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Legalidade e eticidade nas pequenas causas. (página 2)

Luís Roberto Cardoso de Oliveira

 

Como o acordo informal com o ex-co-inquilino — segundo o qual aquele que saísse primeiro do imóvel teria sua parcela do depósito de segurança reembolsada pelo que permanecesse no apartamento, — não fazia sentido do ponto de vista legal, pois não poderia suplantar o contrato efetivamente existente e previsto em lei com o proprietário, nem refletiria uma relação percebida pelo Juizado como merecedora de sancionamento jurídico, a demanda apresentada pelo autor é inviabilizada, e parece mesmo não ter lógica aos olhos do juiz. Mesmo após a confirmação da existência do acordo informal durante o depoimento do querelado, o juiz continuou insistindo na falta de sentido da demanda. A propósito, é interessante notar que o ex-co-inquilino não apenas confirmava o acordo mas se dispunha a honrá-lo no momento em que conseguisse outra pessoa para substituir o autor da demanda na locação do imóvel. Casos como este me levaram a identificar um padrão de disputas que seriam interpretadas de maneira inapropriada e decididas de forma inadequada, no âmbito das audiências judiciais, na medida em que o problema entre as partes não podia ser diretamente traduzido na (ou sancionado pela) linguagem do direito ou das leis (Cardoso de Oliveira, 1989:313-339).

Por outro lado, além de apontar esta limitação das audiências judiciais, minha pesquisa indicava também uma dimensão importante das pequenas causas, a qual era sistematicamente excluída da atenção do juiz nas sessões do Juizado. Estou me referindo à percepção das partes de que seus oponentes as haviam tratado de maneira inaceitável, ou que as haviam insultado em algum momento ao longo do processo que desembocou na formalização da causa no Juizado. Apesar de encontrarem dificuldade para verbalizar ou para articular uma demanda legal que contemplasse uma reparação para a respectiva ofensa ou agressão, em muitos casos esta talvez tivesse sido a principal motivação para levar adiante a disputa. Aqui estamos diante da relação entre desrespeito a direito e agressão à pessoa dos litigantes a ser retomada na próxima seção. Porém, antes de enfrentar esta questão, seria importante caracterizar as sessões de mediação, que se constituem num processo alternativo de resolução de disputas, também oferecido pelo Juizado, o qual permite uma discussão mais aberta das disputas, ainda que raramente satisfaça os requisitos para um melhor equacionamento do insulto moral.

Em princípio, as sessões de mediação teriam grande potencial de contemplar as demandas das partes nos dois aspectos críticos para as audiências judiciais salientados até aqui: (1) uma certa rigidez na filtragem das demandas em vista do modo judicial de avaliar a responsabilidade jurídica; e, (2) a exclusão do insulto moral como demanda legítima. Pois, nas sessões de mediação nenhum tema ou assunto deve ser excluído a priori da discussão e, como a solução aqui é sempre produto de um acordo entre as partes, é muito mais provável que na fórmula encontrada para a redação do acordo esteja embutida uma resposta satisfatória para (ou pelo menos uma discussão sobre) as demandas, preocupações e perspectivas das partes em relação à disputa como um todo. Como argumento em minha etnografia das causas, as pretensões de eqüidade (ou de validez normativa) das decisões judiciais, as quais têm um carácter universalista, dependem do grau de satisfação ou de atenção dada aos problemas trazidos ou apontados pelos litigantes ao longo da audiência, e que estaria embutido na formulação definida pelo juiz (Cardoso de Oliveira, 1989:337-339).

Isto é, a sustentação da validez normativa de uma decisão judicial não pode ser confundida com um exercício de lógica, nem pode depender das qualidades eventualmente excepcionais de um determinado juiz, mas deve ser produto de um processo dialógico onde as características da disputa devem ser adequadamente compreendidas, e a decisão encontrada deve refletir compromissos de imparcialidade, assim como uma atenção detida às normas e valores vigentes.8 Entretanto, como veremos, o foco as vezes excessivo das sessões de mediação na idéia ou nos mecanismos de reparação das perdas sofridas, e que flexibiliza tanto a definição das disputas como a solução dos problemas tematizados, pode se constituir num constrangimento significativo para o equacionamento dos direitos, normas e valores envolvidos.

