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Da moralidade à eticidade via questôes de legitimidade e eqüidade (página 2)

Luís Roberto Cardoso de Oliveira

Para fundamentar o caráter necessário desta pressuposição, Habermas utiliza (a) o conceito de contradição performativa de Apel; e, (b) a discussão sobre a argumentação no contexto de sua "teoria da ação comunicativa". A idéia de contradição performativa é utilizada por Apel para refutar a absolutização do falibilismo no âmbito do racionalismo crítico e renova as possibilidades de uma estratégia de fundamentação não dedutiva das normas. Neste sentido, Habermas cita um texto bastante esclarecedor de Apel:

"Aquilo que não posso contestar sem cometer uma autocontradição atual e, ao mesmo tempo, não posso fundamentar dedutivamente sem um petitio principii lógico-formal pertence àquelas pressuposições pragmático-transcendentais da argumentação, que é preciso ter reconhecido desde sempre, caso o jogo de linguagem da argumentação deva conservar o seu sentido". (in Habermas, 1989: 104).

Ao permitir o desvelamento de pressuposições que, —a despeito do fato de não admitirem justificação lógico-dedutiva sem a formulação de uma petição de princípio—, não podem ser negadas sem que os interlocutores abram mão do sentido daquilo que estão dizendo (e/ou fazendo), Apel (1987) viabiliza uma saída para os impasses aparentemente insuperáveis do conhecido Trilema de Münchhausen que caracterizaria os esforços de justificação dedutiva da fundamentação filosófica.9

O exemplo utilizado por Apel para explicar o significado e as implicações de sua noção de contradição performativa é o processo de fundamentação do famoso "cogito, ergo sum" cartesiano, onde o autor argumenta que esta expressão não pode ser posta em dúvida sem que o sujeito da dúvida entre em contradição (Apel, 1987: 272-83). Isto é, ao expressar, num ato de fala, a dúvida sobre a minha própria existência (e.g., "eu duvido aqui e neste momento que eu exista") eu estaria ao mesmo tempo refutando o sentido ou significado do respectivo ato de fala. Pois, caracterizar-se-ia uma situação na qual "o componente proposicional contradiz o componente performativo do ato de fala expresso por esta sentença auto-referida" (Idem: 278). Depois de sustentar, recorrendo a Peirce, que toda dúvida supõe certezas, e de mostrar que o "insight" cartesiano não é passível de fundamentação por via dedutiva ou através da "introspecção de uma consciência solitária" (Ibidem: 279), Apel propõe uma versão pragmático-transcendental para o mesmo, através da qual a minha existência assim como a existência de um mundo da vida real e de uma comunidade de comunicação se apresentam como pressuposições necessárias e irrefutáveis da argumentação. Pressuposições sem as quais o jogo da argumentação não pode ter sentido.10

Da mesma forma, a articulação, a partir de uma perspectiva reconstrutivista, das pretensões de validade da fala com as pressuposições ontológicas (no sentido Heideggariano de um existencial) sobre a existência de três mundos, assim como é elaborada por Habermas em sua discussão sobre a relação entre modalidades de comunicação e a sua tipologia das ações sociais, constitui-se numa contribuição significativa para a sustentação da alternativa em pauta (Habermas, 1970a; 1970b; 1979; 1982 e 1984).11

Como se pode ver no Quadro abaixo, a cada tipo de ação social corresponde o predomínio de uma relação com o mundo e de uma orientação visando objetivos determinados, assim como de uma pretensão de validade caracterizada por um tema e por um ato de fala específico, configurando uma modalidade particular de comunicação. Neste contexto, gostaríamos de chamar a atenção para a singularidade da articulação entre a ação comunicativa e a modalidade argumentativa de comunicação, onde através da integração das três alternativas de relacionamento para com o mundo e da possibilidade de tematização sistemática (e eventualmente pontual) de cada uma das três pretensões de validade da fala, somadas a uma orientação voltada para o entendimento mútuo, viabiliza a realização do que Habermas chamou de interpretações racionais ou fundamentadas.12 A circunstância ideal para o desenvolvimento destas interpretações racionais seria aquela onde os atores pudessem se engajar numa situação discursiva, caracterizada por Habermas como uma situação:

"...removida de contextos de ação e da experiência e cuja estrutura nos assegura que as pretensões de validade implícitas em asserções, recomendações e 'warnings' são os objetos exclusivos da discussão..." (Habermas, 1975: 107-8)

Esboço da Tipologia de Ações de Habermas
E as Pretensões de Validade da Fala
*

*Este QUADRO foi retirado de minha monografia sobre pequenas causas nos EUA (L. Cardoso de Oliveira 1989:135).

¤Deixei de fora do QUADRO a pretensão de validade de compreensibilidade que tematiza a boa formação das expressões simbólicas, mas que não envolve nenhuma relação específica com o mundo ou com os tipos de ação.

De fato, a reconstrução das pretensões de validade da fala, somada à constatação, através do conceito de "contradição performativa", da existência de pressuposições de regras não rejeitáveis da argumentação em geral parece um argumento convincente quanto às acusações de etnocentrismo levantadas contra qualquer teoria moral cognitivista/universalista. Pois, ainda que a argumentação moral, —no sentido de um engajamento dos atores numa "situação discursiva" onde a validade mesmo de normas e princípios específicos é questionada—, possa não encontrar espaços devidamente institucionalizados em sociedades específicas, não me parece possível o desenvolvimento de qualquer espécie de vida social (ou de sociedade) onde as normas sociais se mantenham totalmente fora dos espaços de comunicação/argumentação nos quais os atores acabam se envolvendo no processo de coordenação de planos de ação comuns.13 Por outro lado, ao limitar o universo das normas morais àquelas com possibilidade de fundamentação de uma validade universal, a ética do discurso mantem, por vezes, o problema da eticidade a uma distância excessiva.

II) O Problema da Universalidade das Normas Morais e o Estudo da eticidade em Contextos Sociais Concretos

Quando disse, em minhas observações preliminares, que aparentemente a ética do Discurso teria conseguido superar, ao nível teórico, a distância (radical) entre a esfera da moralidade e o mundo da eticidade, estava me referindo às implicações da inserção da ética do Discurso de Habermas em sua teoria da ação comunicativa. Neste último trabalho, e inspirando-se em ensaios de Herbert Mead, Habermas argumenta de forma insofismável que o processo de individuação supõe, necessariamente, o envolvimento do indivíduo em processos de socialização (1987:5-43). Esta dependência do processo de formação da pessoa/indivíduo na interação intersubjetiva com os demais membros de sua comunidade (de origem), faz com que Habermas chame atenção para o caráter "quase constitutivo da insegurança e da fragilidade crônica da identidade" (1986: 20), e afirme que a moralidade atua exatamente no processo de suavização desta fragilidade, procurando dar conta de duas tarefas ao mesmo tempo: (1) "enfatizar a inviolabilidade do indivíduo através da postulação do respeito igual pela dignidade de todos...", e (2) "proteger a rede de relações intersubjetivas de reconhecimento mútuo através das quais os indivíduos sobrevivem como membros da comunidade..." (idem: 21). Neste sentido, estas duas tarefas complementares estariam ligadas a dois princípios fundamentais:

1. Justiça (Gerechtigkeit): "postula igualdade de respeito e de direitos para o indivíduo" ("no sentido moderno se refere à liberdade subjetiva da individualidade inalienável");

2. Solidariedade: "postula empatia e benevolência para o bem estar do próximo" ("Solidariedade se refere ao bem estar dos membros associados de uma comunidade que compartilham intersubjetivamente o mesmo mundo-vivido [lebenswelt]") (Ibidem: 21).

