A Resistência Waimiri-Atroari frente ao `Indigenismo de Resistência

 

 

Stephen G. Baines1
Professor do Depto. de Antropologia, Universidade de Brasília e pesquisador nível 1B do CNPq.
Brasília, 1996

O trabalho enfoca a questão da resistência do povo indígena Waimiri-Atroari numa situação em que a política indigenista do Estado - da Frente de Atração Waimiri-Atroari da FUNAI (1970-1987) [FAWA], e do atual Programa Waimiri-Atroari FUNAI/ELETRONORTE (a partir de 1987) [PWAIFE] - tem sido subordinada aos interesses de grandes projetos de desenvolvimento econômico. Após uma longa história violenta de conflitos interétnicos, em que os Waimiri-Atroari tornaram-se um paradigma da resistência no indigenismo brasileiro, os sobreviventes de epidemias e massacres foram submetidos a uma política de "integração acelerada" em aldeamentos administrados pela FAWA que apresentavam o caráter de "instituição total" (Baines, 1991).

Na situação atual a administração indigenista apropriou-se da retórica de "resistência" indígena para mascarar uma situação de extrema dominação e vender uma imagem de um programa assistencial modelo. Examina-se as estratégias indígenas, de aprender as regras do jogo do indigenismo oficial, não como uma reação passiva, mas como uma reação ativa de acomodação à essa situação de extrema dominação, que reflete o poder desmedido de grandes empresas. A administração indigenista chega a construir e divulgar imagens dos Waimiri-Atroari a nível nacional e internacional, incorporando-os na sua política intensiva de marketing (Silva, 1993:70; Baines, 1994, 1995b). Ao apresentar a atuação do PWAIFE como "indigenismo alternativo" que "salvou os Waimiri-Atroari da extinção" (ver Baines, 1994), e como respeitosa da cultura indígena, junto com o fato de que a implantação do PWAIFE coincidiu com o período de uma rápida recuperação populacional, quatro anos após a população chegar ao seu ponto mais baixo, a administração veicula imagens desse povo indígena que escamoteiam a dominação a que foi sujeito nos últimos anos. Ao contrário, a propaganda faz parecer que a atuação do PWAIFE esteja contribuindo para uma renovação da resistência indígena, sobretudo através de declarações da nova liderança indígena, recrutada como porta-vozes da administração.

O PWAIFE, com financiamento da ELETRONORTE, oferece uma administração que inclui sub-programas de saúde e educacional, e uma infra-estrutura mais eficiente do que desfruta a maioria dos povos indígenas no Brasil. Na sua política de marketing é apresentado como modelo para o indigenismo brasileiro, o que tem levado a massa da opinião pública e até alguns antropólogos a simpatizar com sua atuação. Entretanto, ao examinar sua política de marketing, torna-se evidente que a legitimidade do PWAIFE constrói-se, em primeiro lugar, através da imagem de uma administração que está fortalecendo a resistência dos Waimiri-Atroari e facilitando uma revitalização da cultura indígena. Está imagem está autenticada pelas palavras de alguns Waimiri-Atroari. Como ressalta Robert Paine2, imagens de autenticidade são atribuídas ao índio pelo "civilizado" e são controladas. No caso Waimiri-Atroari, a autenticidade está apresentada em imagens de resistência cultural, uma autenticidade atribuída pela administração e, ao mesmo tempo, auto-atribuída por alguns Waimiri-Atroari que aparecem na propaganda. Contudo, as imagens de autenticidade divulgadas ao público são controladas pela empresa.

O caso dos Waimiri-Atroari revela a complexidade de uma situação de contato interétnico onde a imposição da ideologia indigenista empresarial da administração domina a vida indígena. Uma situação em que os jovens Waimiri-Atroari aprenderam a utilizar os modos de expressão da equipe de funcionários, que coexistiam com os seus. Acionavam, conforme as circunstâncias, diversos modos de interpretação e discursos que refletem historicidades diferentes. Nessa situação de dominação e controle empresarial, não somente sobre os índios mas também sobre o acesso à área de alguns pesquisadores independentes da administração, a noção de "formas cotidianas de resistência", usada por James Scott para apontar as práticas privadas e isoladas de resistência entre camponeses na Malásia contra os donos de terra, presta-se para descrever uma resistência velada que "nunca se arrisca a contestar as definições formais de hierarquia e poder" (Scott, 1985:33). Como acrescenta Scott, "Para a maioria das classes subordinadas que (...) tiveram poucas perspectivas de melhorar seu status, essa forma de resistência tem sido a única opção" (Ibid.).

