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O lugar (e em lugar) do método (página 2)

Luís Roberto Cardoso de Oliveira

 

Haveria muitos outros argumentos durkheimianos baseados em analogias com a biologia, como o que sustenta a independência do hábito frente a sua utilidade, mostrando que uma prática social, ou uma instituição, podem mudar de função sem que seja mudada sua natureza, ao mesmo tempo que pode continuar existindo pela simples força do hábito.

E, reconhece ainda, apoiando-se em seu forte biologismo, que há "ainda mais sobrevivências na sociedade do que nos organismo"; e conclui afirmando "ser uma proposição verdadeira tanto em sociologia quanto em biologia que o órgão é independente da função, isto é que, não obstante permanecendo o mesmo, ele pode servir a fins diferentes" (p.91). Em suma, não é difícil entender a razão da biologia ocupar tão plenamente o lugar da matemática ou da física como modelo de cientificidade. Não só pela presença intermitente, porém contínua, de Comte e de Spencer no discurso durkheimiano, como seus interlocutores mais presentes, mas também por ser a biologia uma ciência da vida, suficientemente já consolidada para servir de paradigma a uma sociologia ainda em processo de constituição.

Gostaria, agora, de voltar a nossa atenção para um problema que me parece ser dos mais interessantes no pensamento durkheimiano, uma vez que mostra uma nítida continuidade entre suas RMS e apistemologia clássica, seja ela racionalista ou empirista.

Quero me referir ao exorcismo metódico a que submete as prenoções que povoam todo pensamento, levando esse pensamento a distorções inadimissíveis à investigação científica.

Não só essa crítica às idéias preconcebidas, portanto "nem claras nem distintas", é um elemento basilar do cartesianismo, como vai encontrar em filósofos ditos empiristas como Bacon o seu desenvolvimento mais típico, marcador do objetivismo científico. Trata-se de se livrar de uma maneira de proceder que está na origem mesma de ciências como a própria física. Aponta Durkheim que Bacon, seguindo Aristóteles, entende que muitas noções como as que estão na base da alquimia frente à química, ou da astrologia frente à astronomia, não são mais do que notiones vulgares ou praenotiones. "São esses idola - diz Durkheim, valendo-se aqui de um termo de Bacon -, espécie de fantasmas que desfiguram o verdadeiro aspecto das coisas e que os tomamos, portanto, pelas coisas mesmas.(...) E se tem sido assim para as ciências naturais - continua Durkheim -, por uma razão mais forte deve ser o mesmo para a sociologia. (...) Ora - acrescenta o nosso autor -, é sobretudo em sociologia que essas prenoções, para retomar uma expressão de Bacon, estão em estado de dominar os espíritos e de se substituir às coisas" (p.18)6. E pode-se dizer que isso é especialmente importante numa disciplina como a sociologia pelo fato de que, segundo Durkheim, ela tem tratado quase exclusivamente de conceitos, não de coisas. E é aí que Durkheim vai identificar uma das maiores mazelas da sociologia anterior, pois nem mesmo Comte, que já havia reconhecido o caráter de coisas dos fenômenos sociais, não conseguiu escapar de tomar as idéias - e não as coisas -- como objeto de estudo. Exemplo disso estaria na concepção vulgar que Comte tinha da noção de humanidade e de seu desenvolvimento histórico. Podendo-se dizer o mesmo de Spencer que, mesmo abandonando o conceito de humanidade, o substitui pelo de sociedade como objeto de ciência, porém caindo no mesmo erro de Comte por fazer "desaparecer a coisas de que fala para por em seu lugar a prenoção" (RMS, P.21); isto é, tomando a idéia que possui de sociedade sem preliminarmente submetê-la, enquanto coisa social, à investigação metódica.

