Sistema local de informação e cidadania (*)

 

 

Grande parte da impressionante deficiência dos poderes locais em informação organizada deve-se ao fato de que as informações são elaboradas para abastecer ministérios, o tribunal de contas e outras instâncias externas, não sendo cruzadas, organizadas e integradas no nível municipal, que é onde o cidadão comum e a sociedade organizada mais poderiam transformar informação em participação cidadã. Seria o caso de elaborar a metodologia básica de um sistema de informação integrada municipal, de maneira a permitir a geração de uma capacidade de informação na base da sociedade. É importante lembrar que a forma atual de transmissão de informação setorial para cima, para os respectivos ministérios, torna essa informação pouco confiável para as contas nacionais e pouco útil para os atores sociais locais, inclusive as empresas e as iniciativas de fomento.

A dinamização de atividades e de protagonismo econômico na base da sociedade, por meio de iniciativas variadas – como criação de pequenas e médias empresas, constituição de cooperativas, adoção de tecnologias que aproveitam recursos subutilizados ou permitem que se aumente localmente o valor agregado –, envolve a geração de um ambiente favorável ao desenvolvimento.

A geração desse ambiente é papel de uma série de instituições, como o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), que ensina a abrir uma pequena empresa, o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), que assegura formação profissional, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que pesquisa tecnologias adequadas, e as instituições financeiras, que deveriam assegurar o acesso ao crédito necessário.

Cada instituição busca constituir seu próprio sistema de seguimento, avaliação e controle, para poder apreciar a produtividade de seus esforços. Os sistemas de informação por segmento de atividades são necessários para cada instituição individualmente, mas não nos informam o impacto sistêmico do conjunto dos esforços, nem permitem que cada instituição possa se articular de maneira criativa no nível do chão-de-fábrica dos sistemas de apoio à produção, que são os municípios, as cidades, os espaços locais de produção. A existência de sistemas paralelos e segmentados de informação não nos fornece uma visão de conjunto.

A racionalidade gerencial de qualquer sistema implica visão de conjunto. Pode-se dizer que os diversos atores que gerem de uma forma ou de outra o município, desde o prefeito até os gerentes empresariais e dirigentes de organizações da sociedade civil, têm uma visão extremamente limitada e desinformada de sua própria realidade. A situação não é especificamente brasileira.

O Banco Mundial (2003, p. 163), em seu comentário sobre indicadores para o desenvolvimento urbano, salienta que,

  • apesar da importância das cidades e das aglomerações urbanas que abrigam quase a metade da população mundial, informações sobre muitos aspectos da vida urbana são escassas. […] Até dentro das cidades tem sido difícil reunir e integrar um conjunto de dados. As áreas urbanas espraiam-se freqüentemente por diversas jurisdições, sem que nenhuma agência particular seja responsável pela coleta e organização de relatório sobre o conjunto da área. Acrescentem-se a essas dificuldades de coleta de dados os hiatos e superposições na coleta e os objetivos diferenciados das diversas unidades administrativas.

É importante salientar que não se trata de ausência de dados e de informações, já que estes são produzidos por inúmeras instituições. Trata-se antes da ausência de uma metodologia de sistematização que permita aos diversos atores sociais contribuir para o desenvolvimento local e a dinamização de atividades econômicas, sociais e ambientais terem uma visão sistêmica, essencial para a sinergia de esforços.

A informação é um recurso precioso e um poderoso racionalizador das atividades sociais. Preciosa também é nossa limitada capacidade de atenção, hoje inundada por gigantescas quantidades de lixo informativo que nos desorienta. Na ausência de informações articuladas para permitir a ação cidadã informada, geramos pessoas passivas e angustiadas, iniciativas econômicas sem futuro. A informação constitui um gigantesco recurso subutilizado.

