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Quando o certo é errado e o errado é certo: reinações e peripécias de exu no Brasil (página 2)


Partes: 1, 2, 3, 4, 5

Tratar-se-á neste trabalho de compreender as modificações sofridas pelo orixá/entidade Exu ao longo do tempo, no Brasil. E, em especial, no que se refere ao processo de mudança no entendimento do umbandista a cerca dessa figura tão controversa. Processo ao qual se denominou para fins desse trabalho: desdemonização de Exu.

Tal estudo é relevante na medida em que a religiosidade interfere diretamente sobre a consciência dos povos. Ao longo da história fica comprovado o poder da instituição religiosa sobre seus fiéis e através deles sobre o todo social. Sendo a Umbanda uma religião brasileira, reconhecida por abrigar entre suas entidades a representações dos tipos sociais brasileiros mais sofridos e discriminados tanto no social como economicamente, o estudo do modo de pensar e fazer dos umbandistas e das modificações sofridas neste pensar e fazer ao longo do tempo revela por si só muitas das mudanças ocorridas nas mentalidades tanto no que se refere a religião quanto no que diz respeito à sociedade abrangente.

Durante o trabalho demonstrar-se-á: a origem africana do orixá e sua demonização desde a própria África, de onde se desloca conjuntamente com seus devotos para a América colonial. No Brasil, já demonizado externamente, é cultuado em diversas religiões afro-brasileiras (candomblés, tambor de mina, batuques, etc.) formadas a partir dos cadinhos de conhecimentos reunidos pelos escravos de diversas nações e etnias.

Entre as religiões afro-brasileiras está a macumba carioca que deu formação: a umbanda - permeada de ideais cristãos e ideologia kardecista – e as quimbandas – descomprometidas de ambos. Nas duas religiões Exu se transformará em entidade, sendo no entanto, seu percurso nas umbandas o foco central deste trabalho.

Para facilitar o entendimento cabe esclarecer que o termo Exu (Esú) será utilizado nos capítulos I e II como generalização dos orixás/voduns/nkisses que foram de uma forma ou outra, enquadrados por Verger[3]ao arquétipo do Orixá Exu. A partir do capítulo III O termo Exu será utilizado como generalização dos elementos que são conhecidos nas umbandas como "Povo de Rua", a saber: Exus, Pombagiras, Exus-Mirins, Malandros, Ciganos.

O Exu da Umbanda herdou do orixá Exu não somente muitas de suas características e atributos como também a propriedade demonizadora impingida ao mesmo. E ainda mais, pois, se o Candomblé é uma religião de origem rural, a Umbanda o é de origem urbana estando, portanto, mais exposta aos olhares preconceituosos e nada possuidores de alteridade. O preconceito contra a entidade está presente ainda hoje dentro de alguns templos umbandistas e no senso comum. E parece ser tarefa de uma nova geração de umbandistas a atuação no sentido de desdemonizar Exu, e por tabela a própria religião, que sempre sofreu discriminação e perseguição assim como outras religiões afro-brasileiras ou minoritárias. As perseguições, fossem advindas de outras denominações religiosas, fossem advindas dos poderes públicos, eram em geral intermitentes, tendo momentos de maior ou menor intensidade. Porém, com o crescimento das igrejas de denominação neopentecostal, essa perseguição se intensificou e tornou-se constante chegando "às vias de fato" com agressões físicas e materiais às pessoas e templos. Sendo a Umbanda e dentro da mesma, os Exus e Pombagiras os elementos centrais e alvos preferidos a quem se dirige a perseguição. Esse trabalho pretende demonstrar através da visão do umbandista e dos estudiosos do assunto, como esse processo de desdemonização vem se desenvolvendo e à quais demandas responde, e quais são os meios utilizados para promovê-lo. Questionando o assunto levantaram-se as seguintes hipóteses com relação ao movimento de desdemonização da figura de Exu:

  • 1- Que seja resultado da própria evolução das mentalidades e da religião umbandista, de formação relativamente recente e ainda em fase de institucionalização;

  • 2- Que responda as demandas espirituais e sociais tanto de seus adeptos quanto dos meios externos (demais religiões e sociedade abrangente), assim como a demandas resultantes de necessidades materiais internas aos templos;

  • 3- Que seja resultante de reavaliações internas e revisões de seus próprios conceitos-base, e, não menos importante, em decorrência das disputas entre algumas de suas lideranças com relação não somente aos conceitos sobre o que é e como fazer umbanda, mas também numa tentativa (nada nova) de codificar e determinar o que é certo ou errado, e o que é ou não umbanda;

  • 4- Que o aumento dos índices de alfabetização da população, assim como o desenvolvimento dos diversos meios de comunicação facilitaram o encontro e a comunicação entre as diversas correntes umbandistas e outras religiões afro-brasileiras, permitindo a troca de informações, o debate, a ampliação dos conhecimentos, levando à reavaliação de conceitos, ressignificações e repaginações de diversos elementos afeitos à religião umbandista.

O estudo da umbanda proporciona ao pesquisador oportunidade de observar uma religião não dogmática, não codificada, nem afeita a imutabilidade[4]. É importante, por a partir de seu fazer religioso, de sua tendência agregadora e inclusiva, proporcionar, através da diversidade de entidades acolhidas em seu panteão, que sob muitos aspectos ainda se abre a novas falanges / personagens, uma via para a reflexão sobre processos de exclusão passados e presentes enquanto através de seu panteão representa, "resgata", dignifica e "santifica" os tipos nacionais mais sofridos, incluída aqui a falange de "povo de rua infantil"[5]

São objetivos desta pesquisa compreender: a) o percurso histórico percorrido pelo orixá / entidade Exu; b) os diferentes tratamentos dados a entidade Exu dentro das diversas escolas umbandistas em tempos diversos e/ou paralelos e analisar os motivos para as modificações de comportamentos em relação à entidade; e a quais demandas internas e externas pretendem responder; c) Analisar se as ressignificações sofridas pela entidade derivam somente de uma decisão interna à religião ou respondem também aos imperativos da concorrência no mercado religiosos interno e externo, seja no que tange a busca de algumas lideranças pelo aumento do número de adeptos e seguidores de suas escolas especificas, seja na briga por uma fatia maior no mercado editorial; d) A partir da leitura de literatura específica da religião, seja ela de doutrina direta ou de doutrinação indireta – através de romances mediúnicos ( inclusive alguns de origens kardecista), determinar qual a imagem que vem sendo construída para a entidade nos últimos anos em contraposição e como substituição às imagens apresentadas pelas literaturas mais antigas e ainda como instrumento a ser utilizado na tentativa de renovação da imagem dessa entidade junto ao senso comum; e) Através de entrevistas e pesquisas "ouvir" a "voz" do umbandista de hoje sobre o assunto, e trazê-la ao conhecimento público e acadêmico.

Corpo Teórico

A intensão da pesquisa de compreender a partir de visões internas à Umbanda como vêm sendo aceita ou rejeitada, em maior ou menor grau , a entidade / falange – Exu, o como em que sentido as doutrinas que se lhe referem são vistas assemelhadas e diferentes entre si, levou-nos a recorrer ao arsenal teórico da fenomenologia da religião. Como o propósito é dar "voz e ouvidos" ao que o umbandista pensou e pensa sobre Exu, como ele (Exu) foi e é tratado, incluído ou excluído, negado ou assumido pelos adeptos e terreiros de Umbanda, a Fenomenologia por suas características parece ser a abordagem mais apropriada para esta pesquisa, levando-se em consideração a definição de Husserl, segundo a qual: "fenomenologia é a generalização da noção de objeto que compreende não somente as coisas materiais, mas também as formas de categorias, as essências e os objetos ideias. É uma investigação a priore dos significados do pensamento". Segundo Cácio Silva:

"A fenomenologia é uma tentativa de compreender a essência da experiência humana, seja ela psicológica, social, cultural ou religiosa, a partir da análise das suas manifestações, que chamamos de fenômenos. É uma tentativa de compreensão não do ponto de vista do observador, mas do ponto de vista da própria pessoa que teve a experiência.[6]." Pp19

O que aqui se pretende, segundo a terminologia proposta é fazer a "epoché":

"O procedimento suspensivo da epoché implica a redução fenomenológica – algo bastante semelhante ao que o romancista fez quando reduziu o mundo visível a um mundo cego. Pela redução deixamos de dirigir o nosso olhar para os objetos em si mesmos em seu ser inacessível ( a mesa, a árvore, a cidade) para dirigir a atenção para os atos da consciência que nos permitem chegar até eles ( nossa visão da mesa, nossa lembrança da árvore, nossa imaginação da cidade)> Enfatiza-se a perspectiva, da mesma forma que a literatura perspectiviza o mundo para nos. A redução fenomenológica é uma conversão do olhar que nos permite chegar ao objeto vivendo-o segundo seu sentido para nós, segundo o valor eu lhe atribuímos e sobre o qual não negamos nossa responsabilidade".[7]

Segundo Reinaldo da Silva Junior : " (...) a fenomenologia da religião procura a estrutura de sentido do fenômeno na observação empírica desse, é a partir da experiência vivida pelo crente religioso que se extraem os elementos que desvelam a essência do fenômeno[8]

Tal procedimento tornou-se bastante usual entre aqueles que, das mais diferentes áreas das ciências sociais, buscam estudar a experiência religiosa através do emprego da perspectiva fenomenológica por atuar como mecanismo heurístico no controle da emissão de juízos de valor. Desta forma concordamos com Bairrão quando afirma que :

"Bem mais do que um arquivo de símbolos, o imaginário religioso, ainda que irredutível, também é uma enunciação social e inconsciente. Dar-lhe ouvidos permite sondar em profundidade o popular, tratando-o não como coisa objetiva, mas enquanto interlocutor capaz de expressar elaborações cognitivas coletivas, revelar os processos que presidem à sua construção, e fornecer orientações para a sua decifração.[9]"

Norteada pelos entendimentos descritos acima, a pesquisa, por sua proposta de compreender o universo umbandista no que tange ao seu pensar e fazer com relação a Exu, será desenvolvida visando não a preocupação com questões referentes à existência ou não de espíritos, se este ou aquele modelo de doutrina umbandista é mais ou menos certo que outro, mas sim a preocupação com o que sentem, pensam e fazem aqueles que acreditam e / ou vivenciam o fenômeno religioso – neste caso específico Exu, e mais especificamente , buscar conhecer como os que lidam com esse grupo de entidades – a falange do "Povo de Rua" – vem atualizando ou não essa representação religiosa.

Em se tratando de Umbanda, dada sua natureza inclusiva dos tipos sociais brasileiros nos arquétipos[10]e estereótipos[11]de suas entidades, a atualização da variedade de tipos sociais parece ser uma constante se levarmos em consideração as diversas falanges surgidas nos últimos sessenta anos. Exu por suas características é o objeto de estudo perfeitamente enquadrado na linha divisória entre o sagrado e o profano, pois que junta em si a sacralidade da entidade espiritual de Umbanda e a mundaneidade do ser humano, portanto profano.

