Saudemental

Indice
1. Introdução
2. Embasamento Teórico
3. Corolários Dos Axiomas
4. Pesquisa em comunicação clínica
5. Material E Método
6. Considerações Finais
7. Referências Bibliográficas
8. Bibliografia Consultada

1. Introdução

Identificando um ponto fraco na relação médico/paciente
Com o aperfeiçoamento das técnicas e a sofisticação das tecnologias, o médico se esquece, com relativa freqüência, de que está lidando com o ser humano. Regra geral, vem se mostrando inábil para se comunicar com o paciente numa relação pessoa/pessoa, fato considerado, por MYERSCOUGH (1988), como um ponto fraco na formação profissional, sendo a causa mais freqüente de queixas dos doentes e de seus familiares. Por outro lado, o paciente se recusa a continuar sendo tratado como uma simples "máquina danificada", e decide valorizar e exigir do médico o exercício da interação eu/tu (BUBER, 1979), concretizada em condutas ditas morais de acolhimento, atenção, respeito, confiança, aceitação, empatia, abnegação, consciência profissional, função apostólica, desinteresse material, tanto ou mais do que as qualidades técnicas – conhecimento especializado, exatidão do diagnóstico, segurança nas decisões (DELAY&PICHOT, 1966). São reivindicações que buscam a consolidação de uma legítima relação inter-humana – estratégia de enfrentamento ao principal desafio da medicina moderna, a busca do equilíbrio entre tecnologia e humanismo.
OOTal inabilidade parece resultar da incompetência para escutar inteligentemente, o que dificulta a criação de estratégias comunicacionais eficazes que permitam estabelecer interações clínicas bem-estruturadas, bem-sucedidas – para ele e para o paciente. Estratégias comunicacionais entendidas como toda forma de expressão, declaração, proposição, asserção entre interlocutores, explicitadas através da linguagem – qualquer meio de comunicar o que se sente ou o que se pensa – nas suas múltiplas formas – oral, escrita, figurada, metafórica, simbólica, averbal, imagética.
Saber ouvir é tão importante quanto saber perguntar. Não há verdadeira comunicação humana sem troca, diálogo e entendimento recíproco. Daí ser necessário aprender a escutar para aprender a dizer. Significa, concomitante com o saber ouvir é preciso saber dizer. Por isso, comunicar-se eficazmente é, na prática clínica, estar atento ao próprio dizer e ao dizer do paciente, pois, cada próximo enunciado é sempre contextualizado pelos enunciados anteriores. Sendo assim, a construção eficaz de uma anamnese clínica, é o resultado das atitudes, habilidades e competências do entrevistador para iniciar a relação com o doente e mantê-la numa interação recíproca, no aqui/agora, na medida em que diz e escuta o dizer do paciente.

