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Quantitativo-qualitativo: oposição ou complementaridade? (página 2)

Helena de Oliveira, Maria Cecília de Souza Minayo

4. O quantitativo

A Descrição Matemática como uma Questão de Linguagem

O desenvolvimento da linguagem é uma etapa fundamental na evolução do controle deliberado e consciente das circunstâncias ambientais. A fala exerce um papel vital na rápida transmissão de grandes quantidades de informação entre os diferentes elementos de um grupo. Quando se atinge o estágio da escrita, cria-se, então, a possibilidade do registro permanente, revisado e acumulado. A modificação consciente e intencional da linguagem para servir a propósitos deliberados é uma etapa posterior do processo.

Aqueles que acompanham e operam na evolução das idéias e do conhecimento sabem que a situação atual da investigação científica é urgente: os trabalhos científicos são produzidos a uma taxa sempre crescente, tornando-se constantemente mais difícil acompanhar lado a lado os novos desenvolvimentos, tanto na própria área de interesse específico quanto no âmbito inter e multidisciplinar, independentemente da existência de meios eletrônicos para armazenamento da informação.

Nas áreas denominadas ciências exatas, nos últimos 3 séculos tem havido consideráveis avanços a este respeito, já existindo, atualmente, todos os pré-requisitos para o manuseio do crescimento acelerado do conhecimento, principalmente o da linguagem, conforme acentua Bailey (1967).

De fato, a título de ilustração, consideremos aquela que parece ser a mais antiga das ciências exatas: a Astronomia. É bem conhecido o fantástico conhecimento adquirido pelos astrônomos da Babilônia e do Egito antigo, não só envolvendo a observação prolongada e precisa dos eventos, mas também desenvolvendo a habilidade para se distinguir padrões de mudanças, sobre cuja base puderam criar um calendário suficientemente preciso, que permitiu o desenvolvimento de atividades que, modernamente, constituem o cerne da economia agrícola.

Na verdade, para se alcançar tais resultados era necessário mais que observar os acontecimentos e registrar luz e calor nos dias de verão, ou luz esmaecida e dias frios no inverno. A observação de padrões reconhecíveis e a determinação e mensuração de suas posições eram essenciais. A manipulação e o registro de tais medidas com propósitos de predição implicavam a existência de uma linguagem e de uma escrita adequadas. Não é, pois, por um acidente que a matemática babilônica e egípcia possuía as qualidades suficientes para atender a tais necessidades.

A lição fundamental que se pretende extrair da lembrança histórica de tal fato de conhecimento de todos é que, mesmo no chamado Mundo Antigo, um conhecimento considerado suficientemente preciso não teria sido atingido e aplicado sem as noções básicas de contar e medir, acompanhadas de um adequado instrumento matemático para manipulá-las.

Isto parece corroborar nosso ponto de vista de que uma interação entre pensamento e linguagem e, conseqüentemente, seu desenvolvimento mútuo são pautados por uma correspondente interdependência entre pensamento e matemática, quando nos dispomos a usá-la para propósitos de maior precisão de expressão.

A despeito dos grandes avanços na Biologia Molecular e na Engenharia Genética, reconhecemos, no entanto, que nas chamadas soft sciences da Biologia, Psicologia, Sociologia, etc., o progresso tem sido mais incerto. Uma razão para este fato é que os sujeitos da pesquisa, nestas áreas, são muito mais variáveis e complexos que aqueles das denominadas Ciências Exatas.

No entanto, à medida que as observações e mensurações tornam-se mais acuradas e extensivas, no âmbito das soft sciences tem surgido a oportunidade de se usar a linguagem matemática para descrever, representar ou interpretar a multidiversidade de formas vivas e suas possíveis inter-relações.

A questão fundamental, porém, é decidir que espécies de arrazoados matemáticos são relevantes para determinados problemas, que limitações estão impostas e como tais métodos podem ser ampliados e generalizados. Não se pode perder de vista que o uso da linguagem matemática leva a descrições e modelos idealizados, uma construção abstrata que, na prática, na melhor das situações, será observada apenas parcialmente.