Assim, seguindo a forma de abordagem e o entendimento de Mircea Eliade, expoente na aplicação da redução fenomenológica aos estudos da religião, assumimos como nossa proposta a de " apresentar o fenômeno do sagrado em toda a sua complexidade, e não apenas no que ele comporta de irracional"[12], pretende-se demonstrar as (re)atualizações e as ressignificações sofridas pelas entidades englobadas pelo termo lato Exu, aquelas pertencentes ao chamado "Povo de Rua".

A pesquisa foi dividida em três capítulos. No primeiro capítulo tratar-se-á do Exu/Èsù africano[13]de sua demonização pelos islâmicos e cristãos. E de sua chegada à América acompanhando fiéis e devotos escravizados pelo colonizador. Comentar-se-á rapidamente sobre a permanência de seu culto original em terras africanas. Em seguida, sobre a vinda de Exu para o Brasil, o surgimento de novas formas de culto desenvolvidas em terras brasileiras e, do tratamento recebido pelo orixá em algumas delas.

No capítulo dois, apresenta-se o aparecimento da entidade Exu a partir das macumbas cariocas e do surgimento a partir da mesma de duas novas religiões: umbanda e quimbanda. Far-se-á uma apresentação das entidades que compõem o "Povo de Rua", diferenciar-se-á umbanda de quimbanda, e quimbanda de kimbanda e de quiumbanda. No mesmo capítulo serão apresentadas as principais escolas de umbanda e o relacionamento dessas escolas com os Exus e o "Povo de Rua". Da mesma forma, far-se-á uma rápida incursão nas relações existentes entre Exu e kardecistas e entre Exus e neopentecostais.

O capítulo três apresenta pesquisa qualitativa realizada com umbandistas de várias escolas, de diversos estados do Brasil, do exterior. A realização da pesquisa incluiu:

  • 1- A utilização de meios digitais: envio de questionários por e-mails, redes de relacionamento confessional afro-brasileiro (nacionais e internacionais) , grupos de debate, comunidades específicas do ORKUT, sites de pesquisa, sites de terreiros e templos, estudo de estatutos internos de alguns templos;

  • 2- A pesquisa de campo com questionários e entrevistas;

  • 3- A observação participante.

Foram utilizadas técnicas de História Oral, mormente no que tange às entrevistas e à observação participante. Os silêncios propositais ou não, estiveram presentes tanto em entrevistas quanto nas respostas dos questionários. Eles serão demonstrados no terceiro capítulo, que ponto central deste trabalho, permite responder as hipóteses levantadas.

Mostrar-se-á neste capítulo o que pensam os umbandistas entrevistados, os que debatem umbanda livremente em fóruns, sites de relacionamento e grupos de debates. Também serão demonstrados os resultados referentes ao modo de fazer e tratar Exus e o "Povo de Rua" pelos diversos seguimentos umbandistas ( já referidos no capítulo dois).

Demonstrar-se-á o nível sócio-educacional, os locais de origem dos entrevistados, assim como sua posição hierárquica dentro do culto.

No que tange aos dois questionários utilizados, há que se esclarecer que foram realizadas perguntas em determinadas sequencias que, segundo o conhecimento do pesquisador, intencionavam levar os pesquisados à esclarecer os pontos referentes às hipóteses. O Questionário 1 (Q1)- referente ao pensamento/visão pessoal do entrevistado com relação às entidades, e o questionário 2 (Q2) visava avaliar as relações entre templos e entidades vistas pela ótica do entrevistado. Q1 obteve maior número de respostas por dois motivos : 1- foi enviado primeiro estando portanto mais tempo à disposição dos entrevistados ;2 – Q2 surgiu da necessidade de saber mais sobre o tratamento dado pelos templos às entidades e seus médiuns, sendo portanto enviado mais tarde , não tendo alcançado o mesmo número de pessoas; 3- Q1 e Q2 nem sempre foram respondidos pelas mesmas pessoas.

Paralelo ao uso dos questionários, foram utilizadas informações (enquetes, debates, textos, etc.) advindas de sites, comunidades umbandistas, etc. Isso será demonstrado quando da leitura dos resultados das enquetes. Fato facilmente notado pelas suas diferenças quanto aos termos utilizados seja em relação à quantidade seja em relação à nomenclatura dada às opções.

Por fim, a própria sequência do trabalho demonstrará que existe um processo de desdemonização de Exus e do "Povo de Rua" em andamento, alguns dos métodos (diretos e indiretos) utilizados para promover a desdemonização, e o grau de resposta que vem obtendo entre os adeptos.

Capítulo I

1- De Esú a Exu, de Orixá a diabo.

África Negra. Século XVI. O homem branco europeu chega, negocia, toma posse do espaço, das terras, das vidas alheias. Conquista pelo comércio, pelo ferro e pelo fogo, pela e para a Cruz. Ele precisa levar a "civilização" e a palavra da Igreja Católica Romana, a "palavra de Deus" aos incrédulos, aos ignorantes, aos pagãos. Precisa convertê-los à sua visão da verdade.

Filho de seu tempo e de sua cultura o homem europeu do séc. XVI, acredita ser seu dever levar a mensagem da Igreja pelo mundo, converter por bem ou por mal. O mesmo já havia se dado com os islâmicos chegados à África Subsaariana séculos antes, conquistando, negociando, escravizando e convertendo pela palavra, pela espada ou pelo forte apelo "anti-escravidão" dado pelo Islamismo[14]para o converso.

Ambos, cristãos e islâmicos, encontraram uma terra de homens de pele negra, cultura e religião diversificada. Uma terra de liberdade. Não que não houvesse escravidão. Havia, mas tinha um contexto diferenciado. Era a escravidão de guerra. A escravidão resultante de penalidades das próprias sociedades africanas. Não era uma escravidão puramente comercial[15]Não era uma terra em que se caçavam homens com se fossem animais, apenas para revendê-los como escravos. Nem tão pouco uma escravidão que retirasse do homem seu direito a "uma alma"[16], a uma cultura, a uma fé própria.

Com navegadores, negociantes e guerreiros chegam também os religiosos ávidos por ampliar o poder de sua Igreja. Ávidos por conversões. Cada nova sociedade cristianizada, aculturada, representa mais poder, mais influência, mais terras e dinheiro. E também uma vitória contra o paganismo. Cada espaço conquistado representa também um espaço que não se deixa ao islâmico infiel, o mesmo islâmico recém-expulso da Europa, que há séculos já incursionava, comerciava e muitas vezes, conquistava partes do território e povos da África Negra com a qual os europeus sequer sonhavam.

Da Europa dos grandes navegadores, da Europa Ibérica católica que acabara de expulsar islâmicos de seu território, chegam à África aqueles que se tornarão responsáveis pelo mais cruel e desumano tipo de escravidão da história.

Esses homens encontrarão entre os povos conquistados (iorubas, jêjes, congoleses, angolanos, etc.) uma religião animista, em muitos casos religião de Estado, como em Oyó. Religiões de Orixás, Voduns e Nkises. Religiões que tem em comum a crença num Deus único, criador, distante e inatingível, que deixou aos homens Orixás, Voduns e Nkises como deuses responsáveis pelo mundo: a Natureza e os Homens.

Orixás, Voduns e Nkises são senhores de forças da natureza, expressões dos antepassados (reis e heróis divinizados) que influenciam nos destinos humanos, tendo cada qual sua área de atuação e poder. Entre eles uma figura controversa, "trickster", zombeteira e poderosa, sem a qual nada se movimenta nada evolui, nada se fecunda. Uma figura cujo domínio é o próprio mundo já que é senhora dos caminhos e encruzilhadas por onde o homem passa e vive. Uma figura sem a qual não haveria comunicação entre os homens e os deuses. Aquele que está em todos os lugares, que tudo movimenta que tudo comunica que tudo fertiliza: EXU. Também chamado Elegbara, Legba, Eleguá, Bará, Bombonjila, Aluvaiá, etc. a depender da nação africana a qual se faça referência[17]

Não é difícil compreender que para as mentalidades cristãs ( ibéricas e europeias) do séc. XVI, assim como anteriormente para os islâmicos a partir do séc. VII-VIII, uma figura como Exu por seus próprios atributos, lendas e representações fosse associada ao demônio. Os islâmicos demonizavam tudo o que não fosse Alah. Os cristãos, descobriram em Olodunmaré/Olorum (Yorubá), Zambi (Angola-Congo) e Mawu-Lissá (Daomé) uma visão do Deus Criador Cristão, e porque precisavam de um opositor que valorizasse Deus na sua qualidade de Bom demonizaram Exu, o Orixá da liberdade, cuja representação é fálica, aquele que não se dobra, a quem se teme e respeita, transformando-o no "diabo dos negros".

1.1. Quem é o Orixá Exu Africano.

Pierre Fatumbi Verger em sua obra "Orixás" diz a seu respeito:

"Èsù na África

Exu é um orixá ou um ebora de múltiplos e contraditórios aspectos, o que torna difícil defini-lo demaneira coerente. De caráter irascível, ele gosta de suscitar dissensões e disputas, de provocaracidentes e calamidades públicas e privadas. É astucioso, grosseiro, vaidoso, indecente, a tal ponto que os primeiros missionários, assustados com essas características, compram-no ao diabo, dele fazendo o símbolo de tudo o que é maldade, perversidade, abjeção, ódio, em oposição à bondade, à pureza, à elevação e ao amor de Deus.

Entretanto, exu possui o seu lado bom e, se ele é tratado com consideração, reage favoravelmente, mostrando-se serviçal e prestativo. Se, pelo contrário, as pessoas se esquecerem de lhe oferecerem sacrifícios e oferendas, podem esperar todas as catástrofes Exu revela-se, talvez, dessa maneira o mais humano dos orixás, nem completamente mau, nem completamente bom.

Ele tem as qualidades dos seus defeitos, pois é dinâmico e jovial, constituindo-se, assim, um orixá protetor, havendo mesmo pessoas na África que usam orgulhosamente nomes como Èsùbíyìí (concebido por Exu), ou (Exu merece ser adorado).[18]"

As lendas recolhidas por Reginaldo Prandi, na África, no Brasil e em Cuba, para seu livro "Mitologia dos Orixás", mostram que: Exu é o Orixá que ajudou Olofim (Olorun) na criação do mundo. Que esteve ao lado de Oxalá quando este criava os homens, que O guardou e protegeu, que aprendeu e trabalhou com Oxalá, e por isso ganhou as encruzilhadas e o direito à oferendas de idas e vindas. Exú é aquele que cumpriu o preceito do ecodidé[19](pena de papagaio vermelho) e por isso recebeu de Olodumaré o cargo de mensageiro e o direito a ser homenageado em primeiro lugar. Por outro lado, é também Exu aquele que não suporta ser esquecido, não suporta displicência no fazer de suas oferendas. É Exu, aquele Orixá capaz de fazer com que amigos se desentendam por vaidades, mostrando através dessa lenda quanto os homens são prepotentes e convictos de suas "verdades" esquecendo-se de verificar outros ângulos das questões. É Exu aquele que tudo come, porque sua fome é imensa, mas que quando vencido, acorda em devolver tudo o que foi comido e ainda se propõe a trabalhar para o vencedor, recebendo em troca a primazia das oferendas . Exu é o que penaliza aquele que o esquece. Ele é o Orixá que coloca em perigo e depois salva. É o que salva aquele que não o esqueceu. É o que instaura o conflito para depois resolvê-lo e ainda sair no lucro deixando todos satisfeitos. Exu é o Orixá que quando os deuses foram esquecidos pelos homens e passaram fome, foi capaz de fazê-los interessarem-se de novo e voltarem a oferendar aos deuses.(PRANDI- 2001). Ribeiro[20]referindo-se ao entendimento de Abimbola, afirma que : "No mito cosmogônico Exu figura como responsável pela conservação do axé, o grande e divino poder com o qual as divindades realizam seus feitos sobrenaturais."