De forma geral temos a tradição de visualizar a produção da informação como um processo de baixo para cima. Organizamos informação para guiar as ações de governo, para melhorar as decisões de um banco de desenvolvimento, para organizar a política de investimentos de uma empresa ou até para escrever uma tese de doutorado. Ou seja, a sociedade civil é vista de forma geral como fornecedora de informações, para que os centros de decisão que ficam mais acima possam levar seus interesses em consideração ou assegurar melhor seus próprios interesses. Esse tipo de filosofia da informação é coerente com uma ideologia política que vê a sociedade como usuária, ou até como "cli- ente", mas não como sujeito do processo decisório. O eixo central, portanto, consiste em entender que é a sociedade civil em seu conjunto que deve ser adequadamente informada, para que possa participar ativamente das decisões sobre seus destinos.

A prefeitura de Porto Alegre passou seu cadastro de empresas que atuam na cidade, e que se registram para obter o alvará de funcionamento, para um mapeamento microrregional. Ficase sabendo onde estão os bares, as padarias, as farmácias, as indústrias químicas etc. Quando se quer abrir uma farmácia, por exemplo, em vez de registrar apenas, de forma burocrática, o pedido de autorização, permite-se ao candidato ver no mapa da cidade onde estão localizadas as que já existem, quais regiões estão sobreequipadas e em que partes da cidade faltam farmácias.

Gera-se assim uma distribuição adequada dos equipamentos, sem precisar elaborar planos autoritários sobre a rede de farmácias e sem privar o cidadão da iniciativa, inclusive sobre a microlocalização final. A informação adequada e acessível constitui um poderoso racionalizador econômico e permite que as dimensões econômica, social e ambiental se cruzem.

No conjunto do país, pode-se dizer que o nível de informação municipal é impressionantemente precário. Uma vez mais, tal situação não se deve à ausência de produção de dados, mas ao fato de que estes ou são agregados em função de diversas instâncias de governo, das necessidades de produção de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de pesquisas universitárias que geram teses que são tragadas pelas bibliotecas, ou não se cruzam porque cobrem divisões territoriais sobrepostas.

A ausência de uma metodologia padronizada de informações básicas municipais constitui uma fraqueza e um entrave particularmente importante. Se considerarmos que os 5.560 municípios constituem de certa forma os "blocos" da construção econômica do país, a ausência desse instrumento integrado de informação é gritante. Um prefeito administra sua cidade praticamente sem informações estruturais e gerenciais. Um dirigente empresarial, querendo desempenhar de maneira competente sua tarefa, começaria provavelmente pela organização das informações, para ter uma visão de conjunto.

Um município, como unidade política, é de certa maneira propriedade dos munícipes, e todos precisam dispor de um sistema adequado de informações básicas sobre a cidade onde vivem.

A informação está no centro do processo, pois envolve diretamente todos os outros direitos. Segundo o World Information Report da Unesco, "há uma grande diferença entre ter um direito e poder exercê-lo. Pessoas pouco informadas se vêem freqüentemente privadas de seus direitos porque lhes falta o poder para seu exercício… O acesso à informação é um direito que temos, como o acesso à justiça, e deveria ser assegurado gratuitamente como outros serviços públicos" (Unesco, 1995, p. 280-282).

Além de um direito, a informação bem-organizada e bemdisponibilizada constitui um poderoso instrumento de autoregulação na base da sociedade, pois todos os atores sociais, empresários, secretários municipais, organizações comunitárias etc. passam a tomar decisões mais bem-informados.

A presente proposta prende-se justamente ao fato de que a organização de um sistema básico de informações municipais –padronizado e portanto assegurando comparabilidade no tempo e entre municípios– constituiria uma iniciativa de melhor custobenefício em termos de aprimorar a produtividade sistêmica:

• melhorando a capacidade de gerenciamento das administrações municipais;

• melhorando a capacidade dos munícipes de avaliar suas administrações; (1)

• aproveitando um conjunto de informações que já existe, mas é subutilizado pela organização caótica que preside à coleta, à sistematização e à divulgação; (2)

• permitindo às instituições de apoio –Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), Fundação Banco do Brasil, Sebrae, Senac etc.– ter um sistema de referências para avaliar as iniciativas em seu conjunto e individualmente;

• melhorando a capacidade do governo em geral de avaliar as desigualdades do desenvolvimento dos municípios do país e o impacto de suas políticas.