Diferentemente das audiências judiciais, a mediação de disputas é vista como um processo no qual o principal objetivo não seria fazer justiça, mas encontrar uma solução satisfatória para as partes, tendo como foco a reparação do prejuízo eventualmente sofrido.

Se é verdade que o processo de mediação procura avalizar acordos que reflitam um certo equilíbrio entre os interesses e as condições das partes, revelando um compromisso com ideais de eqüidade (fairness), não há qualquer pretensão de associar a solução encontrada com a legitimação de um diagnóstico claro sobre as responsabilidades das partes no que concerne ao afloramento e ao desenvolvimento da disputa. É dentro desta perspectiva que mediadores,9 juízes e funcionários do Juizado procuram fazer uma distinção nítida entre os objetivos das audiências judiciais quanto a determinação da responsabilidade jurídica ou dos direitos (legais) efetivamente desrespeitados, e a orientação do serviço de mediação em relação à construção de uma solução equânime e que satisfaça os interesses prospetivos das partes.

A mediação é apresentada aos litigantes, no início da sessão semanal do Juizado, como uma última oportunidade para tentarem entrar em acordo com seus oponentes, sem abrir mão de seus lugares na fila de processos a serem ouvidos pelo juiz no caso das negociações não serem bem sucedidas. A possibilidade de atendimento imediato — em oposição ao por vezes longo tempo de espera (podendo ultrapassar uma ou duas horas) para ter o caso ouvido pelo juiz —, assim como a maior informalidade do processo e o fato de poder contar com mais alternativas para resolver a disputa são os principais atrativos oferecidos aos litigantes, a quem é assegurado que o acordo eventualmente celebrado tem o mesmo valor jurídico que uma decisão do juiz. De fato, as sessões de mediação são estruturadas de maneira a facilitar o diálogo entre os litigantes e ampliar o horizonte de alternativas viáveis para a concretização de um acordo. Neste contexto, a abertura para questionamentos quase ilimitados de parte a parte amplia substancialmente as possibilidades de definição da disputa e, conseqüentemente, as perspectivas para uma compreensão mais rica do conflito entre os litigantes, assim como para uma solução normativamente mais adequada ou equânime da causa.

Contudo, embora as condições para a exploração e elaboração das intuições morais dos atores, dentro dos parâmetros de crítica discursiva reconstruídos pela TAC, sejam indubitavelmente mais generosas e fecundas no âmbito das sessões de mediação, o receio dos mediadores em permitir o aprofundamento de discussões sobre as responsabilidades recíprocas das partes no desenvolvimento da disputa se constitui num inibidor, muitas vezes eficaz, para uma melhor compreensão das disputas ou para a confecção de acordos mais equânimes. Por um lado, a discussão das responsabilidades de cada um na erupção da disputa é percebida como potencialmente agravadora da tensão ou do conflito entre os litigantes, e portanto como contraproducente para a negociação de um acordo, especialmente no que concerne a uma solução que contemple adequadamente os interesses (materiais) das partes.

Por outro lado, o fato destas discussões freqüentemente mobilizarem as emoções dos atores é lido como uma ameaça a racionalidade e a objetividade da negociação. Deste modo, a orientação dos mediadores promove uma distancia excessiva entre as noções de direitos e interesses que, além das limitações apontadas acima, vai contra as intuições morais dos litigantes. Pois, para estes, é muitas vezes difícil ou inadequado articular um discurso coerente sobre seus interesses sem uma discussão sobre a legitimação dos mesmos.

Na mesma direção, vale a pena lembrar que em muitas causas a "revolta" contra a percepção de agressão que teriam sofrido — como um ato intencional contra a pessoa de um ou de outro — é o principal motivador dos litigantes para a formalização da demanda no Juizado. Na realidade, em um número expressivo de disputas a dimensão estritamente legal da causa, ou dos direitos traduzidos no valor monetário reivindicado pelo autor como reparação, não justificaria o tempo e o esforço empregados no processo. Tal situação é particularmente aparente nos casos em que o valor da causa não ultrapassa 40 ou 50 dólares.