Exu, presente nas estradas, nas encruzilhadas e caminhos, no mercado. Exu, cujo culto ultrapassa as fronteiras e independentemente de qual seja o(a) Deus(a) central cultuado(a) em cada nação, está presente. Exu que estava no início e que estará sempre, pois sem movimento nada existe. Sobre Exu nos ensina Reginaldo Prandi: "Exu é o Orixá sempre presente, pois o culto de cada um dos demais Orixás depende de seu papel de mensageiro. Sem ele Orixás e humanos não podem se comunicar.".[21]

Prates, em seu trabalho de pesquisa sobre Exu no imaginário dos adeptos de Quimbanda recolheu uma lenda sobre Exu, na Nação Angola, que diz ter sido Exu o Nkice responsável por dar ao homem a liberdade, apesar da oposição de seus pares. Prates segue analisando o mito:

"Neste mito, ser livre é um presente de Exu, característica que constrói toda a trama do ser humano no universo. O indivíduo não escolheu ser livre, mas é presenteado por Exu, ficando a espécie humana condenada ao desequilíbrio, ao desejo, ao amor, ao ódio, ao trânsito entre a luz e a sombra.[22]"

Ao presentear o homem com a liberdade, Exu entregou-lhe a possibilidade de modificar seu destino , que não mais seria apenas aquele determinado por forças outras que não as suas ( do homem). O presente de Exu, fez com que o homem, agora livre, tivesse que por sua vez assumir a responsabilidade por suas escolhas e pelos resultados advindos delas. Deixando o homem de ser apenas um ente cuja existência é pré-determinada por outro e pelo destino, terá que tomar decisões. E ainda aí, nas encruzilhadas da vida, nos momentos de decisão, Exu o auxilia, já que recolhe pelo mundo os odus que formarão o oráculo ao qual poderá recorrer o homem para saber da vontade dos deuses, para saber como oferendar de forma que os deuses propiciem em seu favor. E ainda aí, é Exu, o mensageiro quem vai atuar.

Tais comportamentos descritos nas lendas acima, assim como os assentamentos fálicos espalhados pelos caminhos africanos e para piorar, a dita liberdade dada ao Homem por Exu, foi encarado e entendido pelos europeus como demoníaco. Exu cabia perfeitamente no imaginário cristão como o diabo: poderoso, temido, respeitado, irado, desmedido, zombeteiro, livre de amarras moralizantes, livre em sua sexualidade e fertilidade, livre para ir e vir, fazer e desfazer o que bem entender sem se preocupar com os resultados ou penalizações resultantes dos mesmos. Em suma, eram necessários pouquíssimos ajustes para associá-lo e "transformá-lo" no "diabo cristão".

Cabe aqui um adendo. É preciso considerar que os africanos não conheciam sequer a ideia de diabo, menos ainda de um opositor de Olodunmaré. Essas oposições Bem e Mal como entendidas pelo Ocidente Cristão e pelos Islâmicos não fazem parte das religiões nativas africanas.

Na verdade exu foi demonizado no processo colonizatório promovido pelos europeus quando ocuparam a África e a América.

Adriano Ianga (OFM)[23] em seu livro Questões Cristãs à Religião Tradicional Africana (Moçambique), levanta a questão da existência ou não de um conceito de demônio, como força espiritual oposta a Deus entre os Africanos, no final do Séc. XX, em especial entre os Changana-Chope de Moçambique e conclui que tal conceito quando existe na atualidade é resultado da importação, estando presente hoje em diversas tribos e etnias. Para o franciscano, o próprio aspecto vocabular já sugere que tal conceito é importado dos europeus, visto os nomes pelos quais tal figura (o demônio) é chamada se aproximarem muito dos termos europeus utilizados para nominar o diabo cristão em diversas sociedade africanas atuais. E conclui: "não há apenas a indigenização e universalização do termo "Satanás" , mas também existe a adoção do próprio conceito em princípio inexistente entre os nativos[24]Embora alguns povos africanos acreditem em espíritos malignos eles não se comparam nem se enquandram no conceito de diabo cristão. Segundo Ianga:

"Para um changano-chope e para o africano em geral, o autor do mal é o homem, movido pela sua depravação e maldade e esta maldade ou depravação é uma questão do livre arbítrio(inveja, ódio, etc). O termo homem deve ser tomado no sentido geral ou largo, englobando todas as dimensões aspectos que o ser humano pode tomar, segundo a cultura changano-chope ( o homem normal, o nlony ou feiticeiro ou ainda , o homem morto). Assim o homem pode praticar o mal segundo as seguintes hipóteses:

1ª – No uso de todas as suas faculdades. Neste caso a ação malévola explicar-se-á pelo livre arbítrio (deprevação, perversão, acto de justiça ou vingança ).

2ª – Movido pela loucura.

3ª – Movido por um espírito morto. Neste caso o homem vivo não passa de um executor material.

4ª – Enquanto espírito, isto é, o espírito de um morto pratica o mal. Esta hipótese é praticamente a primeira.[25]

É preciso então lembrar que para a maioria desses povos africanos os espíritos dos antepassados, dos mortos, vivem uma vida paralela à dos vivos, e , embora não tenham mais um corpo carnal, quando necessitam "habitam" o de algum dos seus descendentes. Podem, portanto, interagir e interferir na vida dos que estão encarnados, seja para o bem ou para o mal. Por isso são cultuados, para que permaneçam interferindo positivamente ou ao menos não intervindo negativamente na vida dos vivos. (IANGA- 1992). O pensamento religioso é semelhante ao encontrado entre os negros escravizados e enviados para o Brasil entre os séculos XVI e XIX. Dá-se agora, como antes com pequenas variações o culto aos antepassados e aos deuses (antepassados longínquos divinizados), crendo-se na existência de um Deus criador inacessível e distante.

1.2 - Orixá Exu permanece vivo e atuante entre o povo na África pós-colonial.

Apesar da colonização cristã-ocidental e das penetrações e conversões islâmicas, permanece ainda hoje em diversos lugares da África a crença e a prática da antiga religião africana. Assim sendo, orixás, voduns e nkices continuam a receber culto em seus santuários e, no caso específico de Exu, também nas estradas, encruzilhadas e mercados[26]

A figura de Exu na África, ainda hoje, continua controversa, não mais apenas pelas lendas e pelo arquétipo originariamente atribuído ao Orixá, mas também pela resultante da colonização e da interpenetração de outras culturas e credos vindos de fora da África Negra que demonizaram Exu ( e outros deuses) e que se fizeram e se fazem ainda presentes apesar da "descolonização". Pelo contrário, as religiões invasoras vindas com os colonizadores permaneceram e ainda hoje pode-se perceber a chegada de novas denominações religiosas em ditas missões evangelizadoras e aculturadoras. Pode ser que a África Subsaariana seja considerada como descolonizada política e até economicamente, mas no que tange a religiões, as colonizações continuam presentes e causando problemas seríssimos como se pode perceber ao ouvir noticiários sobre a situação nigeriana. Ontem como hoje a busca de novos mercados religiosos está viva e presente não só na África como em todo o mundo. Por trás da evangelização, da conversão, da promessa de salvação esconde-se a disputa pelo poder, pelo domínio do outro, etc. Não sendo a disputa pelo mercado religioso mundial a parte central deste estudo, deixar-se-á em suspenso o assunto, a espera de ocasião oportuna.

1.3- O senhor dos caminhos viaja para América. Exu no Brasil.

Como senhor dos caminhos Exu não poderia deixar de vir para a América abrindo os caminhos, acompanhando e protegendo seu povo. O Orixá Exu, já chega ao Brasil demonizado desde a própria África. Segundo Carneiro, essa equiparação com o diabo cristão é resultante de observações apressadas, que deixam de perceber as funções do "mensageiro celeste" que age como correio entre homens e deuses, não reparando em seu papel de protetor de "casas e aldeias na África, como o faz no Brasil, no referente às casas de culto"[27]

No Brasil, O Orixá Exu vai ver intensificada a "faceta diabólica" que os cristãos lhe impingem. Mesmo demonizado pelo branco dominador, Exu não abre mão de suas prerrogativas nem de seu povo. Exu se instala confortavelmente no Brasil e em outros países da América.

O sofrimento do negro escravizado é imenso física, moral e emocionalmente falando. A sua religião, sua crença original é proibida, e para poder cultuar seus deuses, ele, o negro, disfarça-os em "santos" agradando assim o colonizador, que pensa errônea e prepotentemente ter destruído a fé desses povos. O sincretismo a que se vê obrigado o negro para preservar sua religião, atua como forma de resistência. Para o negro africano, Exu, Orixá primordial, não é nem poderia ser o diabo. Raul Lody, em seu livro Tem Dendê Tem Axé: Etnografia do Dendezeiro refere-se assim a Exu:

"Exu é sem dúvida um dos orixás mais negros, o mais marginal, mais imoral, mais temido, mais querido, mais necessário, imprescindível ao início de qualquer cerimônia nos terreiros.

Exu é africano, é Santo Africano o que marca um lado de meio-escravo para o olhar dominador colonial que lhe auferiu uma relação imediata com o Diabo dos católicos. Esta relação confirma o temor do colono diante da oposição cultural africana cujo personagem fundamental é Exu e tudo o que gira em torno dele.[28]" ( LODY -1992)

Se o colonizador é poderoso no que tange às coisas físicas (armas, dinheiro, etc.), e foi capaz de sequestrar, escravizar, expatriar, humilhar (com o auxílio valioso dos próprios africanos que capturavam em guerras tribais e depois vendiam seus semelhantes ), não pôde contudo destruir a crença dos africanos e menos ainda em seu poderoso e imprevisível Orixá Exu.

Confiando no Orixá, aproveitando-se de sua demonização, o negro escravizado, tem através do seu conhecimento da arte de manipular o sagrado inclusive dessa força poderosa denominada Exu - uma forma de valendo-se do temor já existente no homem branco, exercer algum tipo de poder (terrificante talvez) sobre o mesmo. Ora, se os negros escravos têm o poder de comunicar-se com o "diabo" e, mais que isso, sabem como colocá-lo em ação, o que não poderão fazer?

