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Os familiares e a inquisição no Brasil colonial (página 2)

Alcemar Oliveira

A divisão do trabalho envolveu a análise das origens e legitimação da Inquisição no Brasil (Capítulo 1), denunciando a mútua cooperação entre Igreja e Estado, com poderes para aquela agir em nome do poder régio, no intuito de afastar os impuros, os pervertidos, ou qualquer outro que colocasse em risco os dogmas da Igreja em plena Contra-Reforma. Tudo para alcançar e manter a sociedade ideal que se buscava, para segurança do processo colonizatório e centralização do Império Português.

O Capítulo 2 trata dos hereges, dos pecados, crimes e delitos assim considerados pela Igreja, trazendo a sanção moral e o sentimento de culpa que se tornariam uma verdadeira arma para se chegar à delação.

No último capítulo, Os Visitadores, objetivo principal do trabalho, trata dos pretendentes ao ingresso no quadro de Familiatura, dos privilégios que davam ao seu titular, do processo de investigação para concessão da Carta, dos métodos escusos para obtenção de tal documento e, finalmente, da psicologia do medo e do terror diante da presença de tais membros.

A escolha do tema deve-se à fascinação pelo assunto, que aviva o imaginário e envolveu instituições já consolidadas como o Estado Nacional e a Igreja Católica.

A leitura das obras de Ronaldo Vainfas, Luiz Mott, Sonia Siqueira, Anita Novinsky, Laura de Mello e Souza, e, principalmente de Daniela Buono Calainho, foram fundamentais para confecção deste trabalho.

1. AS ORIGENS E A LEGITIMAÇÃO DA PERSEGUIÇÃO

O fortalecimento da Igreja Católica após a queda do Império Romano, deveu-se em grande parte à sua sintonia com o Estado. De fato, a Igreja e a Europa Medieval caminhavam na mesma direção, chegando a fundirem-se num só poder. O chefe eclesiástico, muitas das vezes, fazia as leis e as aplicava, e também era responsável por importantes decisões políticas.

Assim sendo, o Estado, para se fortalecer, necessitaria da coesão da fé, e a diversidade de escolhas religiosas, de opiniões, de conceitos e valores era vista de forma ameaçadora para qualquer intenção de agregar o sistema social. Consequentemente a desagregação social traria a desordem e revelaria a fragilidade da falta de laicismo.

A religião representava na estrutura social da colônia um importante poder integrador contribuindo para o reforço de normas e valores comuns, uma vez que se fundiam com as autoridades políticas. No momento em que os padres julgavam e condenavam sanções excomunicatórias contra alguns desvios, como o furto ou roubo, delitos de ordem material e não moral ou religiosa, estavam ajudando a reforçar a instituição social da propriedade, santificando a estrutura social existente.

Durante séculos era inaceitável qualquer diferença, contestação ou dúvida no que concerne à Igreja Católica ou aos seus pareceres. O objetivo da criação do Tribunal Inquisitorial, no século XVI em Portugal, foi exclusivamente de perseguir e prender os lusitanos suspeitos de prática secreta de rituais de religião judaica. Com o tempo, outras heresias passaram a ser objetos de perseguição: o luteranismo e o islamismo, além de vários "pecados", como a feitiçaria, sodomia, a bigamia, entre outras.

Fato é que a heresia religiosa e a heresia política caminhavam juntas, e deveriam ser extirpadas do corpo social.

Para combater as diversas escolhas foi instituída a Inquisição, fortemente associada aos interesses de centralização do poder.

Os Reis Católicos - Fernando II de Aragão e Isabel I de Castela pretendiam a unidade real absoluta amparada na unidade da fé. Para isso foi necessário o aumento do rigor sobre a religião, ou melhor, imposto pela Igreja Católica. Os reis de Espanha contribuíram, ainda que de forma indireta para a migração de perseguidos para o reino lusitano: Logo após a conquista de Granada foram dadas duas alternativas aos mouros: o batismo ou a expulsão. Muitos se converteram aos olhos o Estado, mas continuavam a praticar sua religião em segredo. A fé muçulmana ultrapassava os grilhões da Inquisição e muitos continuavam a realizar os ritos mesmo nas prisões.

Os cristãos hostilizavam os mouriscos, mas não mais que os judeus. Aqueles eram mais pobres e significavam grande parte da mão-de-obra subserviente, enquanto os judeus representavam a média e alta burguesia.

Durante séculos viveram na clandestinidade, judeus e mouros. A opção dada aos mouriscos foi estendida aos judeus: o batismo forçado ou o exílio. Milhares de judeus partiram deixando fortunas para os cofres reais, ou trocavam tudo que não poderiam carregar (imóveis) por pequenas coisas que podiam trocar no caminho. E assim os judeus entraram em Portugal, pagando um preço por cabeça. Mais tarde, em 1497, o Rei de Portugal, D. Manoel, por pressão da Igreja, obriga todos os judeus à conversão ao catolicismo. Era o chamado "batismo forçado". Tal fato dá início à era dos cristãos-novos. Estes, como os mouros, continuavam a praticar os rituais judaicos às escuras, e, uma vez descobertos eram julgados pelo Tribunal Inquisitorial. Para fugir do braço da Igreja, estes embarcaram para o Brasil - onde, acreditavam, não seriam perseguidos. Mas se enganaram. Ainda que longe da crueldade da Igreja ibérica, foram alvos de processos, julgamentos, punições e alguns levados para os Autos de Fé em Lisboa.

Perseguidos, os judeus fugiam por toda a Europa e, amuralhados, se lançaram ao mar, em direção às colônias americanas. Da escassez de vítimas da Inquisição, advinha a falta de recursos provenientes dos confiscos. Se as futuras vítimas estavam vindo para o Novo Mundo, os olhares da Inquisição Portuguesa se voltariam para a Colônia.