Nas palavras de Catherine Howard (s.d.), aplicando a noção de "formas cotidianas de resistência" de Scott à situação interétnica, "Dentro do sistema de relações interétnicas, sempre há espaço para driblar a dominação, abrir caminhos de protesto ainda que disfarçadas de acomodação ...". As maneiras de subverter a colonização "em geral, permanecem veladas, mais encenadas do que articuladas, mais implícitas do que conscientes, permeando todos os detalhes da vida cotidiana, em vez de irromper em planos políticos institucionalizados" (Ibid.). Entretanto, como frisa Teresa Pires do Rio Caldeira, "a resistência que Scott descreve não é uma estratégia de confrontação, mas está apenas inserida nas relações cotidianas de poder" (1989:27). Assim, esclarece mais sobre as estratégias de dominação e a definição da população dominante da população dominada - inclusive a definição de sua possível resistência - do que sobre possibilidades que os dominados ajam contra essa dominação. Em outro trabalho (Baines, 1995a:153-156), chamo atenção para as dificuldades enfrentadas pelo antropólogo ao realizar pesquisas com populações indígenas encapsuladas por instituições coloniais como a FAWA e o PWAIFE, que estão coagidas a aceitar a interpretação oficial e a produzir discursos de "autodeterminação" indígena para legitimar a atuação da administração.

Ronaldo Vainfas (1995), ao examinar a "santidade" ameríndia na Bahia do século XVI como síntese da máxima resistência indígena ao colonialismo lusitano, mostra, de maneira clara, as ambigüidades e as contradições de um hibridismo cultural, evidente sobretudo no caso dos mamelucos que "usavam dos saberes indígenas para servir os portugueses, mas não hesitavam em fazer o contrário. Tudo dependia das circunstâncias ..." (1995:145). Exerciam um papel semelhante ao dos funcionários índios da FAWA, recrutados pela FUNAI de outros povos indígenas, em relação aos Waimiri-Atroari, e àquele dos capitães3 Waimiri-Atroari em relação aos demais membros do seu grupo étnico.

Vainfas mostra que, na transformação dos mitos tupi, "além de adquirir esse novo sentido anticolonialista - e apesar de adquiri-lo - a própria estrutura das crenças indígenas absorveria, paradoxalmente, ingredientes da cultura que os nativos almejavam destruir" (1995:109).

 

Os Waimiri-Atroari - um paradigma de resistência para o indigenismo brasileiro

Os Waimiri-Atroari, povo indígena da família lingüística Carib, que se referem a si mesmos pela palavra ki?in'ja (gente), habitam uma região de floresta tropical no norte do Amazonas e sul de Roraima, nas bacias dos rios Alalaú, Camanaú, Curiuaú e o igarapé Santo Antônio do Abonari. Após uma longa história de invasões violentas (Baines, 1993a:229) do seu território, estreitamente relacionadas às flutuações dos preços no mercado internacional de produtos florestais4, a população dos Waimiri-Atroari foi reduzida a 332 pessoas em 1983 (Baines 1991:78)5. A partir deste ano, a população vem-se recuperando rapidamente, chegando, em 1 de julho de 1987, a 420 pessoas, e em 1991 a 505 (Silva, 1993:69).

A partir do final da década de 1960, o Governo Federal iniciou uma ocupação maciça do território Waimiri-Atroari através de grandes projetos de desenvolvimento regional. Nos anos 1972-1977, esse território foi cortado pela construção da estrada BR- 174 que liga Manaus a Boa Vista, seguida da implantação da mina de estanho de Pitinga do Grupo Paranapanema (Baines 1991:97-103), e a construção da Usina Hidrelétrica de Balbina pela ELETRONORTE6. Para abrir a BR-174, foi organizada uma grande operação de "pacificação" dos Waimiri-Atroari pela FUNAI (Baines, 1993b:240). Após uma longa história de conflitos interétnicos e uma resistência armada indígena contra as agressões dos invasores, culminando em vários ataques contra os funcionários da FAWA no início da década de 1970, os Waimiri-Atroari passaram a ser vistos, dentro do indigenismo brasileiro, como um exemplo paradigmático da resistência indígena.

 

A colonização e o indigenismo de resistência

Depois dos sobreviventes Waimiri-Atroari terem sido aglomerados em três grandes aldeamentos7 no final da década de 1970 e início da de 1980, e várias transferências e remanejamentos dirigidos pelos funcionários da FAWA nos anos seguintes, existiam nove aldeamentos em 1985. Dois anos depois, uma área de aproximadamente 2.440.000 hectares foi declarada de ocupação dos Waimiri-Atroari e em junho de 1989 foi homologada pelo PWAIFE8, o mesmo mês em que o seu então gerente assinou junto com o superintendente regional da FUNAI, representantes do Grupo Paranapanema, e dez capitães Waimiri- Atroari, um de uma série de Termos de Compromisso que favoreceram os interesses da mineradora em toda a área. Atrás destes Termos de Compromisso, de extrema assimetria, revela-se a nova estratégia desta mineradora na área dos Waimiri-Atroari, de favorecer a demarcação e homologação da área indígena e aliciar alguns líderes indígenas a assinar acordos para realizar pesquisa e lavra de mineração dentro da área indígena em troca de "royalties"9.

