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Democracia, hierarquia e cultura no Quebec. (página 2)

Luís Roberto Cardoso de Oliveira

 

Desconsideração e Eqüidade no Quebec

Apesar do Canadá ser justificadamente considerado um país com sólidas tradições democráticas, distinguindo-se inclusive pela atenção dirigida a questões de eqüidade e de solidariedade social,7 a percepção de desconsideração demonstrada pelos francófonos é amplamente difundida no Quebec, mesmo entre aqueles que, além de prezarem, sentem orgulho destas características da democracia canadense. De fato, para se entender melhor o problema é necessário voltar os olhos para a história do relacionamento entre anglófonos e francófonos no Canadá, assim como para as diferenças de perspectiva entre os grupos no que concerne à situação de cada um na federação Canadense.

A fundação da cidade do Quebec em 1608 marca o início da colonização francesa na América, então chamada de Nova França, que 55 anos mais tarde se tornaria uma colônia real. Depois da rendição de Quebec para os ingleses em 1759, a França cede formalmente o Canadá à Inglaterra em 1763, através do Tratado de Paris. Embora a partir dai o Canadá tenha passado todo o período colonial sob o domínio da Inglaterra, o Quebec pode manter a língua, assim como algumas de suas principais instituições culturais, e durante muito tempo ainda o termo "canadense" seria utilizado exclusivamente com relação aos francófonos. Com a celebração do "Ato do Quebec" em 1774, foi permitido ao Quebec a manutenção de suas instituições religiosas (o catolicismo), jurídicas (o código civil) e o uso do francês como língua oficial. Houve apenas um período de certa repressão as instituições francesas, durante a vigência do chamado Regime do Ato de União (entre 1840 e 1867), quando o Alto (Ontário) e o Baixo (Quebec) Canadá são reunidos sob um mesmo governo pela Coroa Britânica, que implementa uma política de assimilação da população de origem francesa, seguindo a orientação do famoso "Lord Durham’s Report".

Somente com a criação do Domínio do Canadá em 1867, através do Ato da América do Norte Britânica, são restabelecidos os direitos lingüístico-culturais do Quebec e é legitimada a união entre o Alto e o Baixo Canadá, aos quais se juntam as províncias da Nova Escócia e do Novo Brunswick.

A constituição emendada em 1982, após o patriamento, é a que havia sido promulgada em 1867 junto com o Ato da América do Norte Britânica, e que refletia, do ponto de vista francófono, o compromisso possível e adequado no momento. Isto é, na medida em que garantia um mínimo de autonomia às províncias, e preservava uma proporcionalidade razoávelmente satisfatória quanto à representação política de anglófonos e francófonos no seio da federação canadense, ainda que já naquela época algumas lideranças receassem que o acordo viesse, ao longo do tempo, colocar os francófonos numa condição de minoria. De fato, os francófonos passam por um período de minorização que só viria a ser frontalmente questionado a partir dos anos sessenta, com a Revolução Tranqüila. Na perspectiva do Quebec, a autonomia político-administrativa de então, somada a um certo equilíbrio político entre anglófonos e francófonos na federação, representava ainda uma possibilidade efetiva de viabilizar a legitimação política da dualidade canadense, expressa na visão do Canadá como um país formado por dois povos ou nações fundadoras, que deveriam ser tratados enquanto tais e em pé de igualdade. Em outras palavras, um país bilingüe e bicultural, ainda que contemplasse o respeito à outras minorias étnico-nacionais e valorizasse uma diversidade cultural mais ampla. Neste contexto, e da perspectiva de um francófono, Guy Laforest interpreta as mudanças promovidas por Trudeau com o patriamento da constituição como "o fim de um sonho canadense" (1995).8

Por outro lado, os ingleses rejeitam a tese dos dois povos ou nações fundadoras, preferindo sublinhar o caráter multicultural do país e o respeito às diversas etnias que contribuíram para a constituição do Canadá enquanto nação. Aqui, o inglês é visto apenas como língua ou instrumento de comunicação pública, inteiramente dissociado do cultivo das várias culturas ou tradições que convivem no país e que predominariam de forma alternativa na esfera privada de cada cidadão ou segmento da sociedade canadense. Deste ponto de vista, o favorecimento de qualquer língua, cultura ou tradição teria um caráter discricionário e, portanto, ilegítimo. A própria cultura ou tradição anglófona seria apenas uma entre outras, e não mereceria qualquer privilégio ou reconhecimento especial por parte do Estado. Apesar desta visão retratar bem uma dimensão importante do mosaico anglocanadense, substima a importância da cultura anglo-americana que é difundida através da língua. Já para a população franco-quebequense que teve que conviver com a dualidade canadense tanto no plano lingüístico como no cultural, —pelo menos desde a derrota para os ingleses em 1759—, a dissociação radical entre língua e cultura não pode fazer sentido.

