É possível prevenir a violência? Reflexões a partir do campo da saúde pública



1. Abstract

The authors debate the possibilities and difficulties of preventing the various forms of violence from the point of view of public health. They define terms like prevention, promotion of health and the complex concept of violence. They present the Brazilian context facing the serious problems that social violence means to the health area. They offer prevention proposals in course in diferents countries, including Brazil. They conclude that violence can be undone because it is a social and historical phenomenon which is constructed in society. Due to its complexity, any process of intervention should contain macro-structural, conjunctural, cultural, relational and subjective issues. At the same time, it should specify the problems, the risk factors and the possibilities of change.

Key words Violence; Prevention; Promotion of Health

2. Resumo

As autoras discutem sobre as possibilidades e dificuldades de prevenir as diferentes formas de violência a partir do campo da saúde pública. Conceituam as noções de prevenção, promoção da saúde e o complexo conceito de violência. Situam o contexto brasileiro diante dos graves problemas que a violência social significa para o setor saúde e apresentam propostas de prevenção em diferentes países, inclusive no Brasil, algumas já em andamento, outras ainda em fase de elaboração. Concluem que, por se tratar de um fenômeno histórico-social, construído em sociedade, a violência pode ser desconstruída. Dada a sua complexidade, qualquer processo de intervenção deve abranger questões macro-estruturais, conjunturais, culturais, relacionais e subjetivas, bem como focalizar a especificidade dos problemas, dos fatores de risco e das possibilidades de mudança.

Palavras-chave Violência; Prevenção; Promoção da Saúde

3. Introdução

Neste artigo pretendemos colocar em discussão a participação da saúde coletiva na abordagem teórica e prática da violência, sobretudo com os instrumentos que são mais caros ao campo como as noções de prevenção e promoção. Para isso buscaremos articular esses conceitos, assim como o de violência, tentando provocar um debate necessário na pauta tradicional do setor saúde, freqüentemente voltada para os termos biomédicos que dizem respeito à saúde física e à história natural das doenças.

Se é verdade que, a partir das décadas de 60 e 70, houve um grande esforço teórico-metodológico e político para compreender a saúde como uma questão complexa, com determinações sociais e condicionantes culturais, nunca um tema provocou tantas reticências para sua inclusão como o impacto da violência no setor. As razões são muitas. Algumas vêm do próprio âmbito onde historicamente o fenômeno tem sido tratado, o terreno do direito criminal e da segurança pública.

Desde que se constituíram, os Estados Modernos assumiram para si o monopólio legítimo do exercício da violência, retirando-a do arbítrio dos indivíduos, dos grupos e da sociedade civil, e entregando-a ao exército, às polícias e aos aparatos da justiça criminal (Burke, 1995). Outros motivos vêm do campo específico da saúde, terreno de quase monopólio do modelo médico e biomédico, cuja racionalidade tende a incorporar o social apenas como variável "ambiental" da produção das enfermidades. Ponto de vista que se coaduna com a forma como vêm se apresentando, também no paradigma da modernidade, as relações entre o conhecimento científico e a intervenção social, freqüentemente fragmentadas e desarticuladas. Sendo assim, mesmo quando politicamente se tenha assimilado ao setor o conhecimento ampliado de saúde, as práticas promocionais e assistenciais freqüentemente continuam se restringindo aos contornos paradigmáticos tradicionais.

Desta forma, entendemos que o tema da violência não entrou no setor saúde de forma natural. Ele se impôs e assim o fez por muitos fatores. Em primeiro lugar, apresentou-se dentro dos limites dos conceitos biomédicos. E, nesse sentido, parece que nossa argumentação é contraditória ao exposto anteriormente. Mas não o é, pois sua incorporação se dá sob condições de não romper a racionalidade médica positivista. Está incluído há muitos anos, na Classificação Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde (OMS) sob a denominação "Causas Externas". Esse grupo de causas que abrangia os códigos E800 a E999 da CID, em sua 9a revisão, assumiu os códigos V01 - Y98, na 10a revisão, para as análises de mortalidade (OMS, 1985; 1996). Para os estudos de morbidade, os eventos violentos, antes representados pelo capítulo 17 da CID-9, atualmente estão referidos nos códigos S e T da CID-10. O conceito de mortalidade por causas externas engloba homicídios, suicídios e acidentes fatais e o de morbidade recobre as lesões, envenenamentos, ferimentos, fraturas, queimaduras e intoxicações por agressões interpessoais, coletivas, omissões e acidentes.