Em vista dos custos mínimos para dar andamento administrativo à causa no Juizado (entre 5 e 10 dólares), somados ao custo de pelo menos dois deslocamentos ao Juizado, mais a perda de três ou mais horas de trabalho sem remuneração, levando-se em conta que o salário mínimo não era inferior a 5 dólares por hora à época e que a maioria dos litigantes tinha rendimentos superiores, chega-se a conclusão que em causas deste tipo um autor bem sucedido tinha grandes chances de, na melhor das hipóteses, recuperar apenas os recursos empregados para dar prosseguimento a causa ou perto disto.10 Se a necessidade de articular responsabilidade e reparação, ou direitos e interesses, chama a atenção para a importância atribuída pelos litigantes à definição da correção normativa dos atos de uns para com os outros, no caso das disputas envolvendo valores inferiores a 50 dólares o desempenho das partes sugere que a dimensão normativa, ou dos direitos, tem precedência sobre a satisfação dos interesses expressos no valor monetário da causa. Além disto, se a impossibilidade de tradução direta entre o direito demandado e a indenização requerida é uma característica bastante difundida entre as causas encaminhadas ao Juizado, a dificuldade enfrentada pelos próprios litigantes em articular um discurso coerente sobre a objetividade de certos direitos, coloca problemas que transcendem as limitações decorrentes da linguagem jurídica ou legal. Estou me referindo as reclamações verbalizadas emocionalmente pelos litigantes e que, como indiquei acima, são evitadas pelos mediadores com receio de inviabilizar a concretização de um acordo potencialmente positivo em relação aos interesses prospectivos de ambas as partes. Aqui, salta aos olhos o fato de que o desrespeito a estes direitos é experimentado como uma agressão, num só tempo inaceitável e difícil de fundamentar discursivamente como um ato moralmente indevido. Talvez não seja equivocado dizer que se trata de uma agressão mais sentida do que compreendida, e dai a manifestação sobretudo emocional da parte que se viu agredida, manifestação que aparece mais como uma expressão de indignação e não chega a desembocar na formulação de uma demanda. Em qualquer hipótese, creio que este quadro impõe uma relativização mais aguda do que aquela esboçada por Habermas — na TAC ou na ED — da separação entre direitos e valores ou da distinção das dimensões normativa e valorativa da eticidade. Como veremos, este me parece um passo necessário para a compreensão e fundamentação do insulto moral como uma agressão a direitos ético-morais, os quais seriam em princípio legitimáveis e, portanto, também precisariam ser protegidos.

b) Legalidade, Eticidade e o Insulto Moral (cognição e emoção)

Tanto na TAC como em seu ensaio de fundamentação da ED, Habermas está preocupado em estabelecer uma definição precisa de questões de ordem moral ou normativa, para identificar sua especificidade e resgatar suas respectivas pretensões de validade. Neste empreendimento, a separação entre normas e valores, que remonta a Kant, tem um papel estratégico e viabiliza uma abordagem que procura equacionar validade e universalidade. Por outro lado, é verdade também que a radicalidade desta separação em Habermas se dá mais no plano analítico, para caracterizar dimensões específicas da vida social ou da experiência humana, do que na discussão de questões sociológicas concretas ou de reflexões filosóficas sobre as relações entre moral, ética e formas de vida. Deste modo, num trabalho posterior, Habermas identifica na ED a aspiração Hegeliana de aproximar as dimensões da justiça e da solidariedade, ou dos direitos e dos valores, através da noção de eticidade (Sittlichkeit), chamando a atenção apenas que no caso da ED o resgate desta aspiração seria feito com meios Kantianos (1986:22). Da mesma forma, Habermas distingue e discute a relação entre os direitos legais vigentes nas democracias constitucionais e as normas morais (1994:124 & 1996:104-118), assim como procura articular as diferenças entre os usos pragmático, ético e moral da razão prática (1993:1-17) indicando áreas de interseção entre as três modalidades.

Isto é, se a separação Kantiana entre normas e valores continua tendo um papel central na ED para fundamentar as pretensões de validade normativa, ela é sistematicamente relativizada quando se trata de pesquisar e compreender questões de ordem sociológica.

Entretanto, não me parece que o grau de aproximação ou de articulação entre direitos e valores proposto por Habermas seja suficientemente desenvolvido por ele, para viabilizar uma compreensão abrangente de situações como a mencionada acima, onde litigantes reclamam de agressões que têm dificuldade de formular como um desrespeito a direitos.