Ao privilegiar, em igualdade de condições, estes dois princípios constitutivos, a ética do Discurso estaria renovando o diálogo entre as duas tradições da filosofia moral (teorias do dever=princípio de justiça; teorias do bem comum=princípio de solidariedade) cuja unilateralidade teria sido implicitamente criticada por Hegel através do conceito de vida ética (Sittlichkeit), e que, assim, estaria encurtando a distância entre questões de moralidade e de eticidade.

"...O conceito Hegeliano de vida ética (Sittlichkeit) é uma crítica implícita das duas unilateralidades, uma sendo a imagem refletida da outra. Hegel se opõe à universalidade abstrata da justiça que se manifesta nas abordagens individualistas da idade moderna, no direito natural racional e na filosofia moral kantiana. Não menos vigorosa é sua oposição ao particularismo concreto do bem comum que permeia Aristóteles e São Tomás. A ética do discurso, por sua parte, pega esta aspiração Hegeliana básica —para resgatá-la (redimi-la) com meios Kantianos)." (Habermas, 1986: 22) [o grifo é meu].

Deste modo, Habermas argumenta que a ética do Discurso se encontra numa situação particularmente promissora para "derivar a substância de uma moral universalista" (Idem). Pois, se de um lado reconhece que as pressuposições gerais da argumentação só são atualizadas em discursos concretos, por outro assinala que a dinâmica destes discursos tem um potencial de transcendência que permite a incorporação de "sujeitos competentes para além de uma forma de vida particular" (Ibidem). Isto é, na medida em que estes discursos estão orientados, em última instância, para a avaliação da correção normativa dos atos e/ou posicionamentos que os atores assumem, uns em relação aos outros, na mutualidade característica das situações ou processos de interação social. Atos estes cujas justificativas têm uma pretensão de validade universal. Da mesma forma, a viabilização do enfrentamento de questões de eticidade a partir da ética do Discurso também estaria expressa na ampliação do conceito deontológico de justiça que, agora, absorveria "aqueles aspectos estruturais da vida boa/feliz (guten Lebens) que podem ser divorciados (dissociados) da totalidade concreta de uma forma de vida específica" (Habermas, 1986: 24). A propósito, é interessante notar que ao propor, inspirado em Habermas, um elenco de regras para controlar o bom desenvolvimento dos discursos práticos, Alexy inclui os "julgamentos de valor", ao lado dos "julgamentos de obrigação", como objeto privilegiado destes discursos (Alexy, 1990:151-90).

Seja como for, o fato do universo da moralidade estar restrito àquelas normas que podem manter uma pretensão de universalidade em termos absolutos, isto é, àquelas cuja validade não pode estar associada (subordinada) à nenhuma cultura, tradição, ou sociedade particular, a ética do Discurso tem que lançar mão de outros conceitos e ampliar um pouco os seus interesses se quiser compreender —ou dar subsídios para a compreensão— dos aspectos mais significativos de uma vida ética concreta; mesmo que mantenhamos um interesse estrito, como me parece apropriado, nos aspectos normativos (em oposição aos valorativos) da eticidade. Isto é, ainda que insistamos em manter como foco da moral e da eticidade questões que privilegiam o equacionamento de interesses e/ou direitos alternativos, e que só se constituem como tais no processo de articulação de relações sociais determinadas, em oposição ao esforço de fundamentação/justificação de fins ou de valores últimos. Em suma, é o caráter englobador da dimensão normativa da eticidade que gostaríamos de enfatizar aqui.