Esta diferença de perspectiva está no fundo da divergência sobre a relação entre direitos individuais e coletivos, ou da crítica "Quebequense" à política federal de multiculturalismo. No último caso, enquanto o multiculturalismo é visto no Canadá Inglês como um reconhecimento da igualdade entre os diversos segmentos étnico-culturais no país, é percebido no Quebec como um sinal de desconsideração à especificidade "Quebequense" e de imposição, de fato, da hegemonia anglo-americana em todo o território Canadense (ver nota 5). Da mesma forma, a prioridade dada aos direitos individuais na "Carta de Direitos" instituída em 1982, e fortemente apoiada no Canadá Inglês, é questionada no Quebec quando diminui a autonomia legislativa da província, pondo em risco a sobrevivência da lei 101 e, conseqüentemente, a reprodução da cultura ou da forma de vida franco-quebequense.

Aliás, a lei 101, que protege a sobrevivência da língua francesa no Quebec, está no centro dos desentendimentos com o Canadá inglês e representa o aspecto mais visível e importante do processo de afirmação (do valor) da identidade quebequense. Embora não se possa falar de qualquer tipo de repressão às tradições franco-canadenses por parte de Ottawa, é verdade que antes da promulgação da lei 101 em 1977, que limita a utilização do inglês, a língua francesa e a cultura quebequense estiveram fortemente ameaçadas de desaparecerem; primeiro em Montreal e, acreditava-se, posteriormente na província do Quebec como um todo. Deste modo, o período anterior à lei 101 é percebido como de repressão indireta ao francês, na medida em que o mercado de trabalho privilegiava o domínio da língua inglesa e os imigrantes eram fortemente estimulados a se integrarem à população anglófona. Além disto, são freqüentes as estórias de discriminação informal que teria sido vivida pela população francófona até então,9 quando os principais estabelecimentos comerciais de Montreal se recusavam a servi-la em francês e utilizariam a país que não inclua o papel formador das populações autóctones (índios, esquimós e mestiços) expressão "speak white!" para obrigar os francófonos a fazerem seus pedidos em inglês.

Pois, o crescimento mais recente do nacionalismo quebequense10 está diretamente ligado à percepção de que as mudanças constitucionais de 1982 podem impor a eventual derrubada da lei 101, e inviabilizar qualquer mecanismo de proteção à língua e/ou à cultura quebequense. Isto é, o Quebec estaria ameaçado de perder os instrumentos para lutar contra a imposição do inglês e da visão de mundo anglo-americana como padrão ou "forma de vida" única na América do Norte. Além disto, a percepção de falta de reconhecimento da especificidade e/ou do valor da cultura quebequense é vivida como uma experiência de discriminação: não só ao grupo, mas à pessoa dos cidadãos quebequenses que ficariam assim impedidos de resgatar o que eu tenho chamado de "substância moral" da pessoa, a qual seria constitutiva dos direitos de cidadania associados ao reconhecimento da dignidade ou à consideração à pessoa do cidadão (ver Cardoso de Oliveira, 1996). Como assinala Taylor, o resgate da dignidade na nossa contemporâneidade demanda o reconhecimento de uma identidade autêntica que, neste caso, estaria sendo negada ou depreciada. Não seria supérfluo enfatizar aqui que os francófonos têm bons motivos para não pensar a proteção à sobrevivência do francês, instituída pela lei 101, como uma medida essencialmente agressora aos direitos individuais dos cidadãos, que teriam suas opções lingüísticas limitadas, mas, pelo contrário, como uma medida de proteção da liberdade de escolha dos francófonos de viver em francês.