Gostaria de identificar estas agressões como insultos de ordem moral ou como agressões cívicas, para distingui-las daquelas agressões facilmente definidas na linguagem do direito, ou imediatamente percebidas como um ato socialmente indevido e objetivamente merecedor de punição ou reparo.

A primeira vez que tive minha atenção despertada para o problema, embora não fosse capaz de formulá-lo com nitidez, foi no início da pesquisa sobre pequenas causas, quando trabalhava como voluntário num Serviço de Aconselhamento Para-Legal,11 dirigido a futuros prováveis litigantes que procuravam o Serviço para se informar sobre o Juizado e conversar sobre o conflito no qual estavam envolvidos: como possíveis autores ou querelados. O atendimento era feito pelo telefone, e talvez a principal característica das chamadas era que normalmente o interlocutor não se satisfazia em obter as informações sobre o funcionamento do processo e/ou em discutir a adequação do seu caso para tramitação no Juizado, mas costumava cobrar a solidariedade do conselheiro em relação as agressões que teria sofrido. Isto é, os futuros litigantes cobravam uma reação de indignação do conselheiro, ante a agressão que lhes teria sido imposta. Embora os clientes do Serviço não distinguissem em suas falas o desrespeito ao direito legal — como o não cumprimento de um contrato por exemplo —, da revolta gerada pela percepção de agressão contra a pessoa deles enquanto cidadãos merecedores de respeito e consideração, é interessante notar que a ênfase de suas colocações recaia sobre a percepção de agressão, ainda que esta não pudesse ser formalizada como uma causa no Juizado. Neste sentido, também não deixa de ser curioso que, apesar de associarem as duas dimensões do problema, quando pressionados a justificar uma demanda que reparasse a agressão alegada, eles revelaram dificuldade de articular o direito à consideração como uma obrigação (ético-moral) a ser mutuamente compartilhada entre os atores.

Esta perspectiva que permeava as colocações dos clientes do Serviço de Aconselhamento se repetia, dentro das limitações de cada contexto, nas audiências judiciais e nas sessões de mediação que tinham lugar no Juizado. A rigor, em muitas causas a apreciação das alegações de agressão ou da manifestações de indignação dos litigantes se constituiu na condição para uma compreensão adequada da disputa e foi (ou teria sido) importante para a definição de uma solução mais equânime do conflito.

No que concerne à compreensão das causas tal procedimento se mostrou relevante mesmo nos casos em que, motivada pela percepção de agressão, uma das partes toma atitudes absolutamente injustificáveis, tanto de um ponto de vista estritamente legal como tendo-se como referência princípios mais amplos de orientação ético-moral. Como por exemplo, no caso da proprietária de um imóvel que, tendo perdido uma causa que a obrigava a devolver o "depósito de segurança" dos ex-inquilinos que a haviam processado, estava disposta a recorrer a todas as instâncias, sem praticamente qualquer chance de reverter a decisão do juiz que ouviu a causa no Juizado. Como as pequenas causas desfrutam de uma posição singular no sistema, que permite ao litigante insatisfeito com a sentença do juiz apelar para que o caso seja julgado novamente em primeira instância, agora na corte superior do condado e com direito a juri, o caso estava aguardando nova data para o segundo julgamento, já que na primeira tentativa o juiz suspendeu a sessão sob a alegação de que a proprietária não tinha condições de apresentar seu pleito sem a assistência de um advogado.12 A utilização do "depósito de segurança" é regulada por leis de responsabilidade estrita, o que significa que não há espaço legal para justificar alternativas de procedimento para as regras estabelecidas. A única circunstância na qual o proprietário pode reter o "depósito de segurança", como indenização pelos estragos causados pelo inquilino, reza que no início da locação proprietário e inquilino devem assinar um documento descrevendo as condições do imóvel, em relação ao qual os eventuais estragos serão avaliados no futuro.