No mesmo ano da criação do PWAIFE que passou a dirigir a política indigenista nesta área a partir de 1987, o vale do igarapé Santo Antônio do Abonari e seus afluentes tornou-se inabitável pelo fechamento das comportas da UHE Balbina. A água do reservatório tornou-se imprópria para o uso humano, resultando na transferência forçada dos aldeamentos de Tobypyna e Taquari, ou seja, de aproximadamente um terço da população total. A infra-estrutura assistencial oferecida pela administração está subordinada a esse fato consumado da inundação de parte do território indígena e modificação irreversível do ambiente. Como ressaltam Eduardo Viveiros de Castro & Lúcia M.M. de Andrade, estas "medidas paliativas e tardias, de caráter cosmético, tomadas quando todas as decisões referentes à obra já foram efetuadas" são usadas para criar "uma falsa idéia de `participação'" (1988:16).

Durante a construção da estrada e, posteriormente, quando a maioria dos Waimiri- Atroari passou a morar em aldeamentos próximos aos postos indígenas da FUNAI (a partir de 1978 e, sobretudo, em 1980-81), suas representações dos invasores foram remodeladas dentro do contexto de dominação imposto pelos numerosos servidores da FAWA (55 em 1981). Sua visão dos invasores como predadores que invadiam seu território, foi substituída pela censura da sua história e a absorção do discurso interétnico da FUNAI. As mudanças abruptas e violentas impostas pela FAWA submeteram os Waimiri-Atroari a um estilo de vida totalmente alheio à sua vida anterior, seguindo o regime de trabalho e modelo social dos funcionários da FUNAI. Com a população drasticamente dizimada por epidemias que desestruturaram a rede de aldeias, os sobreviventes foram submetidos a campos de ressocialização forçada (os aldeamentos da FAWA), onde a única opção que tinham era de internalizar as regras do jogo do indigenismo oficial norteado por um modelo de desenvolvimento econômico regional, adotando, assim, o modelo de "índio civilizado" e "índio brasileiro" da FUNAI.

Uma das interpretações indígenas das epidemias como atos de feitiçaria dirigidos contra eles pelos invasores, que levou os sobreviventes de grupos locais diversos a se juntarem na tentativa de expulsar os invasores, foi censurada pela equipe de funcionários da FUNAI. Estes interpretaram os ataques aos postos indígenas (com a participação de índios que lhes eram conhecidos e que haviam freqüentado esses postos) através de estereótipos populares a respeito dos índios como "traiçoeiros", "bravos", "maus", "perversos", "selvagens", "bichos", "feras", etc. Elaboravam múltiplas hipóteses a respeito dos ataques aos postos, vendo-os como conseqüência do "instinto", de "ritual religioso", de "disputas" entre os líderes indígenas, e até da "existência, entre os índios, de um civilizado ou índio civilizado que os induz às hostilidades", da presença de um "índio barbudo" ou de "foragidos da justiça" que comandavam os ataques, e outras explicações refletindo as imagens do "índio" criadas pelos brancos10. Freqüentemente, os mesmos Waimiri- Atroari apresentavam explicações das epidemias que incorporavam, simultaneamente, as versões dos servidores a respeito de "doenças" anônimas e as dos Waimiri-Atroari sobre "feitiços" dos brancos. Quando os funcionários lhes cobravam explicações sobre os ataques aos postos indígenas, ofereciam-lhes versões na linguagem que estes exigiam deles, referindo-se a "doenças" e responsabilizando indivíduos Waimiri-Atroari como "índios bravos" que deviam ser eliminados ou transformados em "índios civilizados". O capitão principal usava a linguagem dos funcionários "índios" da FAWA no seu relato da história recente do seu grupo, incessantemente dividindo os seus protagonistas entre "brancos" e "índios" genéricos para desculpar a FUNAI das mortes de Waimiri-Atroari. Incriminava um dos últimos líderes Waimiri-Atroari, apelidado Comprido, que resistiu à invasão do seu território, ao destacá-lo como o responsável pelos ataques contra os postos indígenas e as mortes dos seus servidores.

Após a sua morte, o falecido líder Comprido, visto no passado pelos funcionários da FAWA como uma ameaça às suas vidas que tinha que ser eliminado, foi transfigurado, verbalmente, como herói "índio" por muitos servidores índios que apelavam para uma retórica indigenista de resistência contra os "brancos", muitas vezes pelos mesmos servidores que, ao relatar a história da FAWA, justificavam a aniquilação de Comprido.

Representavam-no como um dos últimos líderes que resistiram à invasão das terras dos "índios" pelos "brancos" que "não prestam". Nessa época, ouvi o capitão principal dizer que foi Comprido que havia mandado os Waimiri-Atroari, dizimados por epidemias, não se matarem em atritos entre aldeias, mas matar os "brancos", veiculando esta nova imagem de Comprido como herói "índio" que assumiu uma postura indigenista de resistência contra os "brancos", a partir do discurso indigenista dos servidores sobreposto ao seu discurso anterior que responsabilizava Comprido pelos ataques contra os postos indígenas.