***

Vamos nos ater agora a algumas considerações sobre se é possível uma convivência da subjetividade e das prenoções no interior de uma sociologia que se pretenda moderna (e não necessariamente pós-moderna...) malgrado a crítica durkheimiana que recaiu sobre elas. Minha intenção aqui não é, naturalmente, rebater críticas do mesmo teor, pois afinal de contas elas já se encontram incorporadas naquilo que poderíamos considerar como o momento metódico não apenas da sociologia, mas das ciências sociais tomadas em seu conjunto. Nesse sentido não há que refutá-las, pois estão na base de um conjunto de disciplinas bem consolidadas e marcadas pelo predomínio do método. O que me anima abordar, nesta oportunidade, aqueles dois temas está no fato inquestionável da retomada - a bem dizer, tardia - de um ponto de vista instituido no século passado pela crítica romântica às ciências sociais positivas por haverem adotado as ciências naturais como referência paradigmática, a única capaz de conferir cientificidade a qualquer modalidade de conhecimento. Refiro-me à antinomia Naturwissenschaft/ Geisteswissenschaft estabelecida por Dilthey. Se bem que esse filósofo não tenha ido além do que estou chamando (inspirado em Ricoeur) de momento metódico, por sua preocupação em lograr a mesma objetividade alcançada pelas ciências naturais, os argumentos que sustentam aquela antinomia estabeleceram vigorosamente os limites entre um e outro tipo de ciência.

Lembremo-nos que todo esforço metódico de Durkheim se concentra na busca da explicação sociológica, conferindo a ela o que poderíamos chama de status nomológico, marcado pela busca de leis ou de regras, comum às ciências duras.7 E por explicação devemos entender, lato sensu, o estabelecimento de conexões causais e/ou funcionais capazes de serem traduzidas em proposições. Esse conhecimento proposicional, passa a ser, portanto, o atestado de cientificidade da sociologia ou de qualquer outra disiciplina das ciências sociais. Frente a essa forma de conceber o conhecimento, autores modernos como Gadamer - para citarmos um pensador que com maior radicalismo aborda essa questão - opõe a noção de compreensão (Verstaindnis; e de compreender, Verstehen), desenvolvendo em seuj notável livro, Verdade e Método (1960), uma crítica de inspiração heideggeriana à pretensão do método científico de monopolizar a busca da verdade. Verdade que seria alcançada supostamente pela via única da explicação metódica. E nessa explicação pela via do método, o que o nosso autor aponta como sendo uma confusão proporcionada pelos cultores da ciência seria a identificação da "verdade" com a "certeza". Eis como se manifesta Gadamer, antecipando-se em alguns anos ao que iria formular em seu Verdade e Método: "Methodos significa "caminho para ir em busca de algo". O metódico é poder percorrer de novo o caminho andado, e tal é o modo de proceder da ciência. Mas isso - continua Gadamer - supõe necessariamente uma restrição nas pretensões de alcançar a verdade. Se a verdade (veritas) supõe verificabilidade - em uma ou outra forma -, o critério que mede o conhecimento não é já sua verdade, senão sua certeza. - E Gadamer conclui seu argumento - Por isso o autêntico ethos da ciência moderna é, desde que Descartes formulara a clássica regra de certeza, que ela só admite como satisfazendo as condições de verdade o que satisfaz o ideal de certeza" "(Qué es la verdad?" [1957], apud Gadamer, 1992, p.54).8 A despeito dessa afirmação de Gadamer, que transcende a questão epistemológica propriamente dita, na medida em que envolve todas as dimensões da existência humana e não exclusivamente a da ciência, o que nos interessa no momento chamar a atenção é para a substituição do ideal de verdade (que enquanto tal sempre desempenhará um papel fundamental na busca do conhecimento, quer como idéia diretriz, quer como idéia organizadora dessa mesma busca), uma substituição por um outro ideal - o de certeza - absolutamente dependente de métodos! Não precisamos evocar o que todos nós aprendemos com e sobre o método: em suma, que ele "mensura" o que pode ser por ele "mensurado", excluindo, por via de conseqüência, tudo aquilo que não esteja previsto como "mensurável" (sendo que - não custa nada lembrar - sempre podemos substituir a idéia de mensuração pelas de descrição, avaliação ou, mesmo, explicação, de maneira a inscrevermos nas possibilidades de aplicação do método também critérios qualitativos).