O ato de enunciar
"A enunciação é o ato de produção do discurso, é uma instância pressuposta pelo enunciado (produto da enunciação)." (FIORIN, 2001) Enunciar é dizer e saber dizer. Quando, por exemplo, um médico precisa comunicar ao paciente que ele é portador de uma doença grave, precisa saber como dizer, com propriedade, para não cometer distorções comunicativas que possam produzir ansiedades adicionais, além das inevitáveis neste tipo de contexto.
A produção de ansiedades adicionais, efeito colateral indesejável, provém, habitualmente, da ansiedade do próprio médico, mas também de seu despreparo na habilidade de comunicar, o que remete à necessidade de se ensinar ao estudante de medicina, de forma mais sistemática, técnicas, táticas e estratégias comunicacionais, para fazê-lo hábil no utilizar-se a si mesmo, como um instrumento sensível de análise compreensiva das necessidades do doente, tornando-se competente para se prescrever eficazmente, em doses adequadas. (BALINT, 1975)
A comunicação humana não surge isolada e isenta das influências dos contextos históricos e sociais de que faz parte e que moldam, de maneira decisiva, até mesmo o mais descompromissado dos diálogos. Acontece assim, porque só se produz no contexto da chamada formação discursiva, - o arcabouço que permite dizer o discurso – considerada como
"um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram em uma época dada, e para uma dada área social, econômica, geográfica e lingüística, as condições do exercício da função enunciativa" . (FOUCAULT, 1986)
Por conseguinte, a formação discursiva é uma estrutura meta-individual, sobredeterminada, em que o sujeito se assujeita a ela, significando que pré-existe, rege e transcende o discurso pessoal:
"Nessa perspectiva não se trata de examinar um corpus como se tivesse sido produzido por um determinado sujeito, mas de considerar sua enunciação como o correlato de uma certa posição sócio-histórica na qual os enunciadores se revelam substituíveis". (MAINGUENEAU, 1997)
A proposição deste estudo é a de que as dificuldades de comunicação discente de medicina/paciente localizam-se no não saber escutar para saber dizer, o que torna o aluno inábil para interagir numa relação eu/tu, pessoa/pessoa. Tais dificuldades, supõe o autor, iniciam-se nas etapas precoces do aprendizado da anamnese clínica.
Essas questões despertaram o interesse de investigar as dificuldades de comunicação, consubstanciado nas indagações: Quais são essas dificuldades? Qual a sua natureza? Ocorrem em qual momento da graduação? Por quê? Como identificá-las e como corrigi-las? Questões: problematizando a comunicação discente/paciente
As reflexões em busca de respostas remetem ao período da graduação, no qual o discente da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP) faz, institucionalmente, seu primeiro contacto clinico com o paciente, a partir do 5o. semestre, nas disciplinas de Propedêutica e Psicologia Médicas. É quando surge a oportunidade de vivenciar, na prática, um dos mais importantes eventos de seu aprendizado: construir relações clínicas discente/paciente eficazes, fator de humanização da interação, de adesão ao tratamento, de prevenção ao erro médico e de sucesso profissional. A intenção da Escola é ensiná-lo a construí-la com a participação ativa do paciente, gerando a interação comunicacional de, no dizer de (ENTRALGO, 1969), "(...) dois caminhando juntos."
Para problematizar a questão, com vistas a aprofundá-la, vale aqui explicitar um fenômeno observado no decorrer da graduação, um fato, no mínimo, intrigante. Regra geral, o aluno ingressa na escola com expectativas humanistas que vão sendo embasadas e instrumentalizadas com a ajuda da Psicologia Médica, e que se mantém durante toda a etapa pré-clínica – do primeiro ao terceiro anos. A partir do quarto ano passa a ocupar-se com as abordagens dominantemente somáticas, de tal forma que, ao chegar ao sexto, o aprendizado humanista desenvolvido na etapa pré-clínica, parece liquefazer-se, o que conduz o autor às seguintes questões acerca do porquê da ocorrência.
Como explicar tal mudança? As razões estariam relacionadas com a coexistência de um currículo centrado no doente e um contracurrículo – implícito e não oficial – centrado na doença? Seria a conseqüência das dificuldades dos professores da Psicologia Médica para construir, com os alunos, conhecimentos duradouros capazes de perdurar durante e após a etapa da graduação? Relacionar-se-ia com o desinteresse do estudante pela natureza abstrata do saber psicológico, quando confrontado com os dados concretos da clínica? Teria algo a ver com o direcionamento preferencial dos docentes das etapas posteriores, para se centralizar na explicação da doença, negligenciando a compreensão do doente? Ou seria o resultado da dicotomia metodológica entre Propedêutica e Psicologia Médica?
A última indagação, mais próxima das questões que serão abordadas neste trabalho, merece breve análise. A Propedêutica Médica pretende ensinar ao discente o exercício da relação médico/paciente orientada para a explicação da doença, habilitando-o a reconhecer e interpretar os sinais e sintomas somáticos do paciente; a Psicologia Médica procura se direcionar para a compreensão do doente, ocupando-se em ensinar o discente a colher e interpretar a história de vida do paciente e a interagir com o seu ego-efetor (esquema de ações vinculado ao aqui/agora).
Na verdade, o próprio o que fazer das disciplinas -, ensinar o aluno a fazer a anamnese do paciente -, ratifica a dicotomia. O ensino de uma mesma tarefa (fazer a anamnese) é operacionalizado por dois tipos diferentes de entrevistas: a diretiva (da exploração física), que parte da suposição de que o paciente sabe sobre os seus mal-estares e está capacitado a fornecer os dados sobre ele; e a semidiretiva (da investigação psicológica) cuja premissa é a de que cada ser humano tem uma história de vida conscientemente organizada e um esquema de ação (ego-efetor) para atuar no aqui/agora; mas é a partir da correlação entre esse esquema de ação e essa história de vida que o entrevistador pode descobrir o que ele não sabe – lacunas, dissociações, contradições, etc. (BLEGER, 1964).
Na prática, mesmo quando elabora a chamada "história social e personalidade", a Propedêutica enfatiza a entrevista diretiva, enquanto a Psicologia Médica elege a entrevista semidiretiva para colher a história de vida do paciente. O autor acredita, que tal dualidade – docentes de disciplinas ditas "semiológicas" enfatizando, uns, a leitura física, outros, a leitura psicológica do paciente, em separado, - pode reforçar na mente do discente a crença cartesiana da divisão entre psíquico e somático.
Apesar das diferenças, existe certa redundância de objetivos didáticos, isto é, de funções comuns-de-dois, que vem gerando, nos docentes, sentimentos de invasão do espaço das competências – dos conteúdos de ensino, do exercício de poder. Estratégias estão sendo pensadas e aplicadas para integrar as duas disciplinas, mas nem sempre são aceitas, sem questionamentos, por parte dos interessados.
Também contribui para reforçar a crença na dicotomia cartesiana, fazer o estudante acreditar que a Psicologia Médica é uma "especialidade" alheia, distanciada da prática médica, a cujos especialistas ele deve recorrer sempre que encontrar dificuldades psicológicas na interação com o paciente. Seguramente, não é. Entende-se que essa é parte intrínseca do trabalho médico, a que ele é obrigado a exercitar, quer queira quer não, mesmo que não tenha consciência disso.
No entendimento do autor, a Psicologia Médica tem como meta prioritária ensinar o aluno a construir a relação médico/paciente centrada no doente, e não prepará-lo para se tornar médico-psicólogo ou fazer psicoterapia. Dessa perspectiva, o seu aprendizado tem a mesma importância curricular das demais disciplinas do curso de graduação.
Por último, mas não menos importante, tem-se observado (ABDO, 1996), a capacitação do aluno de medicina para se comunicar com o paciente não é melhor do que o da população em geral. O que leva ao pressuposto de que as dificuldades do estudante para estabelecer uma relação bem-sucedida com o paciente podem estar relacionadas não somente às limitações pessoais, mas, também, à falta de conhecimentos específicos sobre teoria e prática da comunicação humana. Como resultado, multiplicam-se as entrevistas de qualidade insatisfatórias e as queixas de
"falta de entendimento mútuo, dificuldade para fazer vínculo, mundos diferentes e até falta de condições pessoais para
conduzir o relacionamento com os pacientes". (ABDON, 1996, p. 163).
A problemática exposta comporta questões que ultrapassam os limites deste trabalho. Por outro lado, leva a uma pregunta
relacionada com a comunicação discente/paciente que é particularmente interessante e que pode ser formulada desta maneira: Quais as dificuldades de comunicação do discente de medicina na sua interação clínica com o paciente?
Faz-se, então, mister, investigar a origem e a natureza dessas dificuldades de comunicação. Mas como, e de que maneira? De início, é necessário eleger um embasamento teórico para fundamentar a pesquisa.

2. Embasamento Teórico

A natureza do corpus desta pesquisa e o propósito a atingir neste trabalho, levaram o autor a selecionar recortes pertinentes da Teoria Pragmática da Comunicação Humana, como suporte teórico dos objetivos apresentados. A teoria se credencia por sua origem e objetivos clínicos, nos contextos interacionista, antropológico e etnometodológico.

Fundamentos filosóficos
Assenta-se no pragmatismo, que ficou conhecido como uma corrente de pensamento tipicamente norte-americana. Isto é correto. Mas não se pode dizer que ele não tenha tido simpatizantes tipicamente europeus. Nietzsche, por exemplo, foi reconhecido como tendo uma postura pragmática no campo da teoria do conhecimento. Algumas das teses de Marx contra Feuerbach, mostraram uma face pragmatista quanto à questão de critérios de verdade. Wittgenstein está próximo de posições pragmatistas em vários momentos, se é que não adotou alguma. Atualmente, Habermas tem se voltado para Peirce e Dewey, pioneiros norte-americanos do pragmatismo; e Derrida, por sua vez, é hoje um interlocutor do pragmatismo, a quem responde de modo provocante. Nesse sentido, o pragmatismo é uma filosofia viva, talvez uma das filosofias mais vivas nesse início de século XXI.