Quanto mais complexo for o fenômeno sob investigação, maior deverá ser o esfoço para se chegar a uma quantificação adequada, em parte porque algumas atividades são inerentemente difíceis de serem mensuradas e quantificadas e, em parte, porque, até o presente momento, descrições matemáticas excessivamente complicadas são extremamente intratáveis, do ponto de vista de solução, para que tenham algum valor prático.

Deve, então, ser exercitada uma considerável habilidade no julgamento de quais fatores são relevantes, ou pelo menos aproximadamente relevantes, para um determinado problema.

A realidade, porém, é que nos defrontamos com uma situação conflitante, que requer realismo e manejabilidade. Uma descrição extremamente precisa de todos os fatos conhecidos, por exemplo, a respeito da evolução de uma espécie, pode impedir qualquer representação matemática útil. Por outro lado, uma supersimplificação do quadro matemático utilizado poderia permitir, com grande facilidade, o cálculo numérico de certos coeficientes, mas isto seria, ou poderia ser, totalmente infrutífero, porque muitos fatos relevantes teriam que ser omitidos.

Este é, certamente, um dos dilemas presentes no moderno trabalho de investigação como um todo, não se restringindo, portanto, à investigação biológica, médica ou social.

O Papel da Teoria de Propabilidade e da Inferência Estatística

Todos nós sabemos que características individuais tais como peso, altura, pressão arterial, taxas de componentes bioquímicos no sangue, resposta a estímulos externos, etc., variam entre indivíduos de um grupo num dado instante e, num mesmo indivíduo, de instante para instante. Ordem e regularidade só podem ser estabelecidas, de forma aproximada, em termos médios e sobre um grande número de indivíduos.

Nossa impossibilidade de predizer antecipadamente, e com certeza, os resultados de um experimento em sucessivas repetições, sempre sob as mesmas condições, caracteriza-se como um experimento aleatório. A variabilidade presente, nestas condições, é chamada variabilidade aleatória, casual, randômica ou estocástica.

Em matemática, o instrumento adequado para trabalhar o aleatório é um conjunto de procedimentos que constitui a chamada teoria da probabilidade. Para todo evento aleatório é possível associar uma ou mais variáveis, ditas variáveis aleatórias (função definida no espaço amostral do experimento aleatório em questão), e para cada variável aleatória (ou conjunto de variáveis aleatórias) é possível encontrar uma função que descreva a distribuição de probabilidades para a referida variável (ou conjunto de variáveis), dita função densidade de probabilidade.

O uso de distribuições de probabilidade para descrever padrões biológicos, médicos ou sociais não é recente. Quetelet (1835) já havia utilizado as propriedades da distribuição de Gauss para descrever padrões de altura de seres humanos; Galton (1889), um médico inglês, havia utilizado as propriedades da mesma distribuição nos estudos de genética sobre herança natural, tendo sido o criador da teoria de análise de dados largamente utilizada em estatística e conhecida sob o rótulo de regressão linear.

É importante observar que as distribuições de probabilidade estão fundamentalmente associadas a conceitos matemáticos, embora sejam derivadas das noções comuns de chance e possibilidade, estabelecidas pelo senso comum, e as conclusões devam ser interpretadas em sentido prático.

Ao construirmos um quadro matemático válido de alguns fenômenos com fortes flutuações aleatórias, introduzimos idéias de probabilidades e usamos a teoria da probabilidade para desenvolver as implicações práticas da mesma. Se o modelo é razoavelmente satisfatório, pelo menos a algum respeito, então as implicações devem ser verificadas na prática. Isto é, as conclusões matemáticas devem mostrar um certo grau de aproximação ou aderência às observações que são feitas e aos resultados obtidos para o fenômeno em questão.