Neste sentido, se é verdade que a lei impede que os francófonos, assim como todos aqueles cujos pais não fizeram o primeiro grau em escolas de língua inglesa no Canadá, matriculem seus filhos em escolas anglófonas no Quebec, também é verdade que ela tornou o francês uma opção viável no mercado de trabalho e fortaleceu os mecanismos de reprodução sócio-cultural dos francófonos. Dado o grande apoio que a lei 101 encontra no Quebec, especialmente (mas não só) entre a maioria de origem francesa, é difícil deixar de interpretá-la como expressão de uma vontade ou projeto democrático. Em Montreal, onde a ameaça do inglês é mais forte, e onde até a promulgação da lei 101 o mundo do trabalho ou do emprego funcionava quase que exclusivamente em inglês, são muito comuns os relatos de francófonos que hoje estão aposentados mas que lamentam a perda de oportunidades e as dificuldades com as quais se defrontavam no emprego, em vista do domínio inadequado do inglês que lhes era imposto no trabalho. Apenas a partir de 1977, com a aprovação da lei 101, esta situação começou a ser relativizada devido a exigência de que dentro de um determinado prazo todas as empresas com mais de 40 empregados deveriam ser geridas em francês.11

De outra maneira, se colocarmos de lado alguns exageros em relação à limitação do acesso à escola de língua inglesa, como no caso de imigrantes anglófonos que são obrigados a mandar os filhos para escola de língua francesa,12 a lei não é tão severa assim quanto à língua de instrução, na medida em que ela se restringe ao ensino de primeiro e segundo graus. Isto é, além de resguardar direitos de opção plenos para os anglófonos não imigrantes (ou para os filhos de imigrantes) que pelo menos um dos pais tenha estudado numa escola de língua inglesa no país.13 Entretanto, há um aspecto da lei bem mais polêmico e que, além de já ter sido contestado pela Suprema Corte do Canadá, tem sido palco de acirrados debates e mobilizações políticas. Estou me referindo a seção da lei que, inicialmente, proibia a utilização de letreiros em qualquer língua que não fosse o francês, mas que atualmente permite a colocação de letreiros ou cartazes bilingües desde que o francês ocupe pelo menos o dobro o espaço ocupado pela outra língua (normalmente o inglês).14

De fato, o debate sobre a legislação lingüística ocupa um lugar especial na delimitação das diferenças de visão sobre a unidade canadense cultivadas por francófonos e anglófonos, assim como na maneira como a relação entre os grupos é percebida pelos atores, ainda que haja diferenças de perspectiva significativas no interior de cada grupo.

Pois, além de ser um índice importante na definição das identidades de grupo, a língua tem se constituído na principal referência para a marcação de posições políticas e para a explicitação de divergências.15 Já indiquei várias dimensões do significado da língua para a afirmação da identidade quebequense e para a perspectiva política dos francófanos. Como não poderia deixar de ser, a receptividade das demandas políticas do Quebec no mundo anglófono também passa por um esforço de articulação entre as categorias língua e direitos.

Isto é particularmente verdade no caso da comunidade anglófona do Quebec a qual é, num só tempo, mais sensível às demandas quebequenses e mais preocupada com as conseqüências daí advindas. Neste sentido, vale a pena observar que, para os anglófonos do Quebec, a visão do inglês como língua instrumental dissociada da cultura, que predomina do RDC, não encontra o mesmo espaço. Embora a comunidade anglo-quebequense faça coro com o RDC no questionamento de pelo menos parte das demandas francoquebequenses, através da defesa dos direitos individuais dos cidadãos não-francófonos,16 não consegue articular adequadamente todas as suas (contra)reivindicações sem fazer uso da noção de comunidade (lingüística), sugerindo portanto a legitimidade de direitos que não encontrariam respaldo exclusivamente no nível do indivíduo, tendo que se reportar necessáriamente a um universo mais amplo.

Neste sentido, é interessante o sucesso recente do movimento pela aplicação da lei 101, no que concerne aos letreiros, com o objetivo de defender direitos da comunidade anglófona do Quebec. O movimento foi liderado por um empresário local, Galganov, e exigia que os letreiros das grandes lojas fossem todos bilingües, ainda que o francês ocupasse pelo menos o dobro do espaço alocado à outra língua (o inglês), como reza a lei 101. Pois, ao longo do tempo estes empreendimentos teriam optado por expor letreiros somente em francês, deixando de contemplar a possibilidade prevista em lei em atenção às demandas dos anglófonos. O movimento ganhou grande popularidade entre anglófonos e segmentos dos alófonos que se sentem mais a vontade em inglês, e conseguiu que algumas lojas se comprometessem com a implementação das mudanças reivindicadas. Esta vitória subiu à cabeça de Galganov e provocou a ira da militância pequista (do partido quebequence), que começou um contra-movimento pela radicalização da lei 101. Por seu turno, Galganov também radicalizou suas demandas e viu com isto uma rápida diminuição de seu recém-conquistado capital político. Sua tentativa de sensibilizar os americanos para os problemas da minoria anglófona não encontrou a receptividade esperada, e sua estratégia de provocar uma reação repressiva do governo quebequense ao abrir uma loja com letreiros ilegais, onde o inglês e o francês ocupavam espaços equivalentes, também não deu resultados.17