Fundamentos epistemológicos
Sustenta-se na epistemologia da comunicação de Gregory Bateson, psiquiatra inglês, cientista, biólogo, filósofo, antropólogo e estudioso da comunicação humana, sobre a qual será discorrida brevemente. Bateson parte das seguintes questões:

Como se constrói o saber? Como são construídas as "idéias" que nós fazemos das coisas deste mundo? A partir de quais imperativos epistemológicos podemos pensar uma ciência do conhecimento? Quais os condicionantes da emergência do saber, de qualquer natureza quer seja: biológico, físico, lingüístico, matemático, pedagógico, antropológico, comunicacional? (BATESON, 1986)

Sua primeira resposta é:
"Sempre coloquei em minha vida as descrições de varas, pedras, bolas de bilhar e galáxias em uma caixa, o pleroma, e deixei-as em paz. Na outra caixa, coloquei coisas vivas: os caranguejos, pessoas, os problemas de beleza e as questões de diferença. É o conteúdo da segunda caixa...[que, a mim, interessa]" (Ibidem).
A afirmativa se compromete com um universo que é, para ele, um imenso organismo em constante ação e interação. O que interessa é o que vive. Sua epistemologia é, antes de qualquer coisa, uma epistemologia que se constrói a partir dos seres vivos.
Por conseguinte, pertence à ordem do concreto, do palpável, do sensível e não se pode construir no campo da abstração, na esfera da razão pura, fora da concretude de uma realidade empírica, e, porque não dizer, de uma ação pragmática. O leitor, arguto que é, logo verificará certa proximidade com a fenomenologia, notadamente a de Husserl, no sentido de se interessar pela descrição precisa dos fenômenos, do que aparece, do que emerge ante a consciência cognitiva.
Muitas vezes - diz Bateson - concebemos a epistemologia como sendo um ramo da filosofia, conseqüentemente algo abstrato de que cuidariam os filósofos, fora do campo da investigação empírica. Visão evidentemente distorcida, já que a subjetividade a ser estudada é da mesma ordem daquele que estuda, localizando-se, portanto, no campo empírico. Dizendo melhor, diferentemente da separação entre sujeito e objeto, presente nas ciências naturais, o que é estudado pelas ciências humanas faz parte do mundo do pesquisador e de sua própria natureza.
"É possível atingir de alguma maneira o quadro de referência de uma outra pessoa [quadro de referência entendido como a subjetividade] porque muitos dos objetos da percepção – eu próprio, pais, professores, patrões, etc. – têm contrapartida no nosso próprio campo perceptivo e, praticamente, todas as atitudes perante esses objetos da percepção – tais como medo, irritação, aborrecimento, amor, inveja, satisfação – estiveram presentes no nosso próprio mundo da experiência." (ROGERS, 1981).
De outra perspectiva, também não se justifica a crítica de que os instrumentos dos métodos quantitativos reduzem a riqueza do objeto estudado, pois, a redução não é devida ao método, mas sim, ao objeto. Na realidade, os métodos qualitativo e quantitativo são, na verdade, complementares, pois, enquanto o qualitativo permite o aprofundamento do acontecimento particular, o quantitativo possibilita verificar a extensão desse acontecimento.
Mas a visão distorcida de Bateson, não foi de toda improdutiva, pois lhe permitiu afirmar algo que é fundamental para sua epistemologia: nunca poder pensar construir uma ciência do conhecimento fora do campo da investigação empírica; e insistir, ainda, que a maneira através da qual adquirimos conhecimentos ou informações origina-se, sempre, da observação, da experimentação ou de uma experiência. O ser humano somente pode adquirir conhecimentos através dos seus órgãos sensoriais ou através de seus próprios experimentos, de tal modo que não se pode falar de uma epistemologia que não seja, por necessidade, vinculada e atrelada a um constante e prévio trabalho de observação.
Outra proposição da Epistemologia de Bateson, que deve merecer atenção particular, por ser a que mais inova, é a que diz: "Nunca poderemos conhecer as ‘coisas’ deste mundo, isoladamente. Todo conhecimento se insere num contexto" (BATESON, 1986). Essa visão holística, só se torna plausível se, em sintonia com Bateson, se entende o universo no qual se vive, como um imenso organismo em constante ação e interação.
Segundo Watts, a dificuldade de se perceber esse todo interativo decorre de:
"uma forma de olhar a vida pedaço por pedaço, usando a memória para juntar todos os pedaços – como quando examinamos um quarto escuro com uma lanterna que produz um raio de luz muito estreito. A percepção assim estreitada tem a vantagem de ser incisiva e brilhante, mas tem de focalizar as áreas do mundo uma após a outra, e uma característica após a outra. (...) A verdade é que, ao olhar o mundo pedaço por pedaço, nos convencemos de que o mundo é constituído por coisas separadas e, assim, suscitamo-nos o problema de como essas coisas estão ligadas e de como produzem causa e efeito umas nas outras" (WATTS, s/d).
A Epistemologia de Bateson, não é uma ciência de que se deva esperar "definições" isoladas e pontuais das coisas que povoam o universo e, sim, uma ciência capaz de revelar com profundidade o que essas mesmas coisas hão de dizer delas mesmas, em função das interações que entretêm umas com outras. Assim encarada, a epistemologia deve ser, antes de tudo, um "processo de aquisição e de estocagem da informação", a partir do qual poderão se construir as "idéias" (e apenas "idéias") que se fazem das coisas.
Bateson não procura entender o que é a "tromba" de um elefante ou o "nariz" de um ser humano. Não procura definir o que é um "homem", ou o que é uma "mulher". A Epistemologia de Bateson busca sempre entender "como se constroem as idéias que nós fazemos das coisas": da tromba do elefante, do nariz humano; do homem, da mulher. Como se passa de uma coisa observada (por exemplo, a tromba de um elefante, situada entre dois olhos e o nariz humano, também situado entre dois olhos) à idéia de mamífero; ou, ainda, como se passa da observação da morfologia genital do homem e da mulher à idéia de sexualidade; ou, ainda, por quê e como se chega a relacionar tromba/nariz, entre um par de olhos, com a posição de um verbo que, numa frase, fica inserido entre um sujeito e um complemento, geralmente necessários. Eis a epistemologia que reivindica Bateson. Ela deve ser - diz ele - "indutiva e experimental e, como toda verdadeira ciência, dedutiva e, sobretudo, adutiva [...], isto é, deverá sempre procurar colocar lado a lado fragmentos de fenômenos similares" (BATESON, 1986).
Alcança-se, deste modo, um último determinante da epistemologia batesoniana. A observação e a experimentação, a partir das quais a epistemologia se torna possível e pode ser processada, construindo as idéias que se faz de uma realidade em interação contínua com uma outra, são sempre constituídas, diz Bateson, de "informações de diferenças". O sapo é incapaz de ver uma mosca a não ser quando ela se movimenta. O olho humano é capaz de distinguir uma mosca imóvel e uma mosca em movimento. São essas informações de uma diferença que tornam possíveis a eclosão de idéias e, acrescente-se, o processo de suas representações, de suas enunciações, de suas conceituações e de suas (inevitáveis) interpretações.
Não se poderia chegar à idéia de mamífero sem ter previamente observado a tromba do elefante e o nariz do ser humano, ambos situados entre um par de olhos, ambos proporcionando uma informação de diferenças. Não se chegaria à idéia de sexualidade sem, previamente, ter observado a complementaridade morfológica dos sexos masculino e feminino, cada um deles proporcionando uma informação de diferenças.
Na perspectiva de Bateson, a comunicação se encontra no coração da elaboração de toda e de qualquer epistemologia, pois ela é a estrutura que liga, conecta, vincula, todas as criaturas vivas – o chamado padrão que conecta, de Bateson.
Em síntese, para Bateson, a ciência do saber se sustenta e se desenvolve com base na observação e a partir de uma
estocagem de informações. Dizendo melhor, sua epistemologia se fundamenta numa prévia observação da realidade concreta e sensível em busca de dados consistentes no campo de uma investigação empírica; a finalidade não é a de conhecer as coisas em si, tarefa impossível e infrutífera, mas a de estocar informações das diferenças existentes entre essas realidades observadas, e a partir dessas diferenças construir as idéias.
Os teóricos da Pragmática da Comunicação Humana fundamentaram-se na epistemologia de Gregory Bateson, mentor intelectual do grupo, para construir os paradigmas da teoria que será resenhada, dentro do recorte que ora interessa, portanto, sem a pretensão de esgotar o assunto. O suporte desse desenvolvimento será o livro Pragmática da Comunicação Humana, de Paul Watzlawick e colaboradores.