É função da estatística estabelecer a relação entre o modelo teórico proposto e os dados observados no mundo real, produzindo instrumentos para testar a adequação do modelo. Em resumo, enquanto a teoria da probabilidade está dentro da esfera da lógica dedutiva, a estatística encontra-se no âmago da lógica indutiva, conforme explicita Bailey (1967).

A grande potencialidade dos procedimentos estatísticos de análise de dados, na presença de variabilidade aleatória está contida na possibilidade de se estabelecer inferência, neste caso chamada inferência estatística.

Uma das aplicações da inferência estatística é o teste de ajuste — também chamado teste de aderência (em inglês, goodness of fit) — de um modelo teórico proposto ao conjunto de dados observados.

Formalmente, dois são os grandes problemas estatísticos de natureza inferencial: os problemas de estimação de parâmetros e os problemas de testes de hipóteses estatísticas.

As questões de inferência estatística que deram origem à denominada estatística matemática surgiram de modo mais formal com os trabalhos, quase simultâneos (e às vezes polêmicos), de Sir Ronald A. Fischer e da dupla J. Neyman e E. S. Pearson, na década 20-30 (Neyman, 1976; Neyman & Pearson, 1967; Fischer, 1934), sendo brilhantemente unificadas num contexto de teoria das decisões por A. Wald (Wald, 1950).

Um grande avanço tem sido conseguido nas ciências da saúde, e em particular na Epidemiologia, com a criação de alguns procedimentos inferenciais estatísticos, específicos para determinados desenhos de estudo. No entanto, tem ocorrido um certo abuso na utilização de tais procedimentos por parte de muitos pesquisadores desta área, que, desconhecendo ou intencionalmente ignorando as limitações impostas a tais procedimentos pelos pressupostos sobre os quais se assentam, extrapolam sua aplicações, deixando sob suspeita os resultados da análise conduzida (Altman, 1991). Isto ocorre principalmente nos testes de hipóteses estatísticas, em particular com o abuso do chamado "p-valor" como uma medida de evidência em relação à hipótese de nulidade (Miettinen, 1985; Stephen et al., 1988; Berger & Selke, 1987; Goodman & Royall; 1985). Os estatísticos encontram-se atualmente na situação dos bioquímicos e dos farmacólogos: não se sentem responsáveis pelo uso indevido e abusivo de seus produtos. Não são procedentes as críticas feitas à Estatística; elas devem ser dirigidas aos maus usuários.

Associadas às questões de inferência estatística temos as questões de amostragem. Em regra, aqui também há um desconhecimento quase geral, por parte dos não-especialistas, a respeito do papel da amostragem, sua relação com a inferência e, conseqüentemente, os pressupostos básicos que devem nortear a opção por um determinado desenho de amostragem e um tamanho específico da amostra. Esta não é uma questão apenas técnica, relacionada à definição do tamanho da amostra; não é uma questão meramente estatística ou para deixar para o estatístico resolver. Pesquisadores experimentados na área das ciências humanas (aqui incluindo as ciências da saúde) não podem ignorar, e muito menos esquecer, que as questões de amostragem são parte integrante das questões gerais de desenho da investigação.

5. O qualitativo, suas potencialidades e suas limitações

O Social como um Mundo de Significados Passível de Investigação

Ao inscrever, no item anterior, a descrição matemática como uma questão de linguagem, Sanches afirma que "quanto mais complexo é o fenômeno sob investigação, maior deverá ser o esforço para se chegar a uma quantificação adequada". Em seguida, o autor relativiza as "descrições matemáticas complicadas" como sendo "extremamente intratáveis", devendo o investigador defrontar-se com situações conflitantes entre realismo e manejabilidade.

A reflexão de Sanches ajuda a introduzir o estudo sobre as potencialidades e os limites do método qualitativo, dentro de uma discussão epistemológica mais ampla.

