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Polícia e direitos humanos: Aspectos contemporâneos (página 2)

Marco Antonio Alves Miguel
Partes: 1, 2, 3, 4, 5, 6

 

Key words: Human Rights, police officer, transversality, dignity, principles.

MIGUEL, Marco Antonio Alves. Polícia e Direitos Humanos: Aspectos Contemporâneos. 2006. 159 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Centro Universitário Eurípides de Marília, Fundação de Ensino Eurípides Soares da Rocha, Marília, 2006.

RESUMEN

Polícia e Direitos Humanos: Aspectos Contemporâneos apunta la importancia de la educación para los Derechos Humanos en la formación y preparación de los agentes encargados de aplicar la ley: el oficial de policía. En este sentido, la transversalidad establece una relación entre aprender los conocimientos teórico y las cuestiones de la vida real y de su transformación. El policía es el agente público que más representa la manifestación del Estado en la preservación de la seguridad y mismo haciendo lo correcto, poniendo la fuerza, el no puede olvidarse de los derechos fundamentales que originan los derechos del ser humano, su dignidad. Hay una línea sutil entre el uso de la fuerza por el Estado y los Derechos Humanos que pueden llevar el profesional de seguridad publica ser responsabilizado por su conducta, sea en el esquema jurídico interno o en el externo. Estas son las razones de una investigación bibliografica utilizando el método deductivo y inductivo. Las concepciones filosóficas del Hobbes, Focault y Arendt evidencian la importancia de los conceptos como pacto, poder, violencia y libertad, estableciendo los fundamentos de la relación entre persona y estado, originando los principios de la administración pública que se observara las características o las cualidades del policía. Accionan intrínseco en la actividad del policía, también el límite legal y humano de la dignidad. Apunta también, la experiencia precursora de la policía militar como ejemplo de paradigma y la experiencia metodológica de la investigación desarrollada por la Universidad del Estado de San Pablo, de la ciudad de Marília.

Palabras claves: Derechos humanos, oficial de policía, transversalidad, dignidad, principios

INTRODUÇÃO

A partir da aprovação da Declaração Universal de 1948, introduz-se a concepção contemporânea de direitos humanos e passa a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Nessa concepção aduzida por Bobbio (1992, p. 30), os Direitos Humanos nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares, isto é, quando cada Constituição incorpora Declaração de Direito para, finalmente, encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais.

Os processos de universalização e internacionalização destes direitos no mundo contemporâneo devem ser compreendidos sob o prisma de sua indivisibilidade, endossada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993, quando, em seu parágrafo 5º, afirma: "Todos os direitos humanos são universais, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente de forma justa e eqüitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase".

Ressalta-se que o destinatário dos direitos humanos são todos os homens universalmente e, assim, valendo-se da lição de Bobbio (1992, p. 30), positivado no sentido de movimento de um sistema em que os "direitos do homem deverão ser não mais apenas proclamados ou apenas reconhecidos, porém efetivamente protegidos, até mesmo contra o próprio Estado que os tenha violado".

Após a promulgação da Constituição Federal Brasileira de 1988, buscou-se sedimentar o Estado Democrático de Direito no Brasil. Nesse período, os órgãos de segurança pública, tidos como repressores dos direitos individuais e coletivos, foram alvos das mais variadas críticas por parte da opinião pública e do meio acadêmico, diante de fatos marcantes de abuso de poder e ofensas aos Direitos Humanos em suas ações.

O Estado, numa concepção weberiana, é a única instituição que pode constranger ou obrigar as pessoas e somente ele pode equipar a norma jurídica com a coação. No Estado Democrático de Direito, deve-se compreender a noção de que ao mesmo tempo em que se cria o direito, a ele deve sujeitar-se. Trata-se do princípio da legalidade, o qual obriga a todos, inclusive e principalmente o Estado. Nesse sentido, o Estado não se circunscreve a um conteúdo espiritual. Sua existência real se afirma nos homens, que materializam sua vontade e tomam, em seu nome, as decisões obrigatórias para as pessoas e nesta razão de ser.

O esboço da ordem jurídica prende-se à consideração do direito positivo, desligado da idéia de justiça ou de direito natural. No âmbito dessa diretriz positivista, levada a extremo, é possível identificarem-se muitos abusos e muitas tiranias. Tudo que é direito obriga, sem consideração à justiça: tudo o que é direito, por ser direito, é justo. Há de ponderar-se, todavia, que a doutrina se amolda à idéia de justiça, sempre presente no direito positivo, como ideal e como parâmetro. Essa idéia não leva ao direito natural, para cujos partidários só ele justificaria a validade do direito.

Nesse sentido, tornou-se imperioso que os órgãos de segurança pública, que possuem em seus quadros homens e mulheres que materializam a ação do Estado, fossem adequados ao preparo profissional de milhares de policiais. Estabeleceu-se a estratégia da melhoria da qualidade dos serviços prestados aos cidadãos no território brasileiro, tendo como meta os fundamentos da intervenção do Estado no conteúdo dos direitos individuais, resultante do poder de polícia, cuja finalidade nada mais é do que a proteção dos direitos coletivos, pautados na preservação da vida, da integridade física e da dignidade da pessoa humana.

Assuntos e temas relacionados com os Direitos Humanos foram incluídos nos planos de ensino e diversificados no conteúdo programático dos cursos de formação e especialização das polícias de segurança pública, numa visão sistêmica global e regional, vencendo alguns paradigmas comuns diante de mudanças estratégicas.

Artigos, monografias e teses sobre Direitos Humanos passaram a ser referenciais nos bancos acadêmicos. No entanto, torna-se necessário relacionar Direitos Humanos com os órgãos de segurança pública na busca de uma constante aprendizagem na área de conhecimento, principalmente analisando os seus reflexos diante da globalização no mundo contemporâneo. E, por isso mesmo, nesse desiderato, não poderia deixar de considerar os fundamentos filosóficos em torno de poder, política, autoridade, coerção, violência, força e legitimidade, em homenagem à Grotius, Hobbes, Foucault e Arendt para reforçar a temática Polícia e Direitos Humanos.

As relações almejadas sob a temática Polícia e Direitos Humanos, numa concepção comunitária e pela educação, podem ofertar um campo importante na resolução de problemas.

Desta forma, fazendo-se um balanço da relação polícia e direitos humanos, procura-se colaborar com as autoridades competentes na tomada de decisões de novas políticas públicas em defesa da cidadania e da dignidade da pessoa humana.

Espera-se que profissionais ligados à área de segurança pública, responsáveis diretos pela segurança das pessoas e do patrimônio, consigam, por meio de trabalhos científicos nesse campo, a almejada mudança de seus planos estratégicos para a consecução de metas de eficiência no Estado Democrático de Direito.

A delimitação cronológica do estudo abrange, perfunctoriamente, o período histórico em que o Direito preocupou-se com a polícia e o poder dessa polícia até nossos dias, fazendo uma especial alusão à polícia geral e à polícia especial, notadamente a de segurança pública, assim traçada pela doutrina, ao se referir aos órgãos encarregados da segurança pública positivados na Constituição Federal.

A delimitação espacial restringe-se às polícias de segurança do Brasil, com um suporte especial à Polícia Militar do Estado de São Paulo, em face de experiências precursoras em relação à temática.

A hipótese levantada sob os aspectos gerais refere-se aos esforços de determinados órgãos de segurança pública em respeitar, defender, proteger e promover os Direitos Humanos. Há evidências que demonstram a ocorrência de crimes de tortura e desrespeitos aos princípios da dignidade da pessoa humana, sendo necessário rever conceitos, princípios e doutrina para que esses órgãos mudem seus planos estratégicos. Esses planos envolvem políticas de governo e demonstram a necessidade de revisões, não apenas quando um fato isolado é noticiado pela mídia e tenha repercussão.

Assim, indaga-se: há estratégias eficazes e padronizadas aplicadas ao ensino das polícias em relação aos Direitos Humanos? Há compatibilidade entre a doutrina policial e a doutrina jurídica na relação polícia e Direitos Humanos? Qual o sentido da relação polícia, direitos humanos e comunidade no mundo contemporâneo?

O objetivo desta dissertação é apresentar propostas para o aperfeiçoamento das polícias em relação aos direitos humanos.

A justificativa deste trabalho aponta para a real necessidade da sociedade que exige o aperfeiçoamento dos métodos e meios do Estado, particularmente da Administração Pública, postos à disposição das pessoas de forma eficiente. Não se concebe que instrumentos e formas obsoletas de gestão pública sejam utilizados com evidente perda de tempo e dispêndio de recursos. Dessa forma, estabelece evidente desprestígio para a Administração Pública, na medida em que seus objetivos não são alcançados de maneira satisfatória, ocasionando desperdícios de recursos e desrespeito aos direitos humanos e coletivos da sociedade.