Como isto não foi feito no caso em pauta, não há justificativa que sustente a retenção do "depósito". Mesmo assim, a proprietária alega que seus ex-inquilinos são responsáveis por estragos substanciais no imóvel, e não se conforma com os constrangimentos legais para reter o "depósito". Em vista do aumento exponencial dos custos judiciais para ter o caso julgado novamente na corte superior, e das remotas possibilidades de reversão da sentença, o comportamento da proprietária só faz sentido à luz das agressões indiretas que ela alega ter sofrido dos ex-inquilinos, que teriam feito vários estragos propositalmente, com a intenção de prejudicá-la e de agredí-la. A revolta da proprietária chegou a tal ponto que ela vinha desrespeitando leis e ferindo direitos, sem medir conseqüências, atos estes com os quais mesmo um observador simpático a sua situação não poderia concordar. Entre outras coisas, a proprietária chegou a gravar ilegalmente conversas telefônicas com advogados envolvidos no processo, a quem ela ameaça nas fitas quando acha que não está sendo levada a sério e, pasmem (!), tomou a iniciativa de anexar as transcrições das fitas (que a incriminam) ao processo. Embora a percepção da corte de que se trata de uma encrenqueira que não sabe bem o que está fazendo, não seja de todo inadequada, também não há qualquer esforço para compreender e/ou lidar com as causas de sua indignação, motivadas pela sensação de agressão. Isto é, não para justificar seus atos, mas para compreender a lógica de suas motivações ao longo do processo.

Por outro lado, casos como o do "Congelador Suspeito" (Cardoso de Oliveira, 1989:425-437 & 1996:131-138) representariam um bom exemplo de causas onde, nas sessões de mediação, é aberto um espaço para discussão das responsabilidades recíprocas na detonação da disputa, assim como para a exposição da percepção do insulto moral, permitindo uma melhor compreensão do conflito e viabilizando uma solução mais equânime do mesmo. O dono de um comércio de compra e venda de refrigeradores estava sendo processado pelos compradores de um congelador usado que, ao descobrirem um desencontro entre a data de fabricação do equipamento informada pelo vendedor e a que veio a ser confirmada pelo fabricante, tentaram desfazer o negócio diretamente com o vendedor mas não tiveram sucesso. A causa foi formalizada no valor de 40 dólares, correspondendo aos 25 dólares pagos ao querelado para fazer a entrega, 10 dólares cobrados pelo banco para bloquear o cheque através do qual haviam pago o congelador, e 5 dólares que teriam gasto com as várias cartas "registradas" enviadas ao querelado e ao Serviço de Proteção ao Consumidor ao longo da disputa. Além disso, os autores também demandavam que o querelado fosse buscar o refrigerador rejeitado em sua residência.

Depois de uma longa discussão sobre a discrepância na data de fabricação do congelador, na qual fica clara a ausência de má fé do vendedor, e de uma série de esclarecimentos sobre as atitudes tomadas e as ações empreendidas de parte a parte ao longo do processo, os litigantes chegaram a um acordo no valor de 20 dólares, com o compromisso de que o querelado ficaria responsável pelo transporte do congelador rejeitado para sua loja.

Um dos aspectos interessantes deste caso é que se a discrepância de datas sobre a idade do congelador sugeria suspeitas imediatas quanto as intensões do vendedor, que teria tentado passar para traz os autores, as várias tentativas destes para negociar um acordo com o querelado antes de prossessá-lo eram percebidas como ofensivas aos olhos dele. Apenas para dar um exemplo, ante a recusa sistemática do querelado em pegar o congelador rejeitado na residência dos autores sem cobrar pelo transporte, os compradores sugeriram, num telefonema atendido por um empregado da loja, que aceitariam as exigências do querelado desde que este se encarregasse de fazer a entrega do novo congelador que os autores haviam comprado em outro lugar. Da maneira como o recado foi passado a proposta foi tomada como uma ofensa. Afinal de contas, segundo o querelado, a iniciativa dos autores seria similar a telefonar para um restaurante e pedir que este providenciasse a entrega do "filé" encomendado a outro.

