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Estrutura e sujeito, determinismo e protagonismo histórico (página 2)

Helena de Oliveira, Maria Cecília de Souza Minayo

 

Lévi-Strauss pode ser considerado o pai do estruturalismo na antropologia. Para esse autor, as relações sociais são a matéria-prima que torna manifesta a estrutura social. Mas, ao contrário das idéias de Radcliffe Brown, para esse autor, a estrutura social não tem qualquer relação com a realidade empírica e sim, com os modelos construídos sobre ela (l974). Lévi-Strauss toma de Durkheim e de Radcliffe Brown a idéia de que o plano da realidade é sui generis, que os fatos sociais são interdependentes e têm que ser analisados a partir da totalidade e vistos em relações. Mas é preciso destacar desses fatos o sistema de relações invariantes e independentes, de um conjunto de variações, que, embora importantes, têm a ver com fatores históricos específicos. Para Lévi-Strauss, as estruturas não são realidades diretamente visíveis ou observáveis, mas níveis de realidade que existem e funcionam, constituindo a lógica mais profunda de um sistema social.

Polemizando com Sartre, que atribui à História uma posição privilegiada para a compreensão dos fenômenos humanos, Lévi-Strauss (1974) diz que por trás da noção de história, há a pressuposição de que existe um sujeito indiscutível - grupos e classes sociais. Este fato deve ser relativizado, segundo Lévi-Strauss, porque o que nos interessa entender são as estruturas inconscientes que tornam os humanos iguais e irmãos; são a lógica e a racionalidade das diferentes sociedades, acima de suas idiossincrasias e do evasivo dos acontecimentos sociais.

O pensamento de Althusser (1966, 1967) trouxe para o campo do marxismo toda a força da lógica estruturalista. Apoiado metodológica e filosoficamente nas idéias de Lévi-Strauss, retirou o fundamento das suas teorias das teses de Marx sobre o desenvolvimento socioeconômico pensado como campo de contradições entre forças produtivas e relações de produção, como podemos ler no prefácio à Introdução à crítica da economia política:

O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma estrutura jurídica e política e à qual correspondem formas de consciência social determinadas (...) É preciso distinguir sempre a transformação material das condições econômicas de produção e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas em que os homens tomam consciência deste conflito e lutam para resolvê-lo (Marx, 1973).

Althusser retomou esse texto de Marx para defender a estrutura social capitalista como totalidade orgânica articulada em níveis ou instâncias. A noção de classe é aí uma resultante da diferenciação entre o domínio da estrutura e das relações sociais identificadas, por ele, como relações de classe. Em seu trabalho, Althusser anuncia que Marx eliminou o sujeito humano da teoria social e construiu uma nova ciência da prática humana (econômica, política, ideológica e científica) que se inscreve na estrutura de uma totalidade social. Portanto, segundo esse autor, a teoria marxista não é nem humanista nem histórica, no sentido teleológico, mas relacionada essencialmente com a análise estrutural das totalidades sociais. O objetivo do conhecimento marxista, em conseqüência, segundo Althusser, é descobrir a estrutura profunda que subjaz aos fenômenos diretamente observáveis, e que os produz e reproduz.

A seguinte passagem em Lire le Capital II (1966) esclarece, de forma muito clara, a posição de Althusser a respeito das relações entre estrutura e sujeito: A estrutura das relações de produção determina os lugares e as funções que são ocupadas e assumidas pelos agentes da produção, que são apenas os ocupantes destes lugares, na medida em que são os portadores destas funções. Os verdadeiros sujeitos (sujeitos constituintes do processo) não são pois, contrariamente a todas as aparências, as "evidências", "os dados da antropologia ingênua", "os indivíduos concretos", os "homens reais" - mas são a definição e a distribuição destes lugares e destas funções. Os verdadeiros sujeitos são, pois, estes definidores e distribuidores: as relações de produção.

Conforme observa Limoeiro Cardoso (1978), o ponto crucial, por meio do qual se pode entender o pensamento de Althusser é que ele retira as relações sociais da definição das relações de produção. Considerando as relações de produção como meramente técnicas (homem-coisa), não há como colocar, na estrutura que se constrói, qualquer elemento básico de cisão, ou seja, o sujeito social, o sujeito histórico. Para ele, as relações sociais são apenas expressões de lugares e funções determinadas pelas relações técnicas. Na apresentação aos leitores brasileiros de seu livro Análise crítica da teoria marxista, Althusser comenta, a propósito do movimento de oposição ao culto do dogmatismo marxista-estalinista que cresceu nos anos 60: essa onda libertadora que deu origem a uma reação ideológica de tendência liberal reencontrou espontaneamente os velhos temas filosóficos da "liberdade", do "homem", da "pessoa humana" e da "alienação". Esses ensaios filosóficos (no caso a obra que ele próprio apresenta) diz ele, tem por objetivo intervir na conjuntura existente e reagir contra as suas tendências perigosas (...) demarcando uma linha entre a teoria marxista e todas as formas de subjetivismo filosófico e político (...) e entre os verdadeiros fundamentos teóricos da ciência marxista da história e da filosofia marxistas, sobre as quais repousam as interpretações atuais do marxismo como filosofia do homem ou como humanismo, de outra parte (1967).

Em resumo, o marxismo de Althusser, segundo Perry Anderson (1984), "sempre sobreviveu à sombra do estruturalismo". E nesse movimento teórico Lévi-Strauss havia se empenhado categoricamente em cortar o nó da relação, entre estrutura e sujeito, retirando este último termo de qualquer campo do conhecimento científico. Althusser traduziu essa visão em sua obra, onde os sujeitos foram totalmente abolidos, exceto como "efeitos ilusórios de estruturas ideológicas" (1967).