Aliás, no Quebec, a tomada de posições políticas mais agressivas da parte dos anglófonos, em relação às demandas franco-quebequenses, datam do iníco dos anos setenta quando, ao lado da fundação do Partido Quebequense,18 é promulgada a primeira lei de defesa do francês: lei 22 de 1974.19 Mesmo sem ameaçar diretamente quaisquer direitos dos anglófonos, a lei 22 sinalizava claramente a disposição de afirmação da identidade quebequense que, segundo Legault (1992), começava a ser vivida pelos anglófonos como um processo de minorização que eles teriam dificuldade de aceitar. É assim que várias associações e grupos de pressão são criados nos anos setenta em defesa dos direitos dos anglófonos. De certa forma os anglófonos se vêem pela primeira vez, no Quebec, em posição similar a dos francófonos no resto do Canadá e a relação com o Quebec passa a ter sinais invertidos. O maior símbolo de rejeição da nova condição é a criação do Equality Party ou Partido da Igualdade, que exige um tratamento estritamente igual. Apesar do Partido da Igualdade só ter sido criado em 1989 e de não representar segmentos expressivos da comunidade anglófona, seu comportamento político ilustra bem a posição predominande no RDC em relação ao Quebec, e representa igualmente bem a dificuldade do RDC, também presente na perspectiva liberal predominante nas democracias modernas, em dissociar as noções de igualdade e de eqüidade.

Conhecido como um "one issue party", ou partido de uma só questão, o Partido da Igualdade tinha um programa Trudeuaniano calcado na defesa de três princípios: "1. os direitos ditos fundamentais, 2. o bilinguismo, [e] 3. o federalismo" (Legault, 1992:54). Isto é, um federalismo radicalmente "simétrico" onde, não só todas as províncias do Canadá devem ser tratadas de forma absolutamente igual, mas seus cidadãos têm que ser tratados de maneira idêntica para se evitar situações de iniqüidade. Aqui não há espaço para noções como a de "Sociedade Distinta", através da qual o Quebec ainda vizualiza uma possibilidade satisfatória de renovação do federalismo canadense, desde que a noção tenha precedência constitucional e permita a relativização dos direitos individuais sempre que estes se constituirem numa ameaça à sobrevivência lingüístico-cultural do Quebec. Tão pouco haveria espaço para o equacionamento de direitos à luz de valores e identidades específicas, mesmo quando a satisfação da demanda não pusesse em risco os direitos básicos de cidadania daqueles que não se identificam com o demandante.

É neste contexto também que a idéia da partição do Quebec aparece como um desdobramento lógico e natural de uma eventual declaração de soberania frente ao Canadá.

De fato, não creio que esta alternativa tenha que estar necessariamente excluída da discussão. Contudo, chama a atenção a retórica de legitimação das propostas de partição defendidas pelos anglófonos, segundo a qual esta seria uma conseqüência adequada e previsível do processo de autonomização Quebec, na medida em que representaria a única alternativa de tratamento igual (quer dizer, simétrico e uniforme) em relação aos segmentos da população que gostariam de permanecer dentro do Canadá. Isto é, se o Quebec pode se separar do Canadá qualquer municipalidade também deve ter o direito de se separar do Quebec. Aqui não importam as eventuais diferenças sócio-culturais que caracterizam os dois tipos de situação, nem a especificidade das visões ou interpretações que dão sentido e soberania do Quebec, criado por René Lévesque.

sustentação às demandas de parte a parte. De acordo com esta perspectiva, para que os direitos das partes sejam respeitados é necessário que estas sejam tratadas de maneira absolutamente igual e uniforme, não sendo relevantes as possíveis diferenças de condição e de identidade. Só para dar um contra-exemplo dentro da própria discussão sobre partição, não me parece que a eventual demanda de permanência dentro da federação canadense por parte de grupos autóctones como os Cree ou os Inuit, que têm uma história de relacionamento muito particular com o Canadá e o Quebec, esteja exatamente no mesmo plano de demandas similares de municipalidades com maioria anglófona.20

