Honra, Dignidade e Reciprocidade



Com a transformação da noção de honra em dignidade na modernidade (Berger 1983; Taylor 1994), e o desenvolvimento da ideologia individualista no ocidente (Dumont 1977; 1986; 1991), o processo de institucionalização da cidadania passou a articular de maneira cada vez mais próxima demandas por direitos (Marschall 1976) com demandas por reconhecimento de identidades (Taylor 1994). Toda a discussão sobre multiculturalismo nos Estados Unidos (Gutmann 1994) assim como os debates em torno do tema no Quebec (Taylor 1994; L. Cardoso de Oliveira 2002) e na Catalunha (R. Cardoso de Oliveira 1995: 9-46; Rocher & Marconde 1997: 251-267) são bons exemplos deste processo. O eixo da demanda por reconhecimento, como um direito ou condição para o exercício pleno da cidadania nestes casos, gira em torno das dificuldades encontradas na formulação de um discurso legitimador para a institucionalização de direitos não universalizáveis, que visam contemplar a situação singular de grupos específicos — minorias étnicas ou nacionais — cujo valor ou mérito é reivindicado como característica intrínseca de suas identidades enquanto tais. De outro ângulo, a dificuldade também está presente no esforço em dar visibilidade ao insulto ou ato de desconsideração — decorrente da falta de reconhecimento — como uma agressão objetiva, merecedora de reparação. Ou seja, a percepção de desonra ou de indignação experimentada pelo ator que vê sua identidade negada, diminuída, ou insultada não encontra instrumentos institucionalizados adequados para viabilizar a definição do evento como uma agressão socialmente reprovável (Berger 1983), nem mecanismos que permitam a reestruturação da integridade moral dos concernidos.

Não obstante, a revolta dos atores frente à experiência do insulto é recorrentemente expressa em depoimentos, comentários, reações discursivas e manifestações de indignação diversas, onde percepção e emoção costumam estar fortemente associadas, como dois lados da mesma moeda. A relação entre dignidade, identidade e sentimentos indica a importância da alteridade ou do caráter dialógico do reconhecimento, que não pode ser expresso adequadamente no plano exclusivamente formal, exigindo de alter e ego trocas substantivas de palavras ou gestos (símbolos em geral), que representem, aos olhos de ambos, manifestações mútuas de consideração e apreço.

Mas, com esta observação, entramos na problemática da dádiva e de seu potencial interpretativo para a compreensão da dimensão moral dos conflitos. Em meados dos anos noventa chamei a atenção para a fecundidade da discussão de Mauss sobre as obrigações recíprocas na análise empírica de questões de ordem moral, com o objetivo de proporcionar um significado mais palpável para a relação entre as dimensões de justiça e de solidariedade da eticidade (L. Cardoso de Oliveira 1996c: 143-157), assim como proposta na ética discursiva de Habermas (1983/1989: 61-141; 1986: 16-37). Argumentei então que as trocas, ou as obrigações de dar, receber e retribuir examinadas por Mauss (1925/1974: 37-184), simbolizavam não apenas a afirmação dos direitos das partes, mas o reconhecimento mútuo da dignidade dos parceiros, cujo mérito ou valor para participar da relação seria formalmente aceito. A propósito, em sua discussão sobre o significado do potlach no ensaio de Mauss, Karsenti enfatiza que na farta distribuição de bens que caracteriza o evento não é o interesse ou o lucro que motiva as partes, mas a manifestação de reconhecimento daqueles para os quais os bens são oferecidos, em relação ao patrocinador do potlach (1994: 32). Isto é, o reconhecimento almejado aqui é o do status ou posição social pretensamente superior daquele que oferece o potlach. Embora a enfase no reconhecimento não esteja presente com a mesma intensidade nas trocas do kula ou nas dádivas trocadas em sociedades modernas, o reconhecimento não deixa de estar embutido nestas práticas, ainda que estas possam estar associadas à celebração de relações igualitárias.