III) O Papel Mediador das Questões de Legitimidade e Eqüidade

O próprio Habermas assinala que as pretensões de validade da ética do Discurso não se limitam à esfera da moralidade, mas que englobariam o universo dos "discursos práticos" como um todo. Neste contexto, o autor tem em mente duas situações, as quais desempenham um papel paradigmático na delimitação do universo dos "Discursos práticos": (1) o caso das "normas de ação não-morais, cujo domínio de validade é delimitado social e espacio-temporalmente, [mas que seria sensato tomá-las] por objeto de um Discurso prático e submetê-las a um teste de universalização (relativamente ao círculo dos concernidos)" (Habermas, 1989: 85);14 e, (2) o caso de normas que não representam um interesse comum entre as pessoas concernidas, mas um compromisso entre interesses particulares e antagônicos, desde que o compromisso tenha se concretizado em condições que garantam o equilíbrio de poder entre as partes envolvidas, e que o caráter particularista dos interesses em jogo tenha sido estabelecido através de uma "discussão racional" (Idem:93-4; e Habermas, 1975: 111ss).15 Em ambos os casos pode-se dizer que as respectivas normas são legítimas apesar de não serem morais.16 Ainda que no caso do segundo exemplo a legitimidade da norma tenha sido estabelecida indiretamente, já que apenas os princípios que orientaram a discussão que desembocou num compromisso seriam fruto de um consenso.

Neste contexto, a preocupação com questões de legitimidade é fundamental na medida em que amplia significativamente o universo de aplicação dos Discursos práticos sem abrir mão das pretensões de validade das interpretações que são produto destes discursos, ainda que o poder de universalização das mesmas tenha que ser relativisado.

Deve-se chamar a atenção para o fato de que os Discursos práticos podem ser desenvolvidos tanto no caso da avaliação da validade das normas e/ou princípios éticos específico, como na avaliação de sistemas políticos ou de decisões jurídico-legais em sentido amplo.

Em outro lugar, discuti a relatividade do poder de universalização das interpretações geradas no âmbito dos Discursos práticos, assinalando que esta dependeria da amplitude social e da dimensão significativa do problema a ser analisado, onde os principais fatores restritivos seriam "a delimitação da 'comunidade de comunicação' que estivesse sendo de fato ou virtualmente afetada (e afetando a) pela interpretação respectiva e,..., o grau de abstração no qual o problema estivesse sendo tratado" (L. Cardoso de Oliveira, 1989: 124). Isto é, o grau de "universalidade potencial de interpretações específicas é sempre historicamente circunscrito, e depende da adequação de sua aplicação à problemas particulares" (Idem).

De qualquer forma, não custa lembrar que no que concerne às questões de legitimidade a simples constatação da vigência social (validade factual/Geltung) de uma norma é um passo necessário mas não suficiente. Assim como no caso das normas morais, as normas legítimas têm que se mostrar dignas de tal atributo:

"...o comportamento de uma ator é subjetivamente correto (no sentido de "normative rightness") se ele sinceramente acredita estar seguindo uma norma de ação; seu comportamento é objetivamente correto se a norma em questão é, de fato, tida como justificada entre àqueles para quem ela se aplica...

"De acordo com as pressuposições deste modelo de ação, entretanto, um ator só pode cumprir/seguir ou violar normas que ele subjetivamente acredita como sendo válidas; e com este reconhecimento dos princípios de validade normativa ele se expõe à um julgamento objetivo. Ele desafia o interprete a examinar não apenas a atualidade da conformidade normativa de uma ação, ou a existência factual da norma em questão, mas a correção da norma em si mesma..." (Habermas, 1984: 104).

Deste modo, já que os próprios atores demandam o reconhecimento da validade (Gültigkeit) universal (no sentido relativisado que discutimos acima) das normas nas quais acreditam, o pesquisador tem que (assumindo a posição do participante virtual) aceitar o desafio que lhe é feito se quiser entender o significado mesmo da norma em questão.

Por outro lado, embora acredite que Habermas esteja correto quanto à delimitação do universo dos Discursos práticos, penso que sua ênfase na referência à normas como objeto privilegiado na investigação de problemas de eticidade e legitimidade é pouco promissora. Tanto no que concerne à avaliação de sistemas jurídico-políticos, como em relação à compreensão do significado e da validade das normas propriamente ditas. Mesmo levando-se em consideração que o autor não tem em mente o sentido literal das normas, e que sua perspectiva pretende levar em conta o campo semântico-pragmático de aplicação das mesmas.