O predomínio do positivismo e do estruturalismo, dois movimentos diferentes que se encontraram em vários dogmatismos sociológicos, teve o mérito de conduzir, metodologicamente, estudos para a classificação e para a compreensão de tendências universais, seja do espírito humano (Lévi-Strauss), seja da linguagem, em autores como Saussure (1978) ou Barthes (1977), seja das realidades macro ou meta-sociais (Althusser). Nesse sentido não poderíamos esperar delas mais do que se propuseram a explicar.

5. Sujeito e estrutura

Em contraposição às correntes estruturalistas no interior do campo das ciências sociais, há algumas que enfatizam o lugar do sujeito e da subjetividade e a partir daí analisam as estruturas sociais. São elas as teorias compreensivas, fenomenológicas e interacionistas e da ação, explicitamente; e no marxismo, algumas correntes. O conceito de sujeito (da mesma forma que o conceito de estrutura) não é consensual nas teorias sociológicas. Sujeito individual, sujeito coletivo, sujeito histórico e sujeito cultural são alguns termos que essas diversas abordagens sociológicas costumam utilizar. Os elementos comuns que parecem unificá-las são a concepção do ser humano como criador das estruturas embora estas passem a condicioná-lo; a história como produto humano e a transformação como ação humana sobre a história. Vejamos isso nas suas expressões teóricas:

As chamadas abordagens compreensivas são aquelas que colocam a ação e a interação no centro da sociologia, entendendo que toda a realidade é uma construção a partir da ação social dos indivíduos e por isso possui significado e intencionalidade. Em um sentido mais abrangente, o interacionismo simbólico, a fenomenologia, a teoria da ação são partes do pensamento fundado em Weber, no campo da sociologia. Segundo essas correntes, o ser humano é ator e autor da realidade porque define e cria situações. Max Weber é o seu representante clássico. Para Weber (1974), a atividade social, a que também denomina atividade comunitária, é a realidade primeira da sociologia. Ela pode ter um caráter passageiro ou virtual ou pode adotar formas duráveis que constituem a maioria das estruturas sociais. Não quer isso dizer, para o autor, que as estruturas sociais seriam necessariamente frágeis. Porém, com o tempo, elas podem perder sua significação, ou mesmo desaparecer se a atividade dos indivíduos lhes der outro sentido, quer pela necessidade, por interesses novos, quer por motivos técnicos ou racionais. Se ficam privadas de significação as estruturas morrem. Ou seja, para Weber, o elemento central das estruturas sociais é a significação que os seres humanos lhes dão ao criá-las, mantê-las ou transformá-las.

Weber distingue quatro tipos de estruturas construídas pela atividade social:

a) atividades societárias - exemplificadas nas associações, partidos políticos e sindicatos, elas supõem regulamentos que definem objetivos, meios, serviços, patrimônio, sanções, entre outros. Essas estruturas existem de forma permanente, embora os indivíduos se revezem na sua organização, até que sejam contestadas em seu sentido visado, subjetivamente;

b) atividades por entendimento - existem sem regulamento mas funcionam em um acordo tácito de significados dados pelos membros do grupo;

c) atividades institucionais - estruturas das quais fazemos parte, involuntariamente, por nascimento, ou por circunstância da vida: família, comunidade, Estado, empresas, organizações religiosas;

d) atividades de agrupamento - estruturas às quais aderimos sem obrigação ou regulamento específico. Elas têm uma autoridade e um constrangimento social: mestres e discípulos, chefes carismáticos e seu grupo, por exemplo.

Em todos os casos, para Weber, o sujeito é o indivíduo. O autor não encara nem a hipótese de uma consciência coletiva, pois para ele, trata-se de pura suposição. O indivíduo, como unidade significante, é o postulado básico da sociologia compreensiva: é ele quem avalia os meios em função das metas e a escolha do fim, a previsão das conseqüências e a decisão. Portanto, Weber vê a história como uma ciência autônoma com finalidade própria. Faz uma sociologia histórica que busca a singularidade significativa das sociedades que estuda.

Já dentro do marxismo, existiu sempre uma tensão entre o peso dado às estruturas e às forças subjetivas em conflito e confronto, pelo domínio dos processos sociais. A justificativa do papel do sujeito encontra-se de forma particular no Manifesto Comunista (1967). Quando esboçou a transição de uma formação socioeconômica para outra, Marx não a colocou como um fenômeno mecânico ou irreversível. Pelo contrário, chamando atenção para o exemplo do império romano, mostrou como o caminho de uma sociedade pode terminar em ruína e não em progresso. Tratou de uma tese geral, da qual deduziu a necessidade de compreensão do envolvimento do fator humano em toda a história. A evolução no sentido da sociedade humana não é, segundo Marx, espontânea, nem automática: A história nada não faz, ela não possui uma enorme riqueza, ela não luta lutas! É antes o homem que faz, luta, realiza e possui tudo. Não é a história que usa o homem como meio para realizar seus fins - ela não é senão a atividade do homem que persegue seus fins (1967).