O colonizador já trazia em sua memória resquícios dos antigos cultos pagãos, também demonizados pela Igreja. É da natureza humana temer o desconhecido. E o desconhecido, neste caso, é Exu, o "diabo do negros". Segundo Míriam Prestes de Oxalá, em sua obra "O Exu Desvendado", com relação à demonização de Exu:

"Em vez de reordenar o mito, o africano, nessas condições sub-humanas, gostou disso. De ser temido mesmo debaixo do chicote. E mais alimentou a idéia de Êxú como um deus terrível, diabólico que poderia ser "levantado" contra alguém se seu povo ou adeptos fossem maltratados.[29]"

1.3.1- Exu em novas formas de culto.

No Brasil, apesar de todas as tentativas de aculturação, aniquilação do que é afro ou indígena, e consequente "re-modelagem" cristã-ocidental sofrida por negros e indígenas, houve resistências físicas e culturais. A resistência cultural subterrânea do negro foi capaz de reunir antigos inimigos tribais, agora partícipes de uma mesma desgraça. Com isso criou novos parâmetros religiosos, novos modelos de culto adaptados ao momento e às necessidades. Da coletânea de conhecimentos religiosos fracionados e diversificados, somados àqueles resultantes dos contatos com o colonizador europeu e com os filhos da terra brasileira - os indígenas- surgiram as religiões afro-brasileiras como o Candomblé, o Xangô, o Tambor de Mina, o Batuque, ou afro-ameríndio-brasileiras como o Candomblé de Caboclo, a Umbanda, a Quimbanda, o Omolocô, etc. Nessas religiões Exu estará presente seja como Orixá, Vodum, Nkice ou como entidade falangeira.

Esú, Elegbara, Eleguá, Bará, Bombogira/ Pambu Njila, Aluvaiá, Orixás presentes em várias nações da África, que têm atributos, personalidade e cultos semelhantes, no Brasil serão reconhecidos popularmente sobre o nome de Exu , sem que por isso percam a individualidade característica de cada nação.

1.3.2 – Exu no culto ao Orixás ,Voduns e Nkisses.

Nos Cultos de Nação - Candomblés, Xangôs, Batuques – o Exu Orixá, exerce a função de mensageiro e expressa-se através dos jogos divinatórios: Búzios, Opelé-Ifá, etc. nos quais transmite as vontades dos deuses e os pedidos dos homens. Guarda também suas demais atribuições africanas, assim como o direito de primazia nas oferendas. O Orixá mesmo quando incorporado "não fala" (exceto em raras ocasiões), quem fala por ele através dos jogos é Exu, e em algumas ocasiões, os Erês[30]quando incorporados deixam recados e orientações. Segundo Auro Barretti, entrevistado por Silva[31]os Orixás não falam no Brasil, porque seus médiuns não falam ioruba. Vagner G. da Silva dá outra opção para a pouca fala dos orixás, ao mesmo tempo em que expressa ser a palavra domínio de Exu:

"No candomblé, por exemplo, a palavra pronunciada é considerada emanação de axé, importante mecanismo de movimentação de forças sagradas.(...) os tabus e preceitos referentes à fala são inúmeros no candomblé: os orixás pouco falam, pois sua fala emanaria um axé excessivo aos ouvidos humanos; os nomes iniciáticos não podem ser proferidos fora dos contextos rituais; usa-se preferencialmente a "língua do santo" (conjunto de expressões oriundas das línguas africanas que contém segredos rituais) nos contextos religiosos, etc. Como o domínio da fala pertence a Exu, numa clara alusão ao poder de realização que as palavras possuem (9), oferendas a esse orixá podem propiciar beneficamente o uso dessa força.[32]"

Por motivos diversos, já indicados acima, nos Candomblés, é Exu quem fala com os homens através do jogo sobre a vontade dos deuses, seus pedidos e conselhos. É Exu o grande e imprescindível mensageiro, sem o qual nada se poderia fazer, as comunicações tornar-se-iam impossíveis.

1.3.3 – Exclusão no Tambor de Mina.

Cultuado, respeitado e temido por seus poder e gênio nos Candomblés, Xangôs Pernambucanos e nos Batuques do Sul do pais, Exu – Legba é tratado de forma diferente no Tambor de Mina (LODY -1992) (FERRETTI-2004). Sérgio Ferretti, estudioso do Tambor de Mina no Maranhão constata a ausência tanto do jogo divinatório do qual Legba é o mensageiro, quanto do culto à Legba na Casa das Minas e informa o motivo: "Afirma-se que as fundadoras não fizeram assentamento para legba, que lá não é considerado mensageiro dos voduns. Dizem que Zomadonu. [vodum dono da casa] não quis Legba na casa pois por causa dele as fundadoras foram vendidas como escravas.[33]" Raul Lody cita a Casa das Minas como exemplo de casos em que Exu, "esse grande personagem mítico é desconhecido ou ainda estrategicamente camuflado como uma divindade não incluída no elenco dos deuses[34](LODY -1992).

Pode-se aferir que Exu ainda que dentro do contexto das religiões afro-brasileiras mais antigas que a Umbanda, já se fazia figura não apenas controversa, o que faz parte de seu arquétipo, mas também não-amada, evitada e excluída (na medida do possível), pelos seus atos passados ( no caso, o aprisionar e escravizar das fundadoras do Tambor de Mina).

Por outro lado, Mundicarmo Ferretti registra a atual umbandização dos cultos afro-brasileiros do Maranhão e com ela a penetração de Exus e Pombagirass (entidades), e da Quimbanda nos cultos afro maranhenses. Ferretti constata que a Umbanda praticada no maranhão guarda características das religiões afro locais como, por exemplo: do Terecô, da cura e da Mina, tornando a Umbanda maranhense nem sempre facilmente reconhecível por umbandistas de outros estados, principalmente os do Centro-sul do país. Segundo a autora:

"Atualmente o número de terreiros que se definem como umbanda tem crescido bastante, (..., embora continuem realizando rituais e recebendo entidades de denominações afro-brasileiras tradicionais do Maranhão.

Mas, de um modo geral, em São Luís, os terreiros que se definem como de umbanda não realizam a festa do Espírito Santo, tradicional nas casas de mina; costumam homenagear os pretos velhos no dia 13 de maio(...) e costumam invocar, receber e realizar alguns "trabalhos" com Exu e Pombagira, no que se afastam inteiramente daqueles dois terreiros de mina mais antigos."[35](FERRETTI -2008)- (grifo nosso)

Percebe-se que Exus e Pombagirass, vem penetrando a cultura religiosa maranhense, e embora ainda barrados na Casa das Minas e de Nagô. Candomblé e Umbanda vêm se espalhando pelo país e com eles Exu Orixá, no primeiro caso e Exu entidade no segundo, também vão se infiltrando em cultos tradicionais da região do qual ou não faziam parte ou eram excluídos. A Umbandização das religiões regionais vem ocorrendo em diversos cantos do país. No mesmo passo, vai a Quimbanda.

1.3.4- A "Macumba Carioca".

As Macumbas Cariocas, surgidas no antigo Distrito Federal (cidade do Rio de Janeiro -Estado da Guanabara) e no antigo Estado do Rio de Janeiro, hoje unificados, tem uma história um pouco diferenciada. As Macumbas Cariocas surgem com forte presença banto (Angola – Congo), como explica Etiene Sales de Oliveira :

"Vários fatores se interpuseram à fixação do modelo nagô (cultura Yorubá) na região que compreende Rio e São Paulo. Logo de início, esta região recebeu maior número de africanos originários de Angola e do Congo, os de língua Quimbundo ( cultura Banta). Os primeiros cultos começaram a se difundir por volta de 1763. Com a designação de Macumba e experimentaram certo resplendor que se apagou no início do séc. XX, parecido com o que aconteceu com a Cabula, dando lugar a outros cultos.

Nas Macumbas eram comuns as danças semi-religiosas como o jongo e o caxaruin, e o culto aos mortos ( pretos-velhos como antigos babalorixás e Iyalorixás e caboclos como os antepassados da nova Terra, o Brasil) e os cânticos invocatórios.

(...)A abrangência dos cultos de Macumbas ( ou que ficaram conhecidos genericamente com esse nome) atingia uma vasta camada da população. Eram práticas que misturavam aos cultos africanos ( que tiveram as mesmas origens que os Candomblés) , a cabula, a pajelança, o Catolicismo Popular na forma do sincretismo afro-católico( utilização dos Santos Católicos em associações aos Orixás; e o uso de cânticos Católicos, como: Ave Maria e Pai Nosso), e práticas Espíritas populares ( uma tentativa de se copiar as práticas Espíritas, sem entrar a fundo em sua doutrina).

(...) parece ter sido um dos motivos de sua popularidade e de seu uso indiscriminado para se designar as religiões afro-brasileiras em geral. (OLIVEIRA 2005 e 2008[36]-

Para Sérgio Estrellita da Cunha , a " Macumba Carioca" é resultante de intercâmbios sincréticos , amalgamações de cultos diversos , bricolagem de crenças, em que se manifestam

"(...)espíritos de pretos-velhos, caboclos, consultando os indivíduos acerca das suas necessidades materiais, afetivas e de saúde, ainda se utilizando das forças da natureza representadas pelos Orixás africanos sincretizados com os santos católicos e divindades indígenas, a utilização dos mecanismos de reelaboração dos pressupostos preconizados pelo espiritismo, sendo a cultura bantu que melhor se afinou com estes aspectos doutrinários, pois em algumas nações africanas não deveriam haver interações com os espíritos dos mortos denominados de "eguns"[37].

Cunha remete ao pensamento e pesquisas de Arthur Ramos, que pretendia ser a "macumba" uma degenerescência dos cultos Jêje-nagô, que o antropólogo denomina jeje-nagô- mussulmi -bantu-caboclo-espírita-católico, reconhecendo que:

"(...)é quase impossível hoje, identificar as sobrevivências puramente congo-angolenses nas macumbas brasileiras. Elas estão fusionadas a elementos de outras religiões e práticas mágicas africanas, ameríndias, e ao catolicismo e espiritismo popular, que a macumba contemporânea, pelo menos no Rio de Janeiro, é um vasto conglomerado mágico e ritual, de transformações contínuas e rápidas"[38]

José Henrique Motta de Oliveira, estudando o surgimento da Umbanda e suas raízes provenientes da Macumba , que considera originária dos cultos de origem banto avalia que

"a lenta introdução dos Orixás na "Macumba" não lhe alterou a característica cultural, centrada na evocação das almas dos ancestrais tribais . O que caracteriza a macumba não é o santo protetor, mas um espírito "familiar"[39]assistindo à crescente população suburbana , quer negra ou branca, que vinha aos terreiros buscar lenitivo e soluções para problemas econômicos, afetivos, terapêuticos [40]OLIVEIRA -2008)

Reginaldo Prandi afirma que por muito tempo os cultos dirigidos aos espíritos brasileiros e europeus (encataria) e os realizados em homenagem aos deuses africanos pelos candomblés, ficaram confinados aos seus locais de origem. Porém,

"(...) com o fim da escravidão, muitos negros haviam migrado da Bahia para o Rio de Janeiro, levando consigo suas religiões de orixás, voduns e inquices e também a de caboclos, de modo que na então capital do país reproduziu-se um vigoroso candomblé de origem baiana, que se misturou com formas de religiosidade negra locais, todas eivadas de sincretismos católicos, e com o espiritismo kardecista, originando-se a chamada macumba carioca e pouco mais tarde, nos anos 20 e 30 do século passado, a umbanda[41]

Nota-se que embora sejam religiões originárias de cultos africanos, Candomblé, Xângo, Tambor de Mina, e Macumba, entre outros não são cultos idênticos, revelando cada qual suas particularidades.