Desde a chegada das primeiras embarcações nas terras recém-descobertas, a Igreja já estava presente com sua cruz e seu cajado, na intenção de levar a palavra sagrada, purificar a terra, evangelizar o povo encontrado e, principalmente, quantificar o benefício que poderia tirar atuando de forma paritária com o Estado nacional absolutista.

No que tange à Inquisição Portuguesa, quando do início do funcionamento do Tribunal da Inquisição, as forças políticas e espirituais da nação estavam unidas: o rei e o inquisidor eram a mesma pessoa. O cardeal Henrique, o cardeal Alberto e o bispo D. Pedro de Castilho foram governantes e inquisidores ao mesmo tempo.

Em que pese todo o aparato religioso e da divinização com que o Tribunal da Inquisição se revestiu, apesar das funções santas delegadas a outros, foi uma instituição vinculada ao Estado. Respondeu aos interesses do poder. Transmitia aos fiéis e aos leigos, uma mensagem de medo e terror, tornando a maioria da sociedade submissa e obediente.

Os judeus foram o alvo preferido do Tribunal. Para se manter era fundamental o confisco de bens das vítimas. E o mais abastados eram inequivocadamente os judeus. Um judeu preso ou morto significava uma dívida que não seria paga. Da mesma forma que suas riquezas engordavam os cofres da Igreja. A Igreja forte consolidava o Estado.

Com tamanha disputa de poder político e financeiro, não há de se deixar escapar a corrupção: nas colônias portuguesas eram freqüentes as substituições de penas mais pesadas por multas, o que agradava e muito o inquisidor responsável. Logo, a substituição se tornou uma prática constante e muito rentável para todos que tinham o poder da substituição. E mais, o suborno para a troca da pena era uma constante nos tempos de perseguição. Aqueles que tinham dinheiro (cristãos-novos, principalmente) eram corruptores ativos contumazes. Não se deve restringir a corrupção ativa e passiva aos limites coloniais. Já em 1251 o Papa reclamou e proibiu a imposição de multas. Mas a proibição não perdurou por muito tempo. Poderosos e insaciáveis no que concerne a dinheiro, aqueles que tinham o poder de aplicar penas, se locupletavam às custas dos perseguidos, tornando o suborno e a corrupção uma forma de aquisição de riquezas tacitamente permitida.

No Brasil Colônia, a ausência de um Tribunal de Fé fez com que a corrupção tomasse ares de licitude. Importante frisar, como adiante será visto, os Familiares (prepostos da Igreja para perseguir os hereges coloniais), falsificavam cartas de autorização para atuar em nome da fé, matavam os verdadeiros credenciados para agir em nome do morto e falsificavam documentos e testemunhos para conseguir a diplomação de Agente. Uma boa quantidade de dinheiro ou ouro era suficiente para conseguir o credenciamento, já que o retorno com aplicação era rápido diante da proliferação da corrupção.

Tão perseguidos quanto ricos, os cristãos-novos eram uma peça fundamental na formação do Estado Nacional, eram os fomentadores da indústria, do comércio e de serviços de troca de dinheiro. E eram os que custeavam, ao lado da Coroa as grandes navegações. Diante de tal quadro era notório que nem todos eram perseguidos ou achacados. Um exemplo é o caso de Fernão de Noronha, cristão-novo, que recebeu a primeira capitania nas terras brasileiras, tornando-se o primeiro donatário.

A não instituição de Tribunal nas terras brasileiras, ao passo que a Coroa Espanhola não se contentava com simples visitações, tinha justificativa. Nos primórdios da colonização, o que mais incomodava a Igreja eram os modos dos que aqui chegavam: a bigamia, o sexo exacerbado dos portugueses com indígenas, a sodomia, não eram tão importantes como os crimes de opinião, principalmente contra a existência de Deus e a atuação da Igreja, o que não justificaria a construção de um Tribunal em terras coloniais. Frear o furor sexual naquele momento poderia ser comprometedor para o desenvolvimento da economia brasileira, da qual dependia a metrópole, num momento em que Portugal mais necessitava para se manter como potência imperial.

Assim, a Igreja através da Inquisição e o Estado se relacionavam de maneira simbiótica, um a favor do outro, com intuito de dominação econômica e poder político, numa época em que o resto do mundo estava sendo descoberto e Portugal e Espanha eram as grandes metrópoles.

2. OS PECADORES

Em meados do século 17 começava a chegar ao Santo Ofício em Portugal, correspondência narrando a vida escandalosa e recheada de pecados que assolava a colônia. Não havia interesse da Coroa em montar autos de fé no Brasil, já que, como destacado, muitas das transações mercantis e, consequentemente, fontes de renda para a Metrópole, advinham de senhores respeitados, que eram muitos dos citados nas denúncias.

Sonia A. Siqueira em sua obra "A Inquisição Portuguesa e a Sociedade Colonial", destaca que a nomeação de descendentes de judeus para determinados postos muitas vezes impedia a ação do clero na repressão da heresia. Continuando, a historiadora arremata que não era do interesse do Rei desestimular os brancos que aqui haviam se radicado, ainda que pairasse dúvidas sobre a pureza de sua fé.

De fato, não se preocupava a Metrópole com a posição conservadora do papado, como fazia a Espanha com sua parte no novo mundo: muitos cristãos convertidos coercitivamente continuavam a manter tradições judaicas, de forma velada.

Era comum o não respeito às leis do Estado e da Igreja no que se referia à conduta moral. O desregramento sexual, segundo Vainfas, era uma condição inerente ao processo colonizatório.