Nesse enfoque instrumentalista, as razões que justificam a pesquisa norteiam para a modernização das relações entre Polícia e Direitos Humanos, no sentido de que os serviços públicos prestados por agentes públicos visem eficiência, atinjam níveis de excelência e satisfaçam à sociedade de forma eficaz na busca da almejada qualidade de vida e paz pública.

O tema é relevante na medida em que há conhecimento de vicissitudes entre o relacionamento dos agentes encarregados de aplicar a lei e os instrumentos de proteção dos direitos humanos. A solução caminha para a necessidade da quebra de paradigmas estruturais e sistêmicos com a finalidade de satisfazer os interesses da sociedade, cujo foco envolve medidas educacionais das partes envolvidas, ou seja, a polícia e o cidadão.

Este trabalho acadêmico pretende contribuir para mudanças de políticas públicas relacionadas à segurança pública, por meio de conhecimento científico que possa embasar planos, projetos e programas governamentais e subsidiar as áreas política, social, educacional.

A metodologia empregada baseia-se em pesquisas e revisões bibliográficas, da legislação, da filosofia, da doutrina e de jurisprudências atinentes ao tema em foco, bem como métodos de investigação em sites da Internet, a saber:

a) Dedutivo: a partir de uma observação do sistema jurídico ligado à área de Segurança Pública e Direitos Humanos busca-se uma investigação acerca da atuação das polícias e dos órgãos de proteção aos Direitos Humanos e, nesse conflito intersubjetivo, descobrir as causas de não efetividade, eficiência e eficácia da interação desses institutos, utilizando-se, como reforço, os métodos histórico-evolutivo e epistemológico. O pano de fundo para essa assertiva consagra as concepções filosóficas de Hobbes, Foucault e Arendt, em relação a pacto, poder, autoridade, violência, liberdade e política.

b) Indutivo: levantamento da realidade jurídico social em nível regional, por meio de pesquisa doutrinária de coleta de dados junto à Polícia Militar do Estado de São Paulo, facilitado pelas amostragens resultantes das pesquisas disponíveis no Grupo Urbano de Trabalho Organizado da UNESP, campus de Marília.

c) Especulativo, comparativo e lógico utilizados nas etapas avançadas da pesquisa, por orientação da mesma metodologia.

Este trabalho foi estruturado em três capítulos:

O primeiro refere-se à conceituação de Polícia e Poder de Polícia, levando-se em consideração a evolução histórica, os aspectos filosóficos, bem como os princípios e atributos consagrados desse poder da Administração Pública.

O segundo contextualiza a polícia de segurança, diante de seus aspectos constitucionais e doutrinários, e sua problemática, diante da violência policial, da corrupção e do desvio de poder, assim também entendida pelas concepções doutrinárias.

O terceiro descreve os Direitos Humanos e as expectativas de políticas públicas em segurança. Além de ser perfunctório sobre o histórico dos Direitos Humanos, demonstra-se a sua contextualização diante do Direito Internacional, de cuja temática sobressai o Tribunal Penal Internacional e a competência da justiça federal, quando da ocorrência da grave violação dos direitos humanos. Nesse capítulo estabelecem-se as experiências precursoras da Polícia Militar paulista, os limites legais aos encarregados de aplicar a lei e as propostas para o aperfeiçoamento das polícias em relação aos direitos humanos.

Importância é a dedicação voltada à práxis dirigida para uma filosofia educacional capaz de contribuir para a construção de um novo modelo de cidadania, cujo exercício reúna conhecimentos e informações a um protagonismo responsável, capaz de exercer direitos que vão muito além da representação política tradicional; enfim, ideais positivos para a vida pessoal e para a convivência, contexto no qual se inserem as organizações policiais.

A Interdisciplinaridade e Transversalidade Curricular são duas dimensões metodológicas que contribuem para a excelência humana e para a excelência do trabalho. As organizações policiais estão se preocupando com essas novas propostas e parece esse o caminho para as mudanças intrínsecas, ou seja, pela educação na formação e preparação profissional.

A par disso, a necessidade de estabelecer uma metodologia que possa proporcionar resultados relevantes para se comprovar as mudanças pretendidas e os pressupostos necessários para alternativas na busca da gestão pela qualidade, dentro do princípio constitucional da legalidade e eficiência.

DA POLÍCIA E DO PODER DE POLÍCIA

Considerações sobre a origem da polícia e do poder de polícia

Atentando-se para o termo "polícia", importante conhecer preliminarmente os breves significados recebidos durante o passar do tempo para entender-se seu significado contemporâneo.

Na Antiguidade, significava constituição do estado ou da cidade, isto é, o ordenamento político do estado ou cidade.

Nesse sentido, a "polícia" deriva-se do conjunto de funções necessárias ao funcionamento e à conservação da Cidade-estado, ou seja, a polis grega. Daí a etimologia de polícia e civita romana, inerente à civita. Civil era, pois, derivação de cidade (conceito político e não urbanístico) e logo Direito Civil (o Direito dos nascidos na civita romana) e cidadão - aquele a quem é dado o direito de influir na gestão da coisa pública, da civita, no sentido primitivo os que se domiciliavam na cidade, os civis, e os que estavam fixados fora da civita (os militares). Assim, os corpos militares, as legiões romanas, eram sediados fora dos limites da cidade para defendê-la dos invasores, os bárbaros, e não podiam adentrá-la sem permissão do governo.

Dentro das civitas, só bem depois, já no final do império romano, é que ocorrerá o fenômeno do pretorianismo, militarização transitória de determinadas funções estatais ligadas à segurança pública. Cessada a excepcionalidade, retornava-se à normalidade civil e amiúde usada como instrumento de conquista, manutenção e exercício forçado do poder, que já perdera muito de sua força sobrenatural a qual tanto fortaleceu as Cidades-estados. Isto vem se explicar o fenômeno político, já histórico, denominado militarismo. Na essência, portanto, policiar é civilizar, porquanto a vida civilizada implicava em refreamentos do que não é civilizado, do que não é urbanidade.

Na Idade Média, foi usada em sentido amplo. No século XI, retira-se da noção de polícia o aspecto referente às relações internacionais. Nessa época, já desenhava o exercício de poder de polícia, tal como atualmente é considerado, no âmbito das comunas européias, por seus administradores. A função da polícia contribuiu para fixar a raiz nascente da cidade moderna.

Fiorini (apud MEDAUAR, 1995, p. 53), ressalta:

[...] nessas comunas a atuação prática da polícia se caracterizava e se ajustava à manutenção da ordem e tranqüilidade públicas; por isso, aí estão os antecedentes da concepção hodierna de poder de polícia e não nos sempre invocados regulamentos policiais do Código geral prussiano, de 1794. [...] nos séculos XII a XV, [...] em muitas comunas francesas, existiu licença edificando, alinhamentos nas construções, polícia das profissões como proteção dos consumidores e a polícia sanitária, saindo, aos poucos, do âmbito da polícia, as matérias relativas à justiça e às finanças.

Na Alemanha do fins do século XV, o jus policie volta a designar toda a atividade do Estado, compreendendo os poderes amplos de que dispunha o príncipe de ingerência na vida privada dos cidadãos, incluindo a sua vida religiosa e espiritual, sempre sobre o pretexto de alcançar a segurança e o bem-estar coletivo, ao estilo hobbesiano.

Logo estabeleceu-se uma distinção entre polícia e justiça. Polícia compreendia normas baixadas pelo príncipe, relativas à administração e eram aplicadas sem possibilidade de apelo aos tribunais por parte das pessoas. Justiça passou a ser compreendida como as normas que ficavam fora da ação do príncipe, aplicadas pelos juízes.

Nos primórdios do século XVIII, polícia designava o total da atividade pública interna, sem a justiça e as finanças, consistente em regular tudo o que se encontrava no âmbito do Estado, sem exceção.

No fim do período absolutista, aparece o chamando "Estado de Polícia" que se intromete opressivamente na vida dos particulares. Em sentido amplo de polícia, a partir desse momento, começa dar lugar à noção de Administração Pública. Restringe-se o sentido de polícia sob a influência das idéias da Revolução Francesa, da valorização dos direitos individuais e da concepção do Estado de Direito, liberal-democrático, cujo substrato era dirigido ao princípio da legalidade, em seus dois aspectos: submissão do próprio Estado à lei por ele posta e ação de acordo com o que esta determina.