Sugerimos aqui que se desenvolva, mediante um número limitado de pilotos em municípios selecionados, uma metodologia de organização das informações locais para a cidadania e o desenvolvimento, aproveitando tanto os subsistemas de informação já existentes (IBGE, dados setoriais etc.) como as iniciativas em curso desenvolvidas pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) e por outros, e cruzando esse potencial com as necessidades de informações sistêmicas dos usuários (prefeitura, empresas, organizações da sociedade civil, universidades etc.).

 

Anexo – Sugestão de procedimento de implantação de um sistema municipal de informações

A título de orientação, anexamos aqui uma proposta de procedimento de implantação de um sistema de informações municipais, texto que temos utilizado para discussão com prefeitos e outros atores municipais sobre o problema. É importante notar que o Instituto Pólis, com quem desenvolvemos um pré-projeto para uma cidade paranaense, a Fundação Seade, que tem avançado na organização de dados municipais, o Pnud, que desenvolve o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M), e outras iniciativas constituiriam parceiros numa iniciativa desse tipo.

 

Sistemas locais de informação

Não há soluções universais na área da informação. São diferentes os sistemas a serem adotados nas áreas pública e privada, na pequena empresa ou na grande, no município ou no governo federal, na instituição financeira ou na escola. Nosso trabalho tem sido orientado fundamentalmente para a organização de um sistema integrado de informações para uso público, centrado nas administrações locais. As notas que se seguem, ainda que gerais, focalizam esse tipo de universo de informação.

O sistema existente no nível dos municípios é caótico. De forma geral, a administração municipal não dispõe de uma base organizada de informações para orientar sua gestão, e a população não tem acesso à informação necessária para avaliar o que está acontecendo. Trabalhamos assim num universo opaco, no qual os donos do poder substituem gestão competente por uma vaga intuição, governando em função da pressão maior e reagindo às emergências que surgem, enquanto o cidadão se sente simplesmente perdido e impotente. E a ausência do cidadão informado leva aos processos de corrupção naturais de todo organismo que trabalha sem controle.

Não faltam, sem dúvida, formulários de informação a preencher.

Pedidos do IBGE, de instituições de pesquisa, das Secretarias de Finanças, dos poderes estadual ou federal surgem constantemente, obrigando as administrações a interromper trabalhos para preencher necessidades de informação de outras instâncias.

O sistema de informação financeira, por exemplo, está organizado para responder às necessidades do tribunal de contas, e não dá ao secretário municipal as informações gerenciais básicas para tomar as decisões em sua área. Em termos institucionais, não há nenhuma articulação: o pedido de um prefeito ao escritório do IBGE em seu município recebe sempre a lacônica informação de que deve se dirigir ao Rio de Janeiro, onde fica a sede da instituição. As universidades, empresas particulares e administrações municipais realizam independentemente pesquisas que poderiam ser complementares ou que poderiam constituir um universo permanente de informação acessível aos diversos usuários.

As propostas que se seguem vão no sentido de ajudar uma administração municipal a criar uma base permanente de informação.

Devem ser vistas como um tipo de lista de "primeiros passos" que exige extrema flexibilidade em sua aplicação. A seleção dos tópicos, não exaustiva, obedece simplesmente à experiência do autor com o que tem dado e o que não tem dado certo.

 

Criação de um núcleo de trabalho

A informação não é um setor: é uma dimensão de qualquer atividade. A criação de um ambiente rico em informação, que é nosso objetivo, implica assim que o médico gere informação adequada quando atende um paciente, que o registro de uma nova criança na escola acarrete a imediata alteração das estatísticas municipais, e assim por diante. Esse tipo de organização multipolar não surgirá espontaneamente se não houver um núcleo dinamizador inicial, diretamente vinculado ao gabinete do prefeito, com pleno apoio político, e sem outra função senão a de gerar um sistema de informação. Assim as informações já existentes, as idéias que numerosas pessoas em diversos setores possam ter para melhorar as informações, os aportes pontuais de consultores e outros poderão ser capitalizados e aplicados de forma útil para o conjunto da instituição.