Chegando à colônia, os portugueses logo tratavam de se relacionar com várias índias, de maneira pública, já que esse era procedimento comum dos que aqui chegavam. E, quando das horas dedicadas ao credo, pediam perdão a Deus, para no mesmo dia, atacar as índias que, seminuas e disponíveis, transitavam pelo caminho. A situação nos idos de 1550 já era preocupante: Manuel da Nóbrega, um dos primeiros em missão jesuítica no Brasil recém-descoberto, desesperado, ao ouvir gemidos no mato com tanta freqüência, suplicou ao rei que mandasse imediatamente mulheres brancas para colocar os portugueses frente a frente com o sacramento do matrimônio. E tamanha era a urgência que aceitaria até mulheres de má reputação.

Não se diga, porém, que na Colônia se pregava a livre fornicação. Muito pelo contrário, a família era prezada, além da castidade (feminina) e do matrimônio.

O machismo herdado da Península Ibérica, penetrou na sociedade colonial brasileira, deixando a mulher à margem de tais liberdades, e, ao mesmo tempo, dando ao varão um passaporte para a lascívia.

As autoridades religiosas começaram a perceber que o número de casamentos era pequeno, o que levava a crer numa situação de concubinato contumaz, o que, por sua vez fazia aumentar o número de bastardos. Era comum recém-nascidos deixados à rua para serem devorados por cães ou mortos de fome, o que levou a Igreja a instituir a chamada "roda de expostos" em 1726. Ronaldo Vainfas cita em sua obra que o número de filhos ilegítimos chegou a 90 % dos nascidos em Minas Gerais, anos antes da criação da "roda".

Na condição de escravas, era comum o abuso sexual e contínuo por parte de seus donos. E não era privilégio de senhores ricos tal comportamento. Laura de Mello e Souza dá notícia de certo Manuel Lobo, um rancheiro que vivia em estado de quase miséria e que vivia amancebado com sua escrava de nome Juliana, obrigando-a inclusive a se deitar com outros homens, e de preferência, negros, para que parisse mais crioulos. Gilberto Freyre confirma que a regra era que as negras parissem muleques.

As negras, além do concubinato e da obrigação de parir crioulos, também se prestavam à prostituição, numa clara faceta de exploração escravista.

Imperava a bigamia (de fato) e o adultério. A mulher, em condição de subserviência, era passiva diante de tal situação, nada reclamando, para não perder a manutenção, o conforto.

Tamanha a verve erótica do povo, que tornou comum a prática de atos nada agradáveis aos olhos da Igreja: a sexualização do divino era freqüente, e como conseqüência vinha a divinização do sexo, fazendo com que se colocasse hóstia na boca do amante para dizer palavras da missa durante o ato ou colocando crucifixo debaixo da cama. Tudo valia para melhorar o desempenho.

Tais práticas foram se estendendo para, não somente aprimorar o ato, mas também para "amarrar" o amante, fazer com que fosse embora ou para despertar o desejo de outrem. As magias eróticas tornaram-se prática recorrente. As bruxas usavam amuletos, cartas, orações, poções e inúmeras mandingas. Na visitação do Santo Oficio, várias delas foram acusadas de divulgar e praticar magias eróticas.

A sodomia esteve presente entre as práticas sexuais condenadas pela Igreja, ainda que praticado entre pessoas de sexos diferentes.

Os processos apurados pela Inquisição de Lisboa registram sem nenhum pudor os fatos narrados, confessados e testemunhados. Naquela época era comum o casal, ainda que oficializado pelo casamento, dormir junto com outras pessoas da casa, e realizar o ato sexual em franca exposição. Um dos muitos casos relatados para a Inquisição portuguesa está o de Maria Grega, que reclamava que o marido sempre a pegava pelo ânus. Questionada se tinha alguém que pudesse testemunhar, respondeu prontamente que a irmã dormia no mesmo cômodo e via tudo.

Outro caso era do pernambucano Baltazar de Lomba que gostava de se deitar com índios. Foi flagrado por um rapaz que, intrigado com gemidos de homens, pôs-se a ouvir pela abertura da porta.

Há notícia de diversos casos envolvendo o homossexualismo no Brasil colonial. Os Cadernos do Nefando registravam em especial os casos de sodomia. E explica que o mais temido não era derramar o sêmen no chamado "vaso proibido", mas a alternativa sexual deveria ser erradicada já que promovia a destruição do matrimônio, pregava o livre prazer, impedia a procriação.

Não havia, claro, lugar específico para o sexo não permitido. O local com mais privacidade era o mato. Mary Del Priore, em seu texto intitulado "Deus dá licença ao Diabo" informa que até as igrejas eram palco de práticas sexuais. De fato, os padres acobertavam amantes, testemunhavam namoros proibidos e mais, eram contumazes em galantear mulheres casadas e moças incautas. Tem-se notícia de um frei baiano chamado Luis de Nazaré que curava enfermidades espirituais com a cópula, espalhando o sêmen pelo corpo da moça e com a Bíblia na mão.

Quase nada escapava aos olhos e ouvidos do povo, que passava, tão logo possível, ao visitador encarregado de apurar denúncias: qualquer ato, comportamento que denotasse comprometimento com o adversário do dogma cristão era tido como motivo para punição. Os casos mais graves eram enviados para Lisboa, muitos eram condenados ao degredo, pagamento de multa, remos, açoite ou prisão.

Os casos de processos envolvendo negros e escravos são raros. A condição de res valiosa para seu dono e o cativeiro paradoxalmente os protegiam. Ronaldo Vainfas informa que não havia muita preocupação com os atos nefandos das classes inferiores e de cor, já que sua salvação espiritual era de pouca ou nenhuma importância. Mais raros ainda eram processos envolvendo pessoas ligadas ao clero e mulheres brancas. Os religiosos, pecadores ou não, eram muito úteis no processo colonizador, e quanto às mulheres, por seu escasso número, não podiam faltar aos homens, já que necessárias para o casamento e para o concubinato, em favor do povoamento da terra.

Restavam os homens - mas não qualquer um: humildes portugueses, mazombos, mestiços, cristãos convertidos, dedicados ao comércio, à servidão. Enfim, qualquer um que não tivesse proteção do aparato colonial. Eram estes os preferidos dos inquisidores no Brasil Colonial.