No entanto, durante os quase cinqüenta anos de hegemonia do marxismo instrumental, a comunidade científica alimentou um debate "exegético" sobre o pensamento de Marx a respeito do papel do sujeito. Alguns dizem que sua obra reconhece apenas uma ação coletiva organizada (sujeito histórico). Outros advogam que o autor também se debruça sobre o tema do sujeito individual na qualidade de categoria social como é o caso de Schaff (1967). Mais do que alimentar uma polêmica vazia, porém, é importante observar quais são os temas centrais da discussão da subjetividade no marxismo. Aí estão em jogo as questões da pessoa humana, da liberdade, da alienação, das forças da luta de classes na história e das forças subjetivas em conflito e confronto pelo domínio dos processos sociais.

Perry Anderson chama atenção para o fato de que, a partir da metade dos anos 70, o assunto que tinha tomado conta dos contendores marxistas, porque ele é essencial, trata da natureza das relações entre estrutura e sujeito na história e nas sociedades humanas. Esse tema é central no materialismo histórico como explicação de desenvolvimento, sempre com permanente oscilação entre a compreensão das contradições entre forças produtivas e relações de produção no papel de motor primário de transformação histórica; e de outro lado, a luta de classe (Anderson, 1987). Trata-se portanto de uma discussão essencial que ocupou a mente e o tempo de autores tão importantes, como Lukács, Sartre, Gramsci, Thompson, Kosic e Schaff, dentre outros.

Em História e consciência de classe, Lukács aborda como assuntos centrais os temas da consciência, da subjetividade e faz a crítica à reificação da realidade. Sua tentativa foi de reviver no pensamento marxista a idéia do sujeito ativo. Sua reflexão foi o ponto de partida do pensamento de importantes intelectuais como Gramsci. No entanto, sua obra acabou reduzindo o sujeito histórico às classes fundamentais como autoconsciência da sociedade e interpretando o partido político como vanguarda das classes. O desenvolvimento histórico tem mostrado quão problemáticas são, do ponto de vista teórico, político, organizativo e prático, essas premissas de Lukács. Ao privilegiar a historicidade apenas da classe (em última instância, um conceito de ênfase econômica), Lukács deixou escapar a complexidade das realidades históricas e sua singularidade, nas quais não podemos estabelecer uma relação direta entre partido e classe. Tal é o caso tão meridianamente claro do papel do movimento feminista e do movimento ambientalista sobretudo no cenário histórico após a II Guerra Mundial.

A extensa discussão contemporânea do trabalho histórico de E. Thompson (1978) está centrada sobre o papel da ação humana na formação ou eliminação das classes e no advento ou superação das estruturas sociais. Em The poverty of theory (1978), publicada em 1970, Thompson mantém uma longa e apaixonada polêmica com Althusser onde ele argumenta que teoria e história são esferas mentais totalmente intrincadas.

O mesmo nível de paixão informa a polêmica entre Gramsci e Poulantzas onde o autor de Concepção dialética da história argumenta que as forças econômicas jamais prevalecem na história, são os homens, as consciências e o espírito que plasmam o mundo exterior e terminam triunfantes (1981). Ou seja, para Gramsci, o determinismo econômico é uma doutrina grosseira, desprovida de qualquer dinamismo histórico.

A reflexão filosófica sobre o lugar da subjetividade na história foi particularmente enriquecida pela participação de Sartre dentro do que se convencionou chamar marxismo existencialista. Sua produção, junto com a de Simone de Beauvoir e Merleau-Ponty, atingiu alta qualidade e intensidade, identificadas por Perry Anderson como um dos mais ricos períodos da história intelectual de toda a história de pós-guerra (1984).

Em Crítica à razão dialética (1976) e em Questão de método, (1978), Sartre propõe uma antropologia histórica repensando as relações entre sujeito e estrutura. Para ele, é importante compreender as conexões orgânicas que explicam as inter-relações entre as determinações que constituem as totalidades. Porém, é de igual importância conhecer o caráter histórico dos acontecimentos dados pelo papel do ser humano na qualidade de grupos, classes, e indivíduos na construção social. As estruturas são ações humanas objetivadas. "O homem faz a história", diz Sartre (1978); ele se objetiva nela e nela se aliena. Nesse sentido, a História que é obra de toda atividade e de todos os homens aparece-lhes como força estranha. Referindo-se à condição de exploração, argumenta Sartre que aí o homem é ao mesmo tempo produto de seu próprio produto e um agente histórico que não pode, em caso algum, passar por um produto (1978).

O interlocutor e adversário intelectual mais importante de Sartre foi curiosamente Lévi-Strauss. Publicado mais ou menos na mesma época que as citadas obras de Sartre (início da década de 1960), o último capítulo de O pensamento selvagem (1974) faz um ataque direto ao historicismo de Sartre, em nome das prioridades invariantes de todas as mentes humanas e da dignidade igual de todas as sociedades humanas. Lévi-Strauss identificou a razão dialética e a história como a "mitologia do pensamento civilizado" e empenhou-se, teoricamente, em cortar o nó da relação entre estrutura e sujeito. Apesar de, a partir desse debate, Sartre ter se retirado da arena pública da discussão, seu pensamento arguto e brilhante continuou atual.

Outra das principais reflexões teóricas sobre o indivíduo como sujeito social, no interior do marxismo, coube a Adam Schaff. Seus estudos perpassam questões como a liberdade humana e a história. Esse autor mostra em O indivíduo no marxismo (1967) que razões histórico-políticas (o estalinismo) e de conhecimento (dificuldade de interpretação) fizeram que apenas em 1932 tenham sido publicados os Manuscritos filosóficos (1959) e a Ideologia alemã (1984), em língua original. Schaff comenta que a retomada do tema "ser humano seja como sujeito da história", seja como indivíduo, grupo ou classe, não é apenas um modismo ou um revisionismo como pensava Althusser. Quando as condições sociais, os sistemas de valores e as relações tradicionais começam a estremecer, a questão antropológica surge forte e renovada, levando homens e mulheres a confrontarem sua própria criação cultural, econômica e política.