A Revolução Francesa, no término do século XVIII, assinala a implantação do liberalismo, que se vai irradiar como modelo da sociedade do milênio seguinte, afirmando a internacionalização dos direitos fundamentais e do princípio de legalidade como fundamento de garantia da liberdade e do patrimônio, protegendo o indivíduo contra o absolutismo dos atos de Governo. A Declaração de 1789 afirma como finalidade, a conservação dos direitos naturais do homem, que são a liberdade, a propriedade, na segurança e a resistência à opressão (art. 2º). A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo (art. 4º), e a lei, expressão da vontade geral, deve ser a mesma para todos, seja para proteger, seja para punir (art. 6º) (TÁCITO, 2001, p. 16).

Polícia passou a ser vista como parte integrante da atividade da Administração, no sentido de manutenção da ordem, da tranqüilidade, da salubridade e uso livre das coisas públicas. Esse é o sentido da polícia geral na doutrina francesa, tendo como razão histórica o fato de que as atividades de polícia incidiam sobre as matérias tidas como próprias da polícia geral: segurança, tranqüilidade e salubridade públicas, perfazendo a noção de ordem pública. Por outro lado, a polícia especial era aquela que se referia aos outros ramos de atuação da polícia administrativa. Salienta-se que, na França, a Administração, na hipótese da polícia geral, vale-se de regulamentos autônomos, inovadores na ordem jurídica e têm cunho materialmente legislativos.

Nesse sentido, Mello (1993, p. 403) explica que a distinção entre a polícia geral e especial não tem tanto interesse no direito pátrio [1]uma vez que "[...] no Brasil só existem regulamentos executivos, isto é, para fiel execução das leis. Foge à alçada regulamentar inovar na ordem jurídica. Para nós, [...] encontram-se niveladas todas as intervenções da Administração".

Assim, aos poucos, a expressão polícia deixou de ser usada isoladamente, passando, por conseguinte, a designar essa parte da atividade da Administração, ou seja, a que impõe limites à liberdade e à propriedade.

Bem por isso não se pode falar em limitar direito de liberdade ou direito de propriedade no sentido de que seu exercício se torne compatível com o bem-estar social.

Mello (1993, p. 391), observa: "[...] é necessário que o uso da liberdade e da propriedade esteja entrosado com a utilidade coletiva, de tal modo que não implique uma barreira capaz de obstar à realização dos objetivos públicos".

Nesse sentido, o autor chama a atenção para não se confundir liberdade e propriedade com direito de liberdade e direito de propriedade:

Estes últimos são as expressões daqueles, porém, tal como admitidos em um dado sistema normativo. Por isso, rigorosamente falando, não há limitações administrativas ao direito de liberdade e ao direito de propriedade - é a brilhante observação de Alessi - uma vez que estas simplesmente integram o desenho do próprio perfil do direito. São elas, na verdade, a fisionomia normativa da lei. Há isto sim, limitações à liberdade e à propriedade (MELLO, 1993, p. 391).

Portanto, parece ser relevante firmar posição de que o poder de polícia condiciona o uso, o gozo e a disposição da propriedade e restringe o exercício da liberdade dos administrados no interesse público ou social.

A questão da liberdade e seus valores

Doravante, pretende-se demonstrar a relevância da polícia em relação à liberdade. Não que a propriedade esteja divorciada dessa relação, mas, sobretudo, fundamenta-se a base da temática quando se pretenderá discorrer acerca da polícia de segurança pública.

Em se tratando de liberdade, portanto, pode-se usufruir um valor que pode significar muitas coisas para diferentes pessoas. Em tempos e lugares distintos, até as mesmas pessoas têm sentido que um determinado aspecto de liberdade se lhes afigura mais relevante do que outros.

Para Arendt, a polis era o único espaço onde se podia ser livre. O convencimento mútuo entre iguais era a base das relações impessoais na esfera pública, enquanto que a força predomina no âmbito do domínio familiar, espaço em que imperavam as necessidades materiais.

Liberdade e política são independentes, ou melhor, a liberdade é a razão de ser da política, sem a qual esta última perderia seu significado. Esta liberdade só seria vivida na ação, contrapondo-se a noção filosófica de liberdade como interior ou como livre-arbítrio. Para Arendt, portanto: "[...] os homens são livres _ diferentemente de possuírem o dom da liberdade _ enquanto agem, nem antes, nem depois; pois ser livre e agir são a mesma coisa (2005, p. 199). A autora arremata: "[...] a liberdade situa-se exclusivamente na esfera política" (ARENDT, 1997, p. 40, grifo da autora).

Não obstante:

[...] a liberdade no âmbito da política começa tão logo todas as necessidades elementares da vida tenham sido sujeitas ao governo, de tal modo que dominação e sujeição, mando e obediência, governo e ser governado, são pré-condições para o estabelecimento da esfera política precisamente por não fazerem parte de seu conteúdo. (ARENDT, 2005, p. 159).

Dessa forma, a polis constituiu-se à custa das atividades econômicas realizadas na privacidade das casas familiares (oikia). Nestas últimas, em contraste com a esfera pública, os homens viviam compelidos por suas necessidades e carências vitais, que só podiam ser aliviadas quando os homens livres subjugavam os escravos para a realização de atividades econômicas:

A polis diferenciava-se da família pelo fato de somente conhecer "iguais", ao passo que a família era o centro da mais severa desigualdade. Ser livre significava ao mesmo tempo não estar sujeito às necessidades da vida nem ao comando de outro e também não comandar. Não significava domínio, como também não significava submissão. (ARENDT, 1997, p. 41).

Nos fins dos séculos XVIII, o aspecto mais evidente da liberdade parecia ser um aspecto negativo: a ausência de restrições.

No final do século XIX, a liberdade tem sido definida não apenas como a ausência de restrições, mas como algo de positivo: a presença de oportunidades.

Um outro aspecto positivo do conceito de liberdade é a capacidade de agir. Comenta Deutsch (1979, p. 59):

Intimamente relacionada com a disposição de oportunidades e com a capacidade de agir está à viabilidade de uma efetiva gama de opções. Quanto mais ricas, significativas e compensadoras elas são para o indivíduo, mais livre ele é. Estas opções devem ser significativas para as pessoas que têm de escolher, isto é, elas devem corresponder às suas necessidades e lembranças. Mas, para serem, há um tempo, significativas e compensadoras para a maioria das pessoas, essas opções têm de incluir possibilidades de emprego, disponibilidade de equipamento básico e oportunidade de obter informação e esclarecimento.

O mesmo autor acrescenta que a espontaneidade é outro aspecto da liberdade: a faculdade de agir de acordo com a sua própria personalidade, sem ter de fazer um grande esforço de autonegação ou de autocontrole e sem estar sujeito a constrangimentos exteriores. A compatibilidade de opções relaciona-se à estrutura da personalidade do optante, respeitando-se a cultura específica com a qual ele se familiarizou, porque a espontaneidade, por ser parte essencial da liberdade, está tão ligada à cultura e à proximidade de convivência que seu sentido tem, por vezes, mascarado a falta de um sentimento real de liberdade. Esse sentimento significa, também, a oportunidade de mudar de opinião e de mudar livremente, até mesmo lucidamente, sem limitações exteriores da pressão política ou de escassez econômica, e sem os excessos de constrangimentos internos provocados pelas suas próprias ansiedades, ideologia ou cultura.

Distingue-se, então, liberdade e valor da liberdade: a liberdade é representada pelo sistema completo das liberdades que compõem a igualdade entre os cidadãos, enquanto o valor da liberdade para as pessoas e para os grupos depende da sua capacidade para perseguirem os seus fins dentro da estrutura definida pelo sistema. A liberdade é igual para todos. O valor de liberdade não. Aqueles possuidores de maior poder e riqueza dispõem de maiores meios para alcançar os seus fins. O menor valor de liberdade é objeto de compensação, não devendo ser confundido com reparação por uma liberdade desigual.

Silva (2003, p. 194), comenta acerca do valor de liberdade:

O valor de cada liberdade depende da forma em relação àquelas que são especificadas. Entretanto, é possível especificar tais liberdades de modo a que os efeitos mais importantes de cada uma possam ser simultaneamente garantidos e os interesses fundamentais protegidos. As regras de ordem são necessárias para disciplinar à discussão. Sem aceitação de processos razoáveis de investigação e debate, a liberdade de expressão perde o seu valor. Por outro lado, uma proibição de crença ou defesa de certos valores religiosos, morais ou políticos é uma restrição da liberdade e como tal deve ser considerada.

O debate em torno das liberdades positivas e negativas, na realidade, refere-se ao valor relativo das diversas liberdades quando entram em conflito. Embora os tipos de liberdades estejam enraizados nas aspirações humanas, a liberdade de pensamento e de consciência, a liberdade da pessoa e as liberdades civis não devem ser sacrificadas à liberdade política, à liberdade de participar de modo igual na vida política. A questão é de filosofia política e sujeita a uma teoria do justo e da justiça.