3. OS VISITADORES

3.1. QUEM ERAM, SUAS FUNÇÕES E PRIVILÉGIOS

Antes de discorrer quem eram e quais as suas funções, faz-se mister esclarecer que, inexiste, ainda, uma análise completa sobre a importância e o concreto exercício do poder dos chamados Familiares e o seu impacto sobre toda sociedade além-mar. Daniela Calainho esclarece em sua obra que, como não houve tribunal da Inquisição no Brasil, a presença destes Familiares foi essencial para o controle e policiamento moral por parte do estado português. O historiador canadense David Higgs, trata os familiares como um a espécie de milícia voluntária e cheia de privilégios a serviço da Inquisição.

Os Familiares eram, como informa o Dicionário da Língua Portuguesa de 1789, nas palavras de Antônio de Moraes Silva, como o indivíduo, que feitas as suas provas de limpeza de sangue, tinha carta do Tribunal da Inquisição para servir em diligências dele, e gozava de certos privilégios de foro, entre outros. O termo Familiar aparece nas Ordenações Afonsinas designando o antigo oficial - executor, meirinho ou alcaide. Tratava-se de pessoas laicas que, sem abandonar suas ocupações, auxiliavam o Tribunal, efetuando prisões, recebendo denúncias, participando de inquéritos e policiando as consciências.

De todos os pretendentes ao ingresso na Familiatura eram exigidos certos requisitos morais: bondade, fidedignidade e, sobretudo, virtudes exteriorizadas. Deveriam ser reconhecidos pelos demais, cultivando a fama e a boa aparência, exterior ou não.As virtudes deveriam ser agressivas, deslumbrantes e exibidas com ostentação diante de todo corpo social. A tais requisitos somavam-se a limpeza do sangue, fidelidade e letras, de ordem sacra ou não. Além de ser conditio sine qua non o domínio da escrita e da leitura.

Fato é que tal carta era almejada por todos que, dentro dos interesses religiosos ou meramente materiais, buscavam toda sorte de privilégios: podiam prender, arrestar e seqüestrar bens, castigar e até matar - tudo em nome do Santo Ofício.

Anita Novisnky, mencionando alguns processos contra judaizantes no Brasil do século XVII, os compara à gestapo nazista, tal qual era sua rede de informantes, delatores, investigadores e policiais.

As funções desses familiares era denunciar ou simplesmente reportar denúncias feitas pelo povo, e precariamente apuradas, ao Santo Ofício. O rol de delitos (numa linha tênue entre crime e pecado) ia de judaizantes a outros hereges, passando por blasfemos, feiticeiros, bígamos, adivinhadores, sodomitas, desidiosos, falsos sacerdotes e muitos outros, incluindo muitos que se faziam passar por funcionários da Inquisição para usufruto de privilégios. Além disso, eram encarregados de acompanhar o cumprimento das penas, com jurisdição eclesiástica para majorar, reduzir ou extinguir o castigo a seu bel-prazer. E nos casos mais graves, acompanhavam os presos até aos Autos de Fé, em Lisboa.

O Regimento do Santo Ofício da Inquisição de Portugal datado de 1640 determinava que o familiar só pudesse efetuar prisões quando designados pelo Inquisidor. Entretanto, analisando os anais da Igreja colonial, é fácil vislumbrar que muitos exacerbavam nas prisões, dispensando o mandado expedido pelo Inquisidor.

A Carta de Familiatura dava ao seu dono um status social, honra e uma gama de privilégios, já que ficava à margem do direito, e a obtenção de tal documento passou a ser perseguida com todo fôlego por muitos senhores da colônia, dispostos a tudo para consegui-la. Era um atestado de sangue puro e de conduta irreprovável.

Os pecadores eram os de cor e de classes inferiores, sempre subjugados pelos de pele branca e com posses. Logo, somente os limpos de sangue e com bens, podiam requerer tal carta. Há de se destacar que a colonização ibérica foi de notória radicalização do mito da raça pura, ou de sangue puro. Os limpos de sangue - brancos e cristãos-velhos se contrapunham aos judeus, cristãos-novos, negros, mulatos, índios e ciganos.

Para se conseguir tal carta de Familiar, ou de qualquer outro cargo na estrutura inquisitorial portuguesa era necessário um requerimento, informando dados pessoais e justificativas para o pedido. Não raramente as justificativas fugiam do grande interesse em servir ao Santo Ofício, e chegavam à inexistência de funcionários qualificados para agir em nome da Igreja, diante de tantos pecados em determinada jurisdição.

Depois do pedido, seguia-se uma série de investigações acerca do postulante. A apuração profunda da vida pregressa e de laços de parentesco do solicitante eram primordiais para manter a imagem ilibada, não só do Ofício, mas de toda máquina inquisitorial. Era feita uma verdadeira devassa na vida do pretendente e sua ascendência, bem como naqueles que o rodeava. A prova consistia quase que na sua totalidade na oitiva de testemunhas: sempre pessoas de boa conduta reconhecida, antigas e cristãs-velhas.

Conforme o Regimento dos Familiares, o candidato tinha que ter recursos suficientes para viver de forma abastada, requisito tão importante quanto a pureza do sangue. Tal exigência se justifica pela necessidade de se fazer um depósito em dinheiro, já que todo o processo de investigação, procedente ou não ficava às expensas do pretendente. E mais, quando aprovados eram obrigados a oferecer generosas quantias à Inquisição.

O desfecho de todo processo, com a devida habilitação, dava ao postulante uma medalha (Venera) de Familiar, que era banhada em ouro e com gravações das armas inquisitoriais, e da tão almejada Carta de Familiatura, em pergaminho, com o selo do Santo Ofício e as armas da Inquisição em relevo.

