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O Homem: Esse projeto mal-acabado (excertos de uma tese despretensiosa) (página 3)


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Pieper está coberto de razão: Heidegger, em sua aversão às definições escolares, não foge à sua regra e, também neste caso da verdade, acaba negando-se a produzir conceitos, alegando para tanto que a metafísica em absoluto é "uma especialidade da filosofia escolar, [mas sim] o acontecimento fundamental da existência", aí incluída a própria existência. A explicação que Heidegger provê para essa sua posição controversa (ou seria melhor dizer, complexa, ininteligível?) é, primeiramente, que quem expõe uma verdade ou concorda com ela obrigatoriamente deve ser livre. Em sua frase fundamental – "a liberdade é a essência da verdade mesma" –, o conceito de essência "se entende aí como o fundamento da interna possibilidade disso ao que primariamente e em geral se assente como conhecido"[83].

Dir-se-ia, permissa venia, que os filósofos adoram complicar o que às vezes é simples ou, por outro ângulo, adoram produzir rebuscadas e intrincadas explicações quando se defrontam com fenômenos simplesmente inextricáveis e que, por assim sê-lo, resistem (os fenômenos) a ser desvendados, exigindo dos estudiosos o esforço sobre-humano de explicar o inexplicável. Eis que, então e nestes casos, surge a salvadora metafísica com seus deslindes teológicos que elevam a análise ao inexplorável e etéreo plano divino. As verdades, assim, permanecem num limbo existencial inexpugnável – porque superprotegido.

Precedendo Heidegger, o filósofo e teólogo dinamarquês, SØren Kierkegaard (1813–1855) se aproxima bastante ao pensamento socrático quando afirma que a verdade pertence à esfera do pensar. Tanto é assim que, gregos e modernos "intentaram converter esta tese numa prova da imortalidade e da preexistência da alma"[84] – observem aí de novo o fator etéreo em questão.

Kierkegaard evoca o pensamento de Sócrates sobre sua tese da verdade e do conhecimento como reminiscência, expondo seu significado socrático:

"O cognoscente está essencialmente íntegro, e com relação ao conhecimento da verdade eterna não há mais contrariedade (Mislighed) que seu existir; esta contrariedade do que significa existir é para ele tão essencial e decisiva, que o esforço de interiorização em e por ele existir é a verdade".[85]

Assim, para Sócrates a verdade não faz parte dos conhecimentos objetivos, mas sim é parte inerente ao sujeito como existente, enquanto a ignorância, por coerência natural, é a fiel expressão da dúvida (perplexidade) objetiva. Verdade remete a interioridade (do existente), a reminiscências do sujeito, mas em patamar ainda distanciado da fé, que é mais profunda e arraigada.

Se para Sócrates esta é a realidade da equação veritas, para Platão, seu discípulo, a reminiscência seria mera especulação, em "eternidade abstrata, longe ao existir"[86], enquanto para Kierkegaard seria um singelo paradoxo que, em Sócrates, reside em sua crença de cada homem ser em si mesmo o centro do mundo, "pois o conhecimento de si mesmo é um conhecimento de Deus"[87]. Portanto, seguimos trilhando o caminho difuso e subjetivo da imaterialidade, das crenças arraigadas em razão do discurso histórico e que se multiplicam e diversificam e amplificam em proporção direta ao passar do tempo.

Contemporâneo de Kierkegaard, nascido três décadas após este, Gottlob Frege (1848–1925), lógico, filósofo e matemático alemão, é convocado a dar um pouco de luz à nossa análise especulativa sobre a verdade. Quem sabe – pensávamos ao elaborar estes excertos da nossa tese – a lógica pura, distanciada diametralmente e em sentido contrário ao da metafísica e ao da filosofia pura, poderia contribuir para a pacificação das nossas dúvidas existenciais. Afinal, ousar não é pecado, costumamos afirmar ante situações intelectuais e fáticas críticas.

Falar em lógica e em matemática pura impõe ao estudioso, obrigatoriamente, passar o olhar (pelo menos) pelas pesquisas e ensaios de Gottfried Wilhelm Leibniz (1646–1716), esse talentoso matemático, filósofo e cientista alemão, autor do artigo "De arte combinatoria" ("Da arte da combinação"), que se notabilizou pelas críticas de alguns autores ao considera-lo "um modelo teórico antecipado para o computador"[88].

A verdade em Leibniz era essencialmente analítica. Em nota escrita ao seu colega Antoine Arnauld (1612–1694), também matemático, filósofo, lógico e teólogo francês, Leibniz expressava que:

"Em toda proposição afirmativa verdadeira, seja necessária ou contingente, universal ou singular, a noção de predicado está de certa maneira incluída na de sujeito – se assim não for, não sei o que é a verdade (Gii56)".[89]

Nessa definição de verdade, Leibniz destaca a necessidade de se distinguir verdades sobre abstrações e verdades sobre substâncias individuais. Ross nos explica o conceito leibniziano:

"Se tomamos uma abstração, a triangularidade, os únicos predicados que podem ser verdadeiramente atribuídos à triangularidade como tal são os pertinentes à sua definição ou que dela podem ser deduzidos. Logo, se definimos um triângulo como uma figura plana com três ângulos e três lados podemos dizer: "Um triângulo é uma figura plana" ou "Um triângulo tem três lados" ou mesmo "Um triângulo tem menos de cinco lados". Mas não faz sentido atribuir à triangularidade em geral uma forma ou tamanho particular, nem atribuir uma cor ou peso particulares a um triângulo abstrato de forma ou tamanho definidos".[90]

Portanto, as verdades são analíticas, necessárias e contingentes, visto que: (a) mediante uma análise, saber-se-á se o predicado do sujeito é componente da definição deste; (b) são necessariamente verdadeiras por estarem autocontidas e não poderem ser falseadas; e (c) são contingentes no sentido de se referirem a indivíduos concretos.

Sem embargo, Leibniz acaba também caindo na necessidade de abordar o tema da verdade sob a ótica do mundo metafísico e isto nos leva a já considerar, como uma das primeiras deduções lógicas da nossa tese, que [pressuposto I]:

Nada neste universo escapa à impositiva e compulsória condição de submeter-se às teorias metafísicas, em razão de dois motivos fundamentais:

(1) a necessidade (melhor dizendo, ansiedade) do ser humano em explicar todos os fenômenos da vida e do planeta, como se fossem fatores vitais à sua existência; e

(2) ante sua ingénita impotência e incapacidade em tudo compreender (onisciência), transfere sua necessidade ao âmbito etéreo (divino), pacificando-a mediante sua inteira submissão incontestada.

Segundo a teoria leibniziana, os domínios do conhecimento encontram-se sistematizados de maneira tal que saímos de um domínio para outro superior: "nossa experiência diária nos envia à física, a física à metafísica e a metafísica à [...] piedade divina"[91]. Leibniz fundamenta-se na experiência para afirmar que vivemos num mundo galileano (de Galileu) e "a metafísica nos explica, pela consideração das verdades que não dependem da experiência sensível, que um mundo galileano é mais perfeito que um mundo não galileano"[92]. Em base a esta premissa, Leibniz estabelece uma hierarquia entre as leis do mundo que está em correspondência com ordens de perfeição, como exposto na Ilustração 9.

Acorde estabelece-se essa hierarquia das leis do mundo, constrói-se uma lógica interna "através da qual cada efeito determinado provém de determinações causais imediatamente anteriores, de maneira que cada estado presente é uma continuação natural do estado passado, como o futuro será do estado presente"[93]. Assim posto, permite-se que se infira uma conexão entre o real e o pensamento, no sentido de que o primeiro se exprime no segundo e este, com suas leis próprias, expressam o todo do real. "O real é intrinsecamente racional, não apenas para nós, mas em si mesmo"[94].

Monografias.com

Fonte: Elaboração do autor em base a LACERDA (2005, p. 52).

Ilustração 9 – Hierarquia das leis do mundo em Leibniz.

Acompanhemos a exposição de Lacerda (interpretando Leibniz) sobre esta ilustração.

Plano Básico: existiriam, de acordo com a teoria leibniziana, três planos normativos que regem o mundo. Seu primeiro plano (básico) é parcialmente universalizado – ou seja, alcança apenas os seres vivos (humanos, regulando-lhes três quartas partes de suas ações, e irracionais em geral) – e, em razão disso, podem ser entendidos como uma ordem tosca do sensível. Ditas leis permitem que julguemos as coisas segundo registros da nossa memória sobre os fatos vividos. Esses registros possuem relação diretamente proporcional à intensidade ou frequência das experiências pretéritas – maior intensidade/ frequência ( julgamento mais acurado, e vice-versa.