Paradigmas da Teoria Pragmática da Comunicação Humana
A Teoria Pragmática da Comunicação Humana ocupa-se com as dificuldades de comunicação – padrões, patologias e paradoxos da interação - e com os efeitos pragmáticos das enunciações efetivamente ditas, sobre os interlocutores.
Corroborando o postulado de Bateson, de que "nunca poderemos conhecer as ‘coisas’ deste mundo, isoladamente. Todo conhecimento se insere num contexto", o primeiro quadro de referência da pragmática fundamenta-se no fato de que "um fenômeno permanece inexplicável, enquanto o âmbito da observação não for suficientemente amplo para incluir o contexto em que ocorre" (WATZLAWICK, 1973).
Os autores exemplificam com a história clínica de um homem que desmaia e é levado para o hospital, inconsciente, com a pressão sanguínea extremamente baixa e o quadro clínico sugestivo de intoxicação aguda por drogas. Mas não se descobrem sinais de resíduos de drogas no organismo. O seu diagnóstico permanece inexplicável até que ele desperta e informa ser um engenheiro de minas que acabara de retornar dos Andes, após dois anos de trabalho numa mina de cobre situada numa altitude de 15 mil pés. Comprova-se, então, que não é uma vítima de intoxicação por drogas, mas sim de um problema de adaptação de um organismo clinicamente sadio, a um meio drasticamente alterado. A ampliação do contexto além da ecologia do meio onde se encontra, no aqui/agora, solucionou a questão.
A importância essencial do contexto na análise da comunicação humana é esquecida com facilidade. Para a pragmática, a linguagem não é simples suporte da comunicação e sim uma forma de ação, agente construtor e modificador das relações entre interlocutores. Diferencia troca de energia e troca de informações com o exemplo:
"Se o pé de um homem bater, enquanto passeia, numa pedra, a energia é transferida do pé para a pedra; esta será deslocada e, finalmente, voltará a parar numa posição que é totalmente determinada por fatores tais como o montante da energia transferida, o formato e o peso da pedra, a natureza da superfície em que ela rola. Se, por outro lado, um homem der um pontapé num cão, em vez de na pedra, o animal poderá saltar e morde-lo. Nesse caso, a relação entre o pontapé e a mordida é de uma ordem diferente. É óbvio que o cão recebe a energia para sua reação de seu próprio metabolismo e não do pontapé. Portanto o que é transferido não é energia mas informação. Por outras palavras, o pontapé é um item de comportamento que comunica algo ao cão e este reage à comunicação com um outro item de comportamento/comunicação" (WATZLAWICK, 1973, p. 25/26).
Isto sugere que o estudo da comunicação humana pode ser subdividido nas mesmas três áreas estabelecidas por Morris e adotadas por Carnap, para estudar a semiótica - a teoria geral de sinais e linguagem: sintática (abrange os problemas de transmissão de informação, domínio primordial do teórico da informação), semântica (refere-se aos significados das mensagens) e pragmática (lida com a comunicação que afeta o comportamento). Embora seja possível uma nítida separação conceitual das três áreas, na prática, são interdependentes. Interessam, neste trabalho, as áreas da semântica e da pragrmática.
Admitindo ser impossível verificar diretamente a subjetividade do sujeito, a teoria adota o modelo da caixa preta na investigação da mente humana, procurando estudar "a função da mesma dentro do sistema mais amplo de que faz parte", através dos elementos que entram e saem dela. O interesse recai sobre como os interlocutores se comunicam, evitando o insondável porquê (eles acreditam) que se comunicam. Admitem que os seres humanos se comunicam governados por dois conjuntos de regras, habitualmente inconscientes: as constitutivas – que criam as próprias possibilidades para que haja a comunicação; e as reguladoras, que determinam as formas aceitas de comportamento. A meta principal da pessoa que comunica é a de obter respostas da pessoa com quem está se comunicando.
De acordo com os autores, qualquer sistema interpessoal - discente de medicina/paciente, grupos de estranhos, pares
conjugais, famílias, relações psicoterápicas ou até internacionais, são circuitos retroalimentados
"(...) dado que o comportamento de cada pessoa afeta e é afetado pelo comportamento de cada uma das outras pessoas. A admissão (input) num tal sistema pode ser ampliada e redundar em mudança ou pode ser neutralizada para manter a estabilidade, segundo os mecanismos retroalimentadores sejam positivos ou negativos". (WATZLAWICK, 1973).
O ato de comunicar se processa em múltiplos níveis. Quando duas pessoas estão em comunicação, face a face, podem usar simultaneamente, muitos canais de informação sensorial – tato, visão, audição, etc., para identificar a mensagem e entender a intenção do outro. Quem comunica pretende informar, mas também controlar a relação – mudando as maneiras de sentir, de pensar e de agir do interlocutor. O médico que diagnostica a doença do paciente traduz suas queixas (a enfermidade que ele lhe traz), para a linguagem da medicina, com o objetivo de mudar os seus sentir (dor e sofrimentos), pensar (doença curável, aguda, crônica grave, não grave) e agir (como utilizar a prescrição incluindo os cuidados psicosociais). Para atingir tais objetivos, lança mão de todos os canais sensoriais disponíveis.

Axiomas conjeturais da comunicação humana
São propriedades simples da comunicação com implicações interpessoais profundas. Para este projeto, significa uma tentativa de delimitar as regras básicas da comunicação bem-sucedida. Com tais pressupostos, os pragmáticos construíram os axiomas conjeturais da comunicação, espécie de metamodelo paradigmático da comunicação eficaz, bem-sucedida, bem-estruturada, que são:

  • A impossibilidade de não-comunicar

Costuma-se dizer que os seres humanos se comunicam, mas a afirmação comporta uma sutil correção porque, de acordo com Cherry
"um indivíduo não comunica; ele se envolve em comunicação ou torna-se parte da comunicação. Pode movimentar-se ou fazer ruídos (...), mas não comunica. De um modo paralelo, ele pode ver, pode ouvir, cheirar, provar ou sentir – mas não comunica. Por outras palavras, ele não origina a comunicação; participa dela. Portanto, a comunicação como sistema não deve ser entendia como um simples modelo de ação e reação, por mais complexamente que seja descrito. Como sistema, tem de ser compreendido no nível transacional". (CHERRY, 1971, p. 104)
Essa suposição, aparentemente radical, é entendida pelo autor da seguinte forma: nascemos mergulhados num oceano de comunicações; a partir do momento em que ficamos aptos para codificar e decodificar o contexto vital, somos obrigados a nos comunicar, quer queiramos quer não. É assim porque o comportar-se – qualidade natural própria dos seres vivos - não contém o seu oposto, isto é, o não-comportar-se. Quando o indivíduo se comporta numa situação comunicacional, o seu comportamento adquire valor de mensagem.
"Atividade ou inatividade, palavras ou silêncio, tudo possui um valor de mensagem; influenciam outros e esses outros, por sua vez, não podem não responder a essas comunicações e, portanto, também estão comunicando. (...) Um homem que num congestionado balcão de lanchonete olha diretamente em frente, ou o passageiro de avião que se senta de olhos fechados, estão, ambos, comunicando que não querem falar a ninguém, nem que falem com eles; e, usualmente, os seus vizinhos recebem a mensagem e respondem adequadamente, deixando-os sozinhos. Isso, obviamente, é tanto um intercâmbio de comunicação como a mais animada das discussões" (WATZLAWICK, 1973, p.45).
Por conseguinte, se o indivíduo não pode não-se-comportar, também não pode não-se-comunicar, mesmo que queira, mesmo que se esforce. Tal modalidade de comunicação – comunico que não quero comunicar – pode ocorrer a toda pessoa, sadia ou doente, que deseja evitar o exercício de comunicar-se, mas sente-se obrigado a comunicar porque não pode abandonar o contexto, como por exemplo, numa consulta clínica. Dessa imposição de não poder não-comunicar, não escaparemos enquanto vivos.

  • Conteúdo e níveis de relação da comunicação

Pode-se diferenciar conteúdo e níveis de relação, analisando como o homem se comunica com a máquina. Só pode comunicar com o computador fornecendo-lhe dados e, simultaneamente, qualificando esses dados com instruções. Se quiser que multiplique dois números dar-lhe-á dados (dois números) e uma qualificação/ordem (instrução para multiplicá-los). De forma mais complexa, fato análogo ocorre na comunicação humana. Os indivíduos que se comunicam, transmitem informações e simultaneamente procuram estabelecer que tipo de relação deverá manter com o interlocutor, para impor ordem e limites na interação. Tais metas se assujeitam às regras do contexto e aos interesses dos interlocutores. Quer dizer, em todo enunciado interacional existem conteúdos (dados, informações) e ordens (instruções).
A pragmática chama os informes de conteúdo e os compromissos que as enunciações impõem aos interlocutores, de relação. Por pertencerem a um tipo lógico superior a dos conteúdos, as relações são classificadas como meta-informações. Ou dito de outra forma: "toda comunicação tem um aspecto de conteúdo e um aspecto de relação tais que o segundo classifica o primeiro e é, portanto, uma metacomunicação" (WATZLAWICK, 1973).
Dificilmente a relação é definida de modo consciente e deliberada. Habitualmente inconsciente, é expressa ou de forma averbal (comportamento histérico, um sorriso, um gemido, um grito, um soco na mesa, um cair em prantos, etc.) ou através do contexto onde ocorre (um padre na enfermaria, um soldado na arena de um circo, bombeiros num estúdio de televisão, etc.).
A teoria pragmática pressupõe que as comunicações mais sadias são as que priorizam os conteúdos e as mais doentias as que se centralizam nas relações – nos conflitos interacionais, na luta pelo poder ou pelo domínio do discurso, ignorando ou desqualificando as enunciações do interlocutor.

  • Pontuação da seqüência de eventos

Para um observador externo, a troca de mensagens entre interlocutores aparenta ser uma seqüência ininterrupta de trocas de mensagens. Na realidade, elas são agrupadas pelos participantes que introduzem uma pontuação na interação para ficar manifesto que um ou outro tem a iniciativa, o domínio, a dependência, etc., dessa interação. Quer dizer, existe uma pontuação inconsciente do discurso que organiza a seqüência e a cadência dos enunciados, definindo o "lugar" dos interlocutores, por exemplo, do professor e do aluno, do líder e do liderado. Por isso, a natureza de uma relação está na contingência da pontuação da seqüência dos enunciados comunicantes.

  • Modalidades de comunicação

Quando nos comunicamos, podemos nos referir a objetos de duas formas: representando-o por um nome, como a palavra gato ou por uma semelhança, como o desenho de um gato. Na frase "o gato apanhou o rato", os substantivos podem ser substituídos pelos desenhos dos animais. Outra maneira de comunicar seria, simplesmente, apontar para o gato e o rato reais; forma de comunicação pouco comum, exceto para sujeitos mudos, crianças muito pequenas, deficientes mentais e... pessoas apaixonadas.

  • Linguagem digital

A linguagem digital, com o significado de que funciona a partir de dois dígitos, sim-não, ou o 0-1 dos computadores, usa palavras que são sinais arbitrários regidos por regras previamente convencionadas. "Nada existe particularmente como-cinco no número cinco; nada existe particularmente como-mesa na palavra mesa". (WATZLAWICK, 1973). Quer dizer, fora da convenção não existe qualquer correlação entre a palavra e a coisa que representa.

  • Linguagem analógica ou metalinguagem

A linguagem analógica é virtualmente toda comunicação averbal – postura, gestos, expressão facial, inflexão de voz, seqüência, ritmo, cadência, inferências, etc. As mensagens são auto-explicativas, e se comunicam por qualquer manifestação não/verbal de que o organismo seja capaz, inclusive as pistas comunicacionais, presença obrigatória em qualquer contexto onde ocorra uma interação.

O homem é o único organismo conhecido que usa os modos analógico e digital de comunicação. O conteúdo, regra geral, é enunciado pela linguagem digital, enquanto o aspecto relacional é, quase sempre, analógico em sua natureza. Enquanto a comunicação digital é particularmente importante para a partilha de informações sobre objetos e conhecimentos, a comunicação analógica é a forma de linguagem específica da área de relação. O significado disso ainda não foi totalmente compreendido, mas não pode ser subestimado.
Pela importância do tema – afirma-se que o averbal representa 65% de toda a comunicação humana – as considerações sobre a linguagem analógica serão aprofundadas.