O conceito de liberdade pode ser explicado a partir de três elementos: quais agentes são livres, as restrições ou limitações das quais eles estão livres e aquilo que eles são livres ou não para fazer. O essencial é a discussão da liberdade em ligação com as restrições constitucionais e legais. Nesse sentido, a liberdade é uma determinada estrutura institucional, um sistema de regras públicas definindo direitos e deveres. Não só deve ser permitido aos sujeitos fazer ou não algo, mas também o Estado e as outras pessoas têm o dever jurídico de não obstruir a sua ação.

A liberdade é uma condição essencial à vida da personalidade humana. Numa sociedade em que seja suprimida a liberdade da pessoa, ela tornar-se-ia um rebanho de escravos embrutecidos, do qual desapareceriam os vestígios da Moral, do Direito, da Ciência, da Arte, da Civilização. E, da mesma forma, não havendo autoridade nessa sociedade, afundar-se-ia no crime, na miséria e na morte.

Por isso, a liberdade e a autoridade são condições necessárias e complementares da vida social e da civilização; onde uma delas falte, estas se tornam impossíveis.

É a partir desse raciocínio que a liberdade e a autoridade não são ilimitadas, embora deva-se reconhecer que são necessárias e complementares à sociedade. Os que exercem a autoridade podem involuntariamente ofender ou limitar excessivamente a liberdade da pessoa, assim como este, voluntariamente ou não, pode opor obstáculos excessivos ao exercício legítimo da autoridade ou ofender a liberdade das outras pessoas pela extensão abusiva da sua própria. É aqui que surge a idéia de limites para o exercício da autoridade pelo Estado e para o gozo da liberdade da pessoa humana.

No sentido da existência do Direito, assevera Pozzoli (2001, p. 83):

Saindo da esfera do ser e avançando para o mundo exterior, sabe-se que a limitação da liberdade existe quando dois sujeitos se antepõem. A liberdade de "a" termina quando se inicia a de "b". Essa limitação nada mais é que um princípio natural para a vida social, sem o que não haveria entre habitantes de um mesmo agrupamento humano, mais precisamente, não existiria o direito.

Surge, portanto, o Direito tendo como função precípua traçar esses limites de forma clara, de conhecimento público, para que o particular e o Estado tenham condições de respeitá-los, conforme as declarações expressas em lei.

O verdadeiro fundamento do direito é o bem, pois, sendo o fim último das ações humanas, exige ser realizado, de onde extrai o dever. O direito ainda exige ser realizado livremente, isto é, sem que outros impeçam sua realização, daí o direito (POZZOLI, p. 84, grifo do autor).

Essa linha declarada pelo Direito e fixada pela lei tem de encontrar sua justificação e fundamento no bem público, ou, mais apropriadamente, no interesse público, na realização das aspirações e das necessidades sociais, notadamente das liberdades fundamentais, como o direito à vida, à propriedade, à expressão do pensamento, à locomoção, entre outros.

O Direito vive no âmbito do Estado. Seus preceitos são assegurados coercitivamente pelo poder público, mas, da mesma forma ele serve de promoção ao Estado e à pessoa humana, de tal forma que violado o direito, fere-se grave, perigosamente, a estrutura das sociedades, ou seja, sua legitimidade. Sua eliminação, ao mesmo tempo, elimina a coexistência humana.

O sentido de pacto e poder pelas concepções filosóficas

As concepções filosóficas sobre poder, violência, autoridade, obediência e suas delimitações conceituais serão os alicerces para o reforço da conceituação aos agentes que detém o poder de polícia.

Busca-se, nesse contexto, inserir o aspecto filosófico de pacto, de poder, de coerção, de justiça, de segurança, de liberdade, de violência, de autoridade. Diversos pensadores como Grotius, Hobbes, Locke, Rousseau e, contemporaneamente, Arendt e Foucault trataram o assunto e condicionam o suporte para essas assertivas em consagrados nomes do direito ocidental que influenciaram, por isso mesmo, o direito contemporâneo, notadamente na relação entre o Estado e o cidadão.

Nesse contexto, o que se torna relevante é destacar as concepções filosóficas de Hobbes e Foucault em torno de pacto e poder, porque deles surge a dicotomia entre as interpretações resultantes da relação de pessoa, como indivíduo, e Estado.

Em relação a pacto, as linhas mestras do modelo do contrato social encontram-se esboçadas nas obras de dois principais jusnaturalistas do século XVII: Hugo Grotius [2]e Samuel Pufendorf [3]

Grotius escreve que o Estado nada mais é que "um corpo perfeito de pessoas livres, que se reuniram para gozar pacificamente de seus direitos e para sua utilidade comum".

Paupério (1971, p. 52) acrescenta que Grotius define o Estado como "[...] uma sociedade perfeita de homens livres que tem por finalidade a regulamentação do direito e consecução do bem-estar coletivo".

Nessa concepção, arremata Paupério (1971, p. 52):

[...] para Grotius, além de um direito positivo, fruto da vontade humana e, portanto, efêmero e variável, há também um direito natural, decorrente da própria natureza humana e, por isso mesmo imutável e eterno, sobranceiro às contingências do tempo, do espaço e até mesmo da vontade humana.

A soberania, para Grotius, é um atributo fundamental do Estado e tem mais em vista o aspecto externo, isto é, a relação dos Estados entre si. Bem por isso, o mencionado autor é conhecido como o "Pai do Direito Internacional".

O Estado passa, então, a ter como missão fazer reinar uma paz para a prosperidade das transações comerciais, no sentido de que o consentimento de cada pessoa seria a base da sociedade política, sacrificando voluntariamente a sua própria independência para que cada um fosse beneficiado de uma segurança garantida por leis, assim como por instituições encarregadas de fazer respeitá-las.

De início, ocorre o "pacto de associação" em que os homens se reúnem para constituir uma sociedade civil. Em seguida, ocorre o "pacto da submissão" em que os membros dessa nova comunidade designam os titulares do poder que terá o encargo de protegê-los, ou seja, de fazer reinar a paz, governando-os.

Esse atributo à Grotius, não deveria ter passado in albis. Bem por isso a merecida citação.

No entanto, destacam-se nos próximos subitens as concepções de pacto e poder perante a filosofia de Thomas Hobbes e de Michel Foucault. A primeira, de onde surgiu o ponto central da lógica liberal ou do argumento liberal: "pessoa humana determina suas ações, entretanto, para que isto possa ocorrer é preciso que esta pessoa seja livre". O poder vem de cima. Assim, propõe Hobbes: "se houver, entretanto, um poder comum situado acima dos contratantes, como direito e força suficiente para impor seu cumprimento, ele não é nulo". A segunda, diferentemente da primeira, anuncia que o poder circula, funciona em cadeia, algo que se dá de modo paralelo e independente da lei, funcionando a partir de seus próprios mecanismos. Ele funciona como uma rede, vindo de baixo para cima.

Demonstrar-se-á que esta última posição é antinômica em relação à de Hobbes: enquanto para este o poder é que cessa o estado de guerra e possibilita a instauração da paz, para Foucault é o exercício do poder que veicula consigo a sujeição, a violência e a guerra.

Concepção hobbesiana

Thomas Hobbes, em sua consagrada obra Leviatã, parte da existência de um estado de natureza, um estado pré-político, onde não há poder organizado. Esse estado para Hobbes é terrível, sombrio, tenebroso, porque é um estado de guerra de todos contra todos, sendo, portanto, inviável. Nesse estado, a propriedade é precária e instável. Oscila entre as mãos dos vencedores, revezando-se.

Para não sucumbir, a espécie humana deve sair desse estado. Impõe-se a aplicação da máxima: "Faça aos outros o que queres que te façam a ti" (HOBBES, 2003, p. 102).

O ser humano chega, então, à conclusão de que precisa sair do estado de natureza e criar uma sociedade política. A decisão de sair do estado de natureza já é uma decisão dessa pessoa, ninguém o obrigou a isso porque, como esclarece o próprio Hobbes: "[...] no estado de natureza nada é injusto porque nada também é justo" (HOBBES, 2003, p. 111).

E já que nada obrigava as pessoas a deixarem o estado de natureza, pode-se deduzir que foi a necessidade de garantir a sua sobrevivência e a segurança individual a motivação para a pessoa optar por abandonar tal estado. Mas, este impulso é individual, e não há nenhuma determinação externa a levá-lo a esta ação. Está-se, de novo, no reino ou no campo de algo que se dá internamente à pessoa humana, pois uma vez definido isto, ele sai do estado de natureza e realiza o contrato instituidor do poder.