Plano Primário: Numa escala algo superior ao plano anterior, encontram-se as leis naturais subalternas – aquelas que permitem que a ciência seja fundamentada em certeza moral –, cuja universalidade é mais abrangente em relação ao plano básico. Ditas leis permanecem no nível da compreensibilidade humana (finita), permitindo-nos prever fenômenos futuros consubstanciados em experiências passadas (hipótese ou habitualidade dos fenômenos), o que permite regular a conduta humana.

Plano Superior: Por fim, no topo da pirâmide normativa, encontram-se as leis universalíssimas, aquelas que envolvem a ordem metafísica fenomênica universal. Segundo explica Lacerda, "são as leis essenciais da série de coisas que constitui o mundo – nelas estão compreendidos inclusive os milagres e as ações livres – que asseguram, por meio de uma infinidade de relações causais, a ocorrência de cada fato singular"[95].

Observando tais proposições leibnizianas da verdade, em seus três planos normativos, comprova-se que há um indeterminado momento em que o ser humano (filósofo, cientista ou simplesmente um estudioso leigo), quando confrontado com certos fenômenos – a exemplo dos precitados milagres e ações livres – e ante a impossibilidade de atestar, fundamentada e concretamente, ditos fenômenos pela experimentação ou por hipóteses cientificamente estruturadas, desvia-se pelo caminho da metafísica, a "ciência ou conhecimento das causas e dos princípios primeiros ou supremos"[96], como teria afirmado Aristóteles em sua coleção filosófica, a partir do seu Livro A e ratificado nos quatorze volumes seguintes.

Isto nos remete, necessariamente, a uma breve discussão sobre a metafísica como ciência conceitual e fundamentadora dos fenômenos universais.

1.1.1 A crise da Metafísica?

Iniciemos por uma constatação de Luiz Henrique Lopes dos Santos em seu estudo introdutório da obra de Ludwig Wittgenstein ("Tractatus Logico-Philosophicus") com a qual nos permitimos concordar, quando explica a ilegitimidade de toda pretensão teórica da metafísica:

"[...] os instrumentos do conhecimento humano são tais e tais, é possível em princípio o conhecimento teórico do domínio dos fatos empíricos e impossível a metafísica, impossível o acesso teórico ao que esteja supostamente aquém ou além desse domínio".[97]

Eis a teoria que também propugnamos e com a qual comungamos in totum, como teremos oportunidade de ver, em detalhes, no decorrer destes excertos despretensiosos.

Lopes dos Santos traz, então, uma série de axiomas defendidos pelo filósofo, lógico e matemático alemão, Gottlob Frege, que merecem ser sumarizados em defesa da tese ora em propositura[98]

  • I. "Todo nome nomeia descrevendo, toda proposição descreve nomeando". Toda proposição deve necessariamente ser bipolar.

  • II. A realidade não é o conjunto de todas as proposições, mas sim, o conjunto de todas as proposições verdadeiras. O que se pretende representar deve ser algo que é real, mas que também aceitará a opção de, em não o sendo, ser falseado. "[...] a linguagem apenas pode servir de veículo à representação do que as coisas realmente são se, por meio dela, for possível a exteriorização de escolhas assertivas, equivalentes à apresentação de proposições como verdadeiras e não falsas" (cursivas no original).

  • III. Em Frege, a formulação de asserções na conceitografia está assim representada: "A proposição "5+3=8" nomeia um valor de verdade, introduzido por seu sentido. A asserção "I 5+3=8" apresenta o verdadeiro como sendo esse valor". Em razão disto, vale frisar que "Nas proposições e asserções, importa à lógica considerar tão-somente o que concerne à sua conexão representativa com a realidade".

  • IV. "[...] o que, na realidade, fundamenta em última instância a legitimidade de uma asserção legítima é a verdade efetiva do sentido que a proposição asserida exprime".

  • V. Esta afirmação de Frege merece ser destacada:

"Se a legitimidade ou ilegitimidade de uma asserção depende, em última instância, da verdade ou falsidade de um sentido proposicional, a verdade ou falsidade dele não pode depender de nada mais fundamental, a questão da verdade não se pode reduzir a nenhuma outra mais fundamental, o conceito de verdade não se pode definir em termos de nada mais fundamental" (negritos no original).

É o momento certo, agora, para vermos o conceito de metafísica relacionado à ideia de Deus. Ensina-nos Wolfhart Pannenberg que as palavras "Deus" e "deuses", nas culturas pré-modernas, "tinham seu lugar mais ou menos preciso na estrutura da cultura viva e, portanto, também no âmbito da linguagem humana: era o lugar da questão do fundamento último da ordem da sociedade e do cosmos e o das instâncias garantes de dita ordem"[99], merecedoras, assim, do respeito, atenção e afeição condizentes com sua importância vital. No decurso do tempo e já nas culturas da Modernidade, a palavra "Deus", no âmbito da consciência popular, vem perdendo paulatinamente tal função e significado – ressalta Pannenberg –, explicando que dito fenômeno se deu em razão da insegurança crescente em relação à realidade que essa denominação envolve.

Haveria uma emancipação da consciência pública em relação à religião, como Pannenberg permite antever? Respeitosamente, permitimo-nos discordar do ilustre teólogo alemão, mas o faremos fundamentadamente num momento posterior, oportuno ao nosso objetivo. Afirma este estudioso a respeito:

"Em princípio tais afirmações [refere-se às proposições afirmativas sobre Deus] aparecem no contexto de uma cultura pública que se há tornado puramente secular como meras afirmações cuja verdade se deixa em suspenso. Isto é, que sua verdade ou inclusive seu conteúdo nuclear (enquanto proposições) não só não é tida já como algo que está por cima de toda discussão, senão que não é aceita nem como plausível nem como crível sem comprovação prévia"[100] (grifamos).

Agora sim, atingimos o ponto mais elevado de concordância mediante este posicionamento. Quando afirmações ou proposições afirmativas advêm das ciências exatas ou humanas, a consciência pública tende a crer nelas em razão do fundamento científico que possuem. Já quando elas decorrem do mundo metafísico, atribui-se a elas uma característica subjetiva típica da crença personalíssima de quem as expressa. Em outras palavras, crença em sua acepção sociolinguística refere "um tipo de conhecimento, uma opinião fortemente arraigada, [que] produz hábitos, determina intenções; como as atitudes, compõe-se de cognição e de afeto", o que, de pronto, remete à sua qualificação de conceito difuso, abstrato, com fronteiras dificilmente delimitáveis.

Parece-nos adequado e válido que reproduzamos em destaque, a complementação de Pannenberg a respeito:

"Para a consciência pública as afirmações sobre Deus ficam em "puras" afirmações atribuídas só à subjetividade do falante. E isto não só porque se considere que sua pretensão de verdade necessita, num sentido geral e óbvio, ser posta à prova, mas ademais porque se pressupõe, já de partida, que a prova não conduziria a nada e que, portanto, as pretensões de verdade das proposições sobre Deus não são dignas em absoluto de uma discussão pública séria"[101] (grifamos).

São vários os filósofos e teólogos que transitam sobre o tema da existência de Deus através de variados argumentos. Nada obstante, como o demonstra o pensamento de Descartes em sua obra de 1641 – "Meditations de prima philosophia" –, a ideia de Deus seria inata ao espírito humano, assertiva que rendeu amplos debates durante o século XVIII, com o núcleo polêmico da questão residindo na consistência da prova ontológica e conduzindo, como resultado, à conclusão de que tal discussão não prosperaria com suficiente credibilidade se não se recorresse a uma argumentação cosmológica – i.e., à aceitação tácita de tal existência divina em razão da sua contingência:

"[...] uma origem que não necessita nenhuma outra causa para ser ela, senão que existe por si mesma, de tal modo que a existência é algo pertencente ao conceito da sua essência [...] conduz ao conceito de um ser que existe necessariamente (ens necessarium), conceito este que é a chave do desenvolvimento da prova ontológica, ao menos em sua forma mais consistente"[102].

Estaria a metafísica, nestes tempos de pós-modernidade, sofrendo uma crise terminal? Segundo o pensamento do filósofo espanhol contemporâneo, Jesús Conill, poder-se-ia afirmar com bastante convicção que dita ciência pode estar sofrendo uma das suas crises nucleares. Todavia, ainda não existem fundamentos concretos que apontem para uma eventual dissolução da metafísica ou, pelo contrário, que ela estaria intentando recuperar e renovar antigas fórmulas: "Nem a dissolução nem a restauração são pensáveis. Antes, a crise da metafísica levou-a a um processo de transformação profunda que impede sua morte, mas também sua restauração"[103] [grifo no original].