Dois fatos chamam atenção no desenrolar desta sessão de mediação: (1) em várias oportunidades as partes ameaçaram encerrar as negociações; (2) os termos da proposta que selou o acordo já haviam sido rejeitados antes com veemência. A sessão só não foi encerrada antes da celebração do acordo porque o mediador, numa atitude pouco usual, resolveu explorar o sentido das alegações de agressão, ao invés de inibi-las, conforme o padrão dominante. Sem deixar de tomar cuidado para que o tom emocional destas alegações não ultrapassasse certos limites de civilidade, o mediador criou condições para que as partes manifestassem sua indignação em relação ao comportamento de um e de outro, tentando esclarecer o significado e a motivação dos atos questionados. Da mesma forma, quando a proposta antes rejeitada é aceita pelas partes seu significado já havia sido alterado num aspecto central para a definição da disputa. Isto é, dado o desenvolvimento das negociações, quando a proposta é inicialmente recusada pelo querelado sua aceitação representaria a assunção de responsabilidade por um ato de má fé, com a qual ele não podia concordar. No segundo momento, os termos do acordo já haviam ganho outro sentido, onde a divisão em partes iguais da secção monetária da demanda passou a simbolizar, fortemente, a coresponsabilidade das partes pelo(s) mal-entendido(s). Neste sentido, as negociações não só permitiram a tematização do insulto moral (expresso nas alegações de agressão e má fé de parte a parte) como uma prática inadmissível, e que portanto deve ser reprimida, mas viabilizaram também o resgate da identidade dos atores como cidadãos que merecem respeito e que devem ser tratados com consideração.

Ao mesmo tempo que o acordo produzido no caso do "Congelador Suspeito" representa um processo de resolução de disputa onde prevalecem os princípios orientadores da ação comunicativa, tendo como resultado uma melhor compreensão do problema entre as partes, e uma solução mais equânime para o conflito, o caso aponta também uma certa indissociabilidade entre legalidade e eticidade nas pequenas causas. Não só devido a articulação entre direitos e valores, em certa medida também presente em outros tipos de causa, mas porque aqui freqüentemente a dimensão da atitude ou da intensão das partes parece ganhar precedência sobre as ações dos atores, quando vistas isoladamente. Isto é, embora o centro do equacionamento da disputa esteja na avaliação da relação entre as partes e, portanto, no aspecto normativo, este só ganha inteligibilidade à luz dos valores que 12 orientaram a ação dos litigantes. De certa forma, poder-se-ia dizer que mais do que uma preocupação com a intensão das partes para definir o grau de consciência dos atores quanto às implicações de seus atos, para os litigantes é importante compreender a motivação por traz do ato ou da atitude.

Neste sentido, a relação entre ação e intensão nos remete às reflexões de Strawson (1974:1-25) sobre a fenomenologia do fato moral, as quais Habermas (1983/89:63-70) toma como ponto de partida em sua crítica às abordagens empiristas sobre questões de ordem moral. Habermas (Idem:70) enfatiza, em sua discussão das idéias de Strawson, a importância da assunção da perspectiva performativa do participante para a elucidação dos fatos morais, assim como a relação entre as reações afetivas dos atores e a avaliação das normas a partir de critérios suprapessoais. Gostaria de ressaltar aqui a associação sugerida por Strawson entre a experiência do ressentimento e a percepção da intenção de agressão no comportamento de um interlocutor. Isto é, a identificação do ressentimento como um sentimento que expressa uma reação a uma intensão ou atitude de agressão. Assim, segundo Strawson, uma simples intensão de agressão ou uma atitude de desprezo ostensivo em relação a outrem podem se constituir, em si mesmas, numa agressão (1974:5). Pois é exatamente esta experiência de ressentimento que caracteriza a motivação dos atores nas causas discutidas acima.

Experiência esta que, quando conta com a simpatia ou solidariedade de terceiros provocaria uma reação de indignação moral (Idem:14), correlata ao ressentimento, a qual marcaria o carácter potencialmente intersubjetivo da experiência e indicaria a possibilidade de fundamentação normativa do insulto moral como uma agressão socialmente inaceitável.

De fato, como sugere Strawson, a relação entre emoção, sentimento e cognição tem um papel importante na elucidação do que estou chamando de insulto moral. Contudo, como esta breve incursão no universo das pequenas causas aponta, as dificuldades em reconhecer o insulto moral como um ato moralmente indevido e que deve ser institucionalmente reprovável não devem ser subestimadas. Num artigo seminal, Berger (1983:172-181) assinala que, com a transformação do conceito de honra em dignidade na modernidade, ao lado do processo de universalização de direitos e do reconhecimento da dignidade de todos os cidadãos, pelo menos em sociedades como a americana teriam deixado de existir mecanismos institucionais para lidar com insultos ou assaltos à honra (dignidade) dos atores.