Uma das questões colocadas sobre a cientificidade das ciências sociais diz respeito à plausibilidade de se tratar de uma realidade na qual tanto investigadores como investigados são agentes: esta ordem de conhecimento não escaparia radicalmente a toda possibilidade de objetivação?

Para responder a esta pergunta, uma corrente de estudiosos das áreas humano-sociais, como Durkheim (1978), tem se munido de dois argumentos metodológicos: a) é possível traçar uniformidades e encontrar regularidades no comportamento humano; e b) regularidades predizíveis existem em qualquer fenômeno humano-cultural e podem ser estudadas sem levar em conta apenas motivações individuais.

Outros cientistas, porém, tentam encaminhar a discussão de forma diferente, questionando se, ao buscar instrumentos de objetivação do social apenas através da quantificação das uniformidades e regularidades, não se estaria descaracterizando o que há de essencial nos fenômenos e nos processos sociais.

No início do século XX, em Chicago, Estados Unidos, e no final do século XIX, em Heidelberg, Alemanha, surgia uma escola sociológica que se rebelava radicalmente contra a tentativa de analogia entre ciências naturais e ciências sociais. Seu fundamento residia na argumentação de que as ciências sociais privam-se da sua própria essência quando se abstêm de examinar a estrutura motivacional da ação humana.

O desenvolvimento desta segunda corrente, em oposição ao positivismo, deveu-se a estudiosos como Wilhelm Dilthey, embora certas de suas raízes possam ser encontradas em Hegel, Marx e, até, Vico. Quem deu maior consistência metodológica a esta reflexão, no entanto, foi Max Weber. É de Weber a afirmação de que cabe às ciências sociais a compreensão do significado da ação humana, e não apenas a descrição dos comportamentos. Weber também afirma que o elemento essencial na interpretação da ação é o dimensionamento do significado subjetivo daqueles que dela participam (Weber, 1970).

Da mesma forma, William Thomas (1970), um dos pais da sociologia norte-americana, avançou na elaboração do clássico teorema segundo o qual é essencial, no estudo dos seres humanos, descobrir como eles definem as situações nas quais se encontram, porque "se eles definem situações como reais, elas são reais em suas conseqüências" (1970: 245-247).

O que Weber e Thomas afirmaram tornou-se hoje um axioma da investigação dos "objetos" sociais. A compreensão de que os seres humanos respondem a estímulos externos de maneira seletiva, bem como de tal seleção é poderosamente influenciada pela maneira através da qual eles definem e interpretam situações e acontecimentos, passou a complicar o raciocínio sobre a cientificidade enquanto modelo já construído.

A corrente compreensivista — mãe das abordagens qualitativas — ganhou legitimidade à medida que métodos e técnicas foram sendo aperfeiçoados para a abordagem dos problemas humanos e sociais. No entanto, persistem muitas questões, complexas e profundas, que se tornam posições intelectuais e ideológicas frente aos interrogantes teóricos, metodológicos capazes de abranger os objetos com mais profundidade.

O positivismo de Comte (1978) e Durkheim (1978), por exemplo, tem defendido que a única forma científica de apreender o social é a observação dos dados da experiência, isto é, dos caracteres exteriores, objetivamente manifestos nos fatos: "a posição epistemológica de base do positivismo", dizem Bruyne et al. (1991), "é a recusa da apreensão imediata da realidade, da compreensão subjetiva dos fenômenos, da pesquisa intuitiva de suas essências". A atitude positivista é caracterizada, quanto ao método, pela subordinação da imaginação à observação (Comte, 1978). Os fatos são valorizados pelas suas características exteriores, como bem o descreve Durkheim (1978): "é coisa todo objeto de conhecimento que não é naturalmente penetrável pela inteligência (...) e que o espírito só pode chegar a compreender com a condição de sair de si mesmo, por meio de observações e de experimentações". Assim, resumindo, a abordagem positivista limita-se a observar os fenômenos e fixar as ligações de regularidade que possam existir entre eles, renunciando a descobrir causas e contentando-se em estabelecer as leis que os regem. A lógica que preside esta linha de atividade é de caráter comparativo e exterior aos sujeitos. O positivismo não nega os significados, mas recusa-se a trabalhar com eles, tratando-os como uma realidade incapaz de se abordar cientificamente.