As sociedades tecnologizadas, alçadas a um universo cada vez mais virtual, etéreo, subjetivo, imperscrutável, impessoal, afastaram a metafísica da área de assimilação humana, condenando-a a um limbo difuso da existência filosófica. Não mais interessa saber a verdade, a essência das coisas, as causas primárias, as abstrações. "Não vale a pena gastar o tempo na reflexão esforçada que indaga, crítica e construtivamente, os fundamentos da realidade, do saber, da vida e do homem, de sua razão e seu destino"[104]. A pós-modernidade conclama ao materialismo deletério, ao individualismo marginalizante, ao egotismo suicida. E a palavra de ordem passa a ser: viva e consuma o mais que puder e primeiro para você, pense só depois nos outros, pois a vida é muito curta para compartilhar as mazelas e sofrimentos dos outros – sejam estes quem forem.

Encaminhemo-nos ao encerramento deste ponto, pois nosso objetivo em absoluto pretende exaurir o tema metafísico – desafio mais afeito aos filósofos e lógicos renomados –, apenas apresenta-lo como elemento constitutivo da complexa equação que intenta dissecar o ser humano e todo seu ambiente natural, envolvidos pela vida e sua inexorável decadência e morte.

Neste mesmo sentido:

"Metafísica e lógica são ciências inteiramente universais porquanto o âmbito objetivo de cada uma delas é constituído da totalidade dos seres, à [sic] que o logos humano está aberto em princípio".[105]

Universal (sem a adjetivação "inteiramente"), pensamos, seria suficiente para que tal entendimento alcançasse seu objetivo de generalização ilimitada. Todavia, se assumirmos que há diferenciação entre conceitos abstratos (universais) e concretos (individuais) seremos levados a reportar-nos à obra de Kant e suas lições sobre o que se entende por "conceito".

Kant entendia que a metafísica "é a ciência de conhecimentos sintéticos a priori através de conceitos. Os problemas tradicionais da metafísica, aqueles que concernem aos fundamentos das ciências e também aqueles que concernem a supostas questões sobrenaturais referentes a nós, têm a ver com proposições para as quais os metafísicos pretendem que sejam conhecimento sintético a priori"[106]. Exemplos que ilustram este entendimento kantiano são: "Deus existe"; "a alma é imortal"; "a vontade é livre"; "toda mudança tem uma causa"; "em toda mudança a quantidade de substância no mundo permanece constante"[107]. Como a ciência em questão não possui condições de fundamentação empírica restam-lhe apenas os juízos sintéticos a priori.

Assim, Kant serve-se da linguagem para ressignificá-la atribuindo-lhe o sentido de juízo, donde o conhecimento, mediante conceitos discursivos no reconhecimento dos objetos, vale-se da mediação dos juízos. Aplica-se a esse caráter discursivo, destarte, a denominação de caráter judicativo[108]Há aqui um dualismo que demanda explicação: conceito e intuição ou experiência possível, na qualidade de pretensos princípios, como sendo a última uma terceira proposição sintética a priori:

"[...] contra o dualismo kantiano de conceito e intuição é preciso levantar objeções que dizem respeito a todo e qualquer dualismo: pois dois princípios aparentemente irredutíveis um ao outro são sempre idênticos no fato de serem princípios. No caso concreto do dualismo kantiano, impõe-se francamente a crítica de que "conceito" e "intuição" são ambos conceitos, e isso significa que a intuição não pode ser algo totalmente diferente do conceito, porque existe dela mesma um conceito"[109] (negritas no original).

A proposição kantiana parece efetivamente merecer atenção. Para Kant, a cada conceito lhe correspondem certas intuições sensíveis e empíricas, sem as quais não seria possível dar-se o conhecimento de algo. Se concordarmos em que há uma aderência terminológica entre experiência e empirismo, no sentido de identificação entre ambas, então "não nos é possível conhecimento nenhum a priori, se não é unicamente de objetos de possível experiência"[110]. Assim, o conhecimento seria engendrado mediante – e só mediante – a comunhão entre sensibilidade e entendimento, os quais, embora diferentes em sua compreensão, devem mutuamente contribuir para gerar o conhecimento.

As posições hermenêuticas da filosofia kantiana, contudo, acabaram não agradando o idealismo de Schelling – Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling [1775-1854], filósofo alemão representante do idealismo alemão, junto a Fichte e Hegel – e colegas, no que concerne às explicações sobre a unidade da razão, em seus sentidos teórico e prático. Schelling preconizava a razão intuitiva; Hegel defendia o caráter subjetivo e absoluto – "o finito é o ideal e seus pressupostos estão no ser que esclarece a forma" –, enquanto Fichte afirmava "o princípio absolutamente primeiro, puro e simplesmente incondicional, de todo ser humano"[111].

Em realidade, Schelling se mantém numa posição bastante próxima à de Hegel, embora não inteiramente alinhado a ela, no sentido de discordar de a realidade absoluta da gênese do mundo natural já ser uma realidade plena; para Schelling, ela apenas é "a realidade toda em potencial", mas nunca absoluta, pelo contrário, eternamente mutável, embora nunca definitiva e finalística. Haveria algo a ser descoberto sempre, alterando essa realidade – para melhor ou para pior. A dinâmica vivencial, assim, seria pendular, um perpetuum mobile.

Num salto exponencial que nos remete à pós-modernidade, somos confrontados com a não-metafísica da verdade, segundo Scopinho, que explica:

"O pensamento pós-moderno se apresenta como reflexão antimetafísica, questionando a ideia de um pensamento forte, que se sustenta na possibilidade de afirmar verdades últimas e absolutas. Segundo G. Vattimo, a filosofia ocidental apresenta características totalizantes, conduzindo para uma concepção monolítica e metafísica da verdade, justificando uma ação violenta contra quem não a aceita" (negritos no original).[112]

Gianni Vattimo é reconhecido no continente europeu (1936---) (e também fora dele) como uma das principais vozes filosóficas contemporâneas da pós-modernidade, cujo diálogo nasce da premissa de um pensamento fraco (pensiero debole), uma "weak philosophy" de perfil claramente niilista. A crise da razão[113]e o pensamento fraco postulam "a fragilidade, a transitoriedade como característica estrutural da pós-modernidade. Tal pensamento está impregnado de uma vocação niilista devido à decadência das estruturas fortes. O pensamento fraco se inscreve no processo de secularização da filosofia para tornar-se filosofia da secularização (cursivas no original)"[114].

Empreendamos uma breve análise sobre a obra em tela, para tanto servindo-nos de vários autores conceituados na ciência filosófica e, claro, sempre acrescendo nossas próprias considerações a respeito dos temas abordados.

Partamos do festejado cientista italiano da filosofia, da semiologia e da linguística, Umberto Eco (1932---). Eco afirma que "para o racionalismo grego – de Platão a Aristóteles e além – saber é saber por uma causa. Mesmo para definir Deus deve-se definir uma causa de tal modo que não pode existir nenhuma outra causa"[115] como seu fundamento. Interessante posição. Qual seria a causa que sustentaria a definição de Deus? A infinita sede de esperança humana? A inescrutabilidade de incontáveis fenômenos naturais e inaturais, exaustivamente analisados sem que se chegasse sequer próximo de dar-lhes uma explicação plausível? A fragilidade humana exigente de uma dependência divina?

Em sua "Suma Teológica I", art. 2 ("É possível demonstrar a existência de Deus?"), Tomás de Aquino (1225–1274), canonizado pela Igreja Católica sob o comando do papa João XXII (1323), explica o porquê de não ser possível a comprovação da existência de Deus:

"1. [...] Na verdade, a existência de Deus é um artigo de fé. Ora, não se demonstram os artigos de fé, porque a demonstração gera a ciência; mas a fé se refere ao que não vemos, como declara o Apóstolo na Carta aos Hebreus. Logo, a existência de Deus não é demonstrável.

2. Além disso, o termo médio de uma demonstração é o que ele é (destaque no original). Ora, de Deus não podemos saber o que Ele é, mas unicamente o que não é, como diz Damasceno. Logo no podemos demonstrar a existência de Deus.

3. Ademais, se se demonstrasse a existência de Deus, não seria senão por meio de suas obras. Ora, as obras de Deus não são proporcionais a Ele, pois elas são finitas e Ele é infinito. Não há proporção entre o finito e o infinito. Por conseguinte, como não se pode demonstrar uma causa por um efeito que não lhe é proporcional (destacamos), segue-se que não se pode demonstrar a existência de Deus"[116].

Se confrontarmos o racionalismo grego ("saber é saber por uma causa") com a argumentação de Tomás de Aquino, supra reproduzida ("não se pode demonstrar uma causa por um efeito que não lhe é proporcional") – i.e., a causa-Deus sobre seus efeitos-obras –, então teremos que Deus é impossível de demonstrar, portanto, remete sua existência ao indemonstrável, cujo fundamento único é a fé. Diferentemente do seu auto atribuído filho, Jesus Cristo, cuja causa foi a copulação entre Maria e José, seus genitores. Todo o restante da história que o rodeia e torna propício o nascimento do Cristianismo seria fruto das fragilidades, das carências, do sofrimento, da necessidade de fé e da criatividade vividos naquele especial período do império romano e, em especial, do local de nascimento de Cristo – Judeia –, então sob a tutela de Herodes, o Grande (ano 8 a.C.).