Mas o que pode estar em lugar do método na busca de conhecimento? Vejam bem: não se trata de substituir o método em tudo, mas apenas saber o que pode estar em seu lugar quando - e somente quando - dele escaparem realidades tangíveis por qualquer outra modalidade de conhecimento que não seja metódica. O que quer dizer que não se trata igualmente de substituir a explicação pelas possibilidades abertas graças ao ato de compreender (Verstehen). Se não são certezas (e porque haveriam de ser?) o conhecimento obtido pela via da compreensão, que tipo de conhecimento é este? Na esteira da explicação ou da construção de proposições verificáveis pelo exercício do método, a compreensão não tem outra função que a de formular hipóteses sujeitas, sempre, à confirmação pelo conhecimento (verdade?) alcançável pelo via metódica, num cumprimento claro do ideário cartesiano.9 O que procurarei mostrar aqui, a despeito da importância do método e de suas conquistas ineludíveis na formulação de proposições verificáveis - e aqui prefiro me restringir à minha disciplina, a antropologia social, para dizer que nela temos alcançado esse mesmo desíderatum na construção de teorias de parentesco, por exemplo, - será precisamente o teor do exorcismo feito pelo pensamento hermenêutico às limitações impostas pelo cientismo às dimensões da subjetividade e das prenoções no processo de conhecimento obtido por nossa disciplina e por outras congêneres.

Comecemos pelas prenoções que, com Gadamer, passam a ser chamadas de préconceito (Vorhabe, Vorsicht e Vorgriff, onde a reiteração do prefixo vor - "pre" - comunica a idéia de antecipação, de algo previsto, se assim posso me exprimir). Suas reflexões sobre o problema dos preconceitos ou prejuízos são conduzidas de maneira bastante densa numa das seções mais interessantes de seu Verdade e Método, intitulada "Fundamentos para uma Teoria da Experiências Hermenêutica". Vamos dar a palavra a Gadamer: "Só este reconhecimento do carater essencialmente preconcebido de toda compreensão confere ao problema hermenêutico toda a agudeza de sua dimensão" (Gadamer, 1993, p.337).10 Mas que reconhecimento é este? precisamente aquele feito por Heidegger sobre o carater préestruturado do conhecimento. Essa pré-estruturação do conhecimento significa o envolvimento do sujeito conoscente e do objeto cognoscível no contexto do mundo da vida (Lebenswelt) ou, em outras palavras, significa que mais do que conhecermos nós reconhecemos aquilo que nós estamos (pre)parados para conhecer. Em termos antropológicos diríamos que no processo de endoculturação pessoal ou grupal nós recebemos um quadro de categorias culturais condicionadoras de nossas possibilidades de conhecer. Há, portanto, uma sorte de socialização antecipada por meio da qual se viabiliza nossa pre-compreensão.

Se isso é verdadeiro - e nada indica que não seja - então se resgata a noção de preconceito da esfera da subversão epistêmica a que foi lançada pelo Iluminismo. "Uma análise da história do conceito mostra que só na Ilustração adquire o conceito de prejuízo o matiz negativo que agora possui. Em si mesmo - esclarece-nos Gadamer - <<prejuízo>> quer dizer um juízo que se forma antes de sua validação definitiva de todos os momentos que são objetivamente determinantes. (...) Por isso em francês [e poderíamos dizer igualmente em português] <<préjudice>>, igual a <<praejudicium>>, significa também simplesmente prejuízo, desvantagem, dano. Não obstante, essa negação é apenas secundária, é a conseqüência negativa de uma validez positiva, o valor prejudicial de uma pre-decisão (...).

<<Prejuízo>> não significa pois em nenhum modo juízo falso, senão que está contido em seu conceito o que pode ser avaliado positivamente ou negativamente" (ibid). Daí, sentir-se Gadamer autorizado a falar em prejuízo ou preconceito positivo e negativo, legítimo e ilegítimo. A desqualificação de qualquer tipo de prejuízo no processo de cognição foi, portanto, a herança deixada pelo cientismo absoluto reinante na Ilustração.11

Exorcizado o fantasma das prenoções diante da inevitabilidade da presença dos prejuízos ou dos preconceitos, uma vez que eles são componentes constitutivos de um conhecimento antecipado, cabe verificar em que medida a questão da subjetividade passa a sofrer uma refração aos olhos da hermenêutica, através da qual suas limitações ou mesmo obstáculos no processo cognitivo são igualmente eliminados. E é precisamente Gadamer que, enfrentando a questão da intersubjetividade, nos esclarece sobre o lugar que a "compreensão intersubjetiva" ocupa na esfera da cognição, e isso de maneira inexorável! E não apenas no que diz respeito às ciências sociais, mas igualmente nas ciências da natureza.