Um dos marcos históricos a favor desta corrente foi a tese de Doutorado de Samuel Stouffer, em 1930, na Universidade de Chicago (naquela ocasião, o templo norte-americano da abordagem qualitativa), com o título "An Experimental Comparison of Statistical and Case History Methods of Attitude Research" (1931). Tal tese ensejou um amplo debate acadêmico sobre a propriedade dos métodos quantitativos e qualitativos nas ciências sociais, redundando numa clara prioridade a favor da abordagem estatística, porque: a) foi considerada mais rápida, mais fácil de ser viabilizada e capaz de abranger um número maior de casos; e b) as análises qualitativas foram consideradas, quando muito, estudos heurísticos, pré-científicos, subjetivistas ou, até, "reportagens malfeitas".

Ora, o debate da década de 30 não se encerrou; pelo contrário, continua ainda hoje em todos os centros de reflexão sobre o social. Os motivos que fundamentaram a crítica de Stouffer, no entanto, estão muito mais relacionados ao pouco desenvolvimento de métodos e técnicas compatíveis do que com a própria natureza do conhecimento. E é neste sentido que, ao contrário do positivismo, a sociologia compreensiva coloca o aprofundamento do "qualitativo" inerente ao social, enquanto possibilidade e único quadro de referência condizente e fundamental das ciências humanas no presente.

Neste debate, como já se mencionou, W. Dilthey (1956) separa as ciências físicas e as ciências humanas com um recorte fundamental. Para ele, nas ciências físicas é possível procurarmos explicações e lidarmos com a compreensão dos fenômenos através da análise de seus significados. Nas primeiras estabelecem-se leis causais; nas segundas, configurações e interpretações.

Weber (1970) elabora a tarefa qualitativa como a procura de se atingir precisamente o conhecimento de um fenômeno histórico, isto é, significativo em sua singularidade.

É no campo da subjetividade e do simbolismo que se afirma a abordagem qualitativa. A compreensão das relações e atividades humanas com os significados que as animam é radicalmente diferente do agrupamento dos fenômenos sob conceitos e/ou categorias genéricas dadas pelas observações e experimentações e pela descoberta de leis que ordenariam o social.

A abordagem qualitativa realiza uma aproximação fundamental e de intimidade entre sujeito e objeto, uma vez que ambos são da mesma natureza: ela se volve com empatia aos motivos, às intenções, aos projetos dos atores, a partir dos quais as ações, as estruturas e as relações tornam-se significativas.

No entanto, não se assume aqui a redução da compreensão do outro e da realidade a uma compreensão introspectiva de si mesmo. É por isso que, na tarefa epistemológica de delimitação qualitativa, há de se superar tal idéia, buscando uma postura mais dialética dentro daqueles três aspectos descritos por Bruyne et al. (1991): a) o movimento concreto, natural e sócio-histórico da realidade estudada (sentido objetivo); b) a lógica interna do pensamento enquanto sentido subjetivo; e c) a relação entre o objeto real visado pela ciência, o objeto construído pela ciência e o método empregado (sentido metodológico).

É necessário buscar o auxílio de pensadores como Habermas (1987), para quem "uma teoria dialética da sociedade procede de maneira hermenêutica. Nela, a compreensão do sentido é constitutiva. Tira suas categorias primeiro da consciência que têm da situação os próprios indivíduos em ação. No sentido objetivo do meio social, articula-se o sentido sobre o qual se insere a interpretação sociológica, ao mesmo tempo identificadora e crítica".

