queria abraçá-lo, estonteado, com lágrimas nos olhos, radioso.

– Bem, bem. Adeus!

Macário ia sair.

– Oh! burro, pois quer-se ir desta sua casa?

E indo a um pequeno armário trouxe geleia, um covilhete de doce, uma garrafa antiga de Porto e biscoitos.

– Coma.

E sentando-se ao pé dele, e tornando a chamar-lhe estúpido, tinha uma lágrimas a correr-lhe pelo engelhado da pele.

De sorte que o casamento foi decidido para dali a um mês. E Luísa começou a tratar do seu enxoval.

Macário estava então na plenitude do amor e da alegria.

Via o fim da sua vida preenchido, completo, radioso. Estava quase sempre em casa da noiva, e um dia andava-a acompanhando, em compras, pelas lojas. Ele mesmo lhe quisera fazer um pequeno presente, nesse dia. A mãe tinha ficado numa modista, num primeiro andar da Rua do Ouro, e eles tinham descido, alegremente, rindo, a um ourives que havia em baixo, no mesmo prédio, na loja.

O dia estava de Inverno, claro, fino, frio, com um grande céu azul-ferrete, profundo, luminoso, consolado.

– Que bonito dia! – disse Macário.

E com a noiva pelo braço, caminhou um pouco, ao comprido do passeio.

– Está! – disse ela. – Mas podem reparar; nós sós...

– Deixa, está tão bom...

– Não, não.

E Luísa arrastou-o brandamente para a loja do ourives. Estava apenas um caixeiro, trigueiro, de cabelo hirsuto.

Macário disse-lhe:

– Queria ver anéis.

– Com pedras – disse Luísa – e o mais bonito.

– Sim, com pedras – disse Macário. – Ametista, granada. Enfim, o melhor.

E, no entanto, Luísa ia examinando as montras forradas de veludo azul, onde reluziam as grossas pulseiras cravejadas, os grilhões, os colares de camafeus, os anéis de armas, as finas alianças frágeis como o amor , e toda a cintilação de pesada ourivesaria.

– Vê, Luísa – disse Macário.

O caixeiro tinha estendido, na outra extremidade do balcão, em cima do vidro da montra, um reluzente espalhado de anéis de ouro, de pedras, lavrados, esmaltados; e Luísa, tomando-os e deixando-os com a ponta dos dedos, ia-os correndo e dizendo:

– É feio. É pesado. É largo.

– Vê este – disse-lhe Macário.

Era um anel de pequenas pérolas.

– É bonito – disse ela. – É lindo!

– Deixa ver se serve – disse Macário.

E tomando-lhe a mão, meteu-lhe o anel devagarinho, docemente, no dedo; e ela ria, com os seus brancos dentinhos finos, todos esmaltados.

– É muito largo – disse Macário. – Que pena!

– Aperta-se, querendo. Deixe a medida. Tem-no pronto amanhã.

– Boa ideia – disse Macário – sim senhor. Porque é muito bonito. Não é verdade? As pérolas muito iguais, muito claras. Muito bonito! E esses brincos? – acrescentou, indo ao fundo do balcão, a outra montra. – Estes brincos com um concha?

– Dez moedas – disse o caixeiro.

E, no entanto, Luísa continuava examinando os anéis, experimentando-os em todos os dedos, revolvendo aquela delicada montra, cintilante e preciosa.

Mas, de repente, o caixeiro fez-se muito pálido, e afirmou-se em Luísa, passando vagarosamente a mão pela cara.

– Bem – disse Macário, aproximando-se – então amanhã temos o anel pronto. A que horas?

O caixeiro não respondeu e começou a olhar fixamente para Macário.

– A que horas?

– Ao meio-dia.

– Bem, adeus – disse Macário. E iam sair. Luísa trazia um vestido de lã azul, que arrastava um pouco, dando uma ondulação melodiosa ao seu passo, e as suas mãos pequenas estavam escondidas num regalo branco.

-.Perdão! – disse de repente o caixeiro.

Macário voltou-se.

– O senhor não pagou.

Macário olha para ele gravemente.

– Está claro que não. Amanhã venho buscar o anel, paga amanhã.