Eis como se manifesta uma comentadora de Gadamer, professora de filosofia da Universidade de Yale, Gergia Warnke: "A virtude de Gadamer é a de ter revelado o reino da compreensão intersubjetiva que é pressuposta por qualquer <<ciência objetiva>> uma vez que cientistas também precisam chegar a um entendimento entre si sobre o sentido de termos, critérios para testar hipóteses e assim por diante" (Warnke, Gadamer: Hermeneutics, Tradition and Reason, Cambridge, UK: Polity Press, 1987, p. 117).

Gadamer mostra ainda que a tarefa hermenêutica de elucidar o sentido e facilitar a comunicação é insubstituível por qualquer outra modalidade artificial de linguagem (lógica, matemática, etc) que não seja a língua natural, própria do domínio da compreensão intersubjetiva, consensual. O que significa que na esfera da comunicação, inclusive naquela em que se comunicam cientistas de qualquer campo de conhecimento, soft ou hard, eles estão circunscritos à obediência de acordos tácitos ou explícitos, configurados em normas estandartizadas no seu próprio meio. Essas normas não seriam nem arbitrárias e muito menos subjetivas, pois são o resultado de uma tradição científica onde a experiência acumulada em termos de comunicação e de consenso entre cientistas foi capaz de instituilas (cf. Warnke, opus cit, p. 117).

Isso nos induz ao seguinte comentário: se a esfera da subjetividade mostrou-se ao longo da história das ciências (inclusive as sociais, como a sociologia e a antropologia social) passível de neutralização pelo método, já a esfera da intersubjetividade mostrou-se capaz de se impor com tal vigor no horizonte do conhecimento científico que não há como deixar de considerá-la como um fato (por certo epistêmico) intransponível. O homem de ciência, tal como o homem comum, têm de conviver com a realidade da compreensão intersubjetiva; ou, em outras palavras, tanto o cientista quanto o leigo se acham presos às suas determinações. Nesse sentido, ela seria de certo modo o equivalente, no domínio da atividade científica, do fenômeno da pre-estruturação do conhecimento descoberto pela fenomenologia heideggeriana. Se essa intersubjetividade é uma imposição dos fatos, então pode-se admitir sem muita dificuldade que os procedimentos nomológicos que conferem cientificidade à teoria social - e aqui sigo Anthony Giddens ("Hermeutics and Social Theory", in Hermeneutics: Questions and Prospects, [orgs. G. Schapiro & A. Sica] 1984, pp. 215-230) para me referir a qualquer produto gerado pelas ciências sociais - só o fazem para aqueles que persistem em ignorá-la. Estão marcados por um cientismo radical, comum ao horizonte neopositivista. Porém se nos detivermos apenas à questão da intersubjetividade no campo da sociologia e da antropologia social, veremos que com mais razão circunscrever a produção de conhecimento exclusivamente pelo exercício do método (como desejaria Durkheim, herdeiro da tradição cartesiana, como vimos), estaríamos ignorando o papel da compreensão intersubjetiva como preliminar, ou mesmo antecedente, a qualquer modalidade de conhecimento dito científico. Como podemos compatibilizar essa realidade vivida pela cognição - quando o método mostra suas limitações - com a legitimação do conhecimento alcançado pelas disciplinas sociológicas? (E aqui incluo a antropologia social).

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Retomemos o que falei no início desta exposição relativamente ao momento metódico, contrapondo-o ao momento não-metódico. Nessa direção é que as investigações de Ricoeur vão se revelar bastante sugestivas e devem ser evocadas aqui. Preliminarmente gostaria de recordar que em 1993 tive a oportunidade de participar nesta Universidade em um Seminário sobre "Ciência e Sociedade: A Crise dos Modelos" com uma conferência que intitulei "A Antropologia e a <<Crise>> dos modelos Explicativos", ocasião em que pude me valer de um texto de Ricoeur para equacionar a mesma questão do método, que agora retomo.12 É assim que, para bem esclarecer o que são esses dois momentos, escreve Ricoeu que "Sobre o plano epistemológico, primeiramente, diria que não há dois métodos, o método explicativo e o método compreensivo. Estritamente falando, só a explicação é metódica. A compreensão é, sobretudo, o momento não metódico que, nas ciências interpretativas, se compõe com o momento metódico da explicação. Este momento precede, acompanha, fecha e assim envolve a explicação. Em compensação, desenvolve analiticamente a compreensão. Este vínculo dialético entre explicar e compreender - conclui Ricoeur - tem por conseqüência uma relação muito complexas e paradoxal entre as ciências humanas e as ciências da natureza" (Ricoeur, 1986, p.181). Se na época da conferência à que me referi eu estava empenhado em mostrar a articulação entre a explicação e a compreensão no contexto daquilo que chamei de enxerto (ou la greffe, como diria o mesmo Ricouer) da hermenêutica na matriz disciplinar13 da antropologia no sentido de impor nela uma nova dinâmica e, com isso, revigorá-la; agora, nesta oportunidade, desejo unicamente sublinhar que o método não monopoliza - como desejariam aqueles influenciados pelo cientismo - a produção de conhecimento relativo à realidade social ou cultural.

