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Seguimento de crianças com desnutrição moderada ou grave em população periférica (Brasil) (página 2)

Clécio H. da Silva; Elsa R. J. Giugliani

4. Material e Métodos

Um grupo de 61 mães ou substitutas de crianças com desnutrição moderada (relação peso/idade entre 61 e 75%) ou grave (relação peso/idade < 60%), de acordo com os padrões estabelecidos por Marques e col.9, foi entrevistado nos anos de 1984 e 1985, com o objetivo de identificar fatores de alto risco para desnutrição moderada ou grave numa população urbana periférica.

As crianças, todas menores de 5 anos na época, foram selecionadas aleatoriamente na Unidade Sanitária Vila Cruzeiro do Sul, localizada em Porto Alegre, RS. Deste grupo inicial de 61 crianças, 46 (75,4%) apresentavam desnutrição moderada e 15 (24,6%) desnutrição grave.

Transcorridos no mínimo 22 e no máximo 52 meses da primeira entrevista, tentou-se localizar o grupo de crianças desnutridas para reavaliação. As 39 mães ou substitutas (63,9%), que puderam ser localizadas, foram entrevistadas utilizando-se questionário padronizado contendo perguntas a respeito da participação das crianças em programas de apoio nutricional, além de questões que visavam à pesquisa de fatores que pudessem interferir na evolução do estado nutricional do grupo em estudo.

As crianças desnutridas que foram localizadas e seus irmãos menores de 5 anos foram pesados com balança de haste portátil marca Cauduro, e medidas com antropômetro de madeira (crianças até 2 anos de idade) ou fita métrica, quanto ao seu comprimento ou à sua altura respectivamente. As relações peso/idade e altura (ou comprimento)/idade foram calculadas utilizando-se como referência a tabela nível IV de Marques e col.9. Para fins de comparação com outros trabalhos realizados na mesma área do presente estudo, utilizou-se a classificação de desnutrição proposta por Waterlow16, que considera baixas as crianças com altura (ou comprimento) igual ou menor que 95% do padrão para a idade e leves as com peso igual ou menor que 90% do padrão para a altura. A classificação socioeconômica utilizada foi a de Graciano7, que leva em consideração o número de membros da família, a escolaridade e a profissão dos pais, o tipo de habitação e a renda familiar.

Para a análise estatística foi utilizado o teste do qui-quadrado, aceitando-se como significante um p < 0.05.

5. Resultado

Das 61 mães ou substitutas que foram entrevistadas inicialmente, 22 (36,1%) não puderam ser localizadas. Segundo informações de vizinhos, 6 dessas famílias teriam se mudado para o interior do Estado. Dentre as famílias encontradas, 15 (38,5%) haviam mudado de domicílio pelo menos uma vez. Comparando o grupo que foi submetido à segunda avaliação com o grupo que não foi localizado, não houve diferença estatisticamente significante quanto ao sexo, à idade, ao grau de desnutrição, à classificação socioeconômica das crianças e à idade na detecção da desnutrição.

Das 39 crianças cuja evolução foi conhecida, 4 (10.3%) foram a óbitos. Infelizmente as famílias haviam extraviado os atestados de óbitos e não sabiam informar a causa imediata da morte. Porém houve o relato de meningite tuberculosa em 2 desses casos.

A idade média das 35 crianças (18 meninas e 17 meninos) sobreviventes na segunda avaliação foi de 67,4 ± 18,4 meses. A Figura 1 apresenta o estado nutricional das crianças estudadas, na primeira e na segunda avaliação, segundo o peso para a idade. Nenhuma criança apresentou desnutrição grave na segunda avaliação e 6 (17,1%) passaram a ter peso adequado para a idade. A Figura 2 mostra as diferenças na relação peso/idade das crianças entre a primeira e a segunda avaliação. A maioria (62,9%) teve um incremento maior que 10% na relação peso/idade e uma minoria (14,3%) teve a relação diminuída.