Capítulo II

2– Exu vai passear na Macumba e vira entidade brasileira.

Edson Carneiro em seu livro Candomblés da Bahia, faz referências ao provável estranhamento dos adeptos do candomblé baiano caso assistissem determinados rituais e cerimônias da Macumba:

"(...) à meia-noite, numa cerimônia de Macumba carioca ou paulista, todos os crentes são possuídos por Êxu – uma prática que constitui um verdadeiro absurdo para fregueses dos candomblés da Bahia. (...) Que o pessoal das macumbas do Rio de Janeiro se apresente uniformizado, e não com vestimentas características de cada divindade, não pode ser entendido por quem frequente os candomblés da Bahia, Os xangôs do Recife ou os batuques de Porto Alegre[42]

O estranhamento ao qual Carneiro se refere, faz todo sentido, pois para candomblecistas e outros grupos religiosos afro-brasileiros de então, Exu, o Orixá, nunca incorporaria da forma descrita pelo autor possuindo todos os crentes à meia-noite. O próprio Carneiro revela quão raras eram tais incorporações do Orixá e como eram recebidas: "Exu pode dançar no Candomblé, mas não em meio aos demais Orixás. Isto aconteceu, certa vez no Candomblé do Tumba Junçara (Ciriáco), no Beiru: filha-de-santo dançava rolando-se no chão, com os cabelos despenteados e os vestidos sujos[43]CARNEIRO – 1961)

Como visto anteriormente, as Macumbas se formaram de cadinhos de várias crenças e sob seu nome diversos cultos se abrigaram. Nesse caldeirão de crenças, muito foi ressignificado, transformado, acrescido ou esquecido. Muito também foi inventado. Como toda religião viva é dinâmica, as Macumbas não fugiram à regra. Nesse caldeirão ocorre mais uma das transformações e adaptações pelas quais Exu, o Orixá (demonizado) dos caminhos, o Senhor das encruzilhadas trafega calmamente. Sua capacidade de modificação e multiplicação, se faz presente em nova empreitada. Há um novo mercado (religioso) surgindo e dele também Exu se faz o dono. Exu não se deixa esquecer, não fica de fora. Ainda que para isso tenha que se tornar entidade, e como na lenda do boné de vermelho e branco se multifaceteie.

2.1. -Exu mais uma vez adapta-se aos novos tempos e ambientes desdobrando se em Exu Orixá e Exu Entidade.

Com o desdobramento ocorrido a partir das Macumbas Cariocas, Exu retoma a multiplicação de si mesmo dando origem as mais diversas qualidades/nomenclaturas pelas quais são conhecidos os Exus e demais elementos componentes do "Povo de Rua". Como se pode perceber na citação, o tipo de Exu ao qual se refere Carneiro, não é o Orixá Exu, mas a entidade Exu. Parece ter ocorrido a partir da Macumba esse desdobramento de Exu. Corroborando com tal entendimento, Marcos Alexandre de Souza Queiroz, escreve:

"Os Exus, categoria espiritual componente do panteão religioso umbandista, é apontada pelos pesquisadores como formulação originalmente edificada nesse contexto a partir da reelaboração das entidades equivalentes pertencentes à Macumba. Por sua vez, o Orixá designado – Exu - correspondendo à divindade de referência a tradições mais antigas e ainda muito presentes no imaginário afro-brasileiro, serviu de modelo para a concepção da categoria espiritual como é presente no imaginário umbandista e popular. Ambas as noções – Exu e Exu - convivem e são postas em confronto cotidiano das casas e das pessoas que participam desse universo religioso.

As concepções míticas de Exu são referências significativas para composição dos Exus presente no imaginário umbandista, fruto das dinâmicas próprias da religião como expressão da cultura, nos seus processos de reelaboração de valores e símbolos. "[44]

Comentando sobre a multiplicação das qualidades Exu, em cultos outros que não o Candomblé, Carneiro constata:

"O mensageiro se multiplica em todos os cultos, em vários Exus, com nomes e funções os mais diversos. Muitas vezes, associam-no a Ôgún e a Oxóce, como seu camarada inseparável; no Rio de Janeiro, além de apresentar-se com sua múltipla personalidade, os crentes o fundiram com a outra divindade Ômùlu, criando o Exu Caveira, com encargo de proteger os cemitérios, especialmente o de Irajá, - concepção semelhante à do Baron Cimetière, do Haiti. Os velhos números mágicos – 3 e 7 – cortejam e envolvem Exu no Brasil.[45] "

Se, na África, conforme mostra a lenda[46]há 201 Iangi por Orum, sendo em nove o número de divisões deste. Há então, pelo menos 1608 Exus no Orum, além do original e de todas as outras qualidades de Exus conhecidas. Na Umbanda/ Quimbanda essa multiplicação se torna geométrica. As entidades que fazem parte do chamado "Povo de Rua", que participam das "giras de Exu" (Exus, Pombagiras, Mirins, Malandros e outros) continuam se multiplicando em relação aos nomes, locais de origem e trabalho, além da ampliação dos tipos e subarquétipos afeitos às suas falanges.

2.1.1. – "Povo de Rua": arquétipos e estereótipos

Segundo Sulivan, as entidades umbandistas encontram-se a meio caminho entre os espíritos dos mortos que se comunicam no Kardecismo e os deuses africanos cultuados nos candomblés Para o autor o transe umbandista nem é uma representação mítica propriamente dita como no caso do Candomblé, nem individual como no Kardecismo, "mas atualizações de fragmentos de uma história mais recente por meio de personagens tais como foram conservados na memória popular brasileira.[47]"

Para Birman " A umbanda cultiva a possessão como algo benéfico, evidentemente, pensa e age diferente. Ao invés de expulsar as entidades sobrenaturais, consideradas necessariamente maléficas pelos cristãos, adota outro lema: conviver com elas.[48]" (BIRMAN-1985)

Na Umbanda se cultua entidades que são espíritos dos mortos, agregados em categorias mais genéricas e estereotipadas. Não se evoca a esse ou àquele individuo em particular, mas entidades que se enquadram nos modelos sociais que representam. Entidades umbandistas:

"Quando "descem" em seus "cavalos", não são evocação deste ou daquele indivíduo reconhecido pela história de suas vidas passadas, mas a representação de índios brasileiros, escravos africanos, crianças, marginais, alcoólatras, prostitutas, malandros, estrangeiros perseguidos pelas suas crenças e tradições ou ainda daqueles indivíduos desqualificados quer sejam pela sua condição social e/ou pela sua conduta moralmente condenável segundo os valores da sociedade mais ampla. Enfim, todo e qualquer tipo de minoria desassistida pela sociedade brasileira.[49]"

No entendimento de Bairrão a Umbanda "reflete processos sociais históricos e guarda memórias sociais profundas." Ao refletir esses tipos e experiências sociais , acaba por estabelecer padrões "para o tratamento de traumas coletivos." Segundo o autor:

"É sua tradição incluir experiências sociais traumáticas, estabelecendo orientações quanto ao tratamento dos seus reflexos e elevando-as a símbolos religiosos aclimatados ao contexto brasileiro, os quais articulam relações de identificação e de participação entre contemporâneos e matrizes históricas que circunscrevem as suas condições existenciais.[50]"

A inclusão é tendência presente na Umbanda desde seu mito de fundação, o qual já surge como resultante da exclusão ritual e mediúnica de espíritos de Indígenas e Negros, aos quais irá somar diversos outros grupos de espíritos representantes daqueles tipo sociais excluídos e renegados à marginalidade. Entre os estereótipos que agregará ao seu panteão estão as entidades abarcadas pelo termo "Povo de Rua" entendido em seu sentido lato. Sobre essas entidades e seus estereótipos tratar-se-á abaixo:

Em seu livro " Fundamentos da Umbanda - Revelação Religiosa, lançado pela primeira vez em 1978, Omolubá[51]faz uma crítica ao tratamento dado a Exu na Umbanda.

" A concepção de Exu na Umbanda, até esta data, com raras exceções, não tem sido aceitável, de vez que, está muito aquém da sua verdadeira forma original. Concebeu-se erroneamente uma figura antiestética, rabuda e diabólica, cujo grau de maldade não tinha limites, equivalendo-se ao diabo católico, (...) e cujo fim era perseguir os que não se ajustavam às condições vigentes (...), ou dos ignorantes que não estivessem em consonância com a Igreja Católica Apostólica Romana.

Nada mais irreal, grotesco ou primário que tais aberrações. Sendo Exu uma força viva da natureza, apresenta-se de acordo com a capacidade eletiva de cada um, pois "exu" é uma denominação genérica onde se enquadra uma progressiva graduação, que vai do mais primitivo e informe espírito da terra ao mais graduado e consciente dos grandes Exus, que representam a escala máxima tendente ao Orixalato[52]

Omolubá está versando a respeito das entidades do "Povo de Rua" que se generalizam sob o nome "Exu". Ao reportar-se ao comportamento da maioria das casas de umbanda em relação a "Exu" e ao "Povo de Rua" faz uma crítica severa ao tratamento preconceituoso, e em sua visão, "errôneo" dado a essas entidades pelos umbandistas. Já aqui se pode perceber uma busca pela libertação e pela desdemonização dessas entidades não somente com relação à sociedade abrangente e ao senso comum, mas particularmente endereçada aos próprios umbandistas, de forma que possam repensar o tratamento que era dado a essas entidades. É uma tentativa de dissociar "Exu" e as entidades do "Povo de Rua" do diabo cristão e do Mal absoluto atribuído ao mesmo.

2.1.1.2 -Entidades componentes do "Povo de Rua":

Exu: Entidade masculina cujo histórico mítico remete a condições morais e/ou materiais marginalizadas pela sociedade. Podem ter sido ricos ou pobres, poderosos ou não, estudados ou incultos. No geral são entendidos como criminosos diante da Lei dos Homens ou de Deus, quando não em ambas. Suas faltas podem ter sido cometidas por atos ou omissões, cujas resultantes causaram danos a si e a outrem.