Assim, para essa força superior, descreveu Hobbes (2003, p. 106):

Ao se fazer um pacto em que ninguém cumpre imediatamente sua parte e uns confiam nos outros, na condição de simples natureza que é uma condição de guerra de todos os homens contra todos os homens, a menor suspeita razoável torna nulo esse pacto. Se houver, entretanto, um poder comum situado acima dos contratantes, como direito e força suficiente para impor seu cumprimento, ele não é nulo.

Diante desse pensamento político, tem-se claramente definido o seguinte: o poder é uma criação dos homens, o poder é algo que existe pelo consentimento dos homens. O Estado é resultado de um acordo entre pessoas onde cada um entrou por sua livre e espontânea vontade e ninguém os obrigou a isso. Surge, portanto, o ponto central da lógica liberal ou do argumento liberal: a pessoa humana determina suas ações, entretanto, para que isto possa ocorrer é preciso que esta pessoa seja livre. Escolhe abrir mão de um desejo seu, renunciar à sua liberdade para entregá-la a uma autoridade central, de um soberano ou de um "corpo político" que, doravante, será dotado de todo poder para fazer triunfar a paz e a segurança. Os signatários desse contrato estão ligados uns aos outros, uns pelos outros. Não terão mais o direito de exigir algo além dos benefícios que se podem esperar da tranqüilidade pública.

Nem o direito de subtrair-se à comunidade criada por eles, salvo, é claro, se a segurança de suas vidas estiver em jogo, pois em face da primeira "lei da natureza", "ninguém pode ser obrigado a fazer alguma coisa contra a própria vida".

No entanto, o soberano, na filosofia hobbesiana, não está submetido à convenção, pois é o produto desta, e não dos que a assinaram. O soberano é o "corpo artificial" totalmente separado da comunidade política, e não um "corpo natural", ainda que assuma a figura de um indivíduo (ou de um conselho ou assembléia), que resuma a uma pessoa física (monarquia), ou plúrima (oligarquia). Todas as ações do soberano serão legítimas, desde que a convenção seja respeitada, ou seja, desde que não ameace a vida dos signatários do contrato social.

Na óptica hobbesiana, o que importa é que esse "corpo" dite a lei e a faça respeitar, e nenhum de seus súditos possa rebelar-se contra ele, exceto aquele que sinta sua vida diretamente ameaçada. Trata-se de uma relação do superior, aquele que manda, com os inferiores, que devem obedecer.

Hobbes afirmava que os homens têm de cumprir os pactos que celebram, pois sem essa lei os homens permaneceriam na condição bélica: "[...] é aqui que se assenta a fonte e a origem da justiça, ou seja, que se cumpra o pacto, a lei entre os homens" (HOBBES, 2003, p. 111).

O não cumprimento de um pacto acarreta a injustiça e para que se tenha sentido o pacto, é necessário o poder coercitivo, capaz de obrigar igualmente os homens ao seu cumprimento, mediante o medo de algum castigo que seja superior ao benefício esperado com o rompimento do pacto.

[...] justiça é a vontade constante de dar a cada um o que é seu. Onde não há, portanto, o seu, não há propriedade, e não havendo propriedade não há injustiça. Onde não foi estabelecido um poder coercitivo, isto é, onde não há Estado, não há propriedade, já que todos os homens têm direito a todas as coisas. Onde não há Estado, entende-se, nada pode ser injusto. A natureza da justiça consiste no cumprimento de pactos válidos, mas a validade dos pactos só começa com a instituição de um poder civil suficiente para obrigar os homens a cumpri-los [...] (HOBBES, 2003, p. 111).

O homem, então, calcula, pesa as situações e conclui que é mais vantajoso deixar o estado de natureza e criar o Estado. As pessoas concluem que é mais vantajoso criar um poder que seja capaz de constranger a todos do que permanecer num estado de natureza. Onde não puder ser estabelecido um poder coercitivo, ou seja, o Estado, não pode haver propriedade. Dessa maneira, a base da ação individual está no cálculo. Então, a ordem liberal trabalha baseada na suposição de um tipo particular de pessoa, aquele que é capaz de definir seus interesses. Todas essas operações, o cálculo, a avaliação da situação e a capacidade de definir os interesses pressupõem a liberdade.

Hobbes demonstra, em sua concepção de contrato, que o mesmo se destina a garantir o mínimo de segurança pública, sem a qual não se poderia cogitar liberdade digna em valor e extensão.

Hobbes passa a ser o grande teórico do absolutismo, não pregando os direitos individuais e a separação dos poderes; sua teoria é a da submissão integral da pessoa à autoridade, como único meio de escapar ao caos e ao tumulto constante.

Concepção foucaultiana

Contemporaneamente, insere-se outra ordem de teorizações, a de Michel Foucault, indo ao sentido diametralmente inverso ao de Hobbes, já que observa o poder sob uma outra óptica, com uma outra origem e com outra destinação e função.

Fonseca (S.d.) observou em Foucault:

Não se trata de analisar as formas legítimas e regulamentadas de poder, mas os mecanismos específicos, suas extremidades, o poder em suas formas e instituições mais regionais, além das regras do direito vigente onde o poder se torna capilar. Sua preocupação é analisar como age o poder na sua extremidade cada vez menos jurídica, estar atento ao momento em que o poder se encarna em práticas efetivas, num nível mais cotidiano e miúdo, onde ele efetivamente se implanta e produz os seus efeitos reais. Trata-se de analisar como os processos de sujeição ocorrem, como os comportamentos são regidos, como os gestos são orquestrados.

Não se deve, ainda nessa óptica, tomar o poder como algo que funciona em bloco, de modo maciço e homogêneo, como se faz quando se considera a dominação de uma pessoa sobre as outras, uma classe sobre as outras, ou de um governante sobre seus súditos; mas sim tomar em conta que o poder não se manifesta entre pessoas ou grupos que o detém, de um lado, e os que não o detém, de outro. O poder circula, funciona em cadeia. Não pode ser localizado, identificado, imobilizado ou apossado: o poder funciona e o poder se exerce. O poder transita pelas pessoas. Para Foucault a pessoa não é um núcleo elementar onde o poder simplesmente incide, mas sim um efeito de poder e ao mesmo tempo seu intermediário.

Foucault, segundo Fonseca (S.d.), demonstra que é necessário observar o poder a partir de uma análise ascendente: trata-se de observá-lo a partir de seus mecanismos infinitesimais, dentro de suas especificidades, seu trajeto, sua história, e perceber o funcionamento de sua tecnologia. Somente a partir daí é que se poderá verificar como a dominação, a partir de baixo, pode constituir, ou ser apropriada, pelos mecanismos de dominação, e não simplesmente conceber que é o "poder" no sentido macro, como Hobbes o faz.

Vale dizer: as grandes estruturas de poder, como o Estado, o Direito, entre outros, devem ser analisadas a partir dos mecanismos de micro poder que os constituem a partir de baixo e lhes dão sentido, pois, do contrário, significa, para Michel Foucault, ignorar a própria essência do poder e a forma como os poderes instituídos se constituem, por uma estrutura ascendente.

Como pode ser observado, o poder e a política têm o sentido de dominação, de repressão e de sujeição, exercido de modo rasteiro e não normatizado de um modo juridicamente explícito, com o fim explícito de enquadramento dos corpos.

Portanto, ao contrário da tese hobbesiana, o poder não instituiria a paz e não seria a instância de abrandamento das paixões e a instância capaz de findar a guerra. Esta não é sua função e nem a sua natureza. O poder seria, ao contrário, algo que se dá de modo paralelo e independente da lei, funcionando a partir de seus próprios mecanismos, que não os jurídicos. A lei é, na verdade, um prolongamento do conflito, é a perpetuação da dominação, da sujeição e da luta. É, entretanto, a perpetuação da guerra.

Foucault entende que o aforismo de Claus Von Clausewitz, segundo o qual "a guerra é a continuação da política por outros meios", deve ser invertido. Diz Foucault: "a política é a continuação da guerra por outros meios". Deste ângulo adotado por Foucault para apreciar a questão, derivam algumas conclusões lógicas. Uma vez que nesta análise as relações de poder não ficam circunscritas ao âmbito estatal, esfera macro-política, mas também são travadas em cada nível do quotidiano das relações humanas, as relações de poder, tais como elas funcionam numa sociedade como a nossa, têm essencialmente como ponto de ancoragem uma relação de força estabelecida num dado momento, historicamente precisável, na guerra e pela guerra.