 

Criação de uma rede de apoio

Demora um pouco para que as pessoas entendam que não se espera que elas forneçam informação, e sim que se organizem para que a informação esteja disponível para elas, para outras áreas de atividades e para a população em geral. Trata-se de trazer um novo conceito de informação como fluido permanente que alimenta uma rede, e não algo que se "produz" a pedidos.

Torna-se assim importante identificar pontos mais significativos de produção de informação e identificar em cada instituição uma pessoa que possa ser contraparte ativa do processo. A tendência natural é a instituição procurada nomear uma pessoa de confiança que tem mil outras coisas a fazer. É essencial, entretanto, que essa função seja exercida por alguém que possa se dedicar à tarefa.

 

Construção gradual e visão de conjunto

Há uma forte tendência a imaginar um megassistema cheio de tentáculos. Na realidade, é essencial entender que se trata de um edifício complexo que vai sendo construído de forma modular, não se exigindo de antemão os impressionantes organogramas freqüentemente tão a gosto das empresas de consultoria.

Por outro lado, a compatibilidade de todo o sistema exige que o núcleo organizador, à medida que se constituem os módulos, esteja trabalhando na visão de conjunto, adequando gradualmente as metodologias. Assim a organização de segmentos, ou módulos, interage progressivamente com a definição do universo mais amplo de informação. É importante lembrar que hoje os hipertextos permitem trabalhar flexivelmente com planilhas, bases de dados e informação em texto e imagem sem que seja necessário fazer opções estreitas de antemão.

 

Priorizar os setores essenciais

Como toda atividade gera indiretamente informações, é preciso evitar a tendência a trabalhar imediatamente em todos os setores, o que pode abrir demasiadamente o leque e reduzir o foco. Normalmente vale a pena seguir o critério de essencialidade da informação. Numa prefeitura, por exemplo, costumam ser essenciais os dados relativos a informação gerencial financeira, recursos humanos e principais atividades-fins como educação e saúde. Trata-se de chegar rapidamente a módulos que funcionem efetivamente e que permitam visualizar a arquitetura do sistema e agregar módulos novos.

 

Seletividade na informação

A produção de um grande volume de dados pouco confiáveis e desorganizados faz desaparecer, por afogamento, a informação significativa. É essencial, em conseqüência, ser extremamente seletivo na informação a ser produzida em cada setor. Informação é sempre muito mais uma questão de qualidade do que de quantidade. A tendência geral é produzir amplos relatórios que ninguém lê, com dados que não são confiáveis. A educação, por exemplo, pode ter sua situação acompanhada com indicadores básicos como taxa de cobertura escolar por faixa de idade, taxa de repetência, evasão escolar, evolução do custo unitário do aluno e salário de professores. Uma boa forma de assegurar a seletividade consiste em organizar as informações em função da demanda efetiva que existe, e não em função de tudo o que uma fonte de informações é capaz de produzir.

Deve-se produzir apenas o que as pessoas estão dispostas a consultar. É a informação orientada pela demanda.

 

Sistematização dos dados

Dados esporádicos não constituem informação, não geram conhecimento. Podem eventualmente alertar para uma situação que exija acompanhamento, mas não substituem o processo de sistematização de dados. Para constituir informação, os dados devem ser produzidos de forma regular, numa freqüência significativa e com definição técnica precisa dos conceitos de classificação.

Buscando selecionar os poucos dados realmente significativos, podem-se definir com muita precisão as poucas tabelas que serão utilizadas. E a produção sistemática dos dados durante vários anos permitirá um acompanhamento efetivo da situação.

 

Assegurar comparabilidade dos dados

Para serem significativos, os dados devem ser comparáveis.

Isso implica, por um lado, a comparação no tempo: as definições dos conceitos e as metodologias de cálculo devem ser mantidas durante tempo suficiente para que se possa constatar a evolução dos fenômenos. Por outro lado, os dados se tornam significativos quando podemos compará-los a outros pontos de referência. Uma taxa de repetência escolar de 0,68% nas escolas municipais de Santos é significativa quando comparada à taxa das escolas municipais de São Paulo, que é de 4,6%, sete vezes superior. Mas adquire também outro sentido quando constatamos na série histórica que a repetência mudou pouco durante os últimos anos.