Em outras palavras, do ponto de vista qualitativo, a abordagem dialética atua em nível dos significados e das estruturas, entendendo estas últimas como ações humanas objetivadas e, logo, portadoras de significado. Ao mesmo tempo, tenta conceber todas as etapas da investigação e da análise como partes do processo social analisado e como sua consciência crítica possível. Assim, considera os instrumentos, os dados e a análise numa relação interior com o pesquisador, e as contradições como a própria essência dos problemas reais (Minayo, 1982).

Voltando ao ponto inicial sobre as indagações espistemológicas de tal abordagem, dir-se-ia que a cientificidade tem que ser pensada aqui como uma idéia reguladora de alta abstração, e não como sinônimo de modelos e normas rígidas. Na verdade, o trabalho qualitativo caminha sempre em duas direções: numa, elabora suas teorias, seus métodos, seus princípios e estabelece seus resultados; noutra, inventa, ratifica seu caminho, abandona certas vias e toma direções privilegiadas. Ela compartilha a idéia de "devir" no conceito de cientificidade.

Definir o nível de simbólico, dos significados e da intencionalidade, constituí-lo como um campo de investigação e atribuir-lhe um grau de sistematicidade pelo desenvolvimento de métodos e técnicas têm sido as tarefas e os desafios dos cientistas sociais que trabalham com a abordagem qualitativa ao assumirem as críticas interna e externa exercidas sobre suas investigações.

Linguagem e Prática: Matérias Primas da Abordagem Qualitativa

Segundo Granger (1982), a realidade social é qualitativa e os acontecimentos nos são dados primeiramente como qualidades em dois níveis: a) em primeiro lugar, como um vivido absoluto e único incapaz de ser captado pela ciência; e b) em segundo lugar, enquanto experiência vivida em nível de forma, sobretudo da linguagem que a prática científica visa transformar em conceitos.

Falando dentro do campo sociológico, Gurvitch (1955) diferencia também dois níveis de experiência em constante comunicação: a) o "ecológico, morfológico, concreto", que admite expressão em cifras, equações, medidas, gráficos e estatísticas; e b) o das "camadas mais profundas", que se refere ao mundo dos símbolos, dos siginificados, da subjetividade e da intencionalidade.

É exatamente esse nível mais profundo (em constante interação com o ecológico) — o nível dos significados, motivos, aspirações, atitudes, crenças e valores, que se expressa pela linguagem comum e na vida cotidiana — o objeto da abordagem qualitativa.

Por trabalhar em nível de intensidade das relações sociais (para se utilizar uma expressão kantiana), a abordagem qualitativa só pode ser empregada para a compreensão de fenômenos específicos e delimitáveis mais pelo seu grau de complexidade interna do que pela sua expressão quantitativa. Adequa-se, por exemplo, ao estudo de um grupo de pessoas afetadas por uma doença, ao estudo do desempenho de uma instituição, ao estudo da configuração de um fenômeno ou processo. Não é útil, ao contrário, para compor grandes perfis populacionais ou indicadores macroeconômicos e sociais. É extremamente importante para acompanhar e aprofundar algum problema levantado por estudos quantitativos ou, por outro lado, para abrir perspectivas e variáveis a serem posteriormente utilizadas em levantamentos estatísticos.

O material primordial da investigação qualitativa é a palavra que expressa a fala cotidiana, seja nas relações afetivas e técnicas, seja nos discursos intelectuais, burocráticos e políticos.

Segundo Bakhtin (1986), existe uma ubiqüidade social nas palavras. Elas são tecidas pelos fios de material ideológico; servem de trama a todas as relações sociais; são o indicador mais sensível das transformações sociais, mesmo daquelas que ainda não tomaram formas; atuam como meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas; são capazes de registrar as fases transitórias mais íntimas e mais efêmeras das mudanças sociais.