– Perdão! – disse o caixeiro.– Mas o outro...

– Qual outro? – disse Macário com uma voz surpreendida, adiantando-se para o balcão.

– Essa senhora sabe – disse o caixeiro. – Essa senhora sabe.

Macário tirou a carteira lentamente.

– Perdão, se há uma conta antiga...

O caixeiro abriu o balcão, e com aspecto resoluto:

– Nada, meu caro Senhor, é de agora. É um anel com dois brilhantes que aquela senhora leva.

– Eu?! – disse Luísa, com a voz baixa, toda escarlate.

– Que é? Que está a dizer?

E Macário, pálido, com dentes cerrados, contraído, fitava o caixeiro colericamente. O caixeiro disse então:

– Essa senhora tirou dali o anel. – Macário ficou imóvel, encarando-o. – Um anel com dois brilhantes. Vi perfeitamente. – O caixeiro estava tão excitado, que a sua voz gaguejava, prendia-se espessamente. – Essa senhora não sei quem é. E tirou-o dali...

Macário, maquinalmente, agarrou-lhe o braço, e voltando-se para Luísa com a palavra abafada, gotas de suor na testa, lívido:

– Luísa, dize... – Mas a voz cortou-se-lhe.

– Eu... – disse ela. Mas estava trémula, assombrada, enfiada, descomposta.

E tinha deixado cair o regalo ao chão.

Macário veio para ela, agarrou-lhe o pulso fintando-a: e o seu aspecto era tão resoluto e tão imperioso que ela meteu a mão no bolso, bruscamente, apavorada, e mostrando o anel:

– Não me faça mal – disse, encolhendo-se toda.

Macário ficou com os braços caídos, o ar abstracto, os beiços brancos; mas de repente, dando um puxão ao casaco, recuperando-se, disse ao caixeiro:

– Tem razão. Era distracção. Está claro! Esta senhora tinha-se esquecido. É o anel. Sim, sim, senhor, evidentemente... Tenha a bondade. Toma, filha, toma. Deixa estar, este senhor embrulha-o. Quanto custa?

Abriu a carteira e pagou.

Depois apanhou o regalo, sacudiu-o brandamente, limpou os beiços com o lenço, deu o braço a Luísa e dizendo ao caixeiro: « desculpe, desculpe », levou-a, inerte, passiva, extinta e aterrada.

Deram alguns passos na rua. Um largo sol aclarava o génio feliz: as seges ,passavam, rolando ao estalido do chicote; figuras risonhas passavam, conversando; os pregões ganiam os seus gritos alegres; um cavalheiro de calção de anta fazia ladear o seu cavalo, enfeitado de rosetas; e a rua estava cheia, ruidosa, viva, feliz e coberta de sol.

Macário ia maquinalmente, como no fundo de um sonho. Parou a uma esquina. Tinha o braço de Luísa passado no seu; e via-lhe a mão pendente, a sua mão de cera, com as veias docemente azuladas, os dedos finos e amorosos: era a mão direita, e aquela mão era a da sua noiva! E, instintivamente, leu o cartaz que anunciava para essa noite «Palafoz em Saragoça ».

De repente, soltando o braço de Luísa, disse-lhe baixinho:

– Vai-te.

– Ouve!... – disse ela, com a cabeça toda inclinada.

– Vai-te. – E com voz abafada e terrível: – Vai-te. Olha que chamo. Mando-te para o Aljube. Vai-te.

– Mas houve, Jesus – disse ela.

– Vai-te! – E fez um gesto, com o punho cerrado.

– Pelo amor de Deus, não me batas aqui – disse ela, sufocada.

– Vai-te, podem reparar. Não chores. Olha que vêem. Vai-te.

E, chegando-se para ela, disse baixo:

– És uma ladra!

E, voltando-lhe as costas, afastou-se, devagar, riscando o chão com a bengala.

À distância, voltou-se: ainda viu, através dos vultos, o seu vestido azul.

Como partiu nessa tarde para a província, não soube mais daquela rapariga loura.

 

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Digitalizado e revisado por:

Deolinda Rodrigues Cabrera Chaves

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