Assim, mesmo na época da FAWA, iniciou-se a apropriação da resistência indígena numa retórica indigenista de resistência que reforçava a dominação, assumida pelos próprios capitães. Como ressalta Mary Louise Pratt (1986:46-47), após serem colonizados, os povos indígenas deixam de ser vistos como guerreiros bravos, adquirindo as características que os detentores do poder freqüentemente encontram naqueles que subjugaram (Ver, por exemplo, Stuchlik, 1979). Dos estereótipos pejorativos passam a ser vistos como bons e obedientes. A partir de então são idealizados como resistentes, num passado, e remodelados verbalmente dentro de uma retórica de resistência subordinada aos indigenistas. Legitima-se assim a dominação colonial na justificativa que não sabem dirigir as suas próprias vidas.

Em 1982, o próprio coordenador "branco" da FAWA, que, referindo-se aos ataques indígenas contra os servidores da FAWA, dotava Comprido de um "ciúme natural" que o levou a liderar as "últimas reações" em 197411, também adotava a nova imagem de Comprido, em contextos onde queria remodelar verbalmente os Waimiri-Atroari do passado como "grupo essencialmente agrícola e conseqüentemente um grupo pacífico e de índole dócil"12, em conformidade com o que ele próprio esperava deles13. Refere-se ao "valoroso Capitão Comprido"14. Ouvi um servidor dizer ao capitão principal: "Quando Comprido estava vivo, ele não deixava ninguém entrar na sua terra, não!", aconselhando-o a tomar uma atitude parecida. Este, como outros servidores "índios" e "brancos", falava em "conscientizar" os Waimiri-Atroari e apelava à imagem de Comprido como herói, para "ensinar" ao capitão principal a adotar uma postura de "resistência indígena" como ele achava que o "índio" deveria ser. O capitão principal e outros capitães e jovens adotavam uma postura de "índios conscientizados" quando essa era exigida deles (Baines 1993b:236).

Essas diferentes imagens expressas a respeito de como os "índios" deveriam ser refletiam diretamente a luta pelo poder entre os servidores (Baines 1991:299-301).

A fala tanto dos Waimiri-Atroari como dos funcionários estava permeada pelas ambigüidades de uma situação colonial. Um chefe de posto que se identificava como índio apresentava uma retórica de resistência indígena contra os brancos e, simultaneamente, humilhava os Waimiri-Atroari como índios, acionando os estereótipos da sociedade nacional quanto ao índio. Revelava o que Vainfas caracteriza como "a lógica híbrida e tortuosa do colonialismo" (1995:170).

O capitão principal e seu irmão não somente evitavam falar comigo sobre o xamanismo mas também o censuravam e ridicularizavam na presença de outros Waimiri- Atroari. O motivo desta censura faz mais sentido ao se levar em consideração o papelchave dos ritos xamânicos para veicular acusações de feitiçaria na sociedade Waimiri- Atroari. As sessões xamânicas foram, inclusive, o palco principal da interpretação indígena das epidemias como feitiçaria branca. Como os funcionários exigiam a eliminação do líder Comprido, que representava a última resposta de resistência armada contra a invasão do seu território, também exigiam a eliminação do xamanismo, para completar a colonização da linguagem dos Waimiri-Atroari, e aniquilar qualquer oposição aos objetivos da FAWA.

Considerando que os ritos xamânicos eram o veículo principal para a expressão de rivalidade intergrupal, a censura dos jovens capitães não é de surpreender. Uma das suas incumbências era proibir a manifestação de conflitos entre os Waimiri-Atroari e propagar entre eles uma visão indigenista na qual deviam ser "índios unidos", obedientes cumpridores de ordens no programa de trabalho dirigido pela FUNAI e que não deviam afastar-se do aldeamento sem autorização. Na sua luta para sobreviver aos massacres e à contaminação que acompanhava o contato interétnico, os xamãs interpretavam as mortes por epidemias como agressões de espíritos brancos que os "flechavam" com substância patogênica (maxi ou maxki). Nos diálogos em sessões xamânicas entre espíritos de brancos e velhos líderes Waimiri-Atroari vivos e recém-falecidos, os conflitos interétnicos eram traduzidos na forma de agressões verbais por parte desses espíritos. Ao declarar sua responsabilidade por haverem "flechado" os Waimiri-Atroari, os espíritos de brancos legitimavam a crença indígena em ataques sobrenaturais dos "civilizados" e levavam-nos a responder com incursões aos postos indígenas da FAWA. Foi assim que, nas sessões xamânicas, desenvolveu-se uma linguagem de resistência aos ataques dos espíritos brancos e foi nelas que se fundamentaram os ataques contra os postos indígenas em 1973-74.

Após serem incorporados nos aldeamentos dirigidos pela administração indigenista onde se consolidou o processo da colonização da sua linguagem, não havia mais possibilidade de uma resistência fora das definições prescritas da própria administração.