Pois bem. Se existe um tipo de conhecimento que não se vale do método para ser alcançado, que conhecimento é este? Tenho procurado mostrar em diferentes oportunidades que a possibilidade de domesticação da realidade pelo método encontra seus limites naquilo que Ricoeur chama de excedente de significação (surcrot de sens). Isso quer dizer precisamente que o método na medida em que não consegue abrigar sob seus parâmetros toda a realidade socio-cultural, escapa-lhe algo cujo sentido ou significação o método não está (pre)determinado a dar conta. É este excedente de significação que somente um momento não-metódico pode apreender. Em minha disciplina esse momento não-metódico pode ser facilmente ilustrado pelo exercício da "observação participante", cujas informações dela resultantes povoam as monografias produzidas mercê do trabalho de campo. Quero chamar a atenção para o fato de que são exatamente essas informações as que agem na colagem dos dados no discurso, sejam esses dados qualitativos ou quantitativos, presentes na narrativa do antropólogo. Nesse sentido, monografias exemplares como as de Malinowski, de Evans-Pritchard ou de Curt Nimuendaju (este último pelo menos para a etnologia brasileira durante muito tempo um autor de monografias exemplares), conseguem se constituir em relatos dotados de grande poder de persuasão, por vezes acusados até de impressionismo literário. Sobre esse ponto, aliás, haveria muito a discutir, particularmente no que diz respeito aos problemas envolvidos na textualização de cultura ou de como inscrevê-la no discurso escrito. Pude examinar isso em um artigo, a ser publicado pela Revista de Antropologia da USP, intitulado "O Trabalho do Antropólogo: Olhar, Ouvir, Escrever", originalmente elaborado para a Aula Magna que ministrei na Unicamp em 1994.14 Na presente exposição gostaria unicamente de abordar uns poucos pontos que acredito servirem para encaminhar mais detidamente a questão central desta conferência.

O primeiro ponto a ser considerado é o de que tanto as ciências sociais quanto as ciências naturais estão irremediavelmente condicionadas pela pre-estruturalização do conhecimento descoberta por Heidegger, como vimos na argumentação de Gadamer e nos oportunos comentários de Georgia Warnke, de modo a não fazer mais sentido a tradicional e equivocada hierarquização entre elas, atribuindo às ciências duras um status superior ao das ciências moles. Não seria portanto por esse caminho que se poderia chegar a uma boa avaliação entre ambas modalidades de ciência. O caminho que à luz dos argumentos precedentes poderá ser seguido, cinge-se muito mais à questão da experimentação com a qual, efetivamente, as ciências sociais, voltadas para a observação não teriam condições de enfrentar. Mas isso seria um assunto para uma outra discussão, porém vale, pelo menos, registrá-lo. Ora, o caminho mais frutífero para desenvolvermos as preocupações aqui apresentadas seguramente não será pela via da oposição entre tipos de ciência, social e natural, nem mesmo por uma radicalização da oposição entre os momentos metódico e nãometódico na investigação sócio-cultural, senão por uma tentativa de elucidação da relação de complementariedade entre ambos os momentos.