O apoio da missão jesuítica no Brasil foi de grande importância para construção e manutenção do aparato inquisitorial no Brasil. Ouvindo suas confissões, induziam os fiéis a procurarem o Santo Oficio e narrar seus delitos, bem como delatar o de outros., contribuindo, assim, para aumento do número de processos e consequentemente de pessoas enviadas ao degredo, às galés e até para a fogueira.

Enfim, a rede de informantes de mais de 1700 familiares, que funcionou no Brasil dos séculos 17 e 18, a serviço do Santo Ofício, exerceu um controle social incontinenti na sociedade colonial, no sentido de manter as orientações da Igreja Católica e seus interesses, bem como reorientar as condutas que seriam dotadas de estigma desviante.

A economia brasileira, com seus surtos, seja na agricultura ou na mineração, era acompanhada pelo Santo Ofício e sua rede de Familiares. Quanto mais rica e próspera a região, maior era o número de trabalhadores que haviam de caminhar sob a batuta da boa conduta. Com o ouro das regiões das Minas Gerais vinha o anseio de uma Carta de Familiatura. Com a riqueza advinda da mineração, os que nela investiam ficavam mais ricos, e com o aumento da população ao seu redor, era maior o número de pessoas a serem investigadas. Com o aumento da riqueza, os preços dos escravos chegaram a subir nove vezes no inicio do século 18. Aumentando a riqueza, aumentava também a quantidade de bens a serem confiscados dos cristãos-novos.

Como corolário da corrupção que reinava desde os primórdios da colonização, a denúncia de desviados com bens era mais que constante. Não bastava ter a Carta, honra e poder, era preciso mais ouro para ostentar tal honraria. Novinsky em sua obra "Inventário de Bens Confiscados a Cristãos-Novos" cita o caso de João Dique, morador do Rio de Janeiro, que foi preso e teve inventariado noventa negros e um curral que lhe rendia uma pequena fortuna.

Para os que se enriqueceram com a mercancia e portadores da Carta de Familiatura, um dos privilégios que mais agradava era a isenção de vários impostos. A concessão de uma Venera significava a isenção da esmagadora carga fiscal do reino português. Tal qual ocorrera com a burguesia na Europa, os comerciantes brasileiros tinham o dinheiro mas faltava-lhe o adjetivo de nobre. E como a atividade mercantil já carregava o fardo de trabalho inferior, os portadores da Venera tinham tal estigma bastante minorado. Assim é de pontuar que a máquina inquisitorial montada no Brasil foi usada pelos cristão-velhos para alcançar o status tão almejado e não conseguido na Metrópole.

O porte de arma também era um acessório do Diploma. Como comerciante, era obrigado a viajar por lugares longínquos e contatar muitas pessoas desconhecidas, de forma que portar uma arma de forma legal era importantíssimo. Vale lembrar que, com tal ofício, que propiciava viagens por terras distantes, era freqüente ouvir histórias que acabavam em denúncias e confisco de bens, enriquecendo ainda mais os familiares.

Os empréstimos em dinheiro era mais que comum entre cristãos-novos e velhos. Muito embora fosse expressamente proibido pelo regimento, o trato ou a comunicação com suspeitos, a aceitação de qualquer coisa, mesmo que de pequeno valor ou pedir emprestado à "gente de nação", a máquina inquisitorial fechava os olhos para tais relações de mútuo.

Explica-se tal ausência de importância ao fato de que, ao permitir tal associação, capacitava o Santo Oficio a ter acesso ao inventário de bens e rendas dos comerciantes de origem judaica. De fato, não perseguir os judeus e arrestar seus bens, significaria empobrecimento da Igreja, riqueza para os hereges, fortalecimento da classe mercantil - tudo que a Coroa e a Igreja não queriam.

Mas nem todos os Familiares estavam ligados à atividade mercantil. Calainho cita em sua obra que encontrou Familiaturas ligadas à agricultura e manufaturas agrícolas. Ressalta-se que eram senhores de grandes propriedades, engenhos e donos de escravos e semoventes. Houve no quadro de Familiares artesãos, inclusive, o que denota certo afrouxamento nas condições para ingresso no corpo de Familiares por parte do Santo Oficio.

No que tange à nacionalidade dos Familiares, nem todos eram portugueses. Em torno de trinta por cento eram nascidos na colônia, demonstrando, pelo baixo número de concessões aos nacionais que deveria ser inibido o ingresso de mazombos da sala de tais honrarias. Diante da pulsão sexual, já citada, que predominava com negras, mulatas e índias, era quase certo que os nascidos no Brasil tivessem o sangue impuro, ainda que sem saber. Entretanto, no século 19, o número de familiares brasileiros ultrapassou o de portugueses, divulgando uma elite luso-brasileira mais adequada aos critérios raciais exigidos pelo Regimento.

3.2 OS REJEITADOS

Já foi informado que o processo de concessão de Carta de Familiatura, e da chamada Venera, era seguido de grande esquema investigatório, que se aprofundava na vida pessoal do requerente, de seus parentes e até ligações pessoais e comerciais. Qualquer falha era motivo para indeferimento de pedido, mesmo sem direito a contraditório, ou apenas por "ouvir falar". A pesquisa realizada por historiadores nos inúmeros documentos da Inquisição, traz à tona o racismo, o preconceito e a intolerância fortemente presentes na sociedade colonial. Fácil perceber que qualquer traço de ascendência cristã-nova era mais que suficiente para indeferimento de plano.

O Livro das Habilitações do Santo Ofício dá notícia, em pesquisa por amostragem, que dos 38 postulantes rejeitados, 18 eram de ascendência judia, oito por mau comportamento, quatro de ascendência mourisca, quatro de ascendência negra, dois por viverem amancebados, um por ser bígamo e um pela pouca idade.