Schaff discutiu em profundidade o viés ideológico do marxismo, que dividiu a obra de Marx, valorizando pejorativamente a produção concernente a sua chamada juventude. Reafirmou a importância da discussão sobre o indivíduo, retomando expressões dos Manuscritos, tais como: Uma revolução social encontra-se do ponto de vista da totalidade porque seria um protesto do homem contra a vida desumanizada, porque parte do ponto de vista do indivíduo real particular, porque a coletividade, contra cuja separação de si reage o indivíduo, é a verdadeira coletividade do homem, o ser humano (Marx, 1959).

E mostrando que numa organização social são os seres humanos que dirigem as condições objetivas (com maior ou menor protagonismo) Schaff cita as seguintes frases de Marx, primeiro dos Manuscritos: Não devemos postular a sociedade, novamente como uma abstração em relação aos indivíduos (1959) e em seguida, na Crítica ao programa de Gotha: O domínio das condições objetivas sobre os indivíduos, a opressão da individualidade pela causalidade receberam, na época atual, a sua forma mais rigorosa e universal, impondo aos indivíduos uma determinada tarefa. Impuseram-lhe a tarefa de colocar, no domínio das condições e da causalidade sobre os indivíduos, o domínio dos indivíduos sobre a causalidade e as condições (Marx, 1971).

Outro autor importante na discussão do significado subjetivo da ação humana é Karel Kosic. Para esse autor (1969), a práxis é a grande mediadora entre o indivíduo, a natureza e a sociedade. Ela é a esfera do ser humano, criador da realidade objetiva. Para Kosic, a prática não pode ser pensada como uma atividade exterior às pessoas. Porque, na verdade, cada ação humana é a apropriação prático-espiritual do mundo: a atividade objetiva que transforma a natureza, marca-a com sentido humano. Ou seja, os seres humanos conferem sentido e transformam a realidade, fazendo-a passar pela subjetividade. Daí que o fato fundamental da vida em sociedade é o caráter criador do ser humano: ele cria objetos, cria cultura, e assim transforma e se transforma.

Kosic chama atenção para o risco e a cilada teórica da pretensão pseudoconcreticidade da realidade social. Metodologicamente, ele alerta para a necessidade de se atender ao caráter histórico do social e do individual, do instituído e da dinâmica das mudanças. Explicita seu repúdio ao que denomina "falsa totalidade", ou seja aquela visão da realidade como objeto, fato estático e mecânico e não uma práxis humana objetivada (1969).

O pensamento de Kosic se apóia na sabedoria de Marx quando desenvolveu seus textos sobre o Fetichismo da mercadoria (1971) e a Fórmula trinitária (1971). No primeiro, ele analisa como o valor incorporado a cada produto do trabalho é um hieróglifo social. Aparece, na relação, como "mercadoria" e daí como relação entre coisas e não entre pessoas. O fetichismo consiste na falsa consciência onde o real se mostra invertido porque, realmente, na sociedade burguesa as relações entre pessoas, as relações sociais, apresentam-se como relações entre coisas (produtos de trabalho). Portanto, o pensamento social que constrói os instrumentos analíticos, para dissolver a névoa do fetichismo, só pode fazê-lo em nível do conhecimento do sujeito. Ou seja, trata-se de uma operação social que pode ser realizada apenas por sujeitos históricos.

No texto da Fórmula trinitária Marx tenta desvelar a cortina ideológica que nos leva a pensar o capital produzindo lucro, a terra produzindo renda fundiária e o trabalho produzindo salário. Ao revelar a reificação do pensamento que reduz tudo à relação entre coisas, Marx demonstra que estão aí implicadas profundas relações sociais de dominação historicamente condicionadas. Portanto, a economia é a aparência resultante de intrincadas relações entre os seres humanos.

Na sua obra atual, representando a sociologia crítica, Habermas, na Teoria do agir comunicativo (1987), mostra que é necessário desenterrar as dimensões da racionalidade que incluem os elementos ético-normativos e estético-subjetivos. É necessário descolonizar o mundo vital submetido à razão prático-instrumental, dominado pela técnica e pela tecnocracia. Habermas, em relação ao sujeito, distingue a concepção instrumental que se coloca fora e olha os outros e o mundo como objetos de conhecimento e poder. Em seu lugar propõe a idéia de um sujeito que no seu desenvolvimento histórico se situa junto com os outros, não para agir sobre, mas para entender-se e entender o que pode significar conhecer objetos, agir através deles ou também dominá-los. Ou seja, Habermas reconhece para o sujeito a possibilidade da ação, mas também da crítica social que traz, em conseqüência, a capacidade de sentenciar sobre a ação e buscar a transformação.

Ao explicar o sentido de sua nova proposta filosófica de ação comunicativa que se opõe à clássica filosofia da consciência, o autor sustenta o conceito mundo da vida, esse espaço social onde se dá o processo cooperativo de interpretação no qual todos os partícipes se referem ao mundo objetivo, ao mundo social e ao mundo subjetivo. A troca intersubjetiva se apóia, segundo Habermas, no tripé: a) da crença nas verdades compartilhadas; b) do acordo sobre regras e normas reconhecidas; c) no entendimento das manifestações de vivências subjetivas.