Bateson, Tinbergen e Lorenz
Com fundamento nos trabalhos dos ecologistas Tinbergen e Lorenz, assim como em suas próprias pesquisas, Bateson demonstrou que as vocalizações, os movimentos intencionais e os sinais de humor dos animais são comunicações analógicas (conotativas) pelas quais eles afirmam suas relações por não poderem fazer declarações denotativas (digitais) sobre elas. Um de seus exemplos: "quando abro a geladeira e o gato vem roçar nas minhas pernas, miando, isso não significa ‘Eu quero leite’ – como o faria se pudesse comunicar-se digitalmente – mas invoca uma relação específica, similar a ‘Seja uma mãe para mim e me alimente’. – porque tal conduta só é observada entre os filhotes e um gato adulto, nunca entre dois gatos adultos." (BATESON, 1986).
Entretanto, muitos amigos de animais domésticos estão convencidos de que os seus bichos de estimação "entendem" o que eles dizem. Na verdade, o animal não entende os significados das palavras, mas a riqueza da comunicação analógica que lhes acompanha. Com efeito, sempre que a relação (linguagem conotativa) é o enfoque central da comunicação, a linguagem digital (denotativa) torna-se quase ineficaz. Acontece, também, entre seres humanos nos mais variados contextos: no namoro, no sexo, na prestação de socorro nos serviços de urgência, no trato com crianças pequenas e na interação com doentes, principalmente os portadores de doenças mentais.
Alguns estudiosos têm creditado a crianças, doentes e animais, uma competência particular para detectar sinceridade/insinceridade nas atitudes e nos enunciados conotativos dos seres humanos, o que não parece ocorrer com os humanos adultos, ditos "sadios". Afirmam que é mais fácil mentir verbalmente, do que expressar uma mentira em nível analógico.
Na linguagem analógica inexistem equivalentes para elementos vitalmente importantes no discurso digital como "se...então", ‘ou...ou"; também a possibilidade de dizer não, da negativa simples, sem ambivalências, isto é, não existe uma expressão analógica que tenha semelhança física com o "não"; por isso, há lágrimas de dor e de júbilo, o punho fechado pode assinalar agressão ou contenção, um sorriso pode transmitir simpatia ou animosidade, as reticências podem ser interpretadas como confirmação ou como indiferença, enfim, todas as mensagens analógicas possuem essa qualidade ambígua que lembra o sentido antitético das palavras primevas de Freud – não tem qualificadores para indicar qual de dois significados discrepantes está subentendido, nem qualquer indicadores que permitam uma distinção entre presente, passado e futuro. A descrição freudiana do ID, do quadro de referência intrapsíquico, transposto para a referência interpessoal converte-se em comunicação analógica.

  • Tradução digital/analógica ou vice-versa

Pela necessidade de combinar as duas linguagens (digital/analógica), o homem, na condição de emissor/receptor, deve traduzir constantemente uma para a outra, e ao fazê-lo, se depara com dificuldades de comunicação por não poder traduzir o analógico para o digital sem a perda considerável de informações. Por isso, é difícil falar digitalmente sobre relações, que requer uma tradução adequada do modo analógico para o digital. Significa, a linguagem digital possui uma sintaxe lógica sumamente complexa e poderosa para transmitir conteúdos, mas carece de semântica adequada para interacionar no campo das relações; enquanto a linguagem analógica possui a semântica, mas falta-lhe uma sintaxe adequada para a definição não/ambígua da natureza das relações.
Apesar de suas limitações, a linguagem analógica tem valor incomensurável no processo da comunicação humana porque, enquanto a linguagem verbal veicula melhor o conteúdo de nossos pensamentos, a linguagem averbal, filogeneticamente mais antiga, expressa melhor e com mais fidedignidade o subjetivo, o íntimo, o inefável, o mais profundo do ser humano, desmistificando, dessa forma, a suposição de que o conteúdo profundo do ser humano, precisa necessariamente ser interpretado para ser compreendido. Numa relação frente-a-frente, o corpo, a face, os gestos, por si, permitem ao observador perspicaz perceber a interioridade mais profunda do ser humano, sem a necessidade de interpretações intermináveis. É o que postula a teoria pragmática da comunicação humana.
As palavras comunicam muito do processo intelectual (conteúdos) e sua musicalidade comunica alguma coisa do processo afetivo. Mas elas continuam sendo apenas parte do todo profundo do homem. A profundidade do sujeito transparece no decorrer do processo de comunicação averbal. A entrevista clínica é uma situação de comunicação principalmente oral ou vocal, e não somente verbal. Pode-se prestar muita atenção – e com benefícios – aos aspectos delatores da entonação da voz, do ritmo da conversação, das dificuldades de enunciação etc., pois são elementos básicos para qualquer estudioso da comunicação humana. São mais importantes como sinais e indicações do que se pretende dizer, do que o mero significado das palavras em si (SULLIVAN, 1959).
É observando a face, o corpo e os gestos das pessoas, em interação, que se pode entender, inclusive, o que ela está querendo dizer com as palavras. Daí, para captar o sentido das palavras, precisa-se estar atento para "escutar" o modo como são ditas e como são qualificadas pela linguagem do corpo, sem descurar a atenção do contexto onde ocorre a comunicação, cujas regras e disposições permitem, inclusive, que ela se efetive.
Quando Freud disse, "o essencial não é invisível aos olhos", talvez estivesse se referindo à linguagem averbal. Reich foi mais direto e falou de um inconsciente visível, expresso através da linguagem do corpo, na qual se esconde pouco e nada dos sentimentos e intenções, porque os sentimentos alteram expressões, gestos, ou, então, induz a contê-los, controlá-los, disfarçá-los. Denominou ao conjunto das expressões não/verbais de "couraça muscular do caráter", significando: couraça, porque protege, defende, esconde (e revela); muscular, porque é constituída de conjuntos de tensões musculares cronicamente mantidas; do caráter, porque são características da pessoa que influem em tudo o que ela faz, pensa, sente, diz.
Na verdade, a linguagem averbal é um verdadeiro resumo da história pessoal, dita sem palavras. Com alguma prática, o observador pode perceber que a maneira de esconder de uma pessoa é também o seu modo de se revelar. Quer dizer, mais do que nunca, o seu interior está do lado de fora. O seu corpo reflete a sua alma, porque mostra o que é, como é, o que sente, o que pensa, como age, e revela, sem palavras, a história que viveu.
Sendo o retrato acabado de nosso interior, o nosso exterior mostra-se sempre com contradições. O sujeito pode, em certo momento, sorrir amistosamente enquanto olha o outro com dureza. Sua mão pode aproximar-se do outro (aperto de mão) enquanto faz um movimento de afastamento com o corpo. Pode olhar alguém nos olhos, direta e francamente, enquanto seus ombros estão apertados (de medo) e suas pernas se plantam no chão, com força, preparando-se para submeter-se, atacar ou fugir.
Assim, a linguagem averbal revela (e expressa), a um só tempo, o paradoxo da realidade subjetiva e a sua ocultação, exigindo do observador atenção cuidadosa para decodificá-la adequadamente.