Nesse sentido, as investigações epistemológicas de Ricoeur e de Apel têm se mostrado extremamente úteis! Elas nos conduzem a interessantes explorações a respeito da construção do conhecimento nas disciplinas sociais. Temos, assim, um segundo ponto a destacar, a saber, aquele que nos permite considerar que a proposta durkheimiana que faz das "representações coletivas" o alvo por excelência da investigação sociológica, pode ser invertida no sentido de considerar as comunidades de profissionais da disciplina, portanto, uma comunidade inter-pares, como detentora de uma intersubjetividade tal (uma sorte de "consciência coletiva"?), capaz de anular qualquer subjetivismo que a crítica mais positivista possa querer impor. Seria como passar de uma intersubjetividade constitutiva das representações coletivas, para uma outra, de outro teor, inerente à comunidade a que pertence o sujeito cognoscente. A relevância disto estaria no fato de se constatar no interior dessa comunidade de pares a instância de elaboração de critérios de veracidade (mais do que de verdades...) que se projetam finalmente nas metodologias instituidas. Os métodos instituidos pela comunidade de profissionais geram um campo intersubjetivo por meio do qual os resultados das investigações passam a ser considerados válidos ou não. Se são metodologias formais, os critérios popperianos de falsificação são perfeitamente adequados; se não, outros critérios devem ser aplicados, como os que se caracterizam - por exemplo - pelo "binômio "conjectura/validação", na forma como esse binômio expressa o famoso conceito de "circulo hermenêutico". Ouçamos mais uma vez Ricoeur: "Conjectura e validação estão numa relação circular, como uma abordagem subjetiva e outra objetiva do texto. Mas esse círculo não é um círculo vicioso". E mostrando que os procedimentos de validação e de invalidação são de certa maneira comparáveis ao critério popperiano de falseabilidade, esclarece-nos que "O papel da falsificação é assumido aqui pelo conflito de interpretações rivais. Uma interpretação - continua - não deve ser somente provável, mas mais provável que uma outra. Há critérios de superioridade relativa que podem ser facilmente derivados da lógica de probabilidade subjetiva" (Ricoeur, 1986, p. 202). E Ricoeur não nos diz, mas podemos inferir que o que ele chama de "lógica de probabilidade subjetiva" está, a rigor, legitimada por acordos intersubjetivos que tem lugar no interior de comunidades de comunicação e de argumentação inter-pares, nos termos formulados por Apel.15

Um terceiro ponto seria o da validação de resultados alcançáveis pela via nãometódica onde o papel tradicional da compreensão, como geradora de hipóteses ou conjecturas, passa a ter uma função de indiscutível valor cognitivo. É quando a interpretação explicativa, apoiada em dados obtidos pela via metódica, articula-se com a interpretação compreensiva, não-metódica, porém perfeitamente habilitada para alcançar resultados igualmente sujeitos à validação hermenêutica, marcada pelo conflito de interpretações mencionado há pouco. Isso significa que limitações ao papel da compreensão na esfera cognitiva, atribuindo a ela a função exclusiva de gerar hipóteses, em virtude das informações que logra obter o serem apenas por empatia - como querem autores como Michael Martin (1974, pp. 102-133) -, não se sustentam diante dos argumentos até aqui apresentados. Nesse sentido, espero haver deixado claro que a validação das observações construidas no interior das experiências vividas pelo pesquisador (tipicamente no exercício da pesquisa de campo) não tiram delas seu caráter eminentemente interpretativo-compreensivo; é o que as distingue, por sua vez, do conhecimento interpretativo-explicativo, característico das ciências nomológicas e, portanto, sujeitos à falseabilidade popperiana.

***** Creio que podemos concluir dizendo que já é tempo de deixarmos de opor sistematicamente, como vasos não comunicantes, a compreensão e a explicação, a primeira debitária da perspectiva hermenêutica, a segunda caudatária das ciências empíricoanalíticas (e não necessariamente positivistas ou, mesmo, neo-positivistas, como tem sido hábito caracterizá-las com o intuito de deslegitimá-las...). Em lugar de tomarmos ambas modalidades de conhecimento como incompatíveis, o que se pretendeu defender aqui foi, precisamente, a compatibilidade entre os dois modos de conhecer, preservando as duas instâncias em que se exercita a cognição: a metódica e a não-metódica. Durkheim nos mostrou pioneiramente para a sociologia o lugar do método na legitimação do conhecimento produzido por uma então nova ciência. Passado um século, essa mesma sociologia - e, com ela, sua irmã antropologia - somaram expressivos resultados legitimamente alcançados graças ao uso competente de métodos. E nada indica que esses métodos tenham de ceder lugar para investigações que os eliminem, por deles não necessitarem. Ao contrário, a instância metódica tende a continuar nutrindo a teoria social de evidências cada vez mais dependentes do aperfeiçoamento de metodologias; basta considerar, mesmo num rápido e superficial sobrevôo pela história da ciências sociais o quanto essas metodologias se sofisticaram! Por outro lado, vale também ressaltar, que a recente - ainda que tardia - reapropriação do ponto de vista hermenêutico pela epistemologia das disciplinas sócio-culturais permitiu exorcizar a ilusão da objetividade radical - a saber, o objetivismo -, revelando uma instância não-metódica, porém provedora de conhecimentos igualmente tangíveis, ainda que por critérios diversos que, por tanto, não tomem a certeza como norma absoluta.