Aproximadamente metade das crianças reavaliadas participou de programas de suplementação alimentar. Considerando como incremento segnificativo de peso uma variação na relação peso/idade maior que 10 pontos percentuais, as crianças que participaram de algum programa de apoio nutricional não diferiram das demais quanto ao incremento de peso no período estudado (Tabela 1).

Pouco mais da metade das famílias estudadas (57,9%) manteve a mesma classificação socioeconômica entre a primeira e a segunda avaliação. Praticamente 1/4 (21%) das crianças melhorou de nível socioeconômico segundo a classificação utilizada e o restante (21%) passou a um nível inferior. A mudança da classificação socioeconômica não influiu no incremento de peso das crianças desnutridas (Tabela 2).

Cerca de metade das crianças avaliadas (51,4%) teve pelo menos uma hospitalização no período do seguimento. As crianças hospitalizadas tiveram um incremento de peso significantemente maior que as não hospitalizadas (Tabela 3).

Quando comparadas as crianças cuja desnutrição foi detectada os primeiros 6 meses de idade com as demais observou-se que as primeiras apresentaram um incremento de peso significativamente maior (Tabela 4).

A Figura 3 mostra as relações altura/idade e peso/altura das crianças na segunda avaliação. Infelizmente não foi possível a comparação com os índices anteriores por não se dispor da altura das crianças na época da primeira entrevista. A Tabela 5 apresenta as associações existentes entre baixa estatura (altura/idade < 95%) e peso inadequado para a altura (peso/altura < 90%) com algumas variáveis estudadas. As crianças cuja desnutrição foi detectada precocemente (até os 6 meses) possuíam, na segunda avaliação, uma altura mais adequada para a idade. Por outro lado, aquelas que tiveram pelo menos uma hospitalização ou cujas mães ou substitutas eram alfabetizadas apresentaram uma relação peso/altura mais adequada.

Das 39 crianças que foram reavaliadas, 28 tinham irmãos menores de 5 anos, perfazendo um total de 39 irmãos. A Tabela 6 mostra o resultado das avaliações antropométricas realizadas nessas crianças. Cerca de 80% delas apresentavam algum grau de desnutrição segundo o peso para a idade, 2/3 tinham baixa estatura, porém a maioria (76,9%) tinha um peso adequado para a altura. Os irmãos das crianças que participaram de programas de apoio nutricional não apresentaram melhor estado nutricional que os demais (Tabela 7).

6. Discussão

É bem conhecido o fato de que crianças desnutridas apresentam uma maior morbimortalidade2. Uma pesquisa realizada pela Organização Panamericana de Saúde, em 12 cidades das Américas mostrou que a desnutrição, embora nem sempre registrada nos atestados de óbito, é a principal causa básica ou associada de mortalidade infantil em populações de baixa renda11. O mesmo estudo apontou a desnutrição da criança ou da mãe como a principal responsável pela mortalidade infantil em 3 cidades brasileiras. Os resultados do presente trabalho vieram corroborar com os dados já existentes na literatura. A mortalidade no grupo estudado foi de 103/1000, taxas 5 vezes maior que a observada para crianças de 1 a 5 anos no Brasil (24/1000)14. Paralelamente à alta mortalidade foi observada uma elevada morbidade, visto que metade das crianças foi hospitalizada pelo menos uma vez entre a detecção da desnutrição e a avaliação posterior. Fato curioso é que aquelas crianças com história de hospitalização apresentaram melhor padrão de seu estado nutricional na segunda avaliação, tanto no que se refere ao incremento na relação peso/idade, no período avaliado, quanto ao peso para altura. Este achado reflete a desordem existente em sistema de saúde do país com um serviço de atendimento primário ineficiente para superar os determinantes econômicos, sociais e culturais da desnutrição infantil, e os já saturados serviços secundários e terciários assumindo um papel que não lhes compete. O custo social desta distorção é enorme, e a solução certamente envolve uma série de questões que abrange a própria organização política e econômica da sociedade brasileira. Um agravante desta situação é a freqüente mudança de domicílio encontrada em populações urbanas periféricas, fato confirmado pelo presente estudo. As famílias, muitas vezes, não chegam a formar um vínculo com o posto de saúde e, com freqüência, devido à mudança de domicílio, interrompem a sua participação em programas de saúde, como por exemplo em programas de reabilitação nutricional.