Seu arquétipo inclui todos os tipos de marginais: assassinos, ladrões, médicos omissos em seus socorros, juízes e policiais corruptos, padres e outros religiosos que não cumpriram seus votos ou desviando-se de suas obrigações desampararam seus fiéis ou induziram-nos a erros , políticos e poderosos que corromperam a si e a outros, senhores de escravos cruéis, desencaminhadores de donzelas, e mesmo alguns que por sua inflexibilidade diante de regras legais ou morais tornaram-se tão intransigentes e endurecidos que causaram danos imensos a outros - casos em que se inscrevem , por exemplo, espíritos que em vida foram juízes e afins que mesmo sabendo serem os réus inocentes e as supostas provas forjadas, fecharam olhos e ouvidos, lavaram as mãos, condenando inocentes, etc.

Pombagira: Entidade feminina cujo histórico mítico remete a condições morais marginalizadas pela sociedade. Com o agravamento da impiedosa moralidade com que se julga(va) socialmente o feminino. No geral são entendidas como criminosas diante da Lei dos Homens ou de Deus, quando não em ambas. Suas faltas podem ter sido cometidas por atos ou omissões, por vontade própria ou necessidade de sobrevivência. cujas resultantes causaram danos a si e a outrem. Sobre essas entidades pesa ainda a moralidade sexual , ou melhor, a falta dela segundo o puritanismo hipócrita da sociedade. Na visão de Sulivan:

"A figura da pomba-gira é vista pelos umbandistas como a "mulher de Exu" ou "Exu fêmea". As pombas-giras se referem, antes de tudo, aos espíritos de prostitutas, cortesãs, cafetinas, mulheres sem família e sem "honra". Além de possuírem as mesmas características que seus "parceiros", elas carregam consigo toda a ambigüidade dos exus aliada a uma imagem feminina fortemente sexualizada. As pombas-giras são as figuras da Umbanda que talvez mais se vinculam à fantasia, à criação e ao desejo coletivo.[53]" (BARROS-2008)

Entre as Pombagiras encontram-se também espíritos antigas religiosas que se desviaram de seus votos, mulheres que por amor ou não levaram homens a desviarem-se de seus votos religiosos ou compromissos familiares e sociais, parteiras que praticam aborto, mulheres que abortavam propositadamente, etc. É entre as Pombagirass que se localizam aquelas que por sua idade deveriam estar na falange dos Exus-Mirins, as Pombagirass Meninas[54]mocinhas de pouca idade, em geral, prostituídas e jogadas na vida e nas ruas na mais tenra idade. Segundo Bairrão, na falange e nas giras de Exus-Mirins:

"É muito rara a aparição de meninas, até porque, por definição, exu é homem. No terreiro do Toquinho[55]contam-nos que a antiga mãe de santo, falecida há mais de dez anos, comentava ter conhecido um médium que recebia uma menina que vinha nesta linha. É o único caso de que tiveram notícia ao longo de todo esse tempo, embora Manezinho Tição[56]do bando desse centro, nos alerte que com eles vem uma menina, que ainda não "baixa" porque não tem "cavalo". A Casa da Priscila foi freqüentada por uma garota, carinhosamente apelidada pelos seus comparsas de "piiitinha[57](imitando o som que nos programas televisivos sublinha palavras proibidas, tornando-as mais audíveis). Não vem mais regularmente, pois a sua médium mudou de cidade. A raridade é tamanha que, no terceiro terreiro, arrisca-se uma hipótese para a sua inexistência: uma menina sexualmente vivida, rapidamente se assimilaria a uma pomba-gira. Deixaria de ser criança e passaria a ser mulher.

De fato, já existe no panteão uma categoria de pombas-giras meninas. Mas a manifestação de suas representantes é ainda mais rara do que a dos meninos exus. Segundo a médium do Risadinha[58]a mesma se referiria a adolescentes mais velhas e ritualmente, quando "baixa", vem na linha das mulheres.

O povo de rua infantil do sexo feminino, portanto, parece mais difícil de situar e desperta maiores hesitações, sendo praticamente invisível. Talvez assim se assinale uma maior dificuldade em assimilar e elaborar imaginalmente a menina de rua, por a sua exposição ao risco de violência e de exploração sexual implicarem presumivelmente condições de vida ainda mais duras e cruéis, e, portanto, em processos de identificação e de interpretação ritual na própria carne de extremos de horror ainda menos suportáveis.[59]" (BAIRRAO- 2004)

Com relação as Pombagiras e, confirmando a hipótese de que está havendo um movimento de desdemonização dessas entidades cabe expor a discussão ocorrida entre alguns umbandistas e o pesquisador e sociólogo Reginaldo Prandi devido ao conto de sua autoria[60]publicado no caderno "Mais"! do jornal Folha de São Paulo(Março 2008) durante as comemorações do centenário da Umbanda. A resposta de Prandi ao indignado clamor dos umbandistas, é reveladora:

"Quanto ao meu texto "Coração de Pombagira", em termos de conteúdo, ele não difere substancialmente de dezenas de livros sobre pombagira, escritos por pais-de-santos e outras autoridades umbandistas à venda nas lojas de umbanda (e nos quais eu me baseio, ao lado do conhecimento adquirido pela pesquisa de campo sistemática). A concepção de pombagira como mulher de costumes escuso durante sua vida terrena é decisiva na constituição dessa entidade, assim como o são a natureza ingênua e aguerrida do caboclo e a bondade e sabedoria sofridas do preto-velho. A umbanda associa à pombagira categorias socialmente marginalizadas como prostitutas, damas de cassinos e cabaré, mulheres que se juntam a bandidos e homens igualmente marginalizados. O que acontece depois de sua morte, num plano espiritual, é outra coisa. Em alguns terreiros (em face da diversidade do campo umbandista) pombagiras podem ser "batizadas" à moda cristã e redimidas como figuras virtuosas. Mas na origem o que as define é sua condição terrena marginal. A perdição ou negação das virtudes pregadas pela moralidade geral vigente é o elemento essencial na constituição mítica dessas entidades que, junto com seus parceiros masculinos, os exus, são o centro da prática quimbandista, encontrada em terreiros de umbanda e hoje também em terreiros de candomblé. Isso não é invenção de gente de fora da religião. Aliás, basta apreciar, numa loja de umbanda, as imagens, muitas em tamanho natural, de diferentes pombagiras para se ter uma idéia nada parcial do papel social que teriam desempenhado em vida, o que é fartamente relatado em suas lendas e em seus mitos. Tal fato em nada diminui sua força religiosa e sua capacidade de ajudar o outro. (...) Mais que isso, é dentro da própria umbanda que se costuma confundir os exus com o diabo e as pombagiras com esposas do demônio. Basta ouvir o que dizem dezenas de pontos cantados dedicados a essas entidades em terreiros de umbanda. Não é imaginação de gente de fora, muito menos de algum pesquisador desavisado ou jornalista inexperiente. Nem consta da história relatada em "Coração de Pombagira"[61].(Prandi- 2008)

Exu-Mirim: Entidade cuja idade pode variar da infância à adolescência. Falange duplamente evitada: pelas crianças da direita (erês/ibejada), pelos adultos da esquerda: Exus , Pombagiras, etc. Seus históricos míticos são provavelmente os mais sofridos. Aqueles através dos quais é possível perceber claramente o descaso e a impiedade social. São retratos do abandono infantil, da falta de cuidado da sociedade abrangente para com aqueles que deveria educar e proteger. São vistos como crianças "perversas, delinquentes e más[62]BARROS-2010). A pesquisa de Bairrão indica que muitos entre os espíritos que formam essa falange têm pouco tempo de passagem[63]grande parte dos quais estariam em vida inseridos entre os meninos de rua, infratores e delinquentes que pupulam soltos nas cidades, tentando sobreviver nas ruas:

"Os mirins refletem a delinqüência infanto-juvenil das crianças de rua, sem disfarces ou recondicionamentos. Propõem-se como antípodas da beleza, inocência e pureza infantil (típica das crianças da "direita"). Geralmente são descritos como muito feios. A feiúra metaforiza esteticamente o lado "errado" da vida pelo qual trafegam (ou trafegaram).

Segundo uma mãe de santo, "uma característica deles é perigo à vista, como as crianças de rua. Carentes, têm a sensibilidade deles, mas oferecem perigo. Eles estão com medo, mas fazem com que você tenha mais medo do que eles, para intimidar, exatamente como um moleque de rua".

A sua periculosidade é apresentada como talento (como de fato o é e assim a compreendem, espelhando os recursos que permitem às crianças de rua sobreviver). Fiel ao seu "ethos", a Umbanda vai elaborar estas crianças que se defendem assustando, intimidando, e podem de fato ferir, socializando as suas "defesas". Transformando a sua competência ofensiva em qualidade defensiva. Descobre virtudes nos seus defeitos, inclui-os, sem pré-condicionar que isso se faça ao preço da anulação do modo de ser que se lhes tornou constitutivo (o que seria mais uma forma de violência, típica de outros cenários do menu religioso brasileiro, determinados por vocações doutrinadoras ou conversoras, umas e outras tentativas de supressão do diferente e da especificidade).[64]"(BAIRRAO-2004)

No que diz respeito à falange de Exus Mirins, ainda é raro encontrar terreiros onde apareçam e sejam recebidos em conjunto como uma falange independente e uma gira (ou parte de gira) para si. Poucos são os terreiros que os aceitam, e quando o fazem, no geral, são recebidos individualmente e durante as giras dedicadas aos exus adultos. São vigiados de perto pelos guias chefes e zeladores. A respeito da aceitação, inclusão, abertura de espaço próprio para essas entidades ou não, segundo o entendimento de Bairrão:

"Uma parcela significativa do culto recusa-se a lidar com eles. Alega não saber como tratá-los. Cogita-os perigosos demais. Por inacessíveis a argumentos racionais, seriam mais tinhosos do que os exus "adultos".

Esta posição deve ser contextualizada pela ambigüidade intrínseca à categoria e pelo efeito que ela produz. Os que a defendem ilustram uma parcela da reflexão coletiva do imaginário social. Participam da elaboração de uma compreensão social profunda da criança excluída, representando o lado da balança que pondera o pavor e crueldade reativos que ela encarna.

O imaginário opera como reflexão social. Em se tratando de dar sentido humano e dignidade religiosa a terríveis e prementes vivências sociais, é totalmente normal que haja ponderações e polarizações. Uma parcela da comunidade umbandista empírica "encarna" um lado dos argumentos e outra ilustra as teses contrárias. Assim avança uma reflexão coletiva, que poderá ou não chegar a uma síntese ou decisão.