Explica-se melhor: o poder político, entendido no seu sentido miúdo, reinsere perpetuamente uma relação de força, mediante uma guerra silenciosa, tanto nas instituições, como nas relações econômicas, na linguagem e nos corpos. A política seria a sanção e a recondução do desequilíbrio das forças manifestado na guerra. Isto é: o poder e as relações daí derivadas são o próprio fio condutor das relações de força e sujeição. Nas relações de poder, ocorridas a cada momento da vida, existe a subordinação de um por outro. É no exercício do poder, portanto, que se desenrola o mecanismo pelo qual a guerra se perpetua. O poder, mas não propriamente a lei, é a própria condição de perpetuação da guerra, é a condição de possibilidade da continuação da luta, da sujeição, da dominação.

Verifica-se que esta posição é antinômica em relação à de Hobbes: enquanto para este o poder é que cessa o estado de guerra e possibilita a instauração da paz, para Foucault é o exercício do poder que veicula consigo a sujeição, a violência e a guerra.

O conceito de poder, autoridade e violência em Hannah Arendt

Poder, conceito chave no pensamento político de Arendt (1994, p. 36), "corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em concerto". Pertence a um grupo e permanece somente na medida em que o grupo conserva-se unido, desaparecendo quando este desaparece. Para ela, a perda do poder é que solapa e destrói as comunidades políticas, porque não pode ser armazenado e mantido em reservas para casos de emergência, pois a sua existência condiciona-se à sua efetivação.

O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar, mas para criar relações e novas realidades (ARENDT, 1997, p. 212).

Arendt reluta em associar violência com o poder ou com o Estado: "O poder é de fato a essência de todo o governo, mas não a violência" (ARENDT, 1994, p. 40). Desta maneira, recusa toda tradição anterior em equacionar o poder político com a organização dos meios de violência e o consenso em aceitar que a violência é a mais flagrante manifestação de poder, refutando as afirmações como a "[...] de Wright Mills ("Toda política é uma luta pelo poder, a forma básica de poder é a violência"), de Max Weber ("O domínio do homem pelo homem baseados nos meios de violência legítima")" (ARENDT, 1994, p. 31).

Criticando a associação, própria da história da filosofia política, entre vontade de poder e vontade de obedecer, ela faz uma nova distinção, desta vez entre poder e comando: "Se a essência do poder é efetividade do comando, então não há maior poder do que aquele emergente do cano de uma arma", e seria difícil dizer "em que medida a ordem dada por um policial é diferente daquela dada por um pistoleiro" (ARENDT, 1994, p. 32).

É na análise da gênese histórica do político (a concepção grega de poder) que encontra o argumento mais sólido para dissolver os nexos entre poder e comandar, poder e obedecer: "Se fosse verdade que nada é mais doce do que dar ordens e dominar os outros, o senhor jamais teria abandonado o seu lar" (ARENDT, 1994, p. 34).

Na isonomia grega e na civitas romana, o conceito de poder não se assentava na relação mando-obediência e não identificava poder e domínio. Viver numa polis tinha o significado de decidir mediante palavras e persuasão e não através da força ou da violência. Forçar alguém mediante violência, ordenar ao invés de persuadir, constituíam em modos pré-políticos de lidar com as pessoas, próprios do lar e da vida em família, "na qual o chefe da casa imperava com poderes incontestes e despóticos, ou da vida nos impérios bárbaros da Ásia, cujo despotismo era freqüentemente comparado à organização doméstica" (ARENDT, 1997, p. 36).

Arendt, por sua vez, não apenas diferencia poder e política de violência, mas coloca-os em espaços contraditórios: "Poder e violência são opostos; onde um domina absolutamente, o outro está ausente. A violência aparece onde o poder está em risco, mas, deixada a seu próprio curso, ela conduz à desaparição do poder" (ARENDT, 1994, p. 44).

A autora aprofunda esta oposição, conferindo à violência, em virtude de sua natureza instrumental apenas justificação pelo fim que almeja, mas nunca legitimação, própria do poder porque derivado de comunidades políticas:

O poder emerge onde quer que as pessoas se unam e ajam em concerto, mas sua legitimidade deriva mais do estar junto inicial do que de qualquer ação que então possa seguir-se. A legitimidade, quando desafiada, ampara-se a si mesma em um apelo ao passado, enquanto a justificação remete a um fim que jaz no futuro. A violência pode ser justificável, mas nunca será legítima. Sua justificação perde em plausibilidade quanto mais o fim almejado distancia-se no futuro. (ARENDT, 1994, p. 41).

Ao tratar poder e violência como mutuamente exclusivos, de forma que onde domina um absolutamente, o outro está ausente, Arendt chama a atenção para a "instrumentalização da ação e a degradação da política" (ARENDT, 1997, p. 242).

A instrumentalização da ação significa a transferência do processo de fazer, determinado pela categoria meio-fins, próprio do trabalho, para o campo político da ação. Em virtude da condição humana da pluralidade, a ação é sempre imprevisível e incerta. Substituindo-a pela fabricação, a humanidade abandona a fragilidade dos negócios humanos para a solidez da tranqüilidade e da ordem. A violência desempenha papel importante no pensamento e planos políticos baseados na interpretação da ação como fabricação. Porém, a esfera da ação política não trabalha com meios e fins.

No entanto, "a instrumentalização da ação e a degradação da política jamais chegaram a suprimir a ação, a evitar que ela continue a ser uma das mais decisivas experiências humanas nem a destruir por completo a esfera dos negócios humanos" (ARENDT, 1997, p. 242).

Desta forma, mesmo reconhecendo a fragilidade do poder em face da violência, Arendt dá àquele um lugar insubstituível diante desta: "A violência é capaz de destruir o poder, mas nunca de substituí-lo" (ARENDT, 1997, p. 214). Nem mesmo poderá reconstruí-lo ou recuperá-lo: "A violência não reconstrói dialeticamente o poder. Paralisa-o e o aniquila" (ARENDT, 1994, p. 9).

Na concepção arendtiana, o poder não impõe e nem se sustenta pela violência; pelo contrário. A seu ver, o poder surge da ação em concerto dos cidadãos, e a violência destruiria as bases de sustentação desse mesmo poder.

Para Arendt, o poder político é sempre plural: ele "[...] só passa a existir entre os homens quando eles agem juntos, e desaparece no instante em que eles se dispersam" (ARENDT, 1997, p. 212).

É esse poder que "[...] mantém a existência da esfera pública" e ele se efetiva quando a ação não-violenta corresponde ao discurso sincero e revelador das intenções individuais. A violência, por sua vez, pode destruir o poder, mas nunca substituí-lo. Portanto, o conceito de poder político de Arendt contrapõe-se ao pensamento tradicional, pois não se baseia na coerção, mas sim na ação conjunta dos indivíduos na esfera política.

Por sua vez, um aspecto importante da contribuição de Arendt para a reflexão sobre a violência é sua delimitação conceitual, num campo geralmente afeito a muitas implicações e confusões. Ela mesmo assim constata: "Penso ser um triste reflexo do atual estado da ciência política que nossa terminologia sobre violência não distinga entre palavras-chave tais como "poder" (power), "vigor" (strenght), "força" (force), "autoridade" e, por fim, "violência" – as quais se referem a fenômenos distintos e diferentes" (ARENDT, 1994, p. 36).

Não se trata, no seu entender, de apenas uma questão de imprecisão na linguagem, mas de uma forma de impostar a própria política e seu significado e transcendência.  Os termos poder, vigor, força, autoridade e violência são tomados como sinônimos porque têm, na compreensão comum, a mesma função, isto é, indicar "quem domina quem". É necessária uma "[...] mudança de percepção _ deixar de reduzir o público à questão do domínio _ para que a precisão conceitual se manifeste" (ARENDT, 1994, p. 36).

O vigor "designa algo no singular, uma entidade individual", constituindo-se em "propriedade inerente a um objeto ou pessoa e pertence ao seu caráter, podendo provar-se a si mesmo na relação com outras coisas ou pessoas, mas sendo essencialmente diferente delas" (ARENDT, 1994, p. 37)

Quanto à palavra força, "deveria ser reservada, na linguagem terminológica, às "forças da natureza" ou à "força das circunstâncias" (la force des choses), isto é, deveria indicar a energia liberada por movimento físicos ou sociais" (ARENDT, 1994, p. 37), não podendo, assim, ser confundida com vigor.

Em relação aos usos e abusos conceituais, menciona que o mais freqüente ocorre com o termo autoridade, que "é comumente confundida como alguma forma de poder ou violência" (ARENDT, 2005, p. 129).

A palavra e conceito de autoridade são de origem romana. Segundo Arendt (2005, p. 142), "Nem na língua grega nem as várias experiências políticas da história grega mostram qualquer conhecimento da autoridade e do tipo de governo que ela implica".