Apesar da maioria das crianças sobreviventes apresentar uma melhora no estado nutricional no período de acompanhamento, o número de crianças que ainda apresentavam algum grau de desnutrição é bastante elevado (83% da amostra). Igualmente elevado foi o índice de desnutrição encontrado entre os irmãos menores de 5 anos quando comparamos com os dados da Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição8, realizada em todo o país, no ano de 1989. Esta pesquisa revelou uma prevalência de desnutrição em crianças menores de 5 anos igual a 30,7%, com 5,1% de crianças com desnutrição moderada ou grave. O contraste é ainda maior se for levado em consideração apenas a região onde foi realizado o estudo (região sul), com uma prevalência de desnutrição infantil de 17,8%.

Cerca de 75% das crianças estudadas e 67% dos irmãos apresentaram baixa estatura enquanto que aproximadamente 15% dos propósitos e 23% dos irmãos tinham peso insuficiente para altura. Em pesquisa realizada por Giugliani e col.6 em uma área bem definida, na mesma localidade onde foi realizado o presente estudo, a prevalência de crianças menores de 5 anos de idade com baixa estatura foi de 44,3% e com peso insuficiente para a altura de 9,5%. Quando se analisa a altura e o peso para a altura no grupo de crianças com desnutrição moderada ou grave prévia pode-se concluir que a maioria dessas crianças apresenta atualmente caráter crônico de desnutrição, atingindo um certo equilíbrio entre o peso e a estatura. Os irmãos menores de 5 anos apresentaram um padrão nutricional semelhante. Estas crianças, uma vez adultos, terão uma estatura mais baixa do que aquelas que nunca desnutriram e certamente estarão em desvantagem, já que a produtividade e a capacidade de trabalho físico estão relacionados com o tamanho corporal13.

Cerca de metade das crianças estudadas participou de programas oficiais de apoio e reabilitação nutricionais, o que não alterou a evolução de seu estado nutricional. Tais programas se baseiam quase que exclusivamente na distribuição de leite e de outros alimentos às famílias, o que explica em parte o fracasso de seus resultados. Nas duas últimas décadas foram criados vários programas de nutrição infantil no Brasil, porém na maioria dos casos os resultados ficaram aquém do esperado10,12. As explicações para os insucessos são várias, incluindo desde falhas administrativas, inadequação no estabelecimento de metas deficiências orçamentárias, até interesses político-eleitoreiros, muitas vezes subjacentes. Na realidade, esses programas, mesmo funcionando eficientemente, apenas conseguem contribuir para um alívio da situação, já que as soluções para o problema da desnutrição infantil incluem mudanças de ordem política e social.

Mais importante que a participação em programas de apoio nutricional para um incremento significativo de peso foi a idade da detecção da desnutrição. Aquelas crianças cuja desnutrição foi detectada nos primeiros 6 meses de vida não só tiveram um incremento maior de peso no período estudado como apresentaram uma altura mais adequada para a idade na reavaliação. Daí a importância do seguimento das crianças desde o seu nascimento.

No presente estudo as crianças cujas mães são alfabetizadas apresentaram uma relação peso/altura mais adequada, o que vem reforçar os dados da literatura que mostram a importância da educação materna no estado nutricional de seus filhos15.

Pode-se concluir que as famílias abordadas no presente estudo apresentam um perfil social, econômico, cultural e biológico que as colocam em alto risco para desnutrição e morbimortalidade infantil. Os programas oficiais de apoio nutricional a estas famílias pouco tem influenciado na melhoria do estado nutricional tanto das crianças-alvo como de seus irmãos, exigindo uma abordagem mais eficaz.