Meu problema com esta estratégia é de duas ordens: (1) a distância potencial entre as normas mais abstratas e as situações substantivas ordenadas por elas, faz com que o equacionamento destas duas dimensões da questão muitas vezes imponha o enfrentamento de uma longa cadeia de mediações interpretativas, sem a qual o acesso ao significado social objetivo das respectivas normas torna-se extremamente difícil, e através da qual o conteúdo destas mesmas normas torna-se, com freqüência, excessivamente difuso; (2) no contexto da compreensão das normas de sociedades distintas/estranhas ao pesquisador, especialmente daquelas ditas tribais ou "primitivas", mas também no caso das normas vigentes nos domínios sociais menos formalizados das sociedades ocidentais, é praticamente impossível desenvolver um entendimento adequado destas normas sem uma dedicação mais radical ao estudo dos processos de aplicação das mesmas em casos concretos. Casos que pela via da investigação etnográfica melhor poderiam ser descritos.

Neste sentido, e com o objetivo de superar estas dificuldades, me propus a avaliar a fecundidade do estudo de problemas de legitimidade através de uma ênfase em questões de aplicação normativa (1989: 126-ss e 1992b:40ss), apoiado na análise de casos concretos, isto é, de situações de litígio, no âmbito de um Juizado de Pequenas Causas. Inspirado nas reflexões de Habermas quanto à pretensão de validez normativa, sugeri, então, uma radicalização da analogia entre problemas de legitimidade e de compreensão (verstehen), onde o estudo do primeiro deixa de privilegiar a análise de normas para enfatizar a análise de interpretações. Neste contexto, a avaliação da eqüidade das decisões desempenharia um papel central. Entre outras coisas, mostrei como valores últimos (ultimate values) e princípios (ou normas) podem ser indiretamente questionados (desafiados), —sem provocar reações intempestivas por parte do interlocutor—, através da discussão de instâncias específicas de aplicação normativa, quando as partes envolvidas aceitam e/ou recusam interpretações alternativas da disputa. Como procurei argumentar numa avaliação crítica da literatura em antropologia jurídica, questões de legitimidade e eqüidade (fairness) são constitutivas do universo do direito, no sentido mais amplo possível, e toda decisão judicial tem uma pretensão de eqüidade (L. Cardoso de Oliveira, 1989: in passim).

Da mesma forma, chamei atenção para o fato de que, ao contrário do que ocorre com a relação entre normas específicas e situações típico-ideais de aplicação das mesmas, a eqüidade de uma decisão (ou acordo) determinada, assim como a validade da interpretação que a sustenta, tem uma pretensão de universalidade. Isto é, "a pretensão de eqüidade da interpretação e/ou da decisão teria que, em princípio, satisfazer a qualquer pessoa (independentemente de sua origem cultural) que tivesse tido acesso irrestrito às peculiaridades do caso" (L. Cardoso de Oliveira, 1992b: 41). E insisti no fato de que, neste contexto, o conceito de universalidade não implicaria necessariamente na idéia de exclusividade; uma interpretação ou decisão equânime é sempre potencialmente apenas uma entre outras. Contudo, numa comparação com uma decisão arbitrária, uma decisão equânime tem que sustentar sua pretensão de universalidade contra o caráter particularista da outra (idem).