Nessa situação, os protestos velados e descontentamentos configuraram-se como formas cotidianas de resistência, expressos numa retórica interétnica de "índios" contra "brancos" introduzida pelos funcionários da FAWA. No início da década de 80, os capitães e jovens Waimiri-Atroari passaram a veicular a retórica indigenista dos servidores permeada por contradições (Baines 1991, 195-211, 243-251), em que suas próprias reivindicações passaram a ser formuladas dentro do contexto da luta pelo poder entre os funcionários, e subordinadas a esta. Expressavam seu descontentamento numa retórica de desafio aos coordenadores brancos, porém raramente os contestaram diretamente, seguindo o modelo dos funcionários índios. Os capitães imitaram o sistema do posto indígena nas suas casaspostos, onde modelavam seu comportamento naquele do chefe do posto. Seguiram as ordens dos indigenistas de construir "malocas" para reforçar uma aparência de revitalização das tradições. A própria retórica indigenista de resistência e desafio à dominação colonial foi subordinada aos interesses da equipe de funcionários da FAWA, passando a substituir a linguagem de resistência dos Waimiri-Atroari em termos de feitiçaria branca, agora fortemente censurada.

Como propõe Partha Chatterjee, ao examinar a ideologia nacionalista na Índia, numa situação colonial, "A ideologia nacionalista (...) é inerentemente polêmica, permeada por tensão; sua voz, ora acirrada, ora vacilante, revela as pressões de ter de se afirmar contra uma oposição formidável. (...) A polêmica (...) faz parte do conteúdo ideológico do nacionalismo que enfrenta um discurso contrário - o discurso do colonialismo. Desafia a realidade de dominação colonial..." (1993:40). Apesar da situação de extrema dominação exercida por um estado-nação sobre um povo indígena, em que se encontram os Waimiri- Atroari, ser muito distinta daquela de um estado-nação como a Índia, com uma elite intelectual que elabora uma ideologia nacionalista, a sua situação caracteriza-se como colonial. Conforme Chatterjee, o discurso nacionalista na Índia perpetua as pressuposições da dominação colonial no ato de desafiá-lo. Pode-se afirmar que a retórica indigenista propagada pela administração governamental e assumida pelos Waimiri-Atroari incorporados nela perpetua a própria dominação colonial, ao apresentar uma retórica de autodeterminação indígena e de resistência dirigida pela própria administração (Baines, 1993a).

Em janeiro de 1983 foi criado o Movimento de Apoio à Resistência Waimiri- Atroari - MAREWA (1983, 1987) na Assembléia Regional do Conselho Indigenista Missionário - CIMI Norte I, com proposta indigenista, divulgada em folhetos, de apoio "à sua luta pela sobrevivência física e étnica", e à criação na sociedade nacional de um novo ambiente de contato. A proposta indigenista desta ala progressista da Igreja é apresentada como alternativa à política indigenista oficial. Uma equipe do MAREWA iniciou um projeto educacional junto aos Waimiri-Atroari em 1985-6. A equipe procurou incentivar uma resistência, estimulando os jovens a reviver a história de violência em desenhos, o que não agradou o capitão principal e seu irmão, levando à retirada da equipe a pedido deles.

 

A retórica de resistência do indigenismo empresarial

Se a apropriação da retórica de resistência indígena teve seu início ainda na época da FAWA, a partir da instalação do PWAIFE, tornou-se um dos principais temas da campanha de marketing da ELETRONORTE. O PWAIFE é apresentado não somente como a salvação dos Waimiri-Atroari, mas como uma administração que os ajuda a resistir e se revitalizar culturalmente. Em outro trabalho (Baines, 1995b), trato da manipulação de estatísticas demográficas sobre os Waimiri-Atroari na propaganda da ELETRONORTE, para fazer a política paliativa do PWAIFE corroborar, verbalmente, o mito indigenista de salvação elaborado por seus mentores. Esta estratégia foi adotada num filme documentário divulgado a nível nacional na televisão em abril de 199415, em que, mais uma vez, as estatísticas demográficas baseadas em pesquisas antropológicas realizadas antes de 1987 foram omitidas. Afirma-se que os locais para onde foram deslocados forçosamente as populações de Tobypyna e Taquari (Samaúma e Munawa respectivamente) pela administração, foram "escolhidos ... pelos próprios índios". Acrescenta-se que o "retorno" aos rituais é recente, quando, de fato, os Waimiri-Atroari nunca deixaram de praticar rituais, e declara-se, pomposamente, no fim do filme, que o PWAIFE "parece ter revertido o quadro terminal de um povo". De fato, o que representa a mudança na política da empresa é uma tendência recente entre empresas estatais e privadas de criar uma retórica "de preocupação ambiental" e "ecológica" para os projetos de desenvolvimento de grande escala na região amazônica16. Quando esses projetos abrangem territórios indígenas, precisam de uma retórica "indigenista", veiculada através de porta-vozes indígenas, que apresenta a política oficial como comprometida com o resistência da cultura indígena (Root, 1996:102).

Um artigo de propaganda, "A Brazilian Tribe Escapes Extinction", escrito por Cherie Hart, foi publicado numa edição especial da Revista World Development: Aiding Remote Peoples, vol.04, nº.2, 1991, do PNUD. Como no filme documentário acima mencionado, após declarações que admitem que a UHE Balbina "atualmente é considerada uma atrocidade ambiental"17, o artigo argumenta que, "Numa mudança dramática na sua política, a ELETRONORTE... criou um Departamento de Meio Ambiente em 1987", e, como conseqüência disso, "Para os Waimiri-Atroari as mudanças nas atitudes dos brasileiros significam a salvação da extinção".