A essência da autoridade, no seu entender, é o reconhecimento inquestionável, "constituindo-se o desprezo seu maior inimigo e a risada o meio eficiente para destruí-la" (ARENDT, 1994, p. 37).

Assim, a autoridade:

[...] exclui a utilização de meios externos de coerção; onde a força é usada, a autoridade em si mesmo fracassou. A autoridade, por outro lado, é incompatível com a persuasão, a qual pressupõe igualdade e opera mediante processo de argumentação. Onde se utilizam argumentos, a autoridade é colocada em suspenso. Contra a ordem igualitária da persuasão ergue-se a ordem autoritária, que é sempre hierárquica [...] (ARENDT, 2005, p. 129).

Para Arendt, a autoridade é incompatível com a persuasão, pois esta pressupõe igualdade e opera mediante um processo de argumentação. Assim, não se argumenta com a autoridade. Toda vez que isso ocorre a autoridade fica suspensa, ou seja, ela existe, mas não opera.

Contra a ordem igualitária de persuasão ergue-se a ordem autoritária, que é sempre hierárquica. Se a autoridade deve ser definida de alguma forma, deve sê-lo, então, tanto em contraposição à coerção pela força como a persuasão através de argumentos. (A relação autoritária entre o que manda e o que obedece não se assenta nem na razão comum nem no poder do que manda; o que eles possuem em comum é a própria hierarquia, cujo direito e legitimidade ambos reconhecem e na qual ambos têm seu lugar estável predeterminado). (ARENDT, 2005, p. 129).

Por sua vez, a violência, no pensamento arendtiano, distingue-se por seu caráter instrumental. Meios, implementos, instrumentos, ferramentas, são alguns dos substantivos usados pela autora. Assim, com o propósito de multiplicar o vigor natural, a violência aproxima-se fenomenologicamente do vigor.

Embora Arendt faça estas distinções, entendendo-as como não sendo arbitrárias, diz que não se referem a "compartimentos estanques no mundo real".

Assim, o poder institucionalizado em comunidades organizadas freqüentemente aparece sob a forma de autoridade, exigindo reconhecimento instantâneo e inquestionável; nenhuma sociedade poderia funcionar sem isso (ARENDT, 1994, p. 38).

Nessa linha de raciocínio, o poder parece se contrapor, verdadeiramente, à violência se efetivados o discurso e a ação, compreendidos como realidades que interagem reciprocamente e criam novos discursos e ações. Na reflexão de Arendt, vale repetir a citação:

O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades. (ARENDT, 1997, p. 212).

Um poder que não efetiva o discurso e a ação, em que os sujeitos não são protagonistas, isto é, detentores da palavra e autônomos em seu agir, é um poder que perpetua e reitera a violência dentro e fora dela. A partir do momento em que se possibilita um consenso de idéias, em que a autoridade tenha participado de alguma forma, depois, diante de um conflito, só prevalece a autoridade.

O poder emerge onde quer que as pessoas se unam e ajam em concerto, mas sua legitimidade deriva mais do estar junto inicial do que de qualquer ação que então possa seguir-se. A legitimidade, quando desafiada, ampara-se a si mesma em um apelo ao passado, enquanto a justificação remete a um fim que jaz no futuro. A violência pode ser justificável, mas nunca será legítima. Sua justificação perde em plausibilidade quanto mais o fim almejado distancia-se no futuro (ARENDT, 1994, p. 41).

Neste sentido, a reversão e a alternativa à violência passa pelo resgate e devolução do direito à palavra, pela oportunidade da expressão das necessidades e reivindicações dos sujeitos, pela criação de espaços coletivos de discussão, pela sadia busca do dissenso e da diferença. Necessário, por meio da educação a reflexão sobre tais conceitos.

Relação entre as concepções filosóficas com poder de polícia contemporâneo

E é nesse contexto e complexidade que as concepções de pacto, de poder, de coerção, de justiça, de segurança, de liberdade, de autoridade, de violência, ainda sob os aspectos filosóficos, estão diametralmente relacionadas com o poder de polícia. Isso implica modernamente em uma reflexão sobre a relação genérica entre a Administração e os particulares, e não vinculação de caráter particular.

Na esfera privada vigora o princípio da liberdade, pois "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (artigo 5º, II, Constituição Federal). Por isso, o poder de polícia passa a ser entendido como as limitações administrativas à liberdade e à propriedade e deve, enquanto atos da vida privada, encontrar fundamento em lei, pois é a lei que tratará de seus limites de atuação.

Em suma, o "emprego do poder estatal para restringir e condicionar liberdades e direitos individuais é uma exceção às suas correspectivas afirmações constitucionais, daí porque deve ser exercida sob reserva legal" (MOREIRA NETO, 2005, p. 396).

As realidades individuais ditas por Mayer (apud, MOREIRA NETO, 2005, p. 396), "[...] são legitimadas pelo legislador que institui normas de polícia para alterar e adequar os direitos individuais ao convívio social".

Evidentemente que o legislador jamais conseguirá valer-se de tipificações suficientemente restritas para abranger as normas de polícia no plano da legislação ordinária, haja vista a multiplicidade de hipóteses concretas na vida real, em que as condutas reais, capazes de prejudicar o interesse geral, ou de interesses coletivos, são apresentadas, fugindo às previsões e às exemplificações. Reserva ao legislador, entretanto, valer-se de bases legais de tipificações amplas, permitindo ao administrador público, por sua vez, valer-se do instituto da discricionariedade para o encargo de regular e de praticar, diante dos casos concretos, o poder de polícia enquanto funções de polícia.

A discricionariedade não é arbitrariedade. A discricionariedade é um atributo à legitimidade do agente da administração pública que detém o poder de polícia; logo, detém força de autoridade. Essa autoridade deve ser exercida ainda que seja contra a lei, desde de que seu pressuposto legítimo atenda o interesse público, porque não há igualdade como pressuposto para valer-se da argumentação, segundo filosofia arenditiana.

É impossível, portanto, a Administração prever todas as condutas a serem apreciadas por quem detém o poder de polícia. Aliás, dois elementos são importantes em relação à discricionariedade: oportunidade e conveniência. Tal análise só pode ser realizada por quem detém a autoridade diante de um caso concreto.

Portanto, verifica-se que o problema do poder de polícia sob os aspectos contemporâneos resulta do inafastável confronto entre os interesses público e privado, e nele há necessidade de impor, às vezes, restrições às liberdades das pessoas, evidentemente apoiado pelo poder de polícia.

Nesse sentido, por sua vez, o poder de polícia contemporâneo sofre críticas ao equilibrar as duas concepções, interesses público e privado, e a força de proteção do Estado. É um conflito que afeta a ordem prática, ou seja, o ato de polícia, mormente quando se utiliza da coerção sob o fundamento da supremacia dos interesses públicos sobre os da pessoa. É legítimo até o ponto de não se atingir os direitos fundamentais consagrados, dentre eles a própria dignidade da pessoa humana.

Bobbio já mencionava que o Estado, além de assegurar os direitos de liberdade, viu-se diante da proliferação dos direitos sociais. Por essa questão, observou que "[...] a igualdade e diferença têm uma relevância diversa conforme estejam em questão direitos de liberdade ou direitos sociais" (BOBBIO, 1992, p.71).

Se por um lado o Estado tem o dever de proteção aos direitos sociais, ou seja, requer sua interferência ativa, por outro o seu superpoder interfere nos direitos de liberdade. Daí um paradoxo nessa relação, ainda mais quando o Estado limita o uso e gozo das liberdades por meio do poder de polícia. Surge a seguinte indagação: a polícia tem o dever de proteger os direitos sociais como instrumento de poder do Estado que visa limitar o uso e gozo de liberdade, diante do princípio da supremacia dos interesses públicos sobre os particulares?

Parece que essa questão realmente é de interesse, não filosófico, mas prático, quando se exige da polícia uma atuação direta com os anseios sociais, de tal sorte que ela seja interpretada como o órgão do Estado facilitador das resoluções de vários problemas de interesses comunitários e sociais, por assim dizer, exercendo um ato de polícia efetivamente comunitária.

Enquanto os direitos de liberdade nascem contra o superpoder do Estado _e, portanto, com o objetivo de limitar o poder _, os direitos sociais exigem, para sua realização prática, ou seja, para a passagem da declaração puramente verbal à sua proteção efetiva, precisamente o contrário, isto é, a ampliação dos poderes do Estado. Também "poder" _ como, de resto, qualquer outro termo da linguagem política, a começar por "liberdade" _ tem, conforme o contexto, uma conotação positiva e outra negativa. O exercício do poder por ser considerado benéfico ou maléfico segundo contextos históricos e segundo os diversos pontos de vista a partir dos quais esses contextos são considerados. Não é verdade que o aumento da liberdade seja sempre um bem ou o aumento do poder seja sempre um mal (BOBBIO, 1992, p. 72).