Em resumo, dentro da sociologia clássica o ponto de Arquimedes, segundo Perry Anderson (1984) seria encontrar, na compreensão da realidade, o equilíbrio entre estrutura e sujeito, e por conseqüência, entre determinismo e protagonismo histórico.

Fugindo ao âmbito específico da sociologia, desenvolve-se hoje um pensamento diferente de tudo que falamos até o momento que é o chamado Pensamento complexo com origens na área da biologia. Nesse particular é sobre as idéias de Edgard Morin (1994), esse autor tão controverso, mas tão provocador e fértil, que buscaremos refletir. Morin, em primeiro lugar, amplia o conceito de sujeito tradicionalmente vinculado à afetividade, à particularidade e à consciência, para defini-lo de forma ontológica-lógica e organizacional. A idéia de sujeito, diz ele, originou-se no ser mais arcaico, desenvolveu-se, com a animalidade, a afetividade. E no ser humano surge junto com a consciência.

Para o autor, o primeiro traço notável do indivíduo é a sua unicidade, inclusive no nível imunológico; e o do sujeito é o seu caráter egocêntrico. Ou seja, a menor atividade viva supõe um cômputo por meio do qual o indivíduo trata todos os objetos e dados em referência egocêntrica a ele mesmo. Ou seja, esse cômputo é estruturante a partir do sujeito que o estrutura. Essa estrutura egocêntrica e auto-referente é a qualidade fundamental do sujeito. Sendo assim, todo ser vivo é um sujeito, pois tem a capacidade de se auto-referir. A bactéria é um sujeito (sem consciência). Este é o drama do sujeito, autotranscende-se espontaneamente, embora não passe de um ácaro microscópico, de uma migalha, periférica, de um momento efêmero do universo (1994).

Em sua reflexão diz Morin que é preciso juntar as idéias de estruturas e sujeito e de determinismo e acaso e não, ao contrário, querer disjuntá-las, assim como não devemos disjuntar as idéias de autonomia e dependência: quanto mais autônomos, mais dependentes somos de um conjunto de condições necessárias à emergência da nossa autonomia. E acrescenta: No que concerne ao ser vivo, este sofre uma dupla determinação, genética e ecológica, à qual se junta para o ser humano, a determinação sociocultural (1994). Mas, ainda segundo Morin, no seu cômputo e no seu comportamento, o ser vivo se apropriará sempre de sua determinação genética, oferecendo-lhe aptidões transformadoras que lhe permitam não aceitar passivamente os determinismos e acasos ambientais. Ao mesmo tempo esse ser vivo extrai alimentos e informações do ambiente, enfrenta os acontecimentos da vida, sofrendo-os ou superando-os, acumulando experiências. Há pois autonomia do sujeito dentro de sua dupla subjugação. Os seres humanos, dotados de linguagem, consciência e cultura, somos ao mesmo tempo sujeitos computantes e sujeitos com consciência, capazes de decisão, de escolhas, de criar estratégias e de inventar, por isso mesmo, absolutamente dependentes de todos os determinismos que nos permitem transcender a nós mesmos.

6. Sujeito e estrutura no campo da saúde

Trazer a reflexão sobre o sujeito e estrutura, determinismo e acaso para o campo da saúde coletiva, significa em primeiro lugar reconhecer que a saúde não institui um nicho particular de conhecimento social. A temática que o recobre participa dos mesmos dilemas epistemológicos que marcam a sociologia e outros ramos das ciências sociais. Por outro lado, a saúde possui reflexões próprias e necessariamente específicas, dadas pelo saber e pela prática.

Sendo assim, em termos gerais podemos inferir que o conhecimento médico e da saúde pública têm sido sistematicamente marcados pelo apagamento do sujeito. Seu viés positivista que considera o social como objeto ou fato quando se trata das concepções biomédicas de saúde-doença. A hegemonia do conhecimento médico sempre tendeu a transformar sujeitos doentes em leis biológicas e químicas. Muito contribuiu para esse ideário o grande cientista Claude Bernard, que no século XIX deu ênfase ao conhecimento da fisiologia como caminho inequívoco para a previsibilidade dos processos patológicos (Pereira, 1999). No trato dos enfermos, o campo da saúde sempre se importou mais com a lógica médica da enfermidade do que com a sociológica dos sujeitos. Também nas organizações dos serviços de saúde, no seu planejamento e avaliação a ênfase tem sido muito maior nos métodos que conferem relevâncias às relações entre funções, papéis e relações técnicas. Ainda quando o planejamento estratégico é incluído no campo organizacional, seus objetivos são preferencialmente voltados para perceber a vontade dos diferentes atores, a fim de controlá-los e dominá-los, do que para chamar à participação efetiva conforme mostra a crítica muito bem-elaborada por Uribe (1995), mostrando a prática autoritária de organização da saúde coletiva. A prática do setor tende a ser "outorgada" de participação mais que de promotora, mesmo quando o documento chave da promoção da saúde "A carta de Otawa" (1996) considere fundamental o papel dos indivíduos para a construção da sociedade saudável.

Na análise das políticas o viés marxista freqüentemente privilegiou a mudança de estruturas como a salvação para o setor e esse foi o grande esforço da reforma sanitária consagrada na Constituição de 1988. Em síntese, as ênfases teóricas das quais nasceram a saúde pública (década de 1950) foram profundamente marcadas pelo positivismo naturalista e pelo estrutural-funcionalismo, preocupado em antepor as determinações da sociedade sobre os indivíduos e em delimitar os papéis e as funções de cada um no sistema social (Nunes, 1985).