Ignace de la Potterie (1914–2003), jesuíta e teólogo belga, reconhecido estudioso das Sagradas Escrituras, em seu estudo intitulado "História e Verdade", traz a lume a extensa problemática instalada entre aquilo que é historicamente registrado e a verdade do fato e de fato, no sentido de haver, entre ambas as variáveis, sensíveis dissonâncias que induzem à interpretação dúbia, deturpando o objeto ou a ação interpretados.

Em instância teológica, Gisel e Strauss vêm em auxílio de Potterie, o primeiro afirmando que "A questão capital diante da qual se encontra o teólogo é a de saber de que modo se articulam entre si o absoluto da Verdade e a contingência da história, na economia da Revelação e da história da salvação"[117]. Já para Strauss, a questão reside em tratar "o problema da relação entre o Jesus da história e o Cristo da fé"[118]. Para o teólogo e para o exegeta – ensina Potterie –, a questão relacional entre história e verdade já não mais reside no universo metafísico conceitual platônico, onde a verdade residiria em Deus, "mas antes em referência direta com o Evangelho, a Verdade está em Jesus"[119]. Seria, portanto, uma verdade localizada, onde se fundem a revelação bíblica e o encontro com a Verdade.

A questão residual que remanesce neste questionamento, ainda, é a que Verdade estamos nos referindo. Sim porque, como bem aponta Potterie, as respostas a esse questionamento advirão segundo a lente sob a qual ela (a Verdade) esteja sendo mirada: se metafísica, histórica ou científica; ou se da consciência ou da ação; ou ainda, se do evangelho e da fé.[120]

Como nossa formação científica nos induz à procura por uma verdade comprovável, é sobre esta que dissertaremos a seguir. Servimo-nos inicialmente dos ensinamentos de Augusto Cury (1958---), médico psiquiatra contemporâneo, para iniciar nossa fundamentação dissidente com o até aqui exposto neste particular tema.

Para Cury, uma área (qualquer área) do conhecimento "só ganha estatuto de verdade científica quando comprova os factos e prevê fenômenos"[121]. Sucede que, pela inteligência de Cury, a verdade científica não é a verdade essencial, expondo seu fundamento:

"Uma verdade científica nunca atinge a verdade essencial. Um milhão de pensamentos sobre um tipo de cancro de pulmão causado pela nicotina (verdade científica) não é o cancro em si (verdade essencial ou real), mas apenas um discurso científico sobre ele. Do ponto de vista filosófico, a verdade científica (ciência) procura a verdade real (essencial), mas jamais a incorpora [122]

Impactante. Um cientista admitindo que haja mais de uma verdade: a científica e a essencial (seria metafísica?). Vejamos o que Cury argumenta a respeito e em defesa da sua teoria. Para ele, "Cristo colocou-se numa posição que a ciência jamais pôde atingir"[123]. Por que? Porque apregoou existir o caminho, a verdade e a vida que identificavam a verdade essencial, a própria essência da vida: "[...] ele mesmo era o caminho que conduz à fonte da verdade essencial, o caminho que atinge a própria essência da vida. Que vida era essa? A vida eterna, infindável e inesgotável que ele propagava possuir" [124](cursivas nossas como destaque).

Não se trata de negar ou afirmar nada a respeito, vez que – sublinhamos – não é nosso propósito fazê-lo nesta tese. Trata-se sim, de analisar eventuais desvios conceituais e/ou analíticos que, lidos por desavisados ou incultos, poderiam induzir a crer em toda e qualquer verdade, independentemente de suas eventuais causas. Referimo-nos àquelas verdades que são acatadas como tácitas e indiscutíveis porque advindas de um ser superior, abstrato, divino, em contraposição àquelas outras que se fundamentam em princípios pragmáticos, através dos quais não se objetiva descobrir o atuar do universo objetivo, mas sim o que esse atuar nos permite realizar (pragmático = prático).

William James (1842–1910) e Charles Peirce (1839–1914), ambos filósofos norte-americanos e contemporâneos, figuram entre os mais destacados defensores do pragmatismo, ao prestarem ilustrações concretas e científicas que proviam um significado compreensível às experiências humanas. "[...] a chuva cai, não por causa de algum deus misterioso, mas devido ao vapor d"água e às condições climáticas da atmosfera"[125], destaca Baum ao referir-se a estes filósofos.

Uma vez que conseguimos explicar as causas deste fenômeno climático, podemos então desenvolver meios e equipamentos científicos que nos permitam controlar e/ou prevenir seus eventuais efeitos benéficos ou deletérios, respectivamente. Ante um processo infeccioso, uma vez detectado e explicado pela medicina, permite-nos aplicar medicação antibiótica que o controlará e até extinguirá; ou incluso poderá preveni-lo (as vacinas são um claro exemplo disto). Assim, para William James, o pragmatismo seria "um método para resolver controvérsias e [...] uma teoria da verdade"[126].

Nas últimas três décadas do século XX, o cientista político e professor de Harvard, o também norte-americano Robert Putnam, propôs um polêmico axioma que iria despertar o interesse da comunidade científico-filosófica, ao referir-se, em sua obra "Referência e Compreensão" (1976), a que apenas as crenças verdadeiras possuem valor de sobrevivência:

"[...] não se conclui que as noções sobre a verdade e a referência do realista carecem de importância para a discussão a respeito da linguagem, senão que tem importância para a explicação da contribuição que a conduta linguística proporciona ao êxito da conduta total, não para uma teoria de compreensão"[127].

Para chegar à conclusão ora reproduzida, Putnam teve que confrontar e discordar das suposições filosóficas de antanho ao afirmar que "a compreensão da linguagem está menos vinculada à verdade e à referência"[128], e para tanto cunhou a seguinte e fundamental equação, destacando:

A distinção "entre uma teoria do uso e a compreensão da linguagem por um lado, e uma teoria explicativa do êxito no uso da linguagem por outro" (cursivas no original).

De forma explicativa, ter-se-ia três fatores a considerar neste axioma, a saber: (a) compreensão de um enunciado; (b) condições de verdade desse enunciado; e (c) correspondência dessa verdade com a realidade. Mas se a verdade, por óbvio, precede seu significado, "Em que poderia consistir esse conhecimento, que não consiste na aceitação de nenhum enunciado porque precede a compreensão de todos os enunciados?"[129], questiona o próprio Putnam, aduzindo a que a explicação residiria na teoria do uso como teoria da compreensão. E explica de forma sucinta:

"Para expressá-lo sumariamente: não se necessita saber que existe uma correspondência entre as palavras e as entidades extralinguísticas para aprender nossa linguagem. Mas nem por isso deixa de existir essa correspondência, a qual explica o êxito no que a gente faz. Depois que a pessoa aprendeu sua linguagem, pode falar sobre qualquer coisa, inclusive dessa correspondência"[130] (destaques no original).

Com estes argumentos, Putnam contrarresta as manifestações em sentido contrário, defendidas pelo realismo metafísico, nada obstante discussões a respeito não estejam definitivamente pacificadas. Afinal, a verdade foi e continuará a ser, no universo humano, uma imperecível incógnita.

1.2 O Homem e o Mundo: A Teologia Cristã

Prossigamos com nossas elucubrações e ingressemos ao terreno movediço das teses religiosas sobre a criação do homem e do universo. Iniciemos por uma dissertação de Juan Bergua (1892–1991), antologista e filólogo espanhol, cujo teor nos permite, desde já, construir um preâmbulo de fundo à nossa tese. Afirma este estudioso:

"Até o oásis das grandes religiões, [...], até a chegada do Cristianismo no qual com a admirável figura de Jesus apareceu o melhor dos profetas anunciando a melhor das doutrinas, isto é falando por primeira vez de fraternidade entre os homens, de amor, de justiça, de humildade, e de esperança e confiança em Deus, até ele, o espetáculo religioso que havia oferecido o Mundo com seus politeísmos desenfreados, não podia ser mais desconsolador. Tão desconsolador, tão insensato, tão disparatado, tão estúpido muitas das vezes e tão perverso e cruel ainda muito mais, que quando se pensa que algo tão mau, tão inferior e tão fora do mais elementar bom sentido era a obra dos homens, se sente vergonha de pertencer à raça humana"[131] (grifos nossos).

Este breve introito de Bergua, tão emblemático, tão representativo de um passado longínquo pré-cristão, indelevelmente marcado pelo mal em toda sua vasta e inesgotável escala de atrocidades, de desumanidades, de rios turbulentos de sangue inocente, parece dar a entender, subliminarmente, que o Cristianismo, com sua chegada, tenha dado início a uma nova era de paz, de intenso amor, de justiça humana, de bondade irrestrita e ilimitada, a partir do nascimento do filho do Pai, Jesus Cristo – ou Jesus de Nazaré, filho de Deus. Todavia, o tão almejado divisor de águas entre o pretérito e preponderante mal, e a instauração do bem pela fé cristã em Jesus Cristo, restou por não ser ratificado. Pelo contrário – e já na Era Cristã – a própria Igreja Católica se encarregaria de ser uma das mais atuantes patrocinadoras dos horrores e sevícias perpetrados em suas masmorras; pretensamente, em defesa da fé cristã.