Diferenciar os universos de informação

As situações podem variar segundo as cidades, mas de forma geral é útil pensar o universo de informação como um edifício de quatro andares. No primeiro andar, está o centro de documentação, que reúne documentos sobre a cidade e a região, estudos de consultoria, trabalhos geográficos e históricos, enfim, o acervo geral que permite que uma universidade, um grupo de pesquisadores, um consultor empresarial ou um secretário municipal possam encontrar bem-ordenada a informação geral de apoio ou "informação de retaguarda" necessária para qualquer iniciativa. O segundo andar de informação é constituído pelos indicadores de qualidade de vida, que mostram de forma simples e ordenada os resultados efetivos do desenvolvimento do município: a taxa de mortalidade infantil, o sucesso ou o insucesso escolar, o tempo médio de espera pelo transporte coletivo, a qualidade da água, a taxa de desemprego, o nível de criminalidade etc. O terceiro nível é constituído pelas informações gerenciais que cada secretário ou chefe de departamento deveria ter para assegurar um processo racional de tomada de decisão:

o fato é que hoje a forma de apresentação das contas não permite saber quanto custa construir uma escola, nem quanto custará mantê-la ativa. Os resultados são escolas sem professores ou sem bibliotecas, postos de saúde sem médicos, hospitais parados e outros fenômenos que todos conhecemos. Finalmente, o quarto andar é constituído pelos arquivos que, com as modernas tecnologias de arquivamento e pesquisa de conteúdo, podem constituir precioso apoio para a tomada de decisão do administrador ou para o controle do cidadão. O ordenamento do universo de informações pode seguir esses quatro grupos, ou outros, mas é essencial que se diferenciem os universos de informação – o que não impede a integração das análises – de forma a assegurar a flexibilidade e a agilidade no uso.

Assegurar a autonomia do sistema de informação A informação desempenha hoje papel político fundamental:

não se deve ignorá-lo nem fingir que não se percebe sua importância.

O mais prático, em geral, é situar a cabeça do sistema de informação fora do espaço de tomada de decisão política, e assegurar que no controle desse sistema participem atores sociais suficientemente diversificados para que ninguém possa facilmente "pôr os outros no bolso". A Fundação Anchieta, por exemplo, constitui um sistema que escapa ao poder imediato do Estado e aos interesses privados mais diretos, permitindo grande aporte cultural ao país, por meio da TV Cultura. A cidade de Santos criou, por lei, a Fundação de Memória e Arquivo da cidade que, por ser fundação, tem autonomia de decisão e, por ser pública, tem garantido o financiamento básico de suas atividades. A fundação é dirigida por doze pessoas, entre as quais os quatro reitores das universidades da cidade, quatro representantes de instituições da sociedade civil e quatro representantes da prefeitura. Esse tipo de arquitetura institucional não exclui mas dificulta a manipulação, e deve permitir que não apenas a prefeitura mas todos na cidade saibam como está evoluindo sua administração. É a era da transparência. As soluções institucionais são essenciais para que, a longo prazo, funcione o processo de enriquecimento informacional da sociedade.

 

Manter o sistema aberto

A questão do sigilo, do segredo, do escondido tem permeado tradicionalmente o espaço informativo no Brasil. E os sistemas de informação atuais permitem realmente uma transparência que pode deixar muitos preocupados. O Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi), em Brasília, permitiu ao senador Eduardo Suplicy detectar imensas falcatruas praticadas na Comissão do Orçamento do Congresso. O prefeito Cheida, em Londrina, instalou terminais dos computadores da Secretaria de Finanças em locais públicos, fazendo a prefeitura trabalhar abertamente. Como as tecnologias hoje permitem níveis de acesso diversificados, já não há o problema de segurança dos dados, ou há como pretexto. Mas é indiscutível que uma das frentes de luta mais duras que se enfrentam ao montar os sistemas de informação é a resistência à criação de um ambiente democrático e transparente. A rede, nesse sentido, como mostram a internet e outros sistemas análogos, constitui um instrumento poderoso de democratização. É melhor criar transparência do que sustentar amplos corpos de fiscais e policiais de um sistema repressivo.