Diante do que procurei expor à consideração dos colegas, o conflito entre partidários da compreensão hermenêutica e da explicação nomológica parece ser - em minha forma de ver - um conflito equivocado. Com referência à minha disciplina, a antropologia, a existência desse conflito está visível em uma copiosa bibliografia, especialmente produzida nos centros anglo-saxônicos, onde "tradicionalistas" e "pósmodernos" esgrimem seus argumentos ad nauseam! Gostaria de ilustrar isso com uma referência a um único autor - e, com isso, finalizo minha exposição. Trata-se de um professor da Universidade de New Hampshire, que num artigo publicado na revista inglesa Man, com o sugestivo título "Literary Anthropology and the Case against Science",16 classifica a "antropologia interpretativa" norte-americana, que se pretende herdeira da perspectiva hermenêutica, como sendo uma "antropologia literária", no que se oporia logicamente a uma antropologia verdadeiramente científica. A despeito do comprometimento explícito de Reyna com as ciências empírico-analíticas, suas restrições às críticas "pós-modernas" àquelas ciências não devem ser desconsideradas, uma vez que mostram que tais críticas, a rigor, não as atingem verdadeiramente. Isso significa que continua a haver um espaço próprio para os procedimentos analíticos, que deveriam ser melhor conhecidos da chamada crítica pós-moderna. E se esse autor, por seu lado, tem dificuldades em avaliar as amplas possibilidades da compreensão hermenêutica - como procurei mostrar seguindo Ricoeur e Apel -, isso é um fato que não deve impedir o exercício do diálogo inter-pares, i.e. no interior da ampla e diversificada comunidade de antropólogos (e/ou de cientistas sociais), organizada (ainda que não tão bem organizada...) em âmbito internacional. Ao contrário: deve incentivar esse diálogo, sobretudo após uma diminuição que espero venha a ocorrer relativamente à gama de malentendidos que a radicalização das respectivas posições marcaram o debate. Mas o importante é que já existe um diálogo, só faltando amadurecê-lo, de modo a escoimá-lo de posturas rígidas e dogmáticas. Penso que, a partir de reuniões regionais ou nacionais como esta em que estamos, ou internacionais realizadas com o objetivo de alcançar entendimentos em nível planetário, a sociologia - que um dia foi toda durkheimiana -, abra-se mais a esse debate que a antropologia vive atualmente, trazendo uma saudável tensão à sua prática de investigação tanto quanto à construção da teoria social.

Notas

1. Conferência de abertura do Colóquio "Durkheim: 100 Anos d'As Regras do Método Sociológico", realizado no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná, em Curitiba, nos dias 2 e 3 de Outubro de 1995.

2. Não é demais esclarecer que o termo racionalista (ou racionalismo) envolve um conceito menos extenso (logicamente falando) do que intelectualista (ou intelectualismo), uma vez que enquanto este abrange tipicamente o pensamento filosófico europeu continental (do século XVI ao XIX), aquele restringe-se aos intelectualistas mais conhecidos como racionalistas, i.e. herdeiros diretos de Descartes (como Leibniz ou mesmo Spinoza, por exemplo).

Todavia, o binômio me parece eloqüente para nominar uma tradição (conceito que uso no sentido gadameriano) em contraste ao pensamento filosófico típico anglo-saxão.

3. Trata-se do segundo capítulo de meu livro Sobre o Pensamento Antropológico (1988), originalmente publicado no Anuário Antropológico/81, pp. 125-146, com algumas incorreções.

4. Estou me valendo da décima primeira edição de Les Règles de la Méthode Sociologique, Paris: Presses Universitaires de France, 1949).