Curiosa e paradoxal contradição que, pelos registros históricos lavrados nos anais da própria Igreja, contradizem a exposição contundente de Bergua. E, permissa massima venia do festejado antologista e filólogo espanhol, não poderia ser diferente. Por que? Porque a questão que envolve o dualismo bondade-maldade independe da fé, da crença em Deus e em seu filho salvador – seja na doutrina cristã ou na de qualquer outra corrente religiosa –. Tal dualidade de extremos diametralmente opostos reside, geneticamente, em "O Homem: esse projeto mal-acabado", âmago desta nossa propositura científica.

Transitemos um pouco mais sobre o primitivismo religioso e o comportamento humano, embora sem qualquer remota intenção de esgotar o tema.

1.2.1 Mitologia e tecido religioso primitivo: sumários

Desmerece negar-se a excelente investigação de Bergua em seu passeio pelas religiões primitivas, o que nos induz a seguir um pouco mais com seus fundamentos assaz bem alinhavados. Assim é que, segundo o estudioso em tela, o cerne do sentimento religioso e que levou o homem primitivo a cair no "mana" foi sua necessidade em atribuir certos fenômenos naturais à existência de forças sobrenaturais.

A denominação "mana", segundo vários estudiosos, permite duas correspondências conceituais distintas em sua fundamentação. Para um grupo de autores que versam sobre o termo em questão, o "mana" adviria dos melanésios (Melanésia, região da Oceania, a noroeste da Austrália) e teria "sido adotado pela fenomenologia religiosa para referir-se, em geral, a todos os conceitos análogos que se encontram em povos primitivos de diferentes pontos do planeta"[132].

O que Pierre Bourdieu denomina de capital simbólico, que por sua vez confere significado à definição de carisma de Max Weber, Durkheim e sua escola denominam mana. Para Bourdieu, o capital simbólico "é uma propriedade ordinária (força física, riqueza, valor beligerante, etc.), a qual, percebida pelos agentes sociais dotados com as categorias de percepção e apreciação, permite-lhes percebê-las, conhece-las e reconhece-las, tornando-se simbolicamente eficientes, como um verdadeiro poder mágico: uma propriedade que, em razão de responder às "expectativas coletivas" e crenças socialmente constituídas, exerce um tipo de ação à distância, sem contato físico. Uma ordem é dada e obedecida: é um ato quase-mágico"[133].

Quiçá o mais exato sentido do termo mana possa ser extraído, contudo, do The journal of the Polynesian society, datado de dezembro de 1940, por motivos auto explicáveis – afinal, o termo nasceu em terras melanésias, como vimos mais acima, as quais, junto com a Polinésia e a Micronésia, conformam o trio de ilhas do continente de Oceania –. Raymond Firth ingressa a um exaustivo análise do termo em tela, reportando-se aos costumes da minúscula ilha de Tikopia, habitada por polinésios e cujo idioma é o tikopiano. De acordo aos estudos deste pesquisador, etnólogo e antropólogo neozelandês (1901–2002), os tikopia servem-se de dois termos para expressar uma mesma ideia: mana e manu, explicando que a definição desses termos é complicada, vez que suas combinações fonéticas envolvem um número de diferentes equivalências conceituais segundo sejam os contextos em que se apliquem.

Eis alguns exemplos de significados, de acordo com o ambiente:

"Mana pode significar: 1. Trovão; 2. Pai (a forma compactada de tamana); 3. Dele, dela ou disso (pronunciado com a primeira vogal alongada); 4. Eficaz, efetivo (no sentido discutido neste artigo).

Manu pode significar: 1. Um animal, particularmente um pássaro (a primeira vogal sendo acentuada, porém curta); 2. Eficaz, efetivo (como discutido neste artigo com o acento na segunda vogal); 3. O nome de um atua, uma entidade espiritual [incorpórea] residente nos céus, identificada por uma estrela, e formando o sujeito submisso de um importante ciclo místico concernente a tormentas"[134] (ênfases no original).

Como se observa, não é nada fácil transitar pela semântica destes termos, visto sua variabilidade em relação à interação com o meio em que estão sendo utilizados. Segundo a inteligência de Firth, preliminarmente poderia se afirmar que mana ou manu, para os tikopianos, faria referência ao comportamento do seu chefe, à prosperidade, ao sucesso e ao bem-estar. No primeiro caso (ao chefe), devido à sua peculiar responsabilidade sobre seu povo. "Ele é considerado apto, através das suas relações com seus ancestrais e deuses, a controlar a fertilidade natural, saúde, e condições econômicas, no interesse dos seus dependentes [subordinados]"[135]. Esta crença recebe suporte de evidencias materiais sobre diversos fatores que motivam os nativos da região, a exemplo das condições climáticas, das colheitas, da pescaria e das pessoas enfermas por ele curadas. Em suma, é um poder divino aquele atribuído ao mana, o que fundamenta sua característica precursora durante o período politeísta.

Naqueles idos e primitivos tempos, a diversidade de deuses chegava a tal estágio que cada chefe tinha seu deus motivador, mentor e patrocinador, que o poderia diferenciar (para melhor ou para pior) de outros chefes de tribos. Esse poder advindo de uma divindade, nalguns casos, passava de geração a geração, tal qual uma herança divina.

Wende Elizabeth Marshall (1961===), antropologista norte-americana, especializada em questões de raça, colonialismo, ciência e medicina, em suas incursões e estudos realizados sobre a descolonização do Havaí, teve a honra de ser convidada a participar intimamente da vida dos nativos, em sentido lato: estudar com eles, frequentar suas residências, conviver com seus costumes e crenças, educa-los para o processo de independência. Isto a motivou a enveredar pelo intrincado caminho da investigação científica, o que fez (e faz) com especial maestria.

Narra esta estudiosa que o conceito ocidental de domínio, e seus efeitos político-econômico e biológico, são contrastantes com o conceito polinésio de mana: "[...] mana é uma ontologia indigenista baseada em noções de reciprocidade, relação sanguínea, e amor entre deuses, seres humanos, e a terra [...]. Mana é mais que uma teoria; é uma exigente prática cosmológica que nos tempos de ka po"e kahico[136]era a fonte de saúde, vitalidade, e abundância para humanos e a terra"[137]. Para o povo antigo – explica Kame"eleihiwa – a prosperidade mundial foi uma co-criação da divindade, da humanidade e da natureza, entendida como indivisível e inalienável, como "misticamente uma e a mesma"[138].

Nas denominadas religiões tribais minoritárias do Pacífico, o conceito de mana assumia, assim, um consenso delimitado ao seguinte:

"Mana: Poder sagrado e numinoso associado com os deuses, ruptura de um tabu, as forças sagradas da natureza etc. Trata-se de um conceito utilizado pelos antropólogos e outros pesquisadores como noção-chave dentro das religiões".[139]

Impõe-se como um desafio inatingível intentar sumarizar as crenças religiosas e seus respectivos rituais, que precederam ao Cristianismo. Haveria, em suma, um longo caminho a percorrer, certamente que nada simples, pois cada cultura criava seus deuses de acordo com um conjunto de fatores imponderáveis e inerentes a elas. Por não ser nosso objetivo primeiro, complementaremos o já exposto neste ponto com algumas informações adicionais que reputamos relevantes, a fim de desenhar um cenário o mais completo possível para o nosso leitor, antes de introduzi-lo ao âmago do nosso estudo.

Essa inestimável herança humana, aproximadamente a partir de 20.000 a.C e chegando mui próximo de épocas relativamente modernas, "se caracteriza por sua grande ostentação em pinturas rupestres, tanto em abrigos como em cavernas"[140]. Se naqueles longínquos tempos os indicativos religiosos remetiam ao que hoje são meras conjecturas, hoje a ciência se encarrega de analisar os fatores que permitiriam comprovação efetiva e inatacável – pelo menos, em termos.

Coube a sir James Frazer (1854–1941) delimitar o horizonte entre as crendices e a verdadeira ciência, em sua obra "O ramo dourado", na qual considera "a existência de certa evolução ideológica que teria começado pelo uso da magia, que através da utilização de fórmulas sagradas intentava forçar e submeter a certas operações da natureza e que, finalmente, teria levado à constituição de uma religião propriamente dita cujo objetivo era, em maior medida, propiciar as forças invisíveis e não compeli-las"[141]. Esta maneira de ver (e de agir) é que acabou sendo substituída, em tempos modernos, pela ciência em sua forma mais racional e efetiva, a fim de poder usufruir dos poderes naturais.