O problema deste simetrismo individualista, ou da dificuldade de se separar conceitualmente as noções de igualdade e de eqüidade, é que, assim procedendo, só se consegue tratar como igual aquilo que é uniforme.21 Mas, então, o que fazer em situações onde a condição para o desenvolvimento de uma relação reciprocamente respeitosa está na possibilidade dos interlocutores reconhecerem a especificidade das identidades de um e de outro. Será que o ideal de equanimidade não estaria melhor contemplado no reconhecimento respeitoso das diferenças, ao invés da imposição de uma uniformidade artificial e desconsideradora da identidade ou da dignidade do outro? Em qualquer hipótese, nada indica que a relação entre o Quebec e o Canadá, ou entre anglófonos e francófonos em Montreal, possa ser bem equacionada sem que sejam negociadas formas de reconhecimento que safisfaçam as partes e superem a sensação de agressão imposta pela negação da particularidade. Apesar das dificuldades colocadas pela supremacia quase absoluta dos direitos individuais nas democracias liberais contemporâneas, a própria experiência canadense/quebequense sugere possiblidades mais felizes para o equacionamento deste tipo de problema. Seja através da retomada de acordos como o do Lago Meech (que reconhecia o caráter distinto do Quebec), de propostas como as de Taylor para a implementação de um federalismo assimétrico (1992:140-154), ou do exemplo de construção de perspectivas convergentes, como a que parece estar embutida na nova redação da parte referente aos letreiros na lei 101, e que limita a utilização de outras línguas nos cartazes à ocupação de um espaço não superior à metade daquele tomado pelo francês.

Finalmente, caberia perguntar se, a partir do resgate da noção de eqüidade, e de sua articulação com as idéias de valor que balizam identidades sociais, não seria viável pensar em assimetrias que pudessem ser legitimadas numa sociedade democrática? Isto é, assimetrias que não se referissem aos direitos básicos de cidadania, mas que permitissem a relativização dos critérios de universalização de direitos sempre que a possibilidade de tratamento uniforme pudesse ter como implicação a negação ou a depreciação da indentidade de uma das partes, cujo reconhecimento (importante para o exercício da cidadania) não tivesse como conseqüência a introdução de desigualdades ou de iniqüidades sociais. Pois, será que a valorização de particularidades, em contextos específicos, não estaria mais de acordo com os ideais de eqüidade onde a avaliação dos direitos demanda um exame das condições que caracterizam a situação das partes em relação ao problema em pauta? Ou ainda, será que não poderíamos falar, com Dumont, em diferentes níveis de significação, onde a passagem do primeiro (mais abrangente) para o segundo (menos abrangente) nível contemplasse a possibilidade de inversão valorativa para atender a especificidade do contexto?22 Assim, no nível dos direitos básicos e universais de cidadania a condição dos cidadãos canadenses seria igualmente uniforme, mas, no segundo nível, no âmbito do Quebec e no contexto da defesa da identidade ou da cultura franco-quebequense (ameaçada pelo poder de persuasão/imposição da cultura anglo-norte-americana), seria adequado que o carater distinto da sociedade quebequense tivesse precedência sobre os direitos individuais, sempre que a radicalização dos últimos significasse uma agressão à identidade quebequense sem que o inverso fosse verdadeiro. Isto é, sem que o reconhecimento da distinção provocasse a usurpação dos direitos de cidadania dos anglófonos.

Bibliografia

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SÉRIE ANTROPOLOGIA
Últimos títulos publicados

223. RIBEIRO, Gustavo Lins. A Condição da Transnacionalidade. 1997.

224. BAINES, Stephen Grant. Tendências Recentes na Política Indigenista no Brasil, na Austrália, e no Canadá. 1997.

225. BAINES, Stephen Grant. Política Indigenista Governamental no Território dos Waimiri-Atroari e Pesquisas Etnográficas. 1997.

226. CARVALHO, José Jorge. Religião, Mídia e os Predicamentos da Convivência Pluralista. Uma análise do Evangelismo Transnacional Norte-Americano. 1997.

227. WOORTMANN, Klaas Axel A.W. O Selvagem e a História. Primeira Parte: Os antigos e os medievais. 1997.

228. CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís R. Between Justice and Solidarity: The Dilemma of Citizenship Rights in Brazil and the USA. 1997.