Nestes termos, a fala torna-se reveladora de condições estruturais, de sistemas de valores, normas e símbolos (sendo ela mesma um deles), e, ao mesmo tempo, possui a magia de transmitir, através de um porta-voz (o entrevistado), representações de grupos determinados em condições históricas, sócio-econômicas e culturais específicas.

Uma das indagações mais freqüentes no campo da pesquisa é a que se refere à representatividade da fala individual em releção a um coletivo maior. Tal indagação constituía uma preocupação de Bourdieu (1972) quando este definiu o conceito de habitus, segundo o qual a identidade de condições de existência tende a produzir sistemas de disposições semelhantes, através de uma harmonização objetiva de práticas e obras: "cada agente, ainda que não saiba ou não queira, é produtor e reprodutor do sentido objetivo, porque suas ações são o produto de um modo de agir do qual ele não é o produtor imediato, nem tem o domínio completo". Daí a possibilidade de se exercer, na análise da prática social, o efeito da universalização e da particularização (180).

O referido autor define o conceito de habitus da seguinte maneira: "um sistema de disposições duráveis e intransferíveis que integra todas as experiências passadas e funciona a todo momento como matriz de preocupações, apreciações e ações (...) o inconsciente da história que a história produz, incorporando as estruturas objetivas" (Bourdieu, 1972).

No mesmo sentido, existe um comentário feliz de Sapir (1967) quando diz que o "indivíduo concretiza, sob mil formas possíveis, idéias e modos de comportamento implicitamente inerentes às estruturas ou às tradições de uma dada sociedade". O autor acrescenta que "se um testemunho individual é comunicado, isto não quer dizer que se considera tal indivíduo precioso em si mesmo. Essa entidade singular é tomada como amostra da continuidade de seu grupo" (Sapir, 1967:90).

Resumindo, para Goldmann (1980), "a consciência coletiva só existe nas consciências individuais, embora não seja a soma dessas últimas".

Sociologicamente, diferente do que se passa com a Psicologia, a análise das palavras e das situações expressas por informantes personalizados não permanece, pois, nos significados individuais. A compreensão intersubjetiva requer a imersão nos significados compartilhados. Sociólogos e antropólogos têm desmonstrado que a função essencial das normas culturais é prover os membros de um grupo ou sociedade com definições de situação intelegiveis e intercambiáveis no coletivo. Sem isso, a vida social seria impossível.

Portanto, se um estudioso do social astá apto a entender a linguagem e a definição da situação típica de um grupo, estrato ou sociedade — respondendo às indagações tradicionais da ciência —, ele está apto também a predizer as respostas desse grupo com um certo grau de probabilidade.

As considerações acima encaminham-se para questões de ordem prática, sobretudo em relação à representatividade da fala e da observação das práticas, das instituições e do "evasivo da vida cotidiana".

O confronto da fala e da prática social é tarefa complementar e concomitante da investigação qualitativa, que, no entanto, em alguns casos, limita-se ao material discursivo. Em particular, as abordagens etnográficas não dispensam as etapas de observação e convivência no campo.

A ênfase quase absoluta na fala como material de análise transforma a questão da descoberta e da validade em habilidade de manipulação dos signos. Ela está fundamentada na crença de que a "verdade" dos significados situa-se nos meandros profundos da significação dos textos.

Ao contrário, o ensinamento fundamental da Antropologia é o cotejamento da fala, com a observação das condutas e dos costumes e com a análise das instituições. Checar o que é dito com o que é feito, com o que é celebrado e/ou está cristalizado. Desta forma, uma análise qualitativa completa interpreta o conteúdo dos discursos ou a fala cotidiana dentro de um quadro de referência, onde a ação e a ação objetivada nas instituições permitem ultrapassar a mensagem manifesta e atingir os significados latentes.