1.2.1.1 As quatro etapas do Antigo Testamento – Pré-Cristianismo

A preparação (programação, treinamento) dos povos da Era Pré-Cristã foi lenta e persistente, calcada na mensagem cristã: "[...] normativa e exemplar: ao mesmo tempo em que o povo era educado, Javé[142]se manifestava a ele. Os passos da redação do texto bíblico coincidiriam com os passos da aprendizagem de segundo grau do processo revelador"[143]. Era o Antigo Testamento (AT) em andamento.

Dos povos primitivos politeístas à fase monoteísta do pré-cristianismo, muito sangue inocente fora derramado em nome de (e em louvor a) uma variedade de deuses, ora justos, ora sedentos de oferendas, ora violentos, implacáveis, vorazes em seus castigos. O ser humano sempre precisou acreditar num ente superior a ele para poder razoavelmente (ou irracionalmente?) explicar, a seu modo, a dinâmica da natureza e das suas mais de 100 milhões de espécies.

O AT passou, então, por quatro grandes "etapas pré-cristãs da fé", sublinha Murad[144]

Primeira etapa: O tempo do reinado – Unificação histórica e religiosa das tribos. O ente divino (Deus) ainda reina na nebulosa coberta de mistérios e de terror. A premissa em voga e que rege esta etapa é: "o homem e a mulher podem contar com a proteção de Javé, se reconhecem a linha divisória entre o sagrado e o profano. A divindade os acompanha nas suas lutas, mas os obriga a respeitar os limites do sagrado".

Segunda etapa: a crise do reinado – Primeiros profetas e Deuteronômio. Voga o conceito de aliança mediante a aproximação maior de Deus aos humanos através de uma relação pessoal e moral mais expressiva. Estabelece-se pela aliança a propositura de um comprometimento mútuo. "Há unidade entre conduta humana e providência divina, manifestas na prática dos preceitos da aliança e na garantia de fertilidade, vitória e felicidade coletiva de Israel".

Esta etapa é preponderantemente educativa, estabelecendo um compromisso inquebrantável entre Deus e Israel mediante a aliança: "Se o povo for fiel a ela [refere-se à aliança], Deus providenciará uma boa disposição dos acontecimentos históricos. A distinção sagrado-profano pode ser perigosa se não manifesta a prática da aliança através de relações justas. Todo ritual que não chegue ao coração é infidelidade a Deus" (cursivas nossas).

Murad destaca também que, nesta etapa, surge como relevante a prática historicista, os grandes eventos sendo interpretados pela religião, ao que o autor em referência propõe um reparo: "Mas a própria forma de conceber a relação entre atitude religiosa e os acontecimentos apresenta um sério limite. A noção de aliança desistoriza (sic) a "política" global de Israel, desde o momento em que coloca o histórico somente nas mãos de Javé e dele espera tudo". Noutros termos, atribui a característica de causalidade aos acontecimentos em relação à fidelidade humana (fé): da atenção à fidelidade humana à aliança com Deus dependerão os acontecimentos.

Esta etapa possui outra característica marcante, segundo Murad: Deus ainda não é um conceito universal. Assim, quando o reino é destruído, o povo atribui tal revés ao abandono de Javé em relação a Israel: "nem sempre Deus vem em auxílio dos que levam sua bandeira". Segue-se, então, um período de descrença, desilusão, amargura, que propiciará uma nova etapa rumo à compreensão ampliada de Deus.

Terceira etapa: o retorno do exílio – A religião se interioriza e se individualiza em razão da impossibilidade factual de um projeto nacional independente. "Diante da angustiante pergunta sobre o poder dos deuses estrangeiros, afirma-se em contrapartida o monoteísmo em Javé, a fé no Deus criador". A providência divina passa a fundamentar a incompreensibilidade popular. Esta é a etapa da comprovação da transcendentalidade divina.

A religião se fortaleza, rumo à crença de um Deus universal, transcendental. "Aprofunda-se o conceito de aliança, cujo suporte passa a ser ontológico, fundamentada na relação universal e básica entre Deus e a criação". Ressurge a tendência à passividade e ao individualismo.

Quarta etapa: elenização até Jesus Cristo - Última etapa do período pré-cristão, cujo surgimento vem pacificar os conflitos da etapa anterior. O mote predominante nesta etapa é a crença na vida eterna: "Deus faz justiça além do prazo da existência humana. [...] O grande valor desta etapa é a decisoriedade (sic) existencial. A vida é uma prova que se deve enfrentar com liberdade, decidindo-se pró ou contra Deus".

Murad apresenta nesta última etapa uma análise intrigante e profunda, que vale a reprodução integral do seu pensamento:

"A quarta fase apresenta, no entanto, serias limitações. Algumas delas constituirão fortes bloqueios que Jesus terá de enfrentar. A decisoriedade que marca esta fase é de caráter existencial, mas não histórica, pois o ponto decisivo é a vida como "prova" em vista da eternidade e não como realização de um processo (grifamos). Ora, se a existência humana é meramente provação, os valores que constituem esta vida são simplesmente e nada mais que provisórios. A liberdade não é considerada criadora. Foi dada para provar as pessoas em face da lei. O bem já está definido. Quanto menos liberdade, menos risco. O legalismo farisaico encontra aqui uma das suas principais raízes. [...] O Antigo Testamento é paradigmático, prototípico".[145]

Este é o preâmbulo que abre espaço ao nascimento de Jesus Cristo, ratificando o cristianismo como crença preponderante sobre a Terra. Em outro momento desta tese retomaremos algumas análises sobre o homem e sua relação com o cristianismo e com as demais religiões cristãs e não cristãs. Mas, de antemão podemos afirmar que o trajeto humano, em relação à sua religiosidade, apenas se complica ainda mais, alcançando o ápice da sua autodestruição nestes tempos de pós-modernidade líquida, ao estilo genuinamente baumaniano[146]

1.3 O paradoxo humano: o bem e o mal são coirmãos?[147]/

O ano: 1680. O local: A corte espanhola. Espanha havia sofrido a derrota imposta pela França, firmando aquela que restou sendo historicamente reconhecida como a paz dos Pirineus. Espanha derrotada estava sendo instada a recepcionar uma princesa da corte francesa. O rei espanhol, D. Carlos II, de apenas dezenove anos, fora forçado a contrair matrimônio com a princesa francesa, Maria Luisa de Orleans, saída da pomposa, ostensiva e luxuosa corte francesa do rei Luis XIV, abandonando os majestosos salões e exuberantes jardins de Versalhes, para ser coroada rainha na paupérrima e derrotada corte espanhola. Até certo ponto, usual para a época e para a nobreza que habitava as cortes europeias, ora vitoriosas, ora derrotadas.

Antes que houvesse tempo para que os exaltados ânimos espanhóis se acalmassem e se acostumassem com a presença da jovem nova rainha, eis que a Inquisição de Toledo propôs celebrar um auto de fé[148]geral, estremecendo ainda mais os ânimos da corte espanhola. Qual seria a intenção desse (nada) sacrossanto tribunal? Festejar a nova rainha? Certamente que não lhe era usual demonstrar tais graças e afetos a quem quer que fosse, mesmo a uma rainha. Seus atos truculentos, abusivos e criminosos não lhe permitiriam qualquer demonstração de fragilidade.

Em realidade, o objetivo principal não era fazer qualquer afago à rainha; este poderia sê-lo apenas em nível mui secundário. O que a Santa Corte pretendeu foi obrigar o rei Carlos II a "reconhecer publicamente os privilégios do santo ofício, com o juramento que em tais ocasiões prestava o soberano [...], fazer alarde do seu poder ante uma rainha que não o conhecia, e obrigar ao mesmo tempo o jovem príncipe, cujo reto e débil caráter era notório, a reconhecer por meio de juramento os privilégios que o santo ofício se havia ab-rogado em detrimento das regalias"[149]. Esta odiosa prática religioso-inquisitorial que já derramara incontável volume de sangue inocente, torturando e ceifando vidas inocentes, e tomando-lhes seus patrimônios – apenas por terem cometido o pecado de discordar das pregações cristãs e desconhecer e não submeter-se ao credo cristão –, já havia ocorrido antes e em similar situação, durante os primeiros anos de reinado de Felipe IV, a quem também coubera prestar o mesmo juramento de obediência à santa inquisição espanhola.