Os parceiros na informação

O organismo que monta um sistema de informação deve se lembrar de que não é uma ilha. Em termos metodológicos, pode montar parcerias com instituições como IBGE, Seade, Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal (Cepam), Instituto Brasileiro de Administração Municipal (Ibam), Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese) e tantas outras que trabalham especificamente com informação. Mas pode manter parcerias também com as universidades regionais que fazem, por exemplo, estudos de caso a partir de manuais norte-americanos quando poderiam estar pesquisando sua própria realidade e ajudando a resolver problemas. A montagem do sistema de informações pode se feita em parceria com instituições científicas regionais. Organizando o acesso em rede às bibliotecas universitárias, aos arquivos dos jornais locais e às organizações internacionais interessadas – e hoje são muitas –, a prefeitura pode assegurar a formação de um amplo ambiente rico de informações, que beneficiará tanto a qualidade de trabalho da administração como o controle do cidadão sobre as atividades públicas, além da produtividade de escolas, empresas e sindicatos. Em outros termos, o sistema não busca ser uma ilha estanque e protegida; busca, pelo contrário, ajudar a dinamizar uma rede interativa que inclui numerosas instituições. Essa "arquitetura" institucional constitui um dos fatores mais importantes de sucesso do trabalho.

Organizar a comunicação

A tradição nessa área é a de que uma equipe junta penosamente uma série de informações, entregues por várias fontes de informação, e publica um folheto ou um livro. Depois do lançamento e de algumas linhas no jornal local, a publicação desaparece nas gavetas e na poeira dos arquivos. Aqui também é essencial organizar o acesso público à informação. Uma forma consiste em fazer parcerias com jornais, TVs, rádios, instituições de ensino, redes de bancas. Outra forma é disponibilizar a informação em terminais de computador instalados em locais de fácil acesso. Um produto que não chega ao consumidor não é um produto, e não basta a satisfação de um estatístico que mostra um volume novo aos colegas.

Linguagem

A linguagem é essencial. Volumes de estatística do IBGE são publicados numa forma que permite que apenas especialistas familiarizados com o próprio IBGE possam consultá-los. Num país onde metade da mão-de-obra tem até o quarto ano de estudo, não se pode deixar de ver que a informação produzida deve ser apresentada de diversas formas, para diversos níveis de leitura. Produzir a informação e não organizar sua legibilidade pelo maior número de pessoas e instituições é um desperdício de dinheiro. A separação entre quem produz a informação e os divulgadores tem levado a que os dados primários sejam incompreensíveis pelo público e os dados jornalísticos sejam divulgados em geral com erros grosseiros. A informação constitui um processo que começa com o fato gerador e termina com a população devidamente informada, e não pode ser artificialmente segmentado. Da mesma forma que hoje, no tempo da gestão com qualidade, as empresas reúnem os especialistas do marketing com os economistas que levantam os custos e os engenheiros que propõem soluções técnicas, consultando o cliente para saber o que realmente necessita, também não há razão para que os sistemas de informação não apliquem a qualidade total a seus produtos e não articulem os diversos personagens do processo.

Resistências à mudança

A introdução de sistemas modernos e integrados de informação mexe com as tradições, as formas antigas de trabalho – não necessariamente ruins, mas que devem ser adaptadas –, com o latente sentimento de insegurança das pessoas, com quistos de poder baseados no monopólio da informação, com o choque cultural do computador. Essas resistências devem ser claramente observadas, discutidas como algo natural e vistas como elemento essencial do processo de implantação do sistema. É importante lembrar que não basta estarmos convencidos de que o sistema que se implanta é superior, melhor, mais honesto, mais produtivo. Grande parte de nossas atitudes frente à inovação é pouco racional, e muitas fazem parte do que já abordamos: do fato de que a velocidade tecnológica é muito maior do que nosso tempo cultural, e as resistências são inevitáveis. De toda forma, é essencial lembrar que qualquer proposta, por ótima que seja, pode morrer pelas razões mais ridículas, que por isso mesmo não podem ser consideradas ridículas.