Aliás, afirma o autor, tais insultos teriam deixado mesmo de ser percebidos como uma agressão ou ofensa real (Idem:173). Neste sentido, creio que só um esforço de articulação mais palpável entre as dimensões normativa e valorativa da eticidade pode nos permitir uma compreensão mais profunda de disputas como as discutidas aqui, assim como o reconhecimento de direitos que não encontram respaldo na linguagem jurídica mas que, não obstante, têm pretensões de validade resgatáveis e poderiam ser legitimados.

Notas

1. A sair em B. Freitag-Rouanet (org.) Habermas: 70 anos. Número especial da Revista Tempo Brasileiro.

2. A atuação destes Juizados está restrita à área cível e todas as causas têm que ser expressas num valor monetário que representa a demanda do autor. Quando conclui minha pesquisa em fevereiro de 1986 os Juizados de Massachusetts aceitavam causas de até mil e quinhentos dólares (ver Cardoso de Oliveira, 1989).

3. Tais atos ou torts são caracterizados por eventos nos quais uma das partes pode ser legalmente responsabilizada pelos prejuízos causados à outra, independentemente da préexistência de vínculos ou acordos (contratos) entre elas. Por exemplo, quando durante uma pelada na casa de Fulano uma bola mal direcionada quebra a janela da casa do vizinho, e aquele pode ser processado pelo prejuízo causado a este.

4. Quando a perda material pode ser associada a uma intenção de agressão, o autor da causa também pode processar o querelado numa vara criminal, onde este figuraria como réu.

O motorista de um carro que perde a direção e destrói a fachada de uma residência pode ser processado, não só pelos danos materiais (causa cível), mas também por tentativa de assassinato (causa criminal) se houver suspeitas de que o incidente tenha ocorrido quando o motorista tentava atropelar o proprietário da residência em questão.

5. Quando os procedimentos formais para a apresentação de evidências é seguido à risca, como é o caso nos demais tribunais, o desconhecimento destes procedimentos pode inviabilizar totalmente a exposição da causa. Aliás, as vezes não é suficiente conhecer os procedimentos, pois a sua aplicação freqüentemente demanda a internalização dos mesmos.

Neste sentido, tive oportunidade de presenciar um julgamento num tribunal mais formal, onde um advogado não acostumado a atuar em julgamentos ficou completamente imobilizado pelo seu oponente, ao não conseguir executar satisfatoriamente estes procedimentos formais para a apresentação de evidências, cuja teoria ele conhecia. Num artigo interessante sobre narrativas de pequenas causas, O’Barr & Conley (1985) chamam atenção para a dificuldade que a ênfase no raciocínio lógico-dedutivo, mesmo quando flexibilizado, traz para litigantes leigos.

6. O processo jurídico tem sido freqüentemente descrito no Ocidente através da articulação entre fato e lei, pensados como duas dimensões conceptualmente distintas do processo. Assim, as partes são responsáveis pela apresentação dos fatos em suporte aos direitos demandados, e quando existe juri é sobre estes fatos que os jurados se pronunciam, enquanto o juiz é responsável pela aplicação da lei ou pela avaliação jurídico-legal da causa.

Num artigo instigante, Geertz argumenta que esta separação entre lei e fato é, em si mesma uma construção e que, ao imaginar o real, o direito não apenas representaria relações, ações e comportamentos, mas seria constitutivo destes (Geertz, 1983: 167-234).

7. Ao longo da audiência o juiz chega a ridicularizar o autor da causa, ao insistir que este confirme a veracidade de alegações não feitas (e talvez nem imaginadas) pelo litigante, por não encontrar qualquer respaldo nos fatos do ponto de vista de todos os envolvidos, mas que, se verdadeiras, dariam substância e fundamentação jurídica à demanda. O juiz acreditava estar desvendando uma clara contradição no comportamento do autor, e seu procedimento era dramatizado com tanta ênfase que o público na galeria multiplicava as gargalhadas provocadas pela situação constrangedora na qual se encontrava o autor, ante as insistentes perguntas do juiz, cujas únicas respostas possíveis reforçavam a interpretação de contradição artificialmente construída pelo magistrado em relação ao comportamento do autor.