Por que mencionamos tal passagem de este estudioso espanhol do século XVII? Em primeira instância, por sua característica de grosseiro paradoxo promovido pela dogmática cristã que, embora laureados estudiosos intentem explicar como sendo um fenômeno da época ou um ponto fora da curva (em jargão atualíssimo, significando que não pertence ao conjunto de fatos e atos tidos como usuais), nada mais era que a brutalidade patrocinada por aquele santo (sic) ofício, gratuitamente e contra quem ousasse opor-se aos dogmas cristãos. Em segunda instância, porque o torpe argumento fundamentador, arguido pela inquisição cristã – i.e., a pretensa sustentação da unidade religiosa vigente a partir do período pós-cristão –, não coaduna com o discurso cristão de uma sociedade coesa, homogênea, equitativa, calcada no amor e no bem ao próximo; pelo contrário, é diametralmente destoante com a gana cruenta das odiosas práticas inquisitoriais, sob a chancela divina (e em nome) de Cristo e seu Pai eterno.

Quais as bases que sustentaram por tanto tempo a famigerada e horrenda Inquisição? Henry Charles Lea, reconhecido historiador sobre o tema, esclarece que não se trata de determinar...

"[...] quantos seres humanos a Inquisição queimou na fogueira, quantos ossos exumou, quantas esfinges queimou, quantos penitentes depois de torturados e mutilados enviou aos calabouços, quantos órfãos despojou confiscando os bens dos seus pais deixando-os assim desamparados no mundo. O terrível significado radica no fato que aqueles homens que conscientemente perpetraram isto... o fizeram no nome do Evangelho de paz e de Aquele (Jesus) que veio a ensinar-nos o amor ao próximo"[150].

Não é um incompreensível paradoxo cristão? Em similar diapasão crítico desta autora que ora fundamenta o exposto, inúmeros outros autores abordaram tal temática, sempre privilegiando o caráter horrendo e diabólico do tribunal inquisitório, o que o torna nada menos que emblemático dos abusos da época em dita sede comandada pela Igreja Católica[151]

Espanha, no universo continental europeu entre os anos 1478 e 1614, se destacava por seu processo inquisitório entremeado pela mitologia e pela história. "A Inquisição Espanhol, em outras palavras, tem sido sempre útil para a invectiva, e sua existência foi utilizada para justificar a classificação da Espanha como um país afastado do resto da Europa Ocidental. Afinal de contas, os métodos e os efeitos da Inquisição espanhola parecem óbvios: ela misturou religião e política na perseguição da diferença; é usada a tortura e o segredo para ganhar vereditos de culpa, que deve ter aterrorizado a população em sua apresentação"[152].

Se friamente analisado o exposto, ninguém poderia negar a Inquisição Espanhola como sendo uma grosseira metáfora para a intolerância religiosa. Em realidade, a Inquisição Espanhola se destacou como uma verdadeira e cruenta deturpação do juízo legalmente entendido em sua essência: julgar, de maneira justa e isenta de contaminações, o autor de um crime, condenando-o ou absolvendo-o em base aos testemunhos probos e às provas incontestes. Nada mais afastado disto era o tribunal inquisitorial.

Mas afinal, como se originou o Santo Ofício e a Inquisição? O ano de 1232 marca o início da Inquisição Papal, sob a batuta do papa Gregório IX. O pretenso fundamento que deu azo a esta tenebrosa Era advinha da pretensa necessidade de se detectar o número crescente de hereges que colocavam em risco (sic) a dogmática católica. Numa verdadeira caça às bruxas (e aos bruxos), a Igreja Católica, mediante um tribunal itinerante que se notabilizou com maior ênfase destrutiva no sul da França, norte da Itália e nordeste da Espanha, percorria as cidades, inquiria os cidadãos instando-os a denunciar os hereges (prometendo manter em sigilo a identidade dos acusadores) a fim de leva-los ante o Santo Ofício para serem julgados. Explicam, neste sentido, Helen Keeler e Susan Grimbly:

"Os hereges que confessavam e se retratavam recebiam uma penitência (um tipo de multa religiosa), que poderia ser qualquer coisa desde recitar orações a suportar um açoitamento. Os que se recusassem a admitir as acusações e a "se arrepender" eram castigados. Nos casos mais extremos, alguns eram queimados amarrados a uma estaca ou enforcados. A Inquisição Papal estendeu-se pela maior parte do século XIII e ressurgiu no século XV na Espanha na sua forma mais virulenta"[153].

Algo ainda mais curioso é o reconhecimento de que, para a Igreja Católica do longo período inquisitorial, mancomunada com a monarquia reinante – o que lhe conferia a chancela de autoridade estatal irrecusável –, o bem era uma qualidade intrínseca a ela e apenas a ela, sendo todas as demais crenças rotuladas de hereges, adoradoras do mal. Dessarte, o mundo (pelo menos, o europeu) estava claramente dicotomizado em dois estratos sociais: os bons (católicos) e os hereges/maus (todo o restante que não fosse católico). Não havia, assim, liberdade de crença, fator que era sangrentamente combatido, a ferro e fogo, literalmente.

Se Deus era a representação do bem, da bondade extrema (divina), do equilíbrio e da justiça social, o diabo era o herege-mor, o senhor do mal, das injustiças, das iniquidades, da destruição, do pecado mortal. O reino dos céus estava fechado aos indivíduos que se atreviam a desafiar a "bondade" divina. Belo paradoxo, mais alinhado aos ditames da longa lista de sangrentos tiranos que enlamearam e ensanguentaram a história humana – prática aliás, que se mantém até os dias presentes, apenas variando as fundamentações, todas inconcebíveis à razão humana –.

Nomes importantes marcaram história nesse nebuloso período de conluio religioso-real:

"[...] a fins do século XII e a princípios do XIII: Felipe Augusto de França, Ramón V de Tolosa, Pedro II de Aragão em 1197 e logo Jaime I o Conquistador, Luís VIII e Luís IX de França em 1226 e 1228; o mesmo imperador Federico II a partir de 1224, promulgaram leis, nas que se condenava diretamente a heresia. Os Papas, tendo presente este modo de pensar e sentir do povo e dos príncipes cristãos, foram tomando medidas cada vez mais rigorosas. Assim se compreendem as normas dadas por Alejandro III no concílio ecumênico de Letrán de 1179, por Lucio III, no de Verona de 1184 e por Inocêncio III no ecumênico de Letrán de 1215. Finalmente, como resultado deste sentimento universal do povo cristão, Gregório IX, no ano de 1231, admitiu para toda a Igreja o princípio de repressão violenta ainda com a mesma morte contra os hereges, e sobre estas bases estabeleceu a Inquisição medieval"[154].

Este movimento do tribunal inquisitório medieval, agora sob a égide do rei de Aragão, Jaime I, "o Conquistador", e sob o comando executivo do seu conselheiro, São Raimundo de Peñafort (penitenciário e canonista do Papa Gregório IX), foi introduzido no reino de Aragão mediante documento encaminhado pelo Papa Gregório IX, em 1232, ao Arcebispo de Tarragona Espárrago, sedimentando de vez tão execrável prática.[155]

***

Bem e Mal, Céu e Inferno, Deus e Demônio: faces de uma mesma moeda que, de tão complexa e antiga, mantém-se numa espécie de purgatório sidéreo, indefinível, tendente ao nebuloso. No âmago dessa inextricável teia formada pela insegurança e pelo temor humano ante o desconhecido, levitam as crenças e figuras etéreas criadas pelas religiões através dos tempos, ora sob a esfinge representada pela luta entre o bem e o mal, ora pelas severas ameaças de castigos indizíveis, como punição pelas descrenças e descaminhos do homem.

"Eros e Tanatos[156]já faziam parte da psicologia sagrada do Antigo Egito. Dr. Ramsés Sellem [...] narra que na Chapa 3 do Livro dos Mortos do Antigo Egito, Hunefer dirige-se a Osíris, o rei de Dwat, mundos inferiores, argumentando sobre si mesmo e indicando a retidão de suas ações durante a vida. Ele revela ter seguido o caminho correto e ter adquirido conscientização e purificação nesta vida de acordo com a doutrina espiritual egípcia da vida eterna"[157] (todos os destaques no original).

Todo indivíduo convive com uma dupla capacidade intrínseca, genética – de malevolência e de benevolência – que persiste em constante conflito. São os dois selfs (no âmbito da psicanálise de Freud), como os denomina Morandin: o verdadeiro (ou Dezmaa) e o falso (ou Desgreg). Enquanto o verdadeiro self é espiritual, o falso self (a personalidade) constitui o contraponto construído pelo indivíduo, dando lugar, quando ambos em confronto, a sentimentos como dúvida, medo, ignorância, raiva, ódio. A maldade, assim, está latente e pode surgir a partir de qualquer um destes sentimentos – que, sublinhe-se, não nascem maldosos em si –. O conflito entre o mal e o bem ocorre no universo da energia humana, em sua psique.