  • Interações simétricas e complementares

Em 1935 Bateson descreveu no seu livro Naven, um fenômeno interacional com dois padrões diferentes, simétrico e complementar, que observou na tribo Istmul da Nova Guiné. Deu-lhe o nome de cismogênese definindo-o como "um processo de diferenciação nas normas de comportamento individual resultante da interação cumulativa entre indivíduos".
Hoje tais padrões são conhecidos como interações simétricas e complementares. A interação simétrica é caracterizada pela igualdade e pela minimização das diferenças, como se pode observar nos pares professor/professor, médico/médico, general/general, aluno/aluno, etc.; os indivíduos se comunicam como se estivessem no mesmo nível simétrico de interação. A interação complementar caracteriza-se pela maximização da diferença, isto é, a comunicação de um interlocutor parece complementar a do outro, como ocorre nos pares interacionais mãe/filho, professor/aluno, líder/liderado, general/soldado, médico/paciente, etc. Uma interação complementar pode ser imposta pelo contexto sócio/cultural como no caso de mãe/filho, médico/paciente, professor/aluno, ou pode resultar da construção de um estilo idiossincrático de uma determinada díade comunicacional. Habitualmente, um parceiro não impõe a relação complementar ao outro mas, antes, comporta-se de maneira que pressupõe o comportamento do outro, enquanto, ao mesmo tempo, fornece razões para tal comportamento; dessa forma se enraízam as respectivas expectativas da relação.
Um terceiro tipo de relação foi sugerido; a chamada metacomplementariedade, em que A deixa ou força B a se encarregar dele; pelo mesmo raciocínio poder-se-ia falar de pseudo-simetria em que A deixa ou força B a ser simétrico.

Limitando o valor dos axiomas
Os autores finalizam o capítulo enfatizando as limitações de seus axiomas. Procuram deixar claro que são proposições conjeturais, informalmente definidas, a título mais preliminar do que exaustivo. Os axiomas são heterogêneos por terem sido extraídos de uma vasta gama de observações sobre os fenômenos da comunicação. Foram unificados não por suas origens, mas pela importância pragmática que se assenta na dinâmica interpessoal.
A importância de não-poder-não-se-comunicar implica em que todas as situações de interação de duas ou mais pessoas são sempre comunicativas; a importância pragmática dos modos digital e analógico reside na inevitável e significativa ambigüidade que tanto o emissor como o receptor enfrentam nos problemas de tradução de um modo para o outro; a descrição dos problemas de pontuação assenta-se na metamorfose latente do modelo clássico de ação/reação. Finalmente o paradigma simetria/complementaridade é talvez, o que mais se aproxima do conceito matemático de função, sendo as posições dos indivíduos variáveis relativas, com uma infinidade de valores possíveis que emergem numa relação de reciprocidade.

3. Corolários Dos Axiomas

O propósito deste capítulo – que interessa particularmente ao presente estudo, porque se propõe a caracterizar algumas dificuldades de comunicação que irão orientar a pesquisa -, parte dos axiomas conjeturais, para estabelecer corolários tidos como prováveis padrões de interação ineficazes, mal-sucedidos, mal-estruturados, ou mesmo patológicos. Ou respaldado nos autores:
"cada axioma descrito subentende, como corolário, patologias comunicacionais inerentes" (WATZLAWICK, 1973).

Patologias comunicacionais
As chamadas patologias comunicacionais têm como fundamento a impossibilidade-de-não-comunicar, deduzida da proposição
de Bateson (não há situação de não comunicação.). Foi a partir dessa proposição que os teóricos da pragmática "descobriram" o chamado dilema do esquizofrênico – que se comporta como se tentasse negar que está comunicando e, depois, acha necessário negar também que a sua negativa seja, em si mesmo, uma comunicação.
Observações posteriores revelaram que essa impossibilidade de não-comunicar, não se limita à compreensão da esquizofrenia, mas têm implicações mais amplas na comunicação humana. Existe em qualquer contexto em que o indivíduo não deseja (ou fica impedido de) comunicar-se; então, reage com a chamada desqualificação da comunicação, na qual um interlocutor desqualifica a comunicação do outro, ou invalida sua própria comunicação.
"As desqualificações abrangem uma vasta gama de fenômenos comunicacionais, como as declarações contraditórias, as incoerências, as mudanças bruscas de assunto, as tangencializações, as frases incompletas, as interpretações errôneas, a desconfirmação do outro, o estilo obscuro, os maneirismos da fala, as interpretações literais de metáforas ou as interpretações metafóricas de comentários literais" (WATZLASWICK,1973, p. 69-70).
Juntem-se outras modalidades, tais como: a impermeabilidade afetiva, a imposição do vínculo papel/papel, a incongruência entre conteúdo e relação e o duplo vínculo.
Pensando assim, serão elencados exemplos de influência do aqui/agora na emergência do passado, desqualificação, desconfirmação, tangencialização, mudança de contexto e duplo vínculo, com o objetivo de tornar mais visíveis, compreensíveis, inteligíveis os conceitos de dificuldades de comunicação citadas no texto, mesmo sabendo que todo relato possui algo de forçado, e este não escapa à regra.

A influência do aqui/agora na emergência do passado
Aqui será feita a descrição de uma situação pessoal, da qual o autor jamais estará certo de ter esgotado todas as possibilidades. Meu oftalmologista gosta de ouvir e de gravar música. Recebo de amigo, expert em som e sua parafernália técnica, revistas sobre gravação, componentes sonoros, aparelhos sofisticados, top-lines, etc. Após lê-las as presenteava ao meu oftalmologista, acreditando que lhes seriam úteis. Ele sempre me agradecia, mostrando "alguma" satisfação. Um dia, fui consultá-lo e lhe levei mais duas das referidas revistas. Como sempre, agradeceu-me e "as pôs de lado". Enquanto me atendia, começou a contar-me uma longa história. Havia dado um presente – um livro sobre pássaros – para um amigo que gostava de aves. Um exemplar caríssimo, importado, que enviou pelos correios. Ficou aguardando o agradecimento, pois o amigo era bastante atencioso. Mas o tempo passou e nada de resposta, o que o deixou preocupado. O que teria acontecido? Teria recebido o presente? E se recebeu, teria ficado satisfeito? Curioso, decidiu ligar para a sua casa a fim de esclarecer o mistério. Quem atendeu foi a esposa. Tranqüilizou-o dizendo que o marido havia recebido o presente e tinha ficado muito satisfeito. Como conhecia sua "atitude diplomática", tal esclarecimento não o convenceu. Decidiu ligar, outra vez, e acabou falando pessoalmente com o amigo. Este, de forma direta e franca, confessou-lhe: "Realmente, o livro é muito bom, mas não serve para mim. Na verdade, eu não gosto de aves, mas sim de determinada espécie de pássaro – o canário belga". Pediu o livro de volta e encomendou um outro centrado no canário belga.
Enquanto escutava o seu relato, lembrei-me de um princípio de Bateson: "Uma mensagem é um relato e uma ordem". Transpondo para a relação em geral, significa que as enunciações de um interlocutor contém, sempre, mensagem e instrução, em resposta ao que o outro interlocutor está comunicando. Sendo assim, toda vez que, numa interação comunicacional, emerge um tema do passado, a reminiscência tem sempre algo a ver com o que está acontecendo na relação do aqui/agora. Com esse fundamento, interferi, dizendo: "Você gosta das revistas que lhe trago?" Respondeu-me: "Não, muito. Eu gosto de música, gosto de gravar, mas não só adepto de aparelhos de som sofisticados, pois acredito que o prazer de ouvir música está mais ligado ao ouvido de quem escuta, do que a reprodução refinada de aparelhos caros e complicados!" Após essa explicação, não mais o presenteei com as revistas sobre som...!