Mas, para tornar claro o meu equacionamento de questões de aplicação normativa na esfera das decisões (ou acordos) judiciais, faz-se necessário indicar as três dimensões contextuais que desempenham um papel importante na compreensão de qualquer disputa/conflito e que, de acordo com minha proposta, o pesquisador tem que levar em consideração em sua análise: (1) o contexto sócio-cultural abrangente, que traz à tona o significado geral das coisas no âmbito de um universo específico simbolicamente préestruturado; (2) o contexto situacional, que traz à tona o significado das ações no âmbito de situações e eventos típico-ideais; e, (3) o contexto do caso específico que traz à tona o problema da adequação ou propriedade dos significados tematizados nas duas primeiras dimensões contextuais para a interpretação ou entendimento de uma disputa particular (L. Cardoso de Oliveira, 1989:185-6). Se para o nativo ou sujeito da ação a consideração das relações entre estas três dimensões contextuais é importante para evitar interpretações reificadas e decisões injustas, para o cientista social a consideração do sentido interativo destas dimensões contextuais possibilita uma melhor compreensão das disputas, na medida em que evita a absolutização dos direitos, cujo caráter relacional é fundamental para a ordenação das relações sociais.

Por outro lado, a investigação de questões de legitimidade não se encerra neste ponto; na avaliação da eqüidade/legitimidade das decisões judiciais e de suas respectivas interpretações. O significado destas decisões tem que ser examinado no contexto do sistema social abrangente, para que na eventualidade de decisões arbitrárias (ou mal justificadas) possa-se diferenciar entre manifestações isoladas do evento, e "características endêmicas do sistema" (L. Cardoso de Oliveira, 1992: 42).

"...Se, no nível de decisões particulares, a reificação de regras específicas (normas, princípios, ou valores) é um sinal de aplicação-normativa inadequada e de iniqüidade, a ocorrência freqüente de decisões reificadas sobre as mesmas questões e nas mesmas circunstâncias indica a presença de um poder ilegítimo, o qual só pode se afirmar através da utilização da força. Quando a ocorrência destas decisões pode ser padronizada, nos defrontamos com processos que gostaria de denominar como tendências estruturais à reificação (TEaR)..." (Idem: 42).

A identificação destas tendências se constitui num passo importante na avaliação de questões de legitimidade.

Entretanto, a investigação sistemática destas tendências (TEaR) não foi privilegiada no meu estudo sobre Pequenas Causas nos EUA. Neste empreendimento, partindo de uma preocupação com questões de eqüidade enquanto dimensão constitutiva dos Discursos práticos em geral, procuro discutir o significado das decisões judiciais e dos acordos mediados no âmbito da corte. Deste modo, acredito ter tido acesso a aspectos significativos da "vida ética" local (americana), especialmente no que se refere à importância de categorias/valores como: fairness, direitos (rights), cidadania, e indivíduo.

Da mesma forma, pude fazer indagações interessantes sobre o papel que estas categorias/valores desempenham na articulação das causas e nos processos de resolução das disputas.

Além disto, consegui captar alguns aspectos que acredito fundamentais do processo de resolução das pequenas causas que até então não haviam sido devidamente analisados na literatura. Deste modo, argumento que existem certos casos onde as decisões judiciais soam inadequadas porque, —devido às restrições do modo judicial de avaliar a responsabilidade jurídica—, são produto de interpretações equivocadas para as respectivas disputas. Por outro lado, minha discussão sobre as seções de mediação sugere uma distinção importante entre dois tipos de acordos mediados: (1) acordos equânimes, e (2) compromissos barganhados. Enquanto o primeiro tipo de acordo revela a satisfação dos litigantes com relação às suas preocupações com questões de eqüidade, e demonstra um alto grau de "responsiveness" (consideração, resposta, reconhecimento, satisfação) às demandas dos litigantes quanto a problemas de correção (normativa), os compromissos barganhados são caracterizados pela ênfase numa orientação mais estratégica onde a principal preocupação das partes está na obtenção do maior ganho possível dentro das circunstâncias, ou, pelo menos, na consecução de um acordo minimamente razoável na balança das perdas e ganhos potenciais. Neste contexto, como espero deixar claro na discussão dos exemplos que se seguem, argumento que o grau de eqüidade (legitimidade) relativa obtida no âmbito dos acordos equânimes é significativamente maior do que aquele obtido no caso dos compromissos barganhados.