7. Referências Bibliográficas

1. EBRAHIM, G.J. Protein-energy malnutrition. In: Ebrahim, G.J. Nutrition in mother and child health. London, Macmillan, 1983. p. 104-33.

2. EBRAHIM, G.J. Patterns of morbidity and mortality. In: Ebrahim, G.J. Social & community paediatrics in developing countries. London, Macmillan, 1985. p. 77-95.

3. ESPINOSA, E.; RUIZ, C.; VALENTE, S. Programas de intervencion alimentario-nutricional en America Latina y el Caribe entre 1970-1984. Food Nutr. Bull., 8:17-23, 1986.

4. GIUGLIANI, E.R.J.; SEFFRIN, C.F.; GOLDANI, M.; HORN, J.F.C.M.; EBRAHIM, G.J. The malnourished children of the urban squatter families: a study in Porto Alegre, Brazil. J. trop. Pediat., 33:194-8, 1987.

5. GIUGLIANI, E.R.J.; SEFFRIN, C.F.; GOLDANI, M., HORN, J.F.C.M. Fatores de alto risco para desnutrição em populações urbanas periféricas. J. Pediat., 65: 114-8, 1989.

6. GUIGLIANI, E.R.J.; ROTTA, A.T.; RIBEIRO, A.M.; MELLO, C.; MOREIRA, C.M.; DIAS, C.C.C.; PRYTALUK, T.M. Percepção materna sobre a adequação do peso e da altura de crianças menores de 5 anos em uma vila periférica de Porto Alegre. Rev. HCPA, 10:70-3, 1990.

7. GRACIANO, M.I.G. Critérios de avaliação para classificação sócio-econômica. Serv. soc. e Soc., 8: 81-103, 1980.

8. INSTITUTO NACIONAL DE ALIMENTAÇÃO E NUTRIÇÃO. Pesquisa nacional sobre saúde e nutrição: perfil de crescimento da população brasileira de 0 a 25 anos. Brasília, 1990.

9. MARQUES, R.M.; BERQUÓ, E.; YUNES, J.; MARCONDES, E. Crescimento de crianças brasileiras: peso e altura segundo idade e sexo. Influência de fatores sócio-econômicos. An. Nestle, (84 supl. 2) 1974.

10. PELIANO, A.M. et al. Considerações sobre os programas governamentais de suplementação alimentar. Fome Deb., Brasília, 7: 13, 1989.

11. PUFFER, R.R. & SERRANO, C.V. Patterns of mortality in childhood, Washington, D.C., Pan American Health Organization, 1973.

12. SILVA, A.C. Desnutrição: Nordeste, desespero ou esperança. Ciênc. Hoje, 1: 64-70, 1983.

13. SPURR, G.B. Tamaño corporal, capacidad de realizar trabajos físicos y productividade en el trabajo intenso: es mejor mas grande? In: Retraso del crecimiento linel en los países en vias de desarrollo. New York, Ravem Press, 1987. p. 25-9.

14. UNICEF. The state of the world's children. Oxford, Oxford University Press, 1991.

15. VARGAS, L.A. Contexto socioantropologico del crecimento infantil. In: Cusminsky, M.; Moreno, E.M., Suarez Ojeda, E.N. Crecimento y desarrollo: hechos y tendencias. Washington, D.C., Organizacion Panamericana de la Salud, 1988. (OPAS -Publicación Cientifica 510).

16. WATERLOW, J. Some aspects of childhood malnutrition as a public health problem. Brit. med. J., 4: 88-90, 1974.

* Pesquisa subvencionada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Processo no 408970-87.1).

Nilson M. Carvalho; Elsa R.J. Giugliani; Cristina F. Seffrin; Rosane M. Hartmann - elsag[arroba]terra.com.br

Departamento de Pediatria e Puericultura da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Porto Alegre, RS - Brasil



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