Um indigenismo empresarial que tem o poder da mídia para criar e veicular imagens dos Waimiri-Atroari, construídas conforme os interesses da empresa, a nível nacional e internacional, age no sentido de legitimar a "teoria oficial" do indigenismo empresarial (Baines, 1993b) a respeito desse povo indígena. Com a participação da ELETRONORTE no indigenismo oficial do Estado, alguns capitães Waimiri-Atroari são informados sobre a política da empresa18. Cabe ressaltar que apesar do seu supervisor apresentar o PWAIFE como "indigenismo alternativo", a incorporação dos capitães Waimiri-Atroari na sua administração não constitui "o surgimento de uma `comunidade de comunicação e de argumentação', criada no processo de `planejamento, execução e avaliação', destacado por Stavenhagen (1985)" (Cardoso de Oliveira, 1994:24-25), no seu conceito de etnodesenvolvimento, nem assegura a possibilidade da efetivação das relações interétnicas em termos simétricos.

Ao contrário, as imagens construídas dos Waimiri-Atroari através da mídia mascaram as relações sociais desmedidamente assimétricas estabelecidas por uma administração indigenista que exclui os índios dos processos decisórios de planejamento, execução e avaliação, mas os incorpora na sua política publicitária (Baines, 1994a:27-35). Como frisa Márcio Silva, o PWAIFE "apresenta ... o mesmo caráter de `instituição total' ... da extinta Frente de Atração, uma vez que procura exercer o papel de mediador absoluto entre a população indígena e os estranhos. A própria inclusão da sociedade Waimiri-Atroari ..., dividida em `aldeias', nos espaços subalternos de um canto inferior de seu Organograma, revela, em uma cápsula, uma política indigenista tutelar, baseada em um rígido ordenamento hierárquico aos quais todos os Waimiri-Atroari, e até mesmo alguns `pesquisadores' convidados pelo (PWAIFE), devem se submeter" (1993:56). A situação assemelha-se àquela da política indigenista oficial no México, descrita por Miguel Bartolomé, em que existe, de fato, "um monólogo, no qual uma das partes tenta comunicarse com a outra através de interlocutores que pretendem ser construídos na base da lógica política hegemônica" (1995:366).

Em documentários e reportagens de televisão19, as lideranças locais aparecem, em diálogo com técnicos e administradores, criando uma imagem para o público, com todo o poder da mídia, de que estivessem em relações simétricas e mais democráticas. Além disso, as reportagens mostram os Waimiri-Atroari realizando rituais, o que é apresentado como um "pleno retorno aos rituais", e uma revitalização cultural, como uma demonstração do sucesso do PWAIFE. Eles mesmos, aparecem, dizendo que estão praticando sua própria "cultura" e colocando suas próprias reivindicações. Porém, sem colocar em dúvida as palavras dos Waimiri-Atroari, as imagens e a montagem dos filmes são controladas por outros, e apresentadas em contextos sobre os quais os Waimiri-Atroari não têm nenhum controle. Novamente, o controle exercido pela administração indigenista é escamoteado através de imagens de uma resistência cultural preparadas por outros. Lembra do papel dos funcionários índios, mencionados por Miguel Bartolomé, "usados ritualmente para `representar os indígenas' nas campanhas políticas oficiais" (Bartolomé, 1995:363) no México. Só que, no caso dos Waimiri-Atroari, além de um seminário organizado em Manaus em 1990, e uma exposição num Shopping de Manaus em 1993, o uso ritual é gravado e montado em filmes e folhetos de propaganda.

Os novos líderes Waimiri-Atroari têm sido sujeitos a campanhas publicitárias intensivas, e incorporados às mesmas, sendo assim, impedidos de ter acesso a informações que lhes dariam oportunidades de questionar os interesses empresariais atrás desta política indigenista. Isto é um exemplo claro da maneira como pressões exercidas por grandes empresas podem produzir uma retórica de resistência indígena que escamoteia as imensas desigualdades da situação de contato interétnico entre grandes empresas e populações indígenas. Através das suas campanhas de publicidade, o PWAIFE molda a "versão oficial" da realidade dos Waimiri-Atoari, incorporando os próprios índios nessa "realidade" criada e recriada pela publicidade. Assim, a administração constrói imagens dos índios como parte da sua política de publicidade, os índios participando dessa reconstrução da sua própria imagem dirigida para atender aos interesses da empresa. Aparecem em filmes de propaganda trajando camisetas do PWAIFE com imagem de um Waimiri-Atroari estampada e o nome "Waimiri-Atroari", servindo como farda do PWAIFE20. Uma dissertação de mestrado sobre etnofarmacologia Waimiri-Atroari, baseada em pesquisas realizadas com o aval do PWAIFE, aborda a história de contato como uma de "luta e resistência" (Espinola, 1995:39), sem levar em consideração que, além de luta e resistência houve muita acomodação e sujeição na história recente dos Waimiri-Atroari. Assim, a autora reforça a versão oficial a respeito dos Waimiri-Atroari, apresentando uma perspectiva muito próxima ao mito indigenista que está sendo usado por membros do PWAIFE para legitimar a sua atuação autoritária, uma vez que a referida autora não salienta este aspecto autoritário e o processo de invenção de uma resistência "dirigida", um indigenismo de "resistência" que, neste caso, legitima a atuação de grandes empresas.