A linha tênue que delimita esses dois selfs é praticamente inexistente como barreira para a prática maligna ou benigna. Os intrincados mecanismos mentais, quase impenetráveis, não raro fundamentam falsas argumentações na vã intenção de explicar o comportamento humano, seja para louvar seu ato probo ou para condenar sua atitude ímproba. Daí que não nos parece difícil conviver com uma incompreensão latente, geradora de resultados inesperados ou de posturas bizarras, muitas até desconhecidas de nós, como seres racionais e inteligentes que pretensamente somos. Estas duas qualificações servem de sustento para que nos diferenciemos das demais espécies ditas irracionais e autômatos, tornando-as subservientes às nossas necessidades, desejos e malevolências. Um paradoxo da natureza de difícil compreensão, muito menos ainda de assimilação.

O bem e o mal podem ser considerados coirmãos da virtude e do vício, respectivamente. Claro que sob determinadas e limitadoras circunstâncias que mantenham tais conceitos adstritos a um espaço intermediário, situado entre suas verdadeiras acepções terminológicas (ontológicas) e suas compreensões ampliadas e subjetivadas. Neste sentido, Skinner nos traz elucidativa passagem histórica cujo berço residiria nos moralistas e historiadores romanos, e suas discussões sobre as afinidades entre o bem e o mal:

"Quando Lívio descreve, no livro XXII, a oposição à tática de Fabius Maximus contra Aníbal[158]ele assinala que é sempre possível "inventar vícios que são vizinhos das virtudes de uma pessoa". Sêneca faz eco a esses sentimentos, na carta CXX de suas Epistulae morales (destaques no original), na qual seu tema é como adquirimos nosso conhecimento do bem. "Como se sabe", comenta ele, "há vários vícios que são vizinhos das virtudes, de modo que existe uma certa semelhança com a retidão até mesmo em coisas abandonadas e degradadas. O homem extravagante passa por liberal, enquanto a negligência imita a boa índole e a temeridade imita a coragem"."[159]

Graças a esta figuração de Sêneca, parece-nos claro, então, que tal como os vícios se aproximam às virtudes – tornando tênue a linha divisória entre eles –, assim também ocorre com o bem e o mal, conceitos que propiciam, em determinadas situações de aproximação, certa possibilidade de confusão ou de sobreposição hermenêutica.

Skinner busca, mediante esta exposição, recursos que lhe permitam reforçar a posição de Sêneca, servindo-se, para tanto, de Thomas Hoby e sua compreensão de que para cada virtude haveria um vício vizinho; ou de Philip Sidney e sua visão de "proximidade" entre o bem e o mal; ou ainda de Francis Bacon e suas "cores do bem e do mal", oportunidade em que se permite contestar o sofisma "o que é vizinho do bem é bom; o que é distante dele é mau", aduzindo a que, pelo contrário, "o mal frequentemente se aproxima do bem", tanto assim é que, em seu ensaio "Do Louvor", Bacon sustenta que "os atos que mais prontamente conquistam o aplauso da multidão não são as virtudes em si, mas os "semblantes" ou "aparências semelhantes às virtudes"" [160]Em outras palavras, é o clássico e histórico aforismo "as aparências enganam".

Chuang Tzu (369–286 a.C.), renomado filósofo chinês do século IV a.C., tem um excerto que merece reprodução literal, em razão do seu conteúdo simbólico e fiel sobre a realidade segundo a visão do Taoísmo[161]

"O gênio do rio perguntou: nas coisas, bem seja em seu exterior ou bem em seu interior, onde está o término ou a linha divisória do precioso e do vil, do pequeno e do grande? O gênio do mar do norte lhe responde: se se as vê desde o ponto de vista do Tao (destaque no original), nas coisas não existe a diferença entre o precioso e o vil; mirando-as desde o ponto de vista das mesmas coisas, cada coisa tem-se a si por preciosa e às demais por vis; mirando-as desde o ponto de vista do sentir mundano, o precioso e o vil não estão nas coisas mesmas (estão na valoração que se faz delas)"[162].

Cavallé nos elucida este aforismo do filósofo pré-cristão, Chuang Tzu, falando-nos dos dualismos existentes na vida dos seres humanos. Existem, segundo esta estudiosa, dois tipos qualitativamente diferentes de dualismos: os dualismos naturais e os dualismos sujeitos à valoração. Os primeiros seriam aqueles vistos por qualquer observador imparcial, despidos, a priori, de qualquer valoração: frio-calor, inverno-verão, dia-noite, alto-baixo, masculino-feminino, etc. Já os segundos, pelo contrário, demandam o fator valorativo para existirem: bom-mau, agradável-desagradável, positivo-negativo, útil-inútil, justo-injusto, etc.

A tendência do racionalismo humano parece estar mais inclinada aos dualismos sujeitos à valoração e, por suposto, esta valoração é individualizada, o que, de pronto, nos permitiria afirmar que cada ser humano é um mundo à parte ou, em outros termos, que cada ser humano vê o mundo sob sua particular ótica. Cada indivíduo valoriza os fatores internos e externos que o compõem segundo sua própria escala de valores. O que para mim pode ser bom, para outro poderá será ruim, mau ou até inócuo. O que para você, leitor, pode ser belo, para outro leitor poderá ser feio, ou insosso. Assim, cada um de nós vê seu mundo interno de uma determinada maneira valorativa, transferindo tal valoração ao seu mundo externo e, portanto, modificando-o segundo estes valores.

Sucede que o mundo externo é igual para todos, fisicamente falando. Nós o transformamos de acordo ao que pensamos dele. Assim, alguém poderá afirmar de maneira convicta: "que inconveniente e deprimente é essa chuva!", enquanto um outro alguém, ao seu lado ou alhures, poderá dizer: "que bom estar chovendo!". A sensação do bom ou do ruim está em nós, não na chuva, que é simplesmente una, indivisa, pois não há chuva boa e chuva ruim, há apenas chuva.

Se, por analogia, aplicássemos esta assertiva aos conceitos bom-mau, chegaríamos à mesma conclusão filosófica de Chuang Tzu: "o precioso e o vil não estão nas coisas mesmas (estão na valoração que se faz delas)". Assim, explica Cavallé, bastaria um simples reflexionar para perceber que "nosso diálogo interno é um contínuo julgar e valorar. Estes juízos são o filtro através do qual nos relacionamos com nós mesmos e com o que nos rodeia. Julgamos as pessoas presentes e ausentes, conhecidas e desconhecidas; a nós mesmos – nossos desejos, impulsos, ações, omissões, características internas e externas, circunstanciais... –; também a situação social, o mundo como um todo, e inclusive ao próprio Deus"[163].

Um ensaio de Sofia Vanni Rovighi ("História da filosofia moderna") vem auxiliar a esclarecer os conceitos bem-mal e seus correlatos. Esta estudiosa distingue o bem e o mal em duas versões: uma seria a natural e a outra seria a moral. Assim, o bem pode ser natural, embora não seja moral. O bem moral é aquele em que seu autor possui virtude, enquanto o bem natural advém de indivíduos que não sabem o porquê da sua ação. Eis a explicação da sua teoria:

"[...] nos homens que agem de acordo com o bem só por hábito ou por docilidade natural, sem contudo ter ideia do que é honesto, não há verdadeira virtude. Menos ainda quando a ação é exteriormente conforme à finalidade do indivíduo e da espécie, mas determinada por uma má intenção. E, vice-versa, uma ação exteriormente danosa não é moralmente má se não é desejada (por exemplo, o assassinato de um homem executado por equívoco). Assim, nossas convicções, "opiniões, crenças e teorias" são muito importantes para determinar a bondade de nossas ações"[164].

Rovighi aduz (fundamentando-se em Shaftesbury) que é raro encontrar um ser humano totalmente mau, muito menos em função de fatores como o ateísmo e o teísmo, pois estes não influiriam sobre o senso moral. Para esta autora, nem o teísmo pode prover o homem do senso moral, nem tampouco o ateísmo pode eliminá-lo. O que pode ocorrer – salienta – é a deformação do senso moral e esta sim pode se dar em razão de uma falsa religião.

Em realidade e por dever de justiça, permitimo-nos contrapor um reparo a esta última afirmação: como tal assertiva se enquadraria, então, nas ações sangrentas e, não raro, injustas promovidas pelo Santo Ofício contra os pretensos hereges e em nome de Deus? Afinal, sequer poderia ser considerado um falso Deus, antes pelo contrário, pois era o Deus único e sua total crença Nele que fundamentavam as ações dos tribunais inquisitoriais itinerantes em sua cruenta cruzada contra os infiéis. Como, então, explicar tais ações além de malsãs, em que se torturavam e queimavam em fogueiras aqueles que se atreviam a negar a existência Dele? Ou ainda, aqueles outros que nutriam crenças e afirmavam fidelidade a outros deuses mais especializados em suas obras? Lembremos que nas sociedades pré-cristãs e politeístas, praticamente para cada fenômeno havia um deus dedicado – a chuva, a lavoura, o fogo, a reprodução humana e animal, dentre outros específicos para as distintas culturas que ordenavam os povos primitivos.

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