229. PEIRANO, Mariza G.S. Where is Anthropology?. 1997.

230. PEIRANO, Mariza G.S. Continuity, integration and expanding horizons. Stanley J. Tambiah (interviewed by Mariza Peirano). 1997.

231. PEIRANO, Mariza G.S. Três Ensaios Breves. 1997.

232. CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís R. Democracia, Hierarquia e Cultura no Quebec. 1997.

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Brasília, DF Fone: (061) 348-2368 Fone/Fax: (061) 273-3264

Notas

1. Texto apresentado no âmbito do Seminário Temático "Liberalismo e comunitarismo: o que este debate tem a ver com o Brasil?", durante o XXI Encontro Anual da ANPOCS, realizado entre 21 e 25 de outubro de 1997.

2. A usurpação de direitos se daria sempre que alguém fosse prejudicado no acesso a bens, serviços, posições ou benefícios porque um concorrente teria passado a sua frente através da utilização de "pistolão", ou do acionamento de relações pessoais que lhe garantiriam o tratamento privilegiado pretendido.

3. Tais processos seriam correlatos à situação de usurpação de direitos indicada na nota 2, e seriam detonados por atos de nepotismo, de clientelismo ou da prestação (troca) de favores, sempre que o beneficiado tivesse tido acesso privilegiado a recursos públicos devido a relações pessoais, em prejuízo dos demais concorrentes (reais ou virtuais). A privatização do espaço público também se dá através da atuação de grupos sociais, quando suas organizações representativas conseguem vantagens particulares para o grupo sob a capa do interesse público. A defesa da paridade nas universidades (Cardoso de Oliveira, 1996) assim como as vantagens fiscais conseguidas pelos 4. A expressão "Resto do Canadá" é corrente no país para se referir ao território canadense majoritariamente anglófono e engloba todas as províncias e territórios com excessão do Quebec. A expressão aparece freqüentemente abreviada na literatura e, seguindo o mesmo procedimento, passarei a me referir a ela através da sigla RDC.

5. Até 1982 a constituição canadense ficava na inglaterra sob a guarda do parlamento inglês e, segundo alguns, o país não podia se considerar totalmente independente, apesar da coroa não 6. Um dos problemas colocados por demandas deste tipo é que elas têm um forte componente moral, cuja satisfação freqüentemente não encontra mecanismos efetivos nos sistemas jurídicos vigentes nas democracias modernas. A este respeito, Berger (1983) chama a atenção para a impossibilidade de se obter reparação para insultos morais em sociedades como a americana. Isto é, insultos que não podem ser traduzidos na linguagem de uma agressão a direitos legais, nem podem ser facilmente transformados (sem qualquer mediação) numa indenização monetária. De certa forma, os atos de desconsideração discutidos aqui constituem insultos de ordem moral.

7. Um indicador expressivo desta preocupação com questões de eqüidade e solidariedade é a agressividade das políticas sociais, especialmente nas áreas de saúde e educação, as quais têm garantido ao Canadá a honra de vir sendo considerado consecutivamente pela ONU, nos últimos anos, como o país onde a população tem a melhor qualidade de vida no mundo.

8. Como o própio Laforest reconhece, após a realização dos debates constitucionais que antecederam o acordo de Charlottetown, em 1992, a tese das duas nações ou povos fundadores não se sustenta mais, na medida que que não há mais como legitimar um discurso sobre a formação do 9. Tal discriminação teria sido vivida com mais vigor até meados dos anos sessenta, quando os efeitos da "Revolução Tranqüila" ainda não haviam sido sentidos e quase todos os empreendimentos econômicos de Montreal estavam nas mãos de empresários anglófonos.

10. Para uma visão geral do nacionalismo quebequense ao longo da história, consulte a obra de G. Gougeon (1993).

11. O governo do Quebec distribui certificados de "afrancesamento" às empresas que concluem o processo de implantação do francês como língua de trabalho, e as empresas que estão atrasadas estão sujeitas a restrições em relação à prestação de serviços para o Estado, à obtenção de linhas de crédito do governo e etc.

12. Recentemente a imprensa deu grande destaque ao caso de uma menina anglófona cujo pai acabara de imigrar para o Quebec, e que estava sendo obrigada a frequentar uma escola de língua francesa sem ter qualquer conhecimento da língua, numa região em que havia grande disponibilidade de vagas em escolas de língua inglesa.