Esses exemplos de propaganda distorcem a atuação de uma administração indigenista que, a partir de 1987, seletivamente tem proibido a continuação de pesquisas antropológicas de longa duração. Uma proibição exercida em nome da autodeterminação indígena que se apresenta, na versão oficial, como uma "resistência" indígena contra pesquisadores independentes do PWAIFE, que questionam a versão oficial propagada pelo mesmo (Baines, 1993a). Essa proibição tem dado um monopólio total ao PWAIFE sobre imagens de resistência indígena, além de impedir que pesquisadores independentes presenciem a resistência indígena. Relatos de pessoas que trabalharam na área revelam que a situação é muito mais complexa que parece nas imagens midiáticas apresentadas na propaganda, havendo, inclusive, descontentamentos entre os Waimiri-Atroari com relação à administração. Resta ver os novos modos de resistência que os Waimiri-Atroari inventarão face um indigenismo financiado por grandes empresas e norteado em primeiro lugar por interesses empresariais.

 

Bibliografia

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Notas

1. Prof. Adjunto, Departamento de Antropologia, UnB, e pesquisador do CNPq. Meus agradecimentos à Profa.

Alcida Rita Ramos, chefe do Departamento de Antropologia da UnB, e ao Prof. Henyo Trindade Barretto Filho, coordenador dos seminários, pelo convite para participar do seminário "Do Tacape ao Vídeo": a resistência indígena através dos séculos, realizado na Universidade de Brasília em 29 e 30 de maio de 1996, onde apresentei uma versão deste trabalho.

2. Em Seminário do Departamento de Antropologia da UnB, "Aboriginality & Authenticity - A Confoundment", proferido em 22 de abril de 1996.

3. Na época em que iniciei minha pesquisa de campo (1982), este cargo já estava institucionalizado na FAWA. Os "capitães" eram, sobretudo, jovens recrutados pelos servidores a fim de atuar como transmissores de ordens da equipe da FUNAI para os demais Waimiri-Atroari em troca de privilégios como acesso desigual a bens manufaturados, controle sobre a distribuição de alimentos nos aldeamentos e dos bens obtidos em troca da produção comercial dos aldeamentos e prestígio concedido pelos funcionários que os colocavam como subdominadores entre a equipe da FUNAI e os outros Waimiri-Atroari. Os funcionários tratavam os capitães como superiores aos outros Waimiri-Atroari, instigando-os a assumir esta postura.

4. Como castanha-do-pará, balata, madeira, e peles de ariranha e jacaré.

5. As estimativas da população Waimiri-Atroari no passado variam muito. Seu território era muito mais extenso, abrangendo as bacias dos rios Jauaperi e Uatumã, em que desembocam, respectivamente, o rio Alalaú e o igarapé Santo Antônio do Abonari. Na segunda metade do século passado, Barbosa Rodrigues (1885:149; 241) estimou a população indígena do vale do rio Jauaperi, atualmente despovoado de índios, em 2.000 pessoas.

6. Em 1981, uma área de aproximadamente 10.344,90 km2, encravada na área indígena, foi decretada de utilidade pública para a formação do reservatório da Usina Hidrelétrica de Balbina.

7. Por "aldeamentos" refiro-me aos conjuntos de moradias Waimiri-Atroari e postos indígenas da FUNAI construídos sob a direção de funcionários da FUNAI, em distinção a "aldeias" construídas pelos Waimiri-Atroari sem a direção dos servidores.

8. Decreto No.94.606 de 14-07-87. Conforme informações divulgadas pelo Programa Waimiri-Atroari (Convênio FUNAI-ELETRONORTE), a área demarcada é de 2.585.911 hectares, homologada através do Decreto No.97.837, de 16-06-89.

9. Apesar de ser usada pelo PWAIFE nas suas campanhas de propaganda como símbolo de respeito ao território Waimiri-Atroari, a homologação da área em si não garante as terras indígenas, considerando que empresas mineradoras do Grupo Paranapanema estão aliciando alguns Waimiri-Atroari a assinar Termos de Compromisso que permitem o avanço da empresa mineradora sobre o território indígena em troca de royalties, com a conivência de alguns dos seus funcionários. Começando com um "Termo de Compromisso" assinado em 26.08.86, seguem, entre outros documentos, uma "Declaração" de 15.05.87 e o "Termo de Compromisso Nº.001/89" de 24.06.89 entre a Mineração Taboca S.A. (Paranapanema) e os Waimiri-Atroari. O gerente do PWAIFE e Superintendentes Regionais da FUNAI também assinaram estes documentos como testemunhas.