A experiência de notificação por essa rubrica na CID e a divulgação comparativa mundial dos dados aí sintetizados têm permitido estudos das mais diferentes áreas do saber, propiciado propostas de políticas públicas e a compreensão da eficácia de determinadas intervenções. A própria OMS, que escolheu a prevenção de acidentes e traumas como tema do Dia Mundial da Saúde em 1993, repetia, por essa ocasião, uma frase de William Forge "desde tempos imemoriais, as doenças infecciosas e a violência são as principais causas de mortalidade prematura'' (OMS, 1993). Até há bem pouco tempo, porém, o setor saúde olhou para o fenômeno da violência, como um espectador, um contador de eventos, um reparador dos estragos provocados pelos conflitos sociais, tanto nas situações cotidianas como nas emergenciais provocadas por catástrofes, guerras, genocídios e terror político.

Essa visão começa a mudar na década de 60, numa das especialidades mais sensíveis do campo médico. A pediatria americana passa a estudar, diagnosticar e medicar a chamada síndrome do bebê espancado, colocando-a como um sério problema para o crescimento e o desenvolvimento infantil. Uma década depois, vários países também reconhecem, formalmente, os maus-tratos como grave problema de saúde pública. Assim, primeiro nos Estados Unidos e no Canadá, e depois em outras regiões, na década de 70, são criados programas nacionais de prevenção primária e secundária, além de centrais de denúncia, tornando público e passível de intervenção social um problema tradicionalmente e até então, considerado de foro privado. Para que isso ocorresse, muito contribuíram as sociedades de pediatria de vários países, já articuladas com setores da sociedade civil dedicados aos direitos da infância e da adolescência.

Outro fenômeno importante cuja influência contaminou o campo da saúde foi o movimento feminista. Sua filosofia e método de trabalho buscando sensibilizar as mulheres e a sociedade em geral sobre a violência de gênero, criando nova mentalidade e buscando implodir a cultura patriarcal, têm gerado mudanças essenciais nas abordagens do setor saúde. Desta forma, a violência fundamentada no gênero, incluindo agressões domésticas, mutilação, abuso sexual, psicológico e homicídios passam a fazer parte da agenda, não apenas para os cuidados assistenciais e pontuais oferecidos nas emergências hospitalares. Como objeto de prevenção e promoção da saúde a violência fundamentada no gênero, e que se expressa majoritariamente contra a mulher, se inclui na fundamentação do conceito ampliado de saúde que incorpora a compreensão e a mudança de atitudes, crenças e práticas; e na sua ação, vai além do diagnóstico e do cuidado das lesões físicas e emocionais. (Heise, 1994)

Em toda a sociedade ocidental, e mais particularmente no Brasil, é na década de 80 que o tema da violência entra com maior vigor na agenda de debates e no campo programático da saúde, tendendo a se consolidar no final dos anos 90. Em nosso país, tiveram papel fundamental para essa inclusão, os movimentos sociais pela democratização, as instituições de direito, algumas organizações não governamentais (ONGs) de atenção aos maus-tratos na infância, e as organizações internacionais com poder de influenciar as pautas nacionais. Não sem controvérsias. Não sem oposições que até hoje se expressam, com menos veemência, mas ainda fortes, sobretudo pelas formas de se impor ou se ignorar as prioridades politicamente relevantes: falta de adscrição de espaços institucionais na agenda pública e escassa destinação orçamentária para seu desenvolvimento.

O crescimento do interesse do setor para pensar, em seu interior, o fenômeno da violência pode ser de fato sintetizado, por um lado, na própria ampliação contemporânea da consciência do valor da vida e dos direitos de cidadania; de outro, nas observações sobre as mudanças no perfil de morbi-mortalidade no mundo e no país. A transição epidemiológica nacional, observada do ponto de vista da mortalidade, vem apontando para a substituição das antigas epidemias e das doenças infecciosas e parasitárias para um perfil onde as doenças do aparelho circulatório, as causas externas e os neoplasmas ocupam os três primeiros lugares, respectivamente.


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