Tangencialização (reação tangencial de Ruesch, 1958) e mudança do contexto
"Um meninozinho de cinco anos corre para a mãe, segurando um verme grande e gordo, dizendo: ‘mamãe, olhe que bonita minhoca eu achei!’ A mãe responde: ‘Você está sujo! Vá imediatamente lavar as mãos!". Em termos dos sentimentos do menino, a reação da mãe está, por assim dizer, na tangente. Ela não respondeu: ‘é mesmo! Que bonita minhoca!’ Não disse: ‘que bicho nojento! Você não deve pegar minhocas. Jogue-a fora!’ Não manifestou prazer ou horror, aprovação ou desaprovação, mas reagiu focalizando algo que o menino não considerara e que não tinha importância imediata para ele... A resposta da mãe está, por assim dizer, na tangente... Em termos de envolvimento, a mãe pode ser considerada ignorante do nível genital do menino, simbolizado pela gorda minhoca, ao mesmo tempo em que reconhece somente a questão anal – limpo ou sujo" . (LAING, 1973).

Segundo exemplo:
Durante o curso de Pesquisa em Saúde Mental, estávamos fazendo uma exposição sobre o pensamento de FOUCAULT, e projetamos um slide com a frase que conceitua a formação discursiva:
"Um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram em uma época dada, e para uma dada área social, econômica, geográfica e lingüística, as condições do exercício da função enunciativa" (FOUCOULT).
Então, perguntamos à platéia (constituída por colegas universitários):
"Como vocês sintetizariam esta frase? Que indagações fariam sobre ela?"
Uma ouvinte (psicanalista) respondeu: "FOUCAULT está escrito errado".
Não era, evidentemente, a resposta para o que estava sendo perguntado. Nesse caso, houve duas transgressões à boa comunicação; a tangencialização e o desvio da pergunta para um contexto diferente que não tinha importância imediata para o orador – ambas desqualificando e desconfirmando o discurso.
Curioso é que, no seguimento, algo aconteceu: a coordenadora do curso levantou-se e rapidamente corrigiu, com giz, a palavra FOUCOULT, acrescentando um A no segundo O, restabelecendo, assim, o sentido da pergunta e REQUALIFICANDO o discurso do orador.

Duplo vínculo
O chamado duplo vínculo, duplo-laço ou dupla armadilha é o conceito mais original da Teoria Pragmática da Comunicação Humana. Corresponde à seguinte estrutura básica: duas (ou mais pessoas) envolvem-se numa interação vital, de tal forma que suas sobrevivências física e psicológica ficam intimamente dependentes dos vínculos interpessoais estabelecidos.
"Uma pessoa comunica à outra que deveria fazer algo e ao mesmo tempo comunica em outro nível que não deveria faze-lo, ou então que deveria fazer algo incompatível com aquilo. A situação é selada para a "vítima" por uma nova injunção, que lhe proíbe sair da situação, ou dissolvê-la comentando-a. A "vítima" encontra-se, portanto, numa posição "insustentável". Não pode fazer um gesto sem provocar uma catástrofe. Exemplificando:
A mãe visita o filho que acaba de recuperar-se de um colapso nervoso. Quando ele se aproxima:
Ela abre os braços para que ele a abrace e/ou , para abraçá-lo.
Quando ele se aproxima, ela fica rígida.
Ele pára, irresoluto.
Ela pergunta; "Não quer beijar a sua mãe?" - e, uma vez que ele continua parado, indeciso, diz: "Meu filho, não tenha medo dos seus sentimentos." ( LAING, 1973)
Pode-se observar que a mãe:
Afirma alguma coisa, verbalmente; simultaneamente, afirma algo sobre a própria afirmação (em outro nível de comunicação, habitualmente averbal); uma afirmação nega a outra.
Para fixar melhor o conceito de duplo-vínculo, será descrita a experiência da Dra. N. Chenguer-Krestovnikova, colaborada de Pavlov, cujo objetivo era demonstrar a interferência do condicionamento reflexo na dinâmica dos processos mentais internos.

  • Primeira Etapa: condicionou, num cão, uma resposta reflexa alimentar (dava-lhe alimento e, ao mesmo tempo, projetava um círculo luminoso numa tela diante dele. O cão passou a associar círculo luminoso com alimentação).
  • Segunda: com o cão faminto, projetou uma elipse de superfície e luminosidade semelhante às do círculo, mas de forma bem distinta, pois, a relação de seus semicírculos era de 2 para 1. O cão aprendeu a diferenciar os significados do círculo e da elipse, relacionando-os com suas necessidades vitais: projeção do círculo= alimento; projeção da elipse = fome.
  • Terceira: começou a projetar várias elipses cujos semicírculos iam-se aproximando do círculo, tornando cada vez mais difícil a diferenciação entre as duas figuras. Ao receber a mensagem dúbia – o cão ficou impossibilitado de distinguir o que era alimento do que era fome.

O animal, que até então se mantinha tranqüilo no estrado, entrou em crise de agitação, ganindo raivosamente, reagindo agressivamente e recusando-se a se alimentar. Foram necessários seis meses de cuidadosa reeducação (descondicionamento) para reverter o processo.
Analisando o experimento, se pode verificar que ele contém todos os "ingredientes" do duplo-vínculo, embora em um nível elementar: preliminarmente, a experimentadora introduziu, no mundo subjetivo do animal, dois sinais artificiais (círculo, elipse) com significados afetivos vitais para o cão (alimento e fome):. A seguir, colocou-o numa situação dúbia, na qual as informações afirmavam/negavam simultaneamente, uma a outra (círculo ou elipse? Alimento ou fome?). Amarrado ao estrado, o animal estava impedido de sair da situação. Tal experimento é exemplo simplista para se entender o mecanismo da dupla-armadilha.
Neste ponto, o autor entende ser necessário alertar, que quando se fala de erros de estratégias comunicacionais, em geral, (duplo-vínculo, desconfirmação, desqualificação, impermeabilidade, relacionamento disjuntivo) não se está caracterizando "entidades maléficas", em si, porque o tipo de influências semânticas (significados das mensagens) e pragmáticas (a comunicação que afeta o comportamento) que elas irão exercer na dinâmica da comunicação vai depender do "arcabouço do discurso" (a formação discursiva de Foucault), no qual se incluem os contextos e os objetivos a que os interlocutores se propõem ou estão assujeitados, no aqui/agora. Dizendo de outra forma, às vezes, na prática clínica, um paciente que tenha um tipo específico de interatividade, dentro de um determinado contexto, somado ao objetivo a atingir, pode se beneficiar, por exemplo, com uma desconfirmação.


 
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