Assim como ser aceito e receber a Carta era uma honra a ser celebrada por toda a família, o seu indeferimento era motivo de vergonha e humilhação. Da mesma forma que a Carta era uma espécie de atestado de pureza de sangue, a sua não concessão era uma declaração oficial do Santo Ofício da sua inferioridade. E nada se podia fazer para mudar ou mesmo promover uma contraprova. O parentesco da esposa também era minuciosamente investigado, e que também era motivo para negativa do pedido a suspeita de sangue impuro na família do cônjuge.

Curioso o caso narrado por Calainho do cidadão baiano Antonio Ferreira de Souza, rico e poderoso comerciante, além de senhor de engenho, de boa reputação. Tinha todos os requisitos para ver deferido seu pedido. Qual foi sua surpresa quando da chegada da resposta negativa. Ficou apurado, através de uma testemunha que trazia um boato que não se sabia se era verdadeiro, que sua esposa, Izabel Muniz de Menezes, tinha raça de cristã-nova. Em caso de dúvida, o investigador responsável enterrou as pretensões do comerciante. Como se observa pelo narrado, o método de averiguação de pretendentes não envolvia o devido processo legal ou uniforme para todos os casos. Resta que era amparado por uma decisão monocrática do investigador, sem direito à contraprova ou recurso. E mais, deixava o fracassado postulante com a pecha de sangue ruim, que carregaria por várias gerações.

Entretanto não era só a "cristã-novice" que impedia a concessão da Venera. A chamada "mácula da pardice", era a segunda agravante para seu indeferimento. A discriminação sofrida por muitos através do aparato inquisitorial e de outras instituições, reinais e eclesiásticas, transbordavam de critérios étnicos e sociais, que atingiam não só aos negros e mulatos, mas também aos procedentes do gentio.

Como se observa, o comissário investigador agia como advogado do diabo: era responsável não pela apuração de informações fornecidas pelo postulante, mas, tão-somente, para encontrar qualquer mácula, mínima que fosse, para indeferir o pedido. Em tese, não bastava ter posses, ter sangue puro, e uma família estável. O mercador Domingos Carvalho Lima teve seu pedido indeferido pela informação de sua comadre e desafeta que era dado a beberagens, dizia impropérios e difamava honras alheias.

Muito embora a corrupção e o tráfico de influência já fossem presentes nestas terras, não era garantia alguma de concessão da Carta ter algum parente já conhecido como Familiar. E muito menos lhe era concedida qualquer facilidade. Joseph Tavares da Silva, paraibano, parente da esposa de um portador da Venera, tinha fama de temperamento explosivo, brigava com seus subordinados e, pior, vivia amancebado com uma escrava, com a qual ainda tinha uma filha. O parecer final consta que era "incapaz de guardar qualquer segredo dos negócios do Santo Ofício".

Ainda assim, o que era um processo rígido de seleção por parte da Igreja, para integração no seu quadro de familiares, a influência e os constantes pedidos de pessoas importantes e tituladas em Portugal para fazer "vista grossa", permitiram que alguns "de raça infecta" se habilitassem a Familiar. Em alguns casos, já no próprio requerimento vinha um recado lembrando tal promessa feita em determinada ocasião.

No Brasil, a única referência encontrada de um familiar de sangue não puro é dada por Novinsky, quando trata da habilitação de D.Marcos Teixeira, famoso cristão-novo, em 1618.

Dissecando tal severo processo de investigação para habilitação de um pretendente à Carta de Familiatura, é de se notar a presença de um mecanismo regulador social dentro da própria elite colonial. Considerando que o método de investigação muito se assemelhava aos adotados para as denúncias de hereges, salvo pela prática de tortura, pode-se afirmar como bem o faz Calainho que havia "uma inquisição dentro da inquisição".

3.3 O TERROR A SERVIÇO DO SANTO OFÍCIO E OS FALSOS AGENTES

Tanta dedicação e exigência no processo de investigação de um postulante a Familiar desaguavam na escolha dos mais ferrenhos perseguidores do Santo Ofício. Era de se esperar que depois de tanto anseio pelo diploma, haveria de fazer gosto a quem o promovera. A confiança atribuída retornava em números de perseguidos e doações para a Igreja.

As atividades de espionar, prender, delatar, arrestar bens, transformavam os agentes nos mais poderosos tentáculos da Inquisição no Brasil. E contavam com uma vasta rede de informantes: o povo. Como uma espécie de releitura macarthista, a caça aos hereges serviu para se eximir de dívidas, desaparecer com um desafeto, se apropriar das terras do vizinho herege ou fazer justiça, segundo a lei do indivíduo.

E mais do que práticas de polícia, os Familiares agiam atiçando o lado psicológico dos indivíduos. Era necessário trazer a confissão ou a delação. Era fundamental informar ao colono o que era pecado. E mais necessário ainda era que a informação de um herege fosse uma prova da devoção para com a Igreja e sinal de salvação de uma alma também impura, a do delator. Era comum a citação aos Autos de Fé onde pessoas eram queimadas, os degredos, as galés, os açoites, para atiçar a memória dos pecadores e dos informantes. Trazendo à tona o pânico e as inseguranças de ordem pessoal e moral, a conscientização do erro, o medo da punição, as inimizades, os rancores, as perdas materiais e amorosas: tudo era motivo para que muitos confessassem e acusassem uns aos outros.

Assim chegavam muitas denúncias que, para deleite do inquisidor, elevariam seu prestígio junto ao Santo Oficio.

Uma prática recorrente era uma espécie de tortura kafkaniana: prendia-se o indivíduo, deixando-o vários dias na cela, sem sequer ser informado do motivo de sua reclusão. Quando chamado perante os oficiais, vinha-lhe a boca todas as torpezas que poderiam motivar sua detenção. Inclusive aquelas que ninguém suspeitava. Foi o que aconteceu com o mercador de Pernambuco chamado Rodrigo Fidalgo, que foi denunciado por sodomizar uma escrava de 15 anos. Preso, sem saber o motivo, delatou toda a família como judia, já que tinha condição de cristão-novo.