Muito provavelmente, dada a vocação inclusiva da Umbanda, a palavra final será a da aceitação. Mas esta não pode acontecer imediata e generalizadamente, sob pena de se cortar o processo de reflexão e, acima de tudo, de se impedir que a crueldade, reativa mas efetiva, do animal humano destituído do mínimo imprescindível à vida digna, seja refletida. Neste caso, não se poderia expressar o horror de condições limites e cruéis da existência humana, nem evocar o temor que elas eliciam.[65]" (BAIRRAO-2004)

Contrapondo-se em parte a essa visão, Rubens Saraceni, seguindo a teologia da escola que criou culpabiliza médiuns e dirigentes umbandistas pelo ostracismo ao qual foram relegadas tais entidades. E diferentemente dos demais pesquisadores do assunto, pretende que tais entidades nunca encarnaram, deixemo-lo explicar sua visão sobre o assunto:

"Quando a Umbanda iniciou-se no plano material, logo surgiu uma linha espiritual ocupada por espíritos infantis amáveis, bonzinhos, humildes, respeitosos e que chamavam todos(as) de titios e titias ao se dirigirem às pessoas ou aos Orixás e guias espirituais. Também chamavam os pretos(as) velhos(as) de vovô e de vovó. Até aí tudo bem!

Mas logo começaram a "baixar" uns espíritos infantis briguentos, encrenqueiros, mal-educados, intrometidos, chulos e que dirigiam-se às pessoas com desrespeito chamando-os disso e daquilo, tais como: seu pu.., sua p..., seu v...., seu isso e sua aquilo, certo? E quando inquiridos, se apresentavam como "exús" mirins, os exús infantis da Umbanda numa equivalência com um exú infantil ou um erê da esquerda existente no Candomblé de raiz nigeriana.

Exú Mirim assumiu o arquétipo que foi construído para ele: o de menino mal! E tudo ficou por aí com ninguém se questionando sobre tão controvertida entidade incorporadora em seus médiuns, pois ele diziam que todo médium tem na sua esquerda um Exú Mirim além de um e Exú e uma Pomba Gira.

De meninos mal educados, como tudo que "começa mal" tende a piorar, eis que as incorporações de entidades Exús Mirins começaram a ser proibidas nos centros de Umbanda devido a vazão de desvios íntimos dos médiuns que eles extravasavam quando incorporavam nos seus.

De mal vistos, para pior, essa linha de trabalhos espirituais, (onde cada médium tem o seu Exú Mirim), quase desapareceu e só restaram as incorporações e os atendimentos de um ou outro Exu Mirim "muito bom" mesmo no ato de ajudar pessoas.

Então ficou assim decidido, mais ou menos, por muitos:

a) Exú Mirim existe, é mal educado e incontrolável e de difícil doutrinação.

b) Vamos deixar Exú Mirim quieto e vamos trabalhar só com linhas espirituais doutrináveis e possíveis de serem controladas dentro de limites aceitáveis." (SARACENI-2008)

Para o autor, Exú Mirim praticamente desapareceu das manifestações Umbandistas porque suas incorporações fugiam do controle dos dirigentes e seus gestos e palavrões envergonhavam a todos. Segundo Rubens, a tendência humana é negar e ocultar aquilo que não pode controlar, explicar e que causa " vergonha". Assim, os umbandistas preferiram relegar exus-mirins ao ostracismo, como alguns templos ainda o fazem em relação aos demais elementos do "Povo de Rua". Por outro lado, o autor pretende que é a falta de disciplina e doutrina a grande causa desse "esquecimento" com relação a essas entidades. Pretende que o comportamento das mesmas reflete o entendimento consciente e o inconsciente de seus médiuns e dos dirigentes umbandistas das casas onde se apresentam.

Para Saraceni "o exemplo que vem "de cima" ainda é um dos melhores reguladores comportamentais", ou seja , a partir dos dirigentes cuja doutrina e o comportamento devem ser exemplares e rígidos que os bons exemplos são repassados aos médiuns e a partir desses às entidades, que se apresentarão então dentro de um padrão comportamental aceitável. O oposto também se realiza, para maus exemplos, más manifestações comportamentais. Ainda segundo o Saraceni[66]Exus Mirins: "1) Não são espíritos humanos, em hipótese alguma. 2) Exús Mirins são seres encantados da natureza provenientes da sétima dimensão à esquerda da que nós vivemos." Neste aspecto segue em direção diversa daquilo que apurou Bairrão em suas pesquisas . No que se refere aos itens 1 e 2 acima descritos , as entrevistas dadas a Bairrão pelas próprias entidades, opõem-se a ideia expressa pelo umbandista, já que os mirins entrevistados citam sua vivência na Terra como seres encarnados. Como demonstra o trecho a seguir:

"Do mesmo terreiro, Manezinho Tição também morava numa favela, só que na região da Casa Verde. Ele e o seu parceiro Risadinha já "em vida" eram do mesmo bando. Não tinham o que comer. Compravam bala e vendiam num farol. Achavam mais fácil roubar. Sobrava bala para o outro dia e levavam dinheiro para casa. Assaltavam perto do farol. "Manezinho empurrava e Risadinha pegava".

Foi morto por um "canela preta" (policial). Foi enterrado como indigente. A mãe só soube depois de sete dias. Ela não ligava para o fato de ele não ir à escola e roubar, pois levava um pouco de dinheiro para casa. Como o dinheiro era pouco, preferia enganar a fome com droga. Nunca gostou de escola e não sabe ler nem escrever. "Tem" 11 anos e tinha muitos irmãos, alguns ainda vivos, sendo cada um de um pai diferente...[67]" (BAIRRAO- 2004)

Malandros(as): Entidades que simbolizam a boêmia, a jogatina, um "viver de golpes", o "bem viver" sem trabalhar, recebendo dinheiro de prostitutas e donos de bordéis, praticando contravenções, etc. Por outro lado, carregam a fama de proteger os indefesos, dar de comer aos famintos, dar remédios aos doentes. São escorregadios, simpáticos, cheios de lábia, bamboleantes no andar, galanteadores, contadores de histórias, gostam de cantar e dançar, fazer rimas, beber, fumar e "cheirar",etc...

Há discussão sobre suas origens. Alguns, como Rivas Neto, pretendem que tenham vindo do Catimbó, a partir da figura do mestre Zé Pelintra. Com ele concordam Francelino de Shapanan[68]e Luiz Assunção[69]"Originário da Jurema, onde aparece como Mestre, podendo fazer o bem e/ou o mal, Seu Zé Pelintra migra para o Rio de Janeiro , para a umbanda, onde toma a roupagem do malandro carioca, daí migrando para a umbanda de outras regiões do país." Outros malandros e malandras[70]surgiram a partir da existência vivida na malandragem e boêmia da Lapa Carioca entre as décadas de 1910 – 1940.

Ciganos (as): Essas entidades, no geral, semelhantes em seus históricos aos de Exus e Pombagiras, caracterizam-se por seguir em parte a tradição do povo cigano. Muitos ou são de origem cigana, tendo enveredado por caminhos não aceitos pelo seu povo, ou não sendo ciganos levam vidas ciganas. Não se misturam com os chamados Ciganos Orientais que trabalham na direita da Umbanda.

As entidades acima, assim como as demais entidades umbandistas são representações de tipos sociais existentes no Brasil. Aliás, essa é uma das características marcantes da Umbanda. É de sua natureza resgatar e sacralizar figuras nacionais, as mais sofridas e marginalizadas. Assim, se num primeiro momento, surgem caboclos de pena, como representantes dos já escravizados e, em muito dizimados, indígenas autóctones; os preto-velhos representando por usa vez o africano, desterrado e escravizado; as crianças (ibeje/êres)que embora representem a inocência também são ícones da dependência, da impotência e da submissão aos mais velhos. Para além destas três figuras reconhecidas como pilares da Umbanda, outras foram sendo agregadas, incluídas em seu panteão, que exige para licenciar sua presença e reconhecer sua pertença apenas que se proponham tais espíritos à prática da caridade. Desta forma sugiram outras falanges: Boiadeiros, Marinheiros, Mineiros, Iaras, Baianos, Ciganos Orientais, Falanges Orientais, Mestres Curadores, etc.

2.2 – Umbanda e Kimbanda novos frutos da antiga Macumba

Em finais do Séc. XIX e início do Séc. XX, pelo alguns fatores tiveram influência direta sobre as mudanças ocorridas posteriormente com relação às Macumbas: o fim do regime escravocrata, que provocou a migração dos libertos para as cidades em busca de emprego - principalmente as do Centro-Sul do país, em fase de desenvolvimento e início de industrialização, a chegada de imigrantes e a Proclamação da República, que levou o poder público novamente a investir no conceito de brasilidade e nacionalismo. No mesmo período, segundo relata Oliveira, ocorreram em direção ao Rio de Janeiro:

"migrações de Sacerdotes Baianos vieram para o Rio de Janeiro e ali fixavam vários Candomblés, criando uma comunidade que ficou conhecida como a "Pequena África". Outros misturaram e fundiram a cultura religiosa do Candomblé com as Macumbas já existentes na cidade. Montando a pré-formação daquilo que seria conhecida como a Religião de Umbanda que, aos poucos, foi substituindo as Macumbas como forma popular de manifestação religiosa[71]

A partir da segunda metade do séc. XIX, imbuído por ideias como evolucionismo social, positivismo, naturalismo, darwinismo social, cientificismo, civilização, etc., o Poder Público e a elite pensante da sociedade brasileira investem na construção da brasilidade. Nesse momento, enquanto "o país vivia o espetáculo das raças, o sonho de sonho de produzir uma sociedade branca nos moldes europeus", segundo Sá Junior, é quando se dá o início das dissonâncias dentro do próprio movimento religioso afro-brasileiro, que levaria parte dos adeptos dessas religiões a aproximarem-se do discurso do poder.

As classes médias participantes das religiões afro-brasileiras, principalmente as pertencentes à Umbanda – oficialmente fundada/anunciada em 1908 -, " iniciavam a construção de um discurso que evitava afastar o passado africano da religião"[72], o que Ortiz viria a denominar como um processo de embranquecimento das religiões afro-brasileiras, em sua tese " A Morte Branca do Feiticeiro Negro".

O coroamento público desse processo de embranquecimento e legitimação se dariam em 1941, durante o I Congresso de Espiritismo de Umbanda. No congresso os palestrantes remetem as origens da Umbanda a tempos imemoriais, e variando conforme a formação de cada um tomam como local de origem da Umbanda o Egito, a Lemúria , a Atlântida, a Índia, tudo menos a África Negra, considerada atrasada, incivilizada, degenerada, portanto incapaz de ter originado a Umbanda. No entanto tendo sido capaz de salvaguardar, embora de forma degenerada e empobrecida, parte de alguns dos preciosos conhecimentos sobre a Umbanda.