Outro aspecto importante do reconhecimento associado às obrigações recíprocas, assim como descritas por Malinowski (1922/1984; 1926/2003) e tematizadas por Mauss (1925/1974), está na dramatização dos atos de troca e na expressão dos sentimentos dos parceiros. Como assinalam os autores, em várias circunstâncias os atos de troca são ritualizados, onde a forma prescrita é prenhe de significados e sugere que o cumprimento da obrigação moral embutida nestes atos não se esgota na satisfação dos interesses das partes (em ter acesso ao bem recebido ou em instituir uma obrigação para o parceiro), nem na afirmação de um direito, mas requer a demonstração do reconhecimento do valor ou mérito do receptor da dádiva. De certa maneira, talvez pudéssemos conceber o reconhecimento como a outra face do hau do doador ou da força presente nas coisas que circulam. Pensando-se a dádiva como um sistema, percebe-se que já no ato inicial, quando há a primeira troca entre os atores, o que Malinowski chamava de "opening gift", está embutida uma obrigação (Mauss 1925/1974; Karsenti 1994: 40). Nesta direção, Mauss fala, em outro contexto, na expressão obrigatória dos sentimentos (1979: 147-153) como um dever moral, referindo-se às situações nas quais a manifestação ou dramatização das emoções do interlocutor expressa uma mensagem cujo conteúdo moral demanda a formalização do ato para que seja adequadamente transmitido. Inspirando-me em Mauss, e tendo como referência as demandas por reconhecimento do Quebec, propus que, em certos casos, a percepção do insulto moral como uma agressão a direitos demandaria a evocação obrigatória dos sentimentos (L. Cardoso de Oliveira 2002: 75-93). Em qualquer hipótese, a articulação entre reconhecimento e sentimentos no âmbito das obrigações recíprocas indica o potencial destes para a apreensão do conteúdo moral das interações sociais e dos conflitos de uma maneira geral. Em que medida a expressão dos sentimentos traria à tona significados que, de outra maneira, ficariam submersos no desenvolvimento dos conflitos? Em que momentos os sentimentos ou emoções dos atores afloram e o que eles querem dizer? De que maneira a possibilidade de incorporar a dimensão dos sentimentos ou das emoções no processo de equacionamento dos conflitos contribuiria para a compreensão das disputas e seus desdobramentos? Contudo, quando relacionamos a problemática da dádiva com a questão do insulto moral no equacionamento de conflitos, há uma característica interessante destes que ainda não foi adequadamente abordada. Refiro-me ao fato de que — tanto no caso da pesquisa sobre pequenas causas nos EUA como no caso da investigação sobre o debate público em relação ao futuro do Quebec1 —, o conflito parece estar associado à ausência da dádiva, percebida pelas partes como um insulto. Isto é, a falta de reconhecimento ou os atos de desconsideração, característicos da percepção do insulto nos dois casos, poderiam ser apreendidos como situações nas quais a ausência da dádiva é percebida como a sua negação, expressa na recusa em compartilhar o hau com o parceiro e, consequentemente, como a negação do status ou a rejeição da identidade do interlocutor. A idéia de negação da dádiva neste contexto é bastante diferente da noção de reciprocidade negativa, assim como elaborada por Sahlins em sua discussão sobre as trocas primitivas (1965: 139-236), inspirada no ensaio sobre a dádiva de Mauss.

Enquanto a noção de Sahlins tem como foco situações em que pelo menos uma das partes é motivada pelo ganho ou vantagem utilitária, e tenta se apropriar de algo sem dar nada em troca (Idem: 148), aquele que nega a dádiva nos casos abordados aqui não está necessariamente orientado por qualquer tipo de ganho mas, simplesmente, desconhece a identidade do interlocutor.

Apesar de a impessoalidade estar presente nos dois tipos de situação, a reciprocidade negativa de Sahlins pode ser plenamente traduzida em evidências materiais, refletindo um desequilíbrio acentuado no valor dos bens trocados. Já a negação da dádiva se expressa em uma ausência de deferência ostensiva, percebida como um insulto ou ato de desconsideração, que freqüentemente não pode ser traduzida em evidências materiais. A recusa da troca, enquanto padrão de sociabilidade, é vivida pelo interlocutor como uma afirmação de indiferença ou como uma agressão (leia-se insulto moral) que se expressa com maior nitidez no plano das atitudes ou intenções do agressor do que em suas ações ou comportamentos em sentido estrito, tal como sugere Strawson (1974: 5) em sua caracterização do ressentimento como reação a este tipo de agressão. Deste modo, a desconsideração ou o insulto aparece como um ato significativo tanto nos casos em que o desprezo ou a depreciação da identidade do outro é dramatizada pelo agressor, tal como acontece no rito do "você sabe com quem está falando" analisado por DaMatta (1979), ou quando uma manifestação de deferência ansiosamente esperada não se realiza, ainda que sua ausência não tenha sido planejada por aquele de quem se espera a manifestação, indicando o caráter irrefletido do ato. Isto é, a dimensão performativa do reconhecimento, compartilhada com os rituais de uma maneira geral (Tambiah 1979; Peirano 2002), chama a atenção para a importância simbólica da performance mesmo quando o não dito se torna um feito (Peirano 2002).

Como enfatizam Godbout (1992; 1998) e Caillé (1998) a dádiva não apenas se mantém relevante na contemporaneidade, mas se constituiria num aspecto central das relações sociais. Diferentemente das perspectivas de caráter utilitarista, que têm como foco o indivíduo, na ótica da dádiva a precedência está no elo social. Da mesma forma, nos conflitos ou processos de resolução de disputas discutidos a seguir, que têm lugar nos Juizados Especiais, as partes não estão apenas preocupadas com o ganho ou com seus interesses materiais, nem tampouco apenas com seus direitos individuais, mas também com o que eu gostaria de caracterizar, à luz da formulação de Godbout e Caillé, como a qualidade do elo social entre os litigantes. Em outras palavras, certo tipo de elo, relação ou interação social parece ser, aos olhos das partes, em si mesmo, ofensivo. A precedência atribuída ao elo social e à ênfase na dimensão dialógica das relações sociais faz com que a dúvida e a dívida, sempre presentes na dádiva, sejam mais valorizadas do que os ideais de certeza e de controle, característicos do contrato e da perspectiva que orienta as práticas vigentes no âmbito do sistema judiciário.


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