8. Com o objetivo de articular fortes pretensões de validade na esfera normativa — assim como sugerido por Habermas na TAC e na ED — no contexto dos Juizados, e sem abrir mão da compreensão da dimensão local das disputas, proponho uma mudança de foco da moralidade das normas para a eqüidade das decisões judiciais. Estas últimas, ou as interpretações que as sustentam, é que teriam uma pretensão de universalidade resgatável, sem prejuízo do conteúdo empírico das mesmas. Neste sentido argumento que se, por um lado, para resgatar tais pretensões a decisão teria que satisfazer, em princípio, as ponderações de qualquer ator que tivesse tido acesso irrestrito aos meandros da disputa (independentemente de sua origem cultural), por outro lado, chamo atenção também que universalidade aqui não significa exclusividade. Isto é, qualquer disputa judicial pode comportar mais de uma solução igualmente equânime desde que satisfaça ou responda argumentativamente às poderações dos atores (Cardoso de Oliveira, 1989:264 & 1992:23- 45).

9. No Estado de Massachusetts, onde realizei minha pesquisa, o tipo de mediação oferecido é o denominado mediação comunitária, e que se caracteriza pela utilização de mediadores leigos, que trabalham nos Juizados como voluntários, sem direito a qualquer remuneração. No Juizado pesquisado todos os mediadores eram alunos de direito em faculdades da região, com exceção de um doutorando em ciência política, de uma jovem que trabalhava em Boston, e de mim mesmo que me engajei nesta atividade no final da pesquisa.

10. Em 47,3% das causas encaminhadas por pessoas físicas durante a minha pesquisa (entre setembro de 85 e fevereiro de 86), e nas quais os autores obtiveram uma decisão favorável, o juiz estabeleceu as perdas (a serem indenizadas pelo querelado) num valor inferior ao que havia sido demandado pelos litigantes (Cardoso de Oliveira, 1989:88).

11. Small Claims Advisory Service. Todos os voluntários eram universitários, e passavam por um rápido treinamento, que envolvia um período de atendimento supervisionado. Também conferir nota 8.

12. Na corte superior as regras judiciais para apresentação de evidências têm que ser seguidas de maneira estrita, e a falta de intimidade com elas inviabiliza a exposição das demandas das partes, fazendo com que os juízes sejam muito resistentes à participação dos litigantes não representados por advogados. Veja também a nota 4 acima.

Referências

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—1996. Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy, Cambridge, Mass.: The MIT Press.

O’Barr, W. & J. Conley 1985. "Litigant Satisfaction Versus Legal Adequacy in Small Claims Courts Narratives", 19 Law & Society Review 661.

Strawson, P. 1974. "Freedom and Resentment", em Freedom and Resentment, and other essays, Londres: Methuen & Co. LTD, pp. 1-25.

SÉRIE ANTROPOLOGIA
Últimos títulos publicados

256. CARVALHO, José Jorge de. Afro-Brazilian Music and Rituals. Part 1. From Traditional Genres to the Beginnings of Samba. 1999.

257. SEGATO, Rita Laura. El Vacío y su Frontera: La Búsqueda del Outro Lado en dos Textos Argentinos. 1999.

258. LITTLE, Paul E. Political Ecology as Ethnography: The Case of Ecuador’s Aguarico River Basin. 1999.

259. CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís R. Republican Rights and Nationalism: Collective Identities and Citizenship in Brazil and Quebec. 1999.

260. CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís R. Rhetoric, Resentment and the Demands for Recognition in Quebec. 1999.

261. CARVALHO, José Jorge de. O Olhar Etnográfico e a Voz Subalterna. 1999.

262. BOSKOVIC, Aleksandar. Virtual Balkans: Imagined Boundaries, Hyperreality and Playing Rooms. 1999.

263. PEIRANO, Mariza G.S. (Org.). Leituras de Weber. Textos de Luis Ferreira, Marcia Sprandell e Mônica Pechincha. 1999.

264. TAYLOR, Julie. Agency, Trauma, and Representation in the Face of State Violence: Argentina. 1999.

265. CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís R. Legalidade e Eticidade nas Pequenas Causas. 1999.

A lista completa dos títulos publicados pela Série Antropologia pode ser solicitada pelos interessados à Secretaria do: Departamento de Antropologia Instituto de Ciências Sociais Universidade de Brasília 70910-900 æ Brasília, DF Fone: (061) 348-2368 Fone/Fax: (061) 273-3264

Prof. Luís Roberto Cardoso de Oliveira
lcardoso[arroba]unb.br
UNB/PRONEX-NUAP



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