Há vários métodos e técnicas de análise do material qualitativo. E, assim, como observa Sanches a respeito do uso da estatística, há trabalhos bem-feitos ou malfeitos. Há investigadores que não passam além do que Bourdieu (1972) denomina "ilusão da transparência", da repetição do que ouve e vê no trabalho de campo. Tal procedimento não pode ser atribuído ao método em si, mas ao seu uso superficial e pobre. Segundo Granger (1982), um verdadeiro modelo qualitativo descreve, compreende e explica, trabalhando exatamente nesta ordem.

Para Nicole Ramognino (1982), um trabalho de conhecimento social tem que atingir três dimensões: a simbólica, a histórica e a concreta. A dimensão simbólica contempla os significados dos sujeitos; a histórica privilegia o tempo consolidado do espaço real e analítico; e a concreta refere-se às estruturas e aos atores sociais em relação.

6. Conclusões

Propositalmente, não se entrou, neste trabalho, nas questões específicas da área da saúde, uma vez que a pretensão do texto era ser introdutório de uma problemática que concerne e ultrapassa o campo. No entanto, é certo que, hoje, os objetos de investigação, tanto dos professores como dos pós-graduandos em Saúde Pública da Ensp, vinculam-se metodologicamente aos temas aqui tratados, fato conhecido através do desenvolvimento das linhas de pesquisa e dos projetos de tese.

A intenção dos autores, portanto, é apenas dar um pontapé inicial num debate que consideram extremamente relevante e indiscutivelmente possível e promissor.

Consideram que, do ponto de vista metodológico, não há contradição, assim como não há continuidade, entre investigação quantitativa e qualitativa. Ambas são de natureza diferente.

A primeira atua em níveis da realidade, onde os dados se apresentam aos sentidos: "níveis ecológicos e morfológicos", na linguagem de Gurvitch (1955).

A segunda trabalha com valores, crenças, representações, hábitos, atitudes e opiniões.

A primeira tem como campo de práticas e objetivos trazer à luz dados, indicadores e tendências observáveis. Deve ser utilizada para abarcar, do ponto de vista social, grandes aglomerados de dados, de conjuntos demográficos, por exemplo, classificando-os e tornando-os inteligíveis através de variáveis.

A segunda adequa-se a aprofundar a complexidade de fenômenos, fatos e processos particulares e específicos de grupos mais ou menos delimitados em extensão e capazes de serem abrangidos intensamente.

Do ponto de vista epistemológico, nenhuma das duas abordagens é mais científica do que a outra. De que adianta ao investigador utilizar instrumentos altamente sofisticados de mensuração quando estes não se adequam à compreensão de seus dados ou não respondem a perguntas fundamentais? Ou seja, uma pesquisa, por ser quantitativa, não se torna "objetiva" e "melhor", ainda que prenda à manipulação sofisticada de instrumentos de análise, caso deforme ou desconheça aspectos importantes dos fenômenos ou processos sociais estudados. Da mesma forma, uma abordagem qualitativa em si não garante a compreensão em profundidade.

Esta observação torna-se necessária para rebater a tese de vários estudiosos que, do ponto de vista científico, colocam, numa escala, a abordagem quantitativa como sendo a mais perfeita, classificando estudos qualitativos apenas como "subjetivismo", "impressões" ou, no máximo, "atividades exploratórias".

Não cabe neste espaço desenvolver o tema, mas, tanto do ponto de vista quantitativo quanto do ponto de vista qualitativo, é necessário utilizar todo o arsenal de métodos e técnicas que ambas as abordagens desenvolveram para que fossem consideradas científicas.

No entanto, se a relação entre quantitativo e qualitativo, entre objetividade e subjetividade não se reduz a um continuum, ela não pode ser pensada como oposição contraditória. Pelo contrário, é de se desejar que as relações sociais possam ser analisadas em seus aspectos mais "ecológicos" e "concretos" e aprofundadas em seus significados mais essenciais. Assim, o estudo quantitativo pode gerar questões para serem aprofundadas qualitativamente, e vice-versa.

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Maria Cecilia de S. MinayoI; Odécio SanchesII - minayo[arroba]terra.com.br

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