Muitos queriam simplesmente cair nas graças do Santo Oficio, buscando benesses para o futuro, ou quem sabe, para uma necessidade própria ou da família. E foi assim que Violante Carneira denunciou uma feiticeira colonial, a "Arde-lhe-o-rabo". Porém, nem desconfiava que no dia anterior, um amante, querendo livrar-se de Violante, a acusara de proferir palavras da missa durante o ato sexual.

A maior parte das denúncias advinha da própria população que estava sob a jurisdição do Familiar. Sendo assim era de se esperar uma eterna mútua vigilância, instigada pelo Santo Ofício, que fazia qualquer deslize, um pecado a ser denunciado. Das denúncias ninguém era poupado: ricos, pobres, sábios, ignorantes, membros eclesiásticos ou trabalhadores do campo, todos tiveram seu comportamento desviante e heresias devastadas. Tudo fruto de um trabalho meticuloso do Santo Ofício que fazia a própria comunidade se delatar, se trair e se vingar, que envolvia o estigma da infâmia, o arresto de bens e sua conseqüente ruína, moral e material.

A simples presença de um agente do Tribunal da Inquisição nas redondezas era motivo de alvoroço e medo. O impacto de sua presença fazia as pessoas, mesmo as mais imaculadas, se trancarem em casa com medo de encontrar a ira nos olhos do inquisidor, ou de ter algum segredo revelado. Já era de conhecimento da população dos agentes que abusavam de suas prerrogativas, agindo de forma arbitrária, forjando delitos, seja em proveito próprio, ou simplesmente para impor respeito.

Vaidade pessoal, a busca pelo status social, a honra, o poder, desonestidade e medo levaram muitos a cometerem a heresia de se passar por Familiar, o que era uma heresia gravíssima aos olhos da Igreja. Tal pecador, reconhecido pelos leigos como verdadeiro ministro do Santo Ofício, recebia denúncias, confissões de culpa, escrevia depoimentos e chegava a formar verdadeiros processos inquisitoriais, além, claro, de tomar todos os bens do suposto herege.

Os falsos familiares também agiam fora dos interesses da Igreja. Não eram raros os casos de determinação de soltura de presos com assinatura daquele que se fazia passar por agente do Santo Ofício. A venda de favores, que tinha como escudo os brasões da Inquisição se tornava uma atividade lucrativa. E mais, o Santo Ofício acabou no meio de conflitos, dívidas e amores ilícitos.

Vale citar o caso do lusitano Dionísio de Almeida Costa, morador das Minas Gerais. O tal lusitano, que se dizia padre, chegou à fazenda Fernando Dias Paes, um rico senhor de engenho, afirmando ser Familiar e que precisava de ajuda para prender algumas pessoas, sendo prontamente atendido. No meio do caminho para o Rio de Janeiro, surpreendeu um casal, dando ordem para que fosse morto o homem e presa a mulher. Os escravos cedidos não obedeceram, desconfiando da fúria do suposto padre e o levaram de volta à fazenda. Chegando lá, foram cobrados seus papéis de familiar, que não portava. Foi entregue a um comissário do Santo Ofício e enviado para Lisboa. Em confissão contou que era "sócio" de beberagens e jogatinas e mulheres, do homem encontrado no caminho, e que mantivera um "affair" com a esposa, fruto de um feitiço. Como era credor do marido, e querendo se livrar da amante, resolver exigir a quantia emprestada de volta para retornar a Portugal. Tentando fugir da dívida e da vergonha do adultério da mulher, o casal foge e é perseguido por Dionísio. A apuração dos fatos revelou que, na verdade, pretendia raptar a mulher e matar o marido, utilizando-se da falsa prerrogativa de Familiar.

Chantagens também estavam no rol dos delitos apurados em nome do Ofício. A troca de papéis da Inquisição por pipas de vinho e moedas de cruzados era uma das formas de promoção da chantagem com o uso do nome inquisitório.

Há de se destacar que o medo era tanto, que mesmo as falsificações mais toscas das medalhas do Santo Ofício eram suficientes para aterrorizar a população. O medo as fazia subserviente diante da suposta envergadura, que se deixavam enganar, prender, lesar patrimonialmente. A ação do familiar estava não apenas no texto do regimento, mas também na disseminação do pavor e da repressão inquisitorial.

O Ofício não deixava impune aqueles que se faziam passar por agentes. A simples menção de sua passagem por uma determinada região significava para a Igreja um dos mais graves desvios de seu ministério. A perturbação da ordem clerical e sua magnitude acostada à sua moralidade não poderiam ser alvo de polêmicas. Ao prender, julgar e condenar tais falsários, a Igreja promovia um expurgo nela mesma, um auto-julgamento, e que mostra como a Inquisição atuava internamente, no sentido de frear tais comportamentos e manter sua imagem.

CONCLUSÃO

O processo colonizatório brasileiro em muito diferiu daquele praticado na América Espanhola. Enquanto a primeira tinha uma posição de clara exploração por parte de terceiros, a segunda, nos interesses da Coroa, agia de forma direta perante as terras colonizadas. O que demonstra certo desinteresse por parte do rei de Portugal. Com a iminência de invasões, principalmente de franceses e holandeses, tornou-se necessário o povoamento, de forma a garantir a posse pela ocupação.

Tal comportamento tornou inevitável a colonização portuguesa após três décadas de relativo abandono, já que a atividade que mais interessava era a extração de pau-brasil, sem qualquer interesse em povoamento.

Com as primeiras embarcações que chegavam à América, vinham os representantes do Clero, símbolo da simbiose política entre o poder papal e o Estado. É de se concluir que a presença da Igreja, já nos primeiros navios, tinha o interesse de apurar o investimento e futuro aproveitamento financeiro das terras recém-descobertas.