Montagem da alimentação do sistema

É essencial lembrar que o sistema que montamos é um processo permanente, uma forma de trabalho – que elabora informação como subproduto – do médico, do economista, da diretora de escola, do fiscal, do prefeito. É relativamente fácil montar um produto, um estudo sobre a taxa de repetência na rede pública, por exemplo. Mas assegurar a alimentação permanente de um sistema em rede implica uma atitude de cooperação interinstitucional e um trabalho extremamente sério por parte dos integrantes do "núcleo" articulador, de montagem e aperfeiçoamento permanente do sistema. A informação final, como na árvore frutífera, depende da qualidade das raízes. O que pode nos aparecer como bons quadros estatísticos pode não ter valor nenhum se não se definiram claramente rotinas de trabalho informativo no posto de saúde, na delegacia de polícia, na escola. Trata-se de trabalhar a qualidade das fontes por meio da alimentação do sistema.

O ciclo da informação

A informação aparece assim como um ciclo completo, e não apenas como um produto, uma publicação, um folheto, um filme.

Nesse ciclo encontramos o fato gerador, o dado inicial, a sistematização para obter informação organizada, a apresentação do resultado, a sua difusão, o controle do interesse e da satisfação do usuário da informação, o levantamento das críticas e recomendações de melhoria, assim como a devolução organizada das críticas e sugestões aos diversos níveis do sistema.

Conclusões

Os pontos acima constituem apenas um elenco de idéias.

Cada realidade é diferente, e, segundo as condições específicas, poderão funcionar soluções as mais diversas. O importante é entender o gigantesco potencial que os sistemas modernos de informação nos abrem, já não apenas para melhorar a produtividade de uma instituição, mas para influir na forma como a sociedade se organiza, interage no cotidiano.

As recomendações podem ser agrupadas em torno de grandes capítulos: trata-se de definir o universo de informações que queremos trabalhar; de pensar as soluções organizacionais mais adequadas; de escolher os suportes tanto de hardware como de software para gerar um sistema no qual a informação possa fluir; de gerar a cultura organizacional que permita que diversas instituições e diversos níveis hierárquicos passem a navegar no mesmo espaço de informação; de criar o sistema dinâmico de parcerias que assegure a inserção local e a produtividade social do sistema.

Atenção particular deve ser dada aos já mencionados indicadores de qualidade de vida. Um indicador simples, como o tempo de espera médio pelo ônibus, é instrumento poderoso de modernização institucional, quando bem-utilizado e bemdivulgado.

Para a Secretaria de Transportes do município, saber que o cidadão espera em média vinte minutos pelo ônibus permite fixar metas internas: por exemplo, reduzir a espera pela metade numa gestão. Assim, definem-se parâmetros de produtividade da administração pública. Para a população, conhecer a evolução do indicador significa poder votar não pelo tamanho do sorriso na televisão ou pelo número de crianças beijadas, e sim em função dos resultados efetivos atingidos por diversas gestões e materializados em indicadores de mortalidade infantil, taxa de evasão escolar, indicadores de criminalidade etc.

Para que uma sociedade funcione, é preciso que seja beminformada. Não é condição suficiente, mas seguramente necessária. Assim pode tornar-se, na expressão tão apropriada de Galbraith, uma "boa sociedade".

 

Referências bibliográficas

  • BANCO MUNDIAL. World Development Indicators 2003. Washington, 2003.
  • UNESCO. World Information Report 1995. Unesco, 1995.

 

Notas

(*) No site <http://dowbor.org> o leitor encontra textos mais amplos sobre o tema.

1. Um grupo de 22 municípios do oeste paranaense desenvolveu uma metodologia de Indicadores Municipais de Qualidade de Vida, com 26 indicadores básicos. Os habitantes passaram a poder votar em função de resultados reais em termos de qualidade de vida, e não mais em função de quantas camisetas o candidato distribui.

2. Um ponto de partida imediato poderia ser a proposta do presidente Lula de constituir como objetivo de cada município o cumprimento dos oito Objetivos do Milênio, que envolvem dezoito metas e 48 indicadores, como forma padronizada básica de indicadores de qualidade de vida local.

 

Ladislau Dowbor (**)
ladislau[arroba]ppbr.com

(**) Professor de Economia e Administração da Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).


 
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