Embora as abordagens fenomenológicas que surgiram na década de 1960 e 1970 tenderam a fazer críticas radicais às bases do estrutural-funcionalismo, sua influência política foi muito marginal. No entanto, não podemos negar sua contribuição ao debate sobre os limites das concepções dominantes de saúde consideradas como categorias universais: a arbitrariedade dos domínios institucionais sobre os doentes, suas famílias e sobre outras concepções sociais de saúde-doença; a relatividade da verdade científica da medicina e da ética médica em que se projetam modos de dominação. Sua influência ficou enfraquecida porque, ao mesmo tempo em que a fenomenologia se desenvolvia, o pensamento estruturalista althusseriano encontrava, tardiamente, terreno fértil no campo da saúde. Penetrou impávido nas análises da saúde pública já rebatizada como saúde coletiva. Seus princípios básicos no setor se viabilizaram a partir dos avanços de estudos que privilegiaram as determinações, as relações de produção e os avanços das forças produtivas no domínio médico-social (Donnangelo, 1975 e 1983).

Seguindo o modelo althusseriano, as análises do mundo da produção passaram a ser demonstrativas teóricas, aparecendo como momentos de condensação em nível conceitual e histórico, dos espaços individual (do corpo) e social. Outros estudiosos priorizaram o planejamento e a organização e os refinamentos metodológicos das articulações econômico-político-ideológicas e as práticas de saúde. Esses enfoques enfatizaram os aspectos histórico-estruturais da realidade, possibilitando abordagens macroestruturais e a crítica aos aparelhos do Estado. (Oliveira e Teixeira, 1985; Cordeiro, 1984). Porém, ficaram em segundo plano as análises da práxis e dos sujeitos sociais, históricos e culturais na configuração do campo.

Como as teorias têm uma vinculação necessária com a prática, o pensamento histórico-estrutural acabou por constituir o arcabouço teórico da reforma sanitária, uma reforma levada a cabo para mudar as estruturas organizativas e institucionais, portando algumas consignas, e consagrada, em lei, graças a um movimento de elite: política, setorial e sindical.

A década de 1990 pode ser considerada a "do retorno do sujeito" como necessário, como ator das reformas, como partícipe, para empreendê-las ou para desviá-las. Desenvolve-se um movimento intelectual muito mais fundamentado na teoria da ação comunicativa (mesmo que de forma implícita), nas idéias compreensivistas, somando-se às necessidades objetivas trazidas pela implementação da reforma sanitária. É de se notar que a maioria dos atores de reformulação das reformas foram substituídos. Os fóruns de debate, conflito e decisão passaram a incorporar outros sujeitos e muitos e mais diversificados interesses. E cada vez mais fica evidente a insuficiência dos postulados da filosofia da consciência, por meio dos quais quem sabe ou pode olha os outros como objetos de transformação. Em seu lugar, apareceram, por exigência da prática democrática, os princípios comunicativos necessários para a transformação que contam (e não excluem) os conflitos de interesses e os consensos possíveis. A diversidade de atores a quem se atribuem confiabilidade e veracidade é o caminho possível da construção organizacional do setor. Disso são exemplos as instituições das comissões bipartite e tripartite, os conselhos que exercem controle social do setor nos três níveis de governo e os consórcios municipais de saúde e outros.

Caminhando para terminar este artigo, vou levantar apenas dois pontos que gostaria de compartilhar com todos os que juntos temos promovido os encontros, os questionamentos, e por que não reconhecer o desenvolvimento do campo da saúde coletiva, esse campo de conhecimento, de poder, de identificação e de referência grupal, como nos lembram Bourdieu (1988) e Latour (1987). O primeiro é sobre o que denominei sujeito coletivo-da-saúde, o segundo se refere ao que aqui chamo saúde-coletiva-como-sujeito

Entendo que o sujeito-coletivo-da-saúde é a própria sociedade que, por meio das condições objetivas e subjetivas que gera, define tanto seu conceito sanitário, como os níveis e padrões de qualidade de vida que pretende alcançar. Nesse sentido, saúde transcende e ultrapassa os limites setoriais, depende de políticas macro e microeconômicas e sociais, e envolve relações comportamentais e ações institucionais e individuais. Além disso, como uma resultante muito poderosa do complexo dinamismo social, o padrão de saúde é também informado e informa o conjunto de crenças e valores que igualmente impulsionam ou emperram as conquistas coletivas.

Essa reflexão não esquece em nenhum momento que o sujeito-coletivo-da-saúde, a sociedade, está inteiramente perpassado por conflitos de interesses (de classes, corporativos, grupais, de gênero, de etnias) sociais e políticos, assim como também encontra núcleos de consenso e de identificação. Nesse aspecto, em sua obra reconhecida no Brasil e denominada Medicina e política (1978), Berlinguer cunhou a expressão "consciência sanitária" para se referir à condição fundamental de qualquer movimento transformador dos padrões de saúde. Esse autor, que estudou a problemática da saúde operária na Itália, contempla em sua obra, a necessidade de envolvimento coletivo, quando as conquistas de grupos fundamentais repercutem sobre a sociedade como um todo. Mckeown e Löwe mostraram em sua obra Introdução à medicina social (1984), ao analisarem as transformações positivas nos perfis da morbi-mortalidade na Inglaterra, a força da sociedade como sujeito histórico insubstituível. Já é um conhecimento assumido por todos nós do setor, a partir das obras de Mckeown e Löwe, as transformações provenientes do saneamento, da melhoria das moradias, das condições de vida dos trabalhadores. Esses autores levam a concluir que a elevação dos níveis de qualidade de vida, conquistados pela sociedade contemporânea por meio das intervenções de políticas públicas e sociais e melhorias salariais, promoveu mais a saúde da população que o desenvolvimento da ciência e as intervenções médicas.