13. Quando foi criada, a lei 101 era mais redical e facultava o acesso à escola de língua inglesa apenas para as crianças cujos pais tivessem frequentado uma escola inglesa no Quebec.

14. Apesar da proibição atingir também outras línguas, o alvo principal é evidentemente o inglês. Entretanto, há muitas minorias étno-lingüísticas em Montreal e, mesmo que o governo não faça qualquer outro tipo de restrição ao uso das outras línguas, há uma grande preocupação em estimular o francês como língua oficial no mundo público. Só para se ter uma idéia da pluralidade étnico-cultural de Montreal, uma antropóloga da Université de Montréal encontrou não menos de 150 grupos lingüísticos e culturais diferentes em Côte de Niege (Mentel, 1996:26), um bairro vizinho à Universidade, e na edição de 29 de novembro de 1997 do Le Devoir uma reportagem assinala que chega a 110 o número de línguas faladas cotidianamente neste bairro.

16. A rigor, a bandeira da defesa dos direitos individuais contra a legislação lingüística abrangeria os direitos dos francófonos, os quais, segundo esta visão, seriam os mais prejudicados enquanto indivíduos/cidadãos, na medida em que seriam aqueles diretamente atingidos pela proibição de frequentar escolas de língua inglesa.

17. A loja se chamava "pure laine/pure wool", o que enfatizava a dimensão de provocação do empreendimento, na medida em que pure laine é a expressão quebequense para se referir aos francófonos descendentes dos colonos franceses que se estabeleceram no Canadá antes do domínio britânico, sendo muito valorizada no Quebec. De qualquer forma, a loja não obteve o sucesso esperado e Galganov teve que fechá-la poucos meses após sua inauguração.

18. Primeiro partido político do Quebec que tem como objetivo primordial a conquista da 19. A lei 22 era muito mais branda que a 101 e não impunha qualquer restrição ao uso do inglês, mas afirmava pela primeira vez que o francês era a única língua oficial do Quebec (Legault, 1992:35).

20. A propósito, na semana que antecedeu o referendo de outubro passado duas nações indígenas do Quebec realizaram seus próprios referendos, onde a opção pela manutenção do vínculo com o Canadá, em oposição ao Quebec, teve ampla maioria: 96% no caso dos Cree e 95% no caso dos Inuit.

21. Dentro desta perspectiva, segundo a edição de 13 de setembro de 1997 do The Gazette, uma pesquisa feita pela firma SOM para a revista l'Actualité revela que 60% da população do Quebec seria favorável ao direito de partição das regiões do Quebec que desejassem continuar ligadas ao Canadá, no caso dos separatistas vencerem o próximo referendum. Estes dados são particularmente significativos se pensarmos que, apesar da grande importância atribuída pela população francófona à manutenção da integridade territorial do Quebec, os atores questionam a legitimidade de tal posição se o preço de sua implementação for o desrespeito aos direitos democráticos/igualitários dos anglófonos, que deveriam ser tratados de maneira igual e uniforme em relação à maioria francófona.

22. Dumont fala em níveis hierárquicos e em inversão hierárquica para se referir ao mesmo fenômeno no caso da Índia, tomada como uma sociedade holista (1992:369-375). Ao definir a hierarquia como uma relação que se caracterizaria pelo englobamento do contrário, Dumont fala em níveis hierarquisados onde a inversão de valores no nível inferior não se constitui numa contradição lógica para o sistema, na medida em que a inversão está referida a uma situação particular ou específica que mantém uma relação de dependência ou subordinação frente ao nível superior na sociedade como um todo. No caso das sociedades modernas e individualistas, onde a categoria indivíduo tem precedência no plano da ideologia, talvez não fosse muito apropriado se falar em inversão hierárquica. Contudo, como nestas sociedades os atores não deixam de valorar sua experiência, assim como as relações ou contextos nos quais se envolvem, a distinção de níveis continua sendo importante para viabilizar a compreensão dos atores sobre a vida social. A diferença aqui é que ao invés de hierarquia, devemos falar em níveis de significação e relevância (ou abrangência), onde a relação de assimetria entre os níveis não tem as mesmas implicações da relação hierárquica para a ideologia. É por isto que, ao invés de inversão hierárquica, preferi utilizar aqui a noção de inversão valorativa.

Prof. Luís Roberto Cardoso de Oliveira
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