10. Ver, por exemplo, "Mistérios de um Século envolvem massacres dos Waimiri-Atroari", Informativo FUNAI, Nºs. 15/16 - III e IV trimestre de 1975, fev./76.

11. Atas do Sexto Encontro de Chefes de Posto do Nawa de 04-09-82.

12. Relatório: Participação ao III Seminário sobre a Pesquisa da Região Amazônica, 1981.

13. Barbosa Rodrigues denomina a população indígena com a qual entrou em contato no rio Jauaperi de "Crichanás", embora a identifique com os Uamerys, Uaimeris e Waimirys, nome que alega derivar do nome do mesmo rio (1885:9, 46, 67, 135). Sua modificação do nome pejorativo pelo qual era conhecida pelos regionais foi, aparentemente, uma tentativa de reconstruir a imagem dessa população indígena para a sociedade nacional após têla aldeado em Tauacuera, no baixo rio Jauaperi: "Os terríveis Jauaperys, os traiçoeiros Uaimirys já não existem.

Desapparecendo, deram logar aos Crichanás que se chegam ao civilisado com a taça da hospitalidade, (...) Não são mais aquelles que... [enumera os estereótipos altamente pejorativos que a população regional guardava a respeito deles]. Tornam-se, nas palavras do botânico: "homens de brio e de coração (...) e alegres festejam a presença do branco de quem recebem a benção!" (1885:59). Ao dizer que os "Uaimirys" deram lugar aos "Crichanás", Barbosa Rodrigues escreve em sentido figurado, declarando que são aquilo em que os queria transformar, numa afirmação de poder, estratégia adotada também pelo coordenador da FAWA.

14. Radiograma nº 366/NAWA de 01-04-81.

15. Energia Elétrica no Brasil - Obras Amazônicas, roteiro e direção de Romain Lesage.

16. Ver, por exemplo, o trabalho do então funcionário da Paranapanema, Hanan (1991), apresentado por Otávio Lacombe no Seminário Internacional, "A Desordem Ecológica na Amazônia" (Belém, 31 de outubro de 1990), e também no "Simpósio sobre Política Mineral", Câmara dos Deputados, Comissão de Minas e Energia, Brasília, D.F., 19-20 de junho de 1990. Neste trabalho, Hanan cita a Mina de Pitinga, localizada na área desmembrada, em 1981, da Reserva Indígena Waimiri-Atroari, como exemplo da "preservação do meio ambiente", argumentando que o Grupo Paranapanema assumiu este compromisso, "aplicado ... com destaque, nas atividades de mineração na Amazônia" (1991:303). Hanan acrescenta: "No complexo Pitinga tem-se como filosofia básica a harmonização da atividade minerária com a proteção ambiental e com o desenvolvimento regional" (1991:304). A violenta destruição ambiental na área ocupada pela Mina de Pitinga e a contínua poluição do rio Alalaú com detritos desta mina, seriamente prejudicando a pesca e a saúde dos índios neste principal rio que atravessa o território dos Waimiri-Atroari, e do qual os índios dependem para sua subsistência, revelam que o alegado "compromisso" da Paranapanema com a preservação do meio ambiente não passa de uma retórica "verde" para escamotear a destruição ambiental (Baines, 1993b:238; Isto É, 20 de maio de 1987, p. 41). Para uma discussão da estratégia de "ecologização" da retórica desenvolvimentista na Amazônia, ver Albert, 1991.

17. A construção da UHE Balbina tem sido muito criticada como um grande projeto inviável em termos da baixa produção de energia elétrica comparada aos imensos investimentos, e a vasta área inundada com prejuízos ecológicos e humanos irreversíveis. A obra atendeu, em primeiro lugar, aos interesses das grandes empresas construtoras, de gerar lucros.

18. Em 17 de setembro de 1993, quando dois Waimiri-Atroari estavam em Brasília, um dos capitães principais comentou comigo que o supervisor da PWAIFE o informara de que o Cel. Zanoni, atualmente da direção da ELETRONORTE (notório no início da década de 1980 por seus "critérios de indianidade", quando trabalhava na FUNAI, onde também trabalhava na mesma época o supervisor do PWAIFE), estava no Japão, acompanhando o presidente da ELETRONORTE, para pleitear verbas para a empresa junto ao governo japonês. O supervisor revela que o Cel. Zanoni havia o convidado anteriormente, quando trabalhava na FUNAI, para atuar como indigenista na área dos Waimiri-Atroari (Carvalho, 1982:119).

19. Como o reportagem divulgado no programa "Fantástico" da Rede Globo, em 22 de outubro de 1995.

20. Servem também como símbolo de valores alternativos, seguindo o modelo de camisetas vendidas por organizações não governamentais de defesa de direitos indígenas como a Survival International/ CCPY (Root, 1996:74), e o CIMI.

 

Stephen G. Baines
stephen[arroba]unb.br


 
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