Ainda no sentido de compreender a sociedade como complexo sujeito coletivo de saúde é importante acompanhar, como exemplo, a chamada nova utopia da saúde perfeita (termo cunhado por Sfez, 1995) na sociedade americana, no momento mesmo em que ela se desenvolve. Diferentemente do que assinalaram Berlinguer (1978) e Mckeown e Löwe (1984), mostrando a sinergia entre as lutas das classes trabalhadoras e as políticas públicas eficazes para a sociedade como um todo, o projeto da saúde perfeita está sendo construído por uma elite científica e tecnológica, sob os auspícios de poderosos interesses econômicos e financeiros. Ele acontece em um momento histórico de extraordinário avanço científico na área da biologia e da genética que apóia e tem financiamentos concentrados das companhias de seguro e de toda a indústria da saúde.

O nicho de investimento em investigação do projeto Genoma e na busca do ambiente limpo e puro constitui hoje o novo mito americano na ânsia de conseguir a saúde perfeita por meio da predicação genética e da prevenção de contágio garantindo um ambiente totalmente limpo e despoluído. Ora, a onda que combina uma concepção ecológica próxima à moral puritana e a idéia de uma saúde individual que se garanta geneticamente, capitaneadas por poderosos interesses econômicos e corporativos, estão redefinindo o conceito de saúde pública (a soma das saúdes individuais garantidas geneticamente e preservadas ambientalmente) hegemônico norte-americano, pois as companhias de seguro de saúde, em sua maioria, já utilizam as novas tecnologias de detectar doenças e problemas individuais relacionados à sua clientela. Todo esse novo movimento de elites, porém, se apóia no mito da imortalidade, fortemente arraigado na humanidade e magnificado no povo americano. No livro La santé parfaite, Lucien Sfez (1997) comenta sobre como uma sinergia entre o medo da morte, a fé na ciência e nas técnicas, o mito da eterna juventude, o ideal de pureza ambiental e os avanços da pesquisa biomédica sintetizados no projeto Genoma, aliados ao grau de prosperidade econômica inédito no país, está levando a elite americana a uma nova concepção de saúde.

Não me estenderei, mas é claro que existe uma lógica de exclusão (quase nazista) presidindo tal concepção de saúde perfeita, lógica que impulsiona concomitantemente todo o chamado extraordinário progresso globalizado deste início de século.

O segundo ponto que quero discutir é mais próximo a nós, pois se refere à saúde coletiva, como sujeito histórico e epistêmico. Não é meu propósito fazer uma revisão histórica, que por si só justificaria um longo trabalho. Quero apenas destacar alguns pontos para reflexão, tomando como síntese desse sujeito (histórico) a Abrasco, esse movimento-instituição que, numa determinada etapa de desenvolvimento da saúde pública no país, introduziu um novo sentido à sua história. Tomo a Abrasco como um caso exemplar sem esquecer o CEBES e o informal partido sanitário, porque estou segura de que os atores de ambos os movimentos também se incluem nessa associação que, por seus objetivos acadêmicos sui generis, acabou por congregar os sanitaristas intelectuais, os políticos e os integrados nos serviços de atenção à população. Não posso esquecer (mas também não desenvolverei) o fato de que a associação surgiu nos anos 70, numa conjuntura do país, em que a maioria da elite intelectual das mais diferentes áreas passou a se organizar em sociedades e associações. Essa agremiação cumpria então um duplo papel, o de ser espaço de defesa corporativa e de debate democrático, frente ao ambiente de autoritarismo político no país. Chico de Oliveira, em um artigo que li nos anos 80 e que não consegui recuperar para citá-lo, retoma a memória histórica desse movimento organizativo tão relevante, que unia os ideais das classes médias intelectualizadas.

A Abrasco representou, na verdade, a estruturação de uma atividade societária, para usar uma expressão de Weber, aqui já citada, que fazia uma superação dialética dos vários momentos anteriores da saga da saúde pública brasileira: afastou-se da visão apenas campanhista (embora tenha redefinido em si o sentido das campanhas); fez a crítica da ideologia da medicina tropical (embora continuasse a integrar os estudos sobre os problemas que a área recobre); transcendeu ao marco da medicina social e preventiva (ainda que se some com sua práxis). A saúde coletiva, na sua síntese Abrasco, entrou de cabeça como intelectual orgânico no âmbito do sujeito coletivo da saúde, fazendo da sua práxis, uma lide permanente pela elevação do padrão sanitário nacional. Tendo seu discurso fundamentado sobre os conceitos de eqüidade de universalização do direito à saúde, e sobre a crítica da exclusão e das desigualdades, não há, no setor, quem desconheça o protagonismo desse ator social. A área da saúde coletiva (representada pela Abrasco) é hoje um sujeito histórico reconhecido no país, na América Latina e em alguns outros contextos, no âmbito da representação social e política do setor, no âmbito do conhecimento sanitário da população brasileira, na sua capacidade de formulação e na geração e incorporação de ciência e tecnologia referentes aos temas centrais que afetam o contexto nacional.