Não sendo, entretanto, as origens míticas da Umbanda a proposta de discussão deste trabalho, tais decisões do congresso servem apenas para corroborar com o que se verá a seguir na nova divisão surgida dos cultos afro-brasileiros. Abre-se aqui um parêntese para situar a umbanda como expressão máxima da matriz religiosa brasileira:

Segundo Eduardo Refkalefsky, entre as religiões brasileiras é a umbanda a melhor representante dos elementos da "Matriz Religiosa Brasileira"[73]. Que por sua vez é parte da Matriz Cultural Brasileira, sendo esta resultante do processo colonizador. Refkalefsky, aponta o sociólogo José Bittencourt Filho como o autor do termo "Matriz Religiosa Brasileira", segundo o qual conceitualmente, a Matriz compreende:

"formas, condutas religiosas, estilos de espiritualidade, e condutas religiosas uniformes evidenciam a presença influente de um substrato religioso-cultural que denominamos Matriz Religiosa Brasileira. Esta expressão deve ser apreendida em seu sentido lato, isto é, como algo que busca traduzir uma complexa interação de idéias e símbolos religiosos que se amalgamaram num decurso multissecular, portanto, não se trata stricto sensu de uma categoria de definição, mas de um objeto de estudo. Esse processo multissecular teve, como desdobramento principal, a gestação de uma mentalidade religiosa média dos brasileiros, uma representação coletiva que ultrapassa mesmo a situação de classe em que se encontrem. [...] essa mentalidade expandiu sua base social por meio de injunções incontroláveis [...] para num determinado momento histórico, ser incorporada definitivamente ao inconsciente coletivo nacional, uma vez que já se incorporara, através de séculos, à prática religiosa". [74]

Essa percepção sobre a Umbanda como representante máxima da Matriz Religiosa Brasileira vai influir diretamente no processo de legitimação da religião. A intelligentzia umbandista utilizará essa representatividade a seu favor num momento em que a brasilidade e o sentimento nacional estavam sendo construídos e utilizados politicamente tanto para a manutenção da união nacional quanto para a afirmação da República. O ápice de tal processo de legitimação da Umbanda e de seu marketing como religião brasileira ocorreu durante o Governo Vargas.(OLIVEIRA - 2008)

Das "Macumbas" saíram também a Quimbanda e a Kimbanda, culto de origem banto onde a moralidade cristã ocidental não conseguiu penetrar. Ambas acolheram e "substituíram" os antigos kimbandas[75]e outros feiticeiros que desde o séc. XVI, se misturavam em solo brasileiro.

2.2.1 – Exu e seu boné vermelho e branco. Entre Evangelizados e Revolucionários: Jogando dos dois lados.

Em texto do Bàbá Osvaldo Omotobàtálá "Exu na lei da quimbanda" pode-se encontrar a sua versão do surgimento da Kimbanda no Brasil, assim como a evolução dessa religião no contexto religioso brasileiro.

Dividindo os bantos em dois grupos: o primeiro, que o autor denomina de evangelizados, ou seja, os que aceitam a imposição religiosa do homem branco e o segundo grupo denominado de revolucionários, que pelo contrário não aceitam a interferência do dominador em suas crenças. A esses dois grupos se uniram indígenas com as mesmas inclinações pró e contra. Surgindo dois novos grupos: negros e índios evangelizados de um lado e negros e índios que não aceitavam os santos ou o sincretismo ( no dizer do autor se identificando com o diabo) . Tais grupos "juntam-se para fazer suas magias por separado, e dizer, os negros bantos contrários ao branco e os santos com os índios bruxos; e os negros bantos evangelizados com os índios evangelizados"[76].

Surgindo assim, segundo a visão de Osvaldo Omotobàtálá como correntes opostas e paralelas a Umbanda como culto dos espíritos de caboclos e pretos velhos evangelizados e a "Quimbanda - o culto dos caboclos e pretos que não aceitaram viver em baixo do pé do Deus dos brancos, se aliando ao Diabo (inimigo do branco) e com Exu (aquele que também era olhado como um demônio)[77]".

Segundo a teoria do autor, ao morrerem, esses negros e índios dos dois grupos começaram a "baixar" indiscriminadamente, juntos nos mesmos locais (casas de culto), incorporados através do transe de seus descendentes, sem grande diferenciação entre uns e outros. Porém:

"Os descendentes de escravos o que menos queriam era de ser chamados satanistas ou macumbeiros, por isso votaram aos grupos revoltosos em baixo do pé dos grupos evangelizados e a Kimbanda ficou sendo uma sub-linha da Umbanda. Porém os próprios Espíritos se encarregaram de fazer a separação e hoje em dia podemos dizer sem lugar a dúvidas que existem duas religiões paralelas e diferentes: a Umbanda - onde chegam os Espiritos Guias dos Pretos e Caboclos evangelizados, vestidos de branco, humildes, que acreditam nos santos e os Orixás, onde não se faz sacrificios de animais, que não fazem o mal, etc. E a Kimbanda – onde chegam os Espiritos Guias dos Pretos e Caboclos que trabalham para bem ou mal, com sacrifícios de animais, luxo, orgulho, revolução e que não acreditam nos Santos da Igreja, defensores de tudo o que seja africanismo, e aceitam aos Orixás e nkisis.[78]"

O Omotobàtálá afirma que as diversas Umbandas conforme os preceitos e influência majoritária de cada templo adotam ou não, as linhas de Umbanda e Quimbanda/Kimbanda adaptando-as ao fazer de cada casa. E exemplifica, informando que: os que fazem Umbanda branca (sem sangue) colocam a Kimbanda (Quimbanda) submetida à Umbanda; os que praticam culto aos Orixás e Umbanda, olham para entidades de Umbanda e Kimbanda ( de Angola) como ancestrais ou linha das almas (por influência dos iorubanos), sendo considerados esses espíritos como submissos aos Orixás e recebendo sacrifícios.

2.2.2- O lado vermelho (e preto) do boné de Exu – Quimbandas: Quimbanda, Quiumbanda e Kimbanda.

Quimbanda ou Kimbanda são palavras polissêmicas. Podem aparecer significando no masculino o Ki-mbanda( quimbundo)- curador , feiticeiro , médico entre os bantos, e no feminino, a Quimbanda ou Kimbanda cultos de definição e entendimentos vários, popularmente relacionados pelo senso comum como cultos de magia negra. Como explica Sá Junior no decorrer do tempo o Kimbanda viu-se transformado:

(...)"A transformação pela qual passaram os sacerdotes africanos participantes das religiões de culto aos antepassados, das regiões de Angola e do Congo, chamados de Kimbanda e Nganga, respectivamente. O contato com os colonizadores europeus, que traziam no seu imaginário os conceitos de feitiçaria e práticas mágicas, acabou por ressignificar os seus costumes religiosos. De sacerdotes desses cultos, acabaram sendo vistos como feiticeiros e praticantes de magias negras. Ao lado desse rótulo externo, os cultos, dirigidos pelo Kimbanda e Nganga, foram se transformando, através de uma dinâmica cultural com as religiões e religiosidades européias e indígenas, gerando cultos como a cabula, o calundu e a macumba, que no século XX, formaram matrizes religiosas como a Umbanda[79]

Quimbanda ou Kimbanda [80]pode aparecer dependendo de quem e como se escreve ou fala como uma religião separada da Umbanda cuja prática magística não envolve ética ou moral sendo exercida pelas entidades ou pelo feiticeiro à base de troca. Pode ser considerada por alguns como uma parte da Umbanda, a ela submetida. Em alguns casos apenas o nome pelo qual se denominam os cultos ao "Povo de Rua" (como em alguns terreiros em São Paulo), em outros , como no Sul do Brasil, Uruguay e parte da Argentina há a chamada Kimbanda de Angola que se diferencia da Quimbanda ("brasileira") que é considerada contra parte da Umbanda, conforme informa a "Apostlia de Kimbanda" do Bàbá Osvaldo Omotobàtálá, encontrada no site "Reino de Kimbanda":

"Existen dos tipos principales de "kimbanda":

a) Línea de kimbanda o Exu de Umbanda.- Los cuales están bajo el mando de las Entidades de Umbanda (Cabloclos, Pretos, etc), en proceso de evolución, no reciben sacrificios de animales y forman parte integral de la Umbanda, siendo que no hay un "aprontamiento" especial para esa linea, sino que el mismo se hace en conjunto (todas las Líneas de Umbanda). La persona recibe el título de Jefe o Cacique de Umbanda. El culto a Exu aquí no está separado de la Umbanda, sino que se trata de su "mensajero", al cual se lo agradaría haciendo una sesión una vez al mes como mínimo y por separado de las demás Entidades de "Derecha". Se les considera Elementos de Izquierda o del Mal (esto es en base al sincretismo), por esto se trata de llamarlos lo menos posible.

b) Kimbanda de Angola o "Exu de Alto Astral".- Los cuales no están bajo el mando de las Entidades de Umbanda, sino que estarían subordinados a los Nkisis o fuerzas de la Naturaleza directamente. Se mezcla aquí parte de rituales yorubas con el culto a los Ancestros practicado por las naciones Angola-Congo. La fusión entre el Exu de Umbanda con este tipo de ritual da como resultado lo que se conoce mayoritariamente en el Sur de Brasil, Uruguay y parte de Argentina como "Exu de Alto Astral" o simplemente KIMBANDA, donde casi no se puede separar un tipo de kimbanda del otro a simple vista. En este tipo de kimbanda se realizan obligaciones con sacrificios de animales tales como: Novillos, chivos, carneros, aves, etc. Son necesarias como mínimo 7 (siete ) obligaciones de "cuatro patas" para adquirir el grado de Jefe de Kimbanda o Nganga de Kimbanda, además de los conocimientos que debe ir sumando durante esos años la persona. ESTE CULTO NO ESTÁ SUBORDINADO A LA UMBANDA, de ahí que existan diversos grados de iniciación y obligaciones que nada tienen que ver con la misma ( En umbanda tradicional no se sacrifican animales)[81]."

Segundo o mesmo autor, Os únicos espíritos que devem "baixar" seja na Umbanda cruzada , seja na Kimbanda, são os de antigos chefes (antepassados) conhecedores de fundamentos e rituais. No que tange aos Exus de Kimbanda ( Angolana), são os que tem cargos de alto comando no astral, encarregados de funções e cargos específicos, ligados ao governo do "reino", pois o mundo espiritual da Kimbanda seria muito parecido com o que habitamos. Para Omotobàtálá, os Exus de Kimbanda não "baixam" em nenhum ser humano, pois são formados por energias puras e muito potentes diferentes da humana, porém poderosas e com características dela. Tal afirmação aproxima esses Exus de Kimbanda Angola do conceito de Nkysses- deuses congo-angolanos, semelhantes aos Orixás.

O autor afirma que as diversas Umbandas conforme os preceitos e influência majoritária de cada templo adotam ou não, as linhas de Umbanda e Quimbanda/Kimbanda adaptando-as ao fazer de cada casa. E exemplifica, informando que: os que fazem Umbanda branca (sem sangue) colocam a Kimbanda (Quimbanda) submetida à Umbanda; os que praticam culto aos Orixás e Umbanda, olham para entidades de Umbanda e Kimbanda ( de Angola) como ancestrais ou linha das almas ( por influência dos iorubanos), sendo considerados esses espíritos como submissos aos Orixás e recebendo sacrifícios.

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