Justiça, Solidariedade e Reciprocidade: Habermas e a Antropologia



Nos últimos vinte e poucos anos, i.e, após a publicação de Conhecimento e Interesse (1968/1972), Habermas abandona seu debate com a filosofia da ciência e dirige seus esforços de fundamentação de uma ciência social não positivista para a elaboração de uma teoria social, cuja formulação é concluida com a publicação de sua Teoria da Ação Comunicativa (1981/1984 e 1981/1987) no início dos anos oitenta. Neste processo, a dimensão normativa da interpretação sociológica, bem como sua relação com problemas de legitimação, vai ficando cada vez mais clara, dando lugar a uma preocupação com questões de moralidade (1983/1989) e a um interesse no Direito (1992) como esfera de investigação privilegiada para a compreensão de alguns dos problemas centrais que afligem a sociedade moderna.

A meu ver, ao resgatar a importância da superestrutura e/ou do mundo da vida como objeto de investigação, o percurso trilhado por Habermas amplia cada vez mais o potencial de repercução de sua obra na antropologia. Não apenas devido ao foco nas representações mas, sobretudo, pelo desenvolvimento de uma preocupação com a dimensão do "vivido". Neste sentido, a relativização da separação Kantiana entre as esferas normativa e valorativa no equacionamento de questões de ordem moral, através da articulação dos princípios de justiça e solidariedade nas proposições mais recentes da ética Discursiva, permite uma aproximação interessante com a noção Maussiana de "reciprocidade", cuja fecundidade procurar-se-á explorar na presente comunicação.

No que se segue, farei inicialmente (1) uma breve exposição sobre o lugar das estruturas normativas e do mundo da vida na teoria social de Habermas, para depois (2) discutir o equacionamento das noções de justiça e solidariedade na ética Discursiva.

Finalmente, (3) concluo o trabalho propondo uma melhor articulação entre as dimensões normativa e valorativa da eticidade à luz da noção de reciprocidade.

1. A Importância da Dimensão Normativa e a Autonomia do Mundo da Vida

Além da preocupação com a dimensão normativa de uma ciência social que se quer crítica, as propostas de Habermas enfatizam a relevância da esfera normativa como objeto privilegiado da investigação sociológica, na medida em que esta seria constitutiva mesmo do mundo social enquanto tal. Pois, não seria concebível uma vida em grupo ou em sociedade que não fosse normatizada. Após indicar a existência de uma lógica própria de desenvolvimento para as estruturas normativas (Habermas 1979), o autor aponta para o caracter dinâmico das estruturas do mundo da vida em geral e chama atenção para suas implicações no que concerne a compreensão dos processos sociais (Habermas 1981/1987).

Isto é, Habermas procura, num só tempo, relativizar o poder de determinação da chamada infraestrutura e renovar o seu poder de explicação ao substituí-la pela noção mais ampla e mais complexa de sistema em seu debate com o funcionalismo sistêmico de Parsons e Luhmann (Idem).2 Apesar do desenvolvimento das estruturas normativas ser freqüentemente motivado por problemas decorrentes do desenvolvimento das forças produtivas, aquelas se desenvolvem de forma autonoma, a partir de uma lógica interna.

Neste sentido, enquanto o desenvolvimento do sistema estaria marcado por processos de diferenciação e de complexificação social que provocam o surgimento de mecanismos de integração ou de articulação (sistêmica) de-simbolizados (os "steering media"), o desenvolvimento das estruturas do mundo da vida seria caracterizado por processos de racionalização onde seus componentes estruturais, conceptualizados através das noções de cultura, sociedade e personalidade, apresentariam contornos cada vez mais definidos e atingiriam níveis de autonomia cada vez mais altos, i.e, uns em relação aos outros. Da mesma forma, embora o processo de descolamento entre sistema e mundo da vida tenha viabilizado a autonomização do primeiro, este não pode deixar de se manter ancorado nas instituições do mundo da vida (Habermas 1981/1987:154) que continuam sendo responsáveis pela determinação do padrão estrutural que dá identidade e sentido à integração do sistema social como um todo.3 Chamo a atenção aqui para o fato de que esta necessidade de ancoramento dos mecanismos sistêmicos no mundo da vida não prejudica a tese de Habermas quanto a colonização do mundo da vida pelo sistema (Idem:318-73), através da expansão dos domínios de ação formalmente organizados no âmbito das esferas de ação tradicionalmente organizadas por meio de processos de comunicação orientados para o entendimento mútuo. Isto é, esferas de ação cujo conteúdo simbólico não só é compartilhado pelos atores, mas cuja atualização demanda um mínimo de explicitação e/ou renovação do conteúdo em pauta para que o sentido mesmo das interações envolvidas não seja desvirtuado ou reificado.

De qualquer forma, devo salientar que a necessidade, indicada por Habermas, de se articular o estudo do mundo da vida com a investigação do sistema, através da conjugação das perspectivas do participante e do observador, não significa a defesa de uma orientação eclética onde as duas estratégias teriam potencialmente o mesmo peso e implicações. Pois, apesar do sistema atuar na organização de processos objetivos e de-simbolizados cuja apreensão demanda o distanciamento de um observador, o seu significado e as suas implicações não podem ser devidamente avaliados sem que os respectivos processos sejam contextualizados nas instituições do mundo da vida que lhe dão ancoramento. Ou seja, como a identificação do sistema e de seus mecanismos de integração tem que supor, necessariamente, a existência de um mundo da vida, ao qual está conceitualmente (e/ou genéticamete) relacionado, o mundo da vida se constitui, simultâneamente, no ponto de partida e de chegada do pesquisador. Assim, se a atenção ao sistema é fundamental para se evitar as "idealizações" insustentáveis de um interpretativismo radical ou ingênuo, e incapaz de distanciamento, a articulação dos mecanisnos sistêmicos observados com as representações dos atores é a condição de inteligibilidade dos resultados da pesquisa.


Página seguinte 



As opiniões expressas em todos os documentos publicados aqui neste site são de responsabilidade exclusiva dos autores e não de Monografias.com. O objetivo de Monografias.com é disponibilizar o conhecimento para toda a sua comunidade. É de responsabilidade de cada leitor o eventual uso que venha a fazer desta informação. Em qualquer caso é obrigatória a citação bibliográfica completa, incluindo o autor e o site Monografias.com.