5. Esse realismo que Durkheim atribui aos filósofos significa que o real que existe é o da humanidade e são dos "atributos gerais da natureza humana que deriva toda evolução social" (p. 77). Quanto ao nominalismo dos historiadores (se bem que não de todos, como adverte o próprio Durkheim), significa que as sociedades constituem "individualidades hererogêneas, incomparáveis entre si", sendo "toda generalização quase impossível" (ibid).

6. A teoria dos ídolos ou dos erros do espírito, constante do Novum Organum de Bacon, aponta para quatro espécies de erros, que vale a pena rememorar aqui, ainda que sucintamente: os idola tribus que, por defeito do espírito, consiste numa sorte de inércia ou preguiça que nos leva a generalizar sem maiores cuidados; os idola specus, segundo o qual nos encontramos como que presos numa caverna (alusão ao mito da caverna de Platão), cingidos à inércia dos costumes e da educação; os idola fori ou ídolos da praça pública que concerne às palavras que falseiam nosso conceito das coisas; os idola theatri, originários do prestígio das teorias filosóficas, no interior das quais acabamos por ficar igualmente presos (cf. Émile Bréhier, História de la Filosofia, Tomo II, Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1948, pp. 48-49).

7. Cabe lembrar que esse status nomológico se impõe a Durkheim através das analogias que faz com as ciências duras de seu tempo, portanto bem antes do desenvolvimento da lingüística estrutural, por exemplo, disciplina soft onde seu herdeiro Lévi-Strauss vai se inspirar.

8. Cf. Verdad y Metodo II, Salamanca: Ediciones Sígueme, 1992, pp. 51-62.

9. Devo mencionar aqui, por sua posição caudatária ao cientismo prevalecente a tantos quantos pensam o conhecimento esclusivamente em termos Iluministas, o filósofo Michael Martin, em seu interessante artigo "Understanding and Participant Observation in cultural and Social Anthropology" (1974). Interessa-nos a argumentação de Martin por que ela se cinge especialmente à problemática de nossa disciplina. Nesse sentido, ver também meu artigo "A Dupla Interpretação na Antropologia" (1995), onde trato desse tema mais extensamente.

10. Edição consultada Verdad y Metodo I: Fundamentos de una hermenéutica filosófica (5a. ed) Salamanca": Ediciones Sígueme, 1993.

11. Na moderna história da ciência, autores como Thomas Khun se aproximam do ponto de vista hermenêutico ao considerarem as tradições científicas ou os paradigmas como verdadeiras antecipações do ato de conhecer. Tais paradigmas são também consistentes com a idéia wittegensteineana de "jogos de linguagem" que pode se dizer, com R. Howard (Roy J. Howard, Three Faces of Hermeneutics: Am Introduction to Current Theories of Understanding. Berkeley: University of California Press, 1982), que ela se insere numa sorte de "hermenêutica analítica".

12. Trata-se do o ensaio "Le modèle du text: l'action sensée considérée comme un texte, em Du texte à l'action": Essais d'hermeneutique, II, Paris: Seuil, 1986. Há também sua versão em inglês, "The Model of the Text: Meaningful Action Considered as a Text", em Interpretive Social Science: A Reader (Orgs. P. Rabinow & M. Sullivan), Berkley e Los Angeles: University of California Press, 1979.

13. Esse conceito de "matriz disciplinar", tomado numa primeira instância de Thomas Khun que o considera equivalente a "paradigma", cuidei de diferenciá-los de maneira a atribuir ao segundo um componente (paradigmático) do primeiro; em termos concretos, referindo-me à antropologia, temos que o convívio tenso (e historicamente desmontrável) dos paradigmas racionalistas, estrutural-funcionista, culturalistas e hermenêutico, criam um campo semântico que se articula como uma matriz disciplinar (cf. R. Cardoso de Oliveira, 1988, caps. de 1 a 4).

14. Cf. Aula Inaugural: Cursos de Graduação, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 1994, pp. 05-27.

15. O ponto de visto de Karl-Otto Apel está bem justificado em seu ensaio "La comunidad de comunicación como presupuesto trascendental de las ciencias sociales", em La Transformación de la Filosofia, tomo II, Madrid: Tauros Ediciones, 1985, pp. 209-249.

16. Cf. Man - The Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. 29, nº 3, 1994, pp. 555-581.

Prof. Luís Roberto Cardoso de Oliveira
lcardoso[arroba]unb.br
(Unicamp/UnB/CEPPAC)



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