IV) Acordos Equânimes e Compromissos Barganhados

Uma das características interessantes do processo de resolução de disputas, —no âmbito das pequenas causas—, através das sessões de mediação é que, apesar da orientação dos procedimentos desestimular discussões sobre a responsabilidade das partes no evento ou situação que dá origem à disputa, as causas que são "resolvidas" de maneira mais satisfatória são exatamente aquelas nas quais as partes conseguem vencer as resistências do processo e têm atendidas suas demandas por um enfrentamento mais detido desta questão.

Isto é, na medida em que este tipo de solução não pode prescindir de uma melhor compreensão do acontecimento que detonou a disputa em pauta. Além da conexão entre questões de ordem normativa e cognitiva, que fica bastante clara na análise destas disputas, é importante notar que uma das grandes motivações das partes ao longo do processo, —ao lado da aposta na reparação dos direitos supostamente agredidos e da recuperação do eventual prejuízo financeiro que lhes teria sido imposto—, está na crença na orientação do sistema jurídico-legal em direção à produção de soluções imparciais (ou justas). Tal situação é ilustrativa de pelo menos dois aspectos centrais dos processos institucionalizados de resolução de disputas nas sociedades modernas: (a) a identidade relativa entre as intuições morais das partes (dos atores) e aquelas elaboradas pelos filósofos que definem o ponto de vista moral como o ponto de vista da imparcialidade; e, (b) apesar do distanciamento progressivo entre as esferas do moral e do legal na modernidade, este último é, sem dúvida nenhuma, o espaço privilegiado de legitimação do ponto de vista moral na contemporaneidade.17 Um terceiro aspecto que seria particularmente relevante para a compreensão da mediação nas pequenas causas é a conjugação de normas e valores no equacionamento das disputas, sem que a dimensão normativa perca seu caráter englobador (e predominante) na definição de uma solução para o conflito entre as partes.

A seguir, vou discutir de maneira sucinta duas causas "resolvidas" através de mediação, as quais trazem à luz todas as principais características do processo mencionadas no parágrafo anterior, e permitem uma visualização mais nítida do potencial ou da fecundidade de minha proposta de articulação entre as propostas teórico-filosóficas da ética do Discurso e o estudo/análise empírica de eticidades concretas, o que vale dizer, de uma efetiva etnografia das mesmas. Para facilitar a argumentação, apresentarei inicialmente uma causa cujo desfecho ilustra a efetivação de um compromisso barganhado, ainda que as manifestações das partes ao final do processo dêem a impressão de que elas teriam conseguido uma "solução" plenamente satisfatória. A especificidade dos acordos equânimes ficará clara na discussão da segunda causa. As duas causas foram "observadas" e acompanhadas no Juizado de Pequenas Causas de Cambridge, Massachusetts, nos EUA, em 1985.

"O CASO DO CONGELADOR DANIFICADO"

O autor (A) da causa estava processando o querelado (Q), uma companhia de mudança, por danos causados a um congelador transportado pela respectiva companhia entre dois empreendimentos pertencentes a A. Q já havia transportado outro congelador para A no mês anterior e, como A havia ficado satisfeito com a primeira experiência, decidiu contratar a mesma companhia outra vez. Contudo, segundo A, nesta última vez a empresa não teria feito um bom trabalho. A começar pela acomodação do congelador no caminhão, que teria sido colocado na horizontal, apoiado em uma de suas laterais, contra as recomendações da indústria que fabrica estes equipamentos. Isto teria feito com que o compressor tivesse se deslocado contra a parede interna do congelador, furando o condensador, e provocando o vazamento do fluído do congelador. Deste modo, o compressor teria ficado irremediavelmente danificado. Além disto, quando os transportadores chegaram no local de destino do congelador, tiveram dificuldades para transportálo pela escada do prédio, fazendo com que o congelador ganhasse vários arranhões nas laterais e um grande amassado num dos cantos da frente. Agora, A queria ser reembolsado pelas perdas (pelo prejuízo) e estava reivindicando uma indenização no valor de US$ 1.392,00 dólares: US$ 891,73 que teriam sido gastos com os reparos efetivamente feitos, incluindo a substituição do compressor; seis meses de juros a taxa de 1,5% por mês, totalizando US$ 80,27, correspondente ao período de tempo que se passou entre o dia em que A pagou pelos reparos e a data em que ele deu entrada no processo; mais US$ 400,00 estimados pelo mecânico no orçamento do eventual concerto do amassado. Q não estava contestando a responsabilidade sobre os estragos, mas estava questionando o valor da demanda (do dinheiro devido). As partes acabaram chegando a um acordo no valor de US$ 746,00, para ser pago em duas prestações dentro de um mês.18