Com o povoamento, o envio de degredados e delegados com cartas de doação de terras, e muitos outros que, por diversos motivos fugiam da Europa, entre os quais, os judeus, tomou vulto a atividade herética, assim considerada pela Igreja,. A simples presença de judeus era suficiente para incomodar. Perseguidos na Europa, e com grandes possibilidades de ascensão financeira nas novas terras, corria o risco de tornar-se o Brasil uma terra de não-cristãos. E, sendo assim, a conivência Igreja-Estado estaria em desvantagem, afetando a ordem político-social que se almejava.

Entretanto, não havia como afastar todos os cristãos-novos, já que eram estes responsáveis pelos negócios do comércio que tanto lucro dava à Coroa Portuguesa. Tirá-los da cena do processo de colonização, seria correr o risco do fracasso econômico que não se pretendia ver. E assim, a Igreja, visando interesses materiais, permitiu, com mínima tolerância, a presença de impuros de sangue no seio da sociedade colonial.

A Inquisição foi uma das principais instituições responsáveis pela disseminação do mito da pureza de sangue e do preconceito em relação às raças consideradas inferiores. O que se buscava era uma sociedade ideal, com força católica, branca, sem mácula moral e longe de heresias.

Com essa finalidade o Santo Ofício fez chegar ao Brasil os Familiares, homens que se pretendiam acima de qualquer suspeita, dignos de ostentar o título e a medalha, gozando de fartos privilégios, inclusive fiscais, e, em muitos casos, se utilizando da posição para exercer prática de polícia. Além de usar em proveito próprio, com arbitrariedade, em flagrante abuso de poder, eram responsáveis por processos e prisões de desafetos, achacando, cobrando multas, e enriquecendo ainda mais.

Grosso modo, os Familiares causaram um grande impacto na sociedade colonial. A psicologia do medo e do terror, era uma arma demasiadamente usada, e eficaz, já que trazia tanto a auto-delação como a denúncia de outros, com fundamento ou não, já que estavam em jogo também interesses particulares dos denunciantes.

O sexo aflorava nas colônias. O que era proibido na Metrópole era quase que uma regra no Brasil. As índias, e depois os escravos, serviam para alimentar a sede de libertinagem que assolava nos trópicos. Como corolário, vinha a bigamia, o adultério, a sodomia, a zoofilia. Cabia a Igreja, através dos Familiares, acabar com tal situação, já que corria o risco de tornar-se um terra de negrinhos e mulatos.

A prática de magia, como resultado do sincretismo religioso, tornou-se comum na presença de poções, rezas, ungüentos e patuás. Nada permitido pelo Santo Ofício. Tudo que não estava em harmonia com as Escrituras era considerado prática herética.

A busca pela posição de Familiar acarretava num processo que levava anos, sem possibilidade de contraditório ou recurso, podia terminar com seu indeferimento diante de um único testemunho, ainda que duvidoso, de impureza de sangue. Mesmo assim, muitos falsos Familiares, se colocaram nas vestes oficiais para espalhar o medo e a autoridade ilegítima, numa busca de hereges (leia-se resultados financeiros ou de ordem personalíssima) de flagrante caráter temerário.

O processo para deferimento da Carta de Familiatura envolvia uma investigação minuciosa na busca de qualquer impureza ou fato que importasse na negativa do pedido. O que se verificava era uma devassa na vida do postulante e de seus relativos para concessão ou não do pedido. Como já dito, uma Inquisição se verificava dentro da Inquisição. Era a própria Igreja se policiando, numa época em que, caminhando lado a lado com o poder estatal, deveria manter-se incólume diante de qualquer ameaça, fosse de ordem doutrinária, religiosa ou não, e comportamental, comissiva ou não.

Com todos os desvios, a presença dos Familiares foi de suma importância para reforçar o controle social do império português através da Igreja, e manter sua posição de colônia subserviente, perseguindo e punindo as condutas heréticas em nome do Santo Ofício.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • MOTT, Luiz. O Sexo Proibido: Virgens, Gays e escravos Nas Garras da Inquisição. Campinas: Papirus. 1986.
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  • SIQUEIRA, Sonia A. A Inquisição Portuguesa e a Sociedade Colonial. São Paulo: Ática. 1978.
  • SOUZA, Laura de Mello. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras. 1986.
  • VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil. São Paulo: Campus. 1989.

Para Patrícia, com amor e saudade.

AGRADECIMENTOS

Na realização deste trabalho devo minha gratidão a:

- Dr. Jacy Gomes Dasilva, pelo apoio incomensurável, e cuja amizade e confiança serviram para angariar forças e enfrentar o demônio do meio-dia.

- Professora Vera Lúcia, nossa querida Verinha, por sua vocação inequívoca e prazer de suas aulas.

- Professor Dr. Valeriano Altoé, pela orientação na confecção deste trabalho, e por dividir seu vastíssimo conhecimento com a humildade dos verdadeiros sábios.

- Professor Dr. Ricardo Mendes, pela orientação técnica, conduta profissional irreparável, e por despertar o interesse pela História da América Latina.

- Professor Dr. José Luiz Bello, pela Metodologia Científica, que trouxe a tranqüilidade na formatação do trabalho.

- Aos amigos e familiares que me acompanharam, sempre apoiando e compartilhando momentos agradáveis: Dr. Joel César, Drª. Ana Paula Gonzalez, Rafael, Camila, Beto, Allan, Carlos Alberto, Neila Cavalcante, Archimedes, Edmilson, Lindomar, Bárbara, Myriam, Graziela, Gustavo, Sérgio, Luís Paulo, Daniel Fagundes.



Autor:

Alcemar Oliveira

alcemar.oliveira[arroba]gmail.com

UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA - UVA

Rio de Janeiro

2007



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