No que concerne à discussão sobre o sujeito epistêmico, minha observação é de que o conceito de saúde coletiva e por conseqüência toda a práxis da Abrasco continuam manietados aos parâmetros fortemente estruturados da hegemonia médica. Seu centro é a doença (coletiva?); sua reflexão é sobre a doença ou os problemas de saúde; e sua atuação ou é exercida em nível da formulação política ou no âmbito das predições para os serviços que, em última instância, tratam das enfermidades. Sua visão preventiva se dá na área das doenças tradicionais ou reproduz o conceito de Leavell e Clarck (1976), pois se reduz aos espaços dos serviços. Na minha opinião, essa rede prisional que envolve o quadro da ação teórica e prática da saúde coletiva necessita ser revista. Ela carrega todo o peso que a criação da Abrasco buscou romper e conseguiu somente no âmbito do protagonismo sociopolítico.

Nesse sentido, farei três considerações:

1. a não ser minoritariamente, ou seja, como exceção, o campo da saúde coletiva se funda e se reproduz sob os princípios da filosofia da consciência. O mundo a transformar é visto como objeto de uma operação conceitual definida externamente, mesmo quando os atores são convidados a participarem. Esse reprodutivismo impede a transformação conceitual, pois a maioria dos intelectuais não trata com os atores reais da cena da vida;

2. estão claros, pelo menos teoricamente, desde Lalonde (1996), da Conferência de Otawa (1986) e de todos os outros eventos que se sucederam organizados pela Organização Mundial de Saúde, alguns pressupostos para o setor, no contexto atual. Segundo tais pressupostos, os estilos de vida, o ambiente, as novas descobertas da biologia têm muito mais influência sobre a saúde que o sistema médico. Apesar de aceita a proposição teórica, a produção e a prática da saúde coletiva continuam a se pautar nos marcos da atuação médica, fundada na doença e na evitação da doença e não na idéia de promoção que privilegia o conceito positivo de saúde.

Sobre o significado dessa necessária abertura de foco, poderíamos provocar nossa observação empírica de como outras áreas estão inovando. Mesmo a medicina, de posse dos próprios dados gerados, inclusive pela saúde coletiva, está muito mais mobilizada para a promoção de estilos de vida saudáveis que a nossa área. Por exemplo, a Sociedade Brasileira de Cardiologia em seus últimos congressos, além de trabalhar com o público tradicional, tem feito sessões abertas de orientação sobre estilos de vida. Ainda como exemplo, a Sociedade Brasileira de Emergência e Trauma, de posse dos dados sobre os maiores fatores de risco para a morte e lesões violentas, entrou no âmbito das mídias e da sociedade civil sobre o abuso de álcool, uma droga legalizada. A Sociedade de Pediatria, depois de compreender o impacto da violência doméstica para o crescimento e o desenvolvimento passou a produzir material específico de orientação para todos os pediatras, colocando-os no rumo da ação promocional. Nos últimos anos, a Abrasco não encabeçou qualquer ação simbólica de promoção da saúde. Não que tenha sido de meu conhecimento. De duas uma: ou nós nos contentamos em dizer que são nossos dados que os instruem e que ação não é nossa atribuição; ou aceitamos que não há fronteiras entre as áreas; ou ainda admitimos que a clínica está incorporando, de vez, os conceitos de promoção e prevenção e as noções de risco e vulnerabilidade de forma muito mais ativa que a saúde coletiva, colocando-se em dia com as questões de saúde hoje emergentes e relevantes.

3. Por fim, os exemplos acima permitem indagar: por que não colocar na pauta de nossos debates a oportunidade de investigação e de práticas que juntem a clínica, a biologia e a saúde pública, tendo em vista a construção de um sujeito epistêmico mais complexo e menos fragmentado? As idéias já citadas de Lalonde (1996), Morin (1994) e algumas já coletivizadas nos espaços de avaliação da Abrasco (Minayo e Costa, 1998) nos ajudariam a dar consistência teórica a nossas pequenas ousadias. Mas sobretudo, por que não cometer uma ousadia um pouco maior, juntando, em um debate público, em um Congresso da Abrasco, por exemplo, biólogos, clínicos, ambientalistas e sanitaristas tomando como temas específicos a promoção frente ao quadro de morbi-mortalidade do país? Minha hipótese é de que a área tem maturidade para essa convocação.

Confesso-lhes que senti muita vontade de ousar essa abertura, quando fui presidente da Abrasco. Porém, o modelo tradicional de nossos encontros coletivos e formas participativas, e a pouca ressonância que percebi como retorno às minhas idéias me intimidaram de propor. A intuição que tenho, porém, é de que, não só enriqueceríamos o sujeito epistêmico da saúde coletiva, num tempo em que é cada vez maior o apagamento de fronteiras disciplinares em campos afins (Wallerstein, 1999), mas sobretudo, daríamos grande impulso ao sujeito histórico Abrasco, oxigenando e identificando cada vez melhor seu lugar no debate sociopolítico, no compromisso social, e também no concerto das ciências da vida.

Talvez muitos me dirão que se trata de um sonho impossível querer mexer na matéria dura que conformou o discurso e a prática da saúde coletiva. Argumentarei que não, pois foram companheiros nossos que redefiniram o rumo dessa área. Sua força vital, ainda em plena atividade, pode impulsionar um salto qualitativo, exacerbando o papel histórico de sujeitos individuais e coletivos, que mesmo conhecendo os constrangimentos, as determinações, as estruturas rígidas as usaram para ousar: "não sabendo que era impossível, foi lá e fez" (autor desconhecido).

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Maria Cecília de Souza Minayo 1 - minayo[arroba]terra.com.br

1 Vice-presidente de Ambiente, Comunicação e Informação, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Brasil, 4.365 - Pavilhão Mourisco, sala 18 - 21045-900 - Rio de Janeiro - RJ, Brasil



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