Essa relação será mais bem desenvolvida na continuação desse estudo, pois a tendência mundial é a de que o Estado, também por meio de sua polícia, tenha melhores condições de proteger os direitos sociais, os direitos fundamentais no mundo contemporâneo.

Conceituação e fundamento do poder de polícia

Administrativistas consagrados em suas obras de direito administrativo abordam o "poder de polícia" sob as mais diversas descrições em profunda investigação da questão e, por isso, tal tema recebe tratamentos diversos.

Pessoa (2003, p. 490), afirma:

Por vezes aparece incluído entre os modos e meios de ação administrativa, como é o caso dos franceses Prosper Weil e Benoit. Noutras abordagens apresenta-se incluído entre os Poderes Administrativos, como, por exemplo, na clássica exposição de Hely Lopes Meirelles. No Direito italiano aparece no estudo da ampla temática das "limitações administrativas e o sacrifício do direito", como bem ilustram as obras de Santi Romano e Renato Alessi.

Jacques (apud MEDAUAR, 1995, p. 52), incluiu "poder de polícia" no capítulo relativo às "intervenções das autoridades administrativas no campo das liberdades públicas".

Ainda nessa óptica, Medauar (1995, p.52) ensina:

[...] o "poder de polícia" vem sendo tratado no direito anglo-saxônico no Constitucional law, como legal restraints ou prior restraints. Não diferentemente no direito norte-americano atual, na parte referente aos poderes do Congresso e também no título individual rights na parte dedicada ao susbstantive due process (grifo do autor).

Aliás, é consenso na doutrina que "poder de polícia", no ordenamento jurídico brasileiro, é a tradução de police power, cuja expressão ingressou pela primeira vez na terminologia legal no julgamento da Corte suprema norte-americana, no caso Brown versus Maryland, de 1827; a expressão fazia referência ao poder dos Estados-membros de editar leis limitadoras de direitos, em beneficio do interesse coletivo.

É nesse contraponto que se construiu a cláusula do substantive due process law, com o fim de refrear o poder estatal que pudesse incidir sobre direitos fundamentais, como de fato refreou. No entanto, a partir da crise de 1929, o police power se ampliou nos Estados Unidos, para disciplinar atividades econômicas, com fundamento no bem-estar comum.

Assim, "poder de polícia" tem sido enfocado sob o prisma dos direitos fundamentais e é neste prisma que vem sendo tratado no Direito contemporâneo.

Como os precursores da doutrina brasileira sobre o termo polícia, Medauar (1995, p.56), cita Pereira do Rego, 1857, e Veiga Cabral, 1859, "os quais distinguiam, sob a influência francesa, a polícia administrativa e a polícia judiciária".

Houve, portanto, na doutrina brasileira, em relação à polícia, influência francesa como também alemã, sobretudo, na obra de Aurélio Leal, publicada em 1918, "Polícia e Poder de Polícia", referindo-se à obra de Otto Mayer.

Ruy Barbosa e Aureliano Leal firmaram no direito pátrio a expressão "poder de polícia".

Ao discorrer sobre o designativo "poder de polícia", Mello (1993, p. 393-394), critica o termo, pois, algumas vezes, levaria a reconhecer:

[...] à Administração poderes que seriam inconcebíveis (no estado de Direito), dando-lhes uma sobranceria que não possui, por ser imprópria de quem nada mais pode fazer senão atuar com base em lei que lhe confira os poderes tais ou quais a serem exercidos nos termos por ela estabelecidos. Além disto, [...] traz consigo a evocação de uma época pretérita, a do "Estado de Polícia", que precedeu ao Estado de direito. [...] raciocina-se como se existisse uma "natural" titularidade de poderes em prol da Administração e como se dela emanasse intrinsecamente, fruto de um abstrato "poder de polícia" (grifo do autor).

O referido autor cede à terminologia, utilizando a expressão "Poder de Polícia" quando estiver referindo-se às leis condicionadoras da liberdade e da propriedade e "Polícia Administrativa" quando se referir apenas a comportamentos administrativos.

O poder de polícia vem sendo estudado entre as técnicas de tratamento das liberdades públicas no sistema preventivo. O administrativista Justen Filho (2005, p. 385), confirma essa concepção quando ensina que a "[...] atividade de poder de polícia se orienta a produzir a realização de direitos fundamentais dos demais integrantes da coletividade [...]", de modo a evitar que a máxima liberdade de cada um produza a redução da liberdade alheia.

Ao disciplinar o exercício da autonomia privada, afirma Justen Filho (2005, p. 385):

A atividade de poder de polícia não apresenta cunho prestacional e tem natureza essencialmente preventiva e repressiva. O estado não desenvolve uma atividade consistente em satisfazer necessidades individuais, mas busca evitar que a fruição das liberdades e dos direitos privados produza lesões a direitos, interesses e bens alheios, públicos ou privados.

Por sua vez, o regime de liberdades públicas em que vivemos assegura o uso normal dos direitos individuais, incluindo, por assim dizer, o direito à liberdade, mas não autoriza o abuso, nem permite o exercício anti-social desses direitos. As liberdades admitem limitações e os direitos pedem condicionalmente ao bem-estar social. Essas restrições ficam a cargo da polícia administrativa. Mas, sob a invocação do poder de polícia não pode a autoridade anular as liberdades públicas ou aniquilar os direitos fundamentais da pessoa humana, assegurados na Constituição.

Meirelles (1987, p. 92), nesse sentido, distingue poderes políticos e poderes administrativos:

[...] o Estado é dotado de poderes políticos exercidos pelo Legislativo, pelo Judiciário e pelo Executivo, no desempenho de suas funções constitucionais, e de poderes administrativos que surgem secundariamente com a Administração e se efetivam de acordo com as exigências do serviço público e com os interesses da comunidade. Assim, enquanto os poderes políticos se identificam com os Poderes de Estado, e só são exercidos pelos respectivos órgãos constitucionais do Governo, os poderes administrativos se difundem por toda a administração e se apresentam como meios de sua atuação (grifo do autor).

Para esse consagrado autor, o poder de polícia não é poder político, é um dos poderes administrativos. É exercido pela Administração Pública sobre todas as atividades e bens que afetam ou possam afetar a coletividade. Por derradeiro, o ato de polícia é um ato administrativo e subordina-se ao ordenamento jurídico que rege as demais atividades da Administração Pública, sujeitando-se ao controle de legalidade pelo Poder Judiciário.

Mayer (1951, p. 5), preferiu no início do século XX definir o poder de polícia, como "[...] a atividade do Estado que visa defender, pelos meios do poder da autoridade, a boa ordem da coisa pública contra as perturbações que as realidades individuais possam trazer".

Carvalho Filho (2003, p. 60), cita o conceito firmado pelo administrativista Marcelo Caetano: "[...] é o modo de atuar da autoridade administrativa que consiste em intervir no exercício das atividades suscetíveis de fazer perigar interesses gerais, tendo por objetivo evitar que se produzam, ampliem ou generalizem os danos sociais que a lei procura prevenir".

Em seguida, conceitua poder de polícia como "[...] a prerrogativa do direito público que, calcada na lei, autoriza a Administração Pública a restringir o uso e gozo da liberdade e da propriedade em favor do interesse da coletividade" (CARVALHO FILHO, 2003, p. 61).

Cabe, agora, indagar o fundamento do poder de polícia.

O poder de polícia está centrado num vínculo geral, existente entre a Administração Pública e os administrados, o qual autoriza o condicionamento do uso, gozo e disposição da propriedade e do exercício da liberdade em benefício do interesse público ou social.

É nessa contextualização hobbesiana que alguns autores chamam-no de "supremacia geral" da Administração em relação aos administrados. Necessário, pois, sustentar essa assertiva nos itens seguintes.

Interpretações sobre concepção do interesse público

Nesse diapasão, a concepção "interesse público", também em comento, não deixa de sofrer nuanças em relação às suas interpretações. Aliás, o que se entende por interesse público, ainda mais quando se refere à supremacia do Estado em relação ao particular, ou sobre as pessoas?

Moreira Neto (2005, p.87), ao tratar dos princípios gerais do Direito Público, ensina:

[...] no Estado Democrático de Direito, não há mais fundamento para sustentar-se o antigo princípio da supremacia do interesse público, que partia da existência de uma hierarquia automática entre as categorias de interesses públicos e privados. [...] quaisquer interesses só podem estar subordinados ou supraordinados, uns aos outros, conforme o disponha a lei (grifo do autor).

Também Pessoa (2003, p. 498), confirma:

Partes: 1, 2, 3, 4, 5, 6


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