Na realidade, embora Q não contestasse completamente a responsabilidade sobre os estragos, disputava a extensão da mesma. Pois, argumentava ele, o congelador poderia ter sido melhor preparado por A para a mudança, como teria sido feito com o primeiro aparelho transportado pela companhia. Na mesma direção, Q achava que não devia arcar sozinho com o custo total da troca de compressor na medida em que, sendo a principal peça do congelador, sua colocação teria aumentado significativamente a vida útil futura do equipamento. Q também estava questionando a necessidade de pagar pelas duas visitas do técnico que realizou o concerto, já que a segunda visita só teria acontecido quando ficou comprovada a insuficiência dos reparos feitos no condensador para garantir que o congelador voltasse a funcionar normalmente. Isto é, só após a realização da primeira visita teria sido detectada a necessidade de trocar o compressor e, segundo Q, o problema poderia ter sido imediatamente diagnosticado, evitando-se assim uma nova visita. De resto, quando ficou esclarecido que o cálculo dos juros incluídos na causa tinha tomado por base o padrão estabelecido para a cobrança de dívidas de cartões de crédito, Q afirmou que aceitaria a demanda desde que ficasse bem caracterizada sua responsabilidade pelos prejuízos sofridos por A. Entretanto, Q disputava a razoabilidade da realização do serviço de recuperação do amassado provocado na parte frontal do congelador, pois o custo do concerto seria muito maior que o valor agregado ao equipamento. Ou seja, o custo deste concerto jamais seria recuperado com a eventual venda do congelador no futuro.

Conforme Q ia listando suas divergências com as demandas formuladas por A, este ia manifestando, de maneira mais ou menos explícita, sua posição frente aos contraargumentos apresentados pela defesa. Deste modo, A não encontrou dificuldades para indicar as contradições do discurso de Q, —sem que este as contestasse—, em relação à responsabilidade pela preparação do congelador, com o objetivo de evitar os problemas ocorridos na mudança. Por outro lado, A também não teve dificuldades em aceitar as ponderações de Q quanto à divisão dos custos com a compra do novo compressor, e concordou que, ao invés de concertar o amassado na frente do congelador, seria mais adequado receber uma indenização em dinheiro que cobrisse a desvalorização sofrida pelo aparelho devido ao incidente. De qualquer forma, ainda que para as partes concluírem o acordo nos termos indicados acima (ver resumo do caso) o mediador tivesse que fazer uso de reuniões individualizadas com cada uma das partes, o processo de negociação se deu de maneira relativamente tranqüila e o resultado pode ser considerado satisfatório. Neste contexto devo dizer que, enquanto o mediador redigia os termos definitivos do acordo, as partes trocavam impressões e faziam piadas sobre as audiências judiciais que haviam assistido antes de serem chamados para a sessão de mediação, num ambiente de grande cordialidade. Todavia, há um aspecto importante do acordo que ficou aquém da expectativa de A, no que concerne a reparação de direitos que não se esgotam no plano jurídico-formal da disputa,19 fazendo com que a solução mediada tivesse que ser classificada como compromisso barganhado. Estes direitos, que não foram devidamente considerados durante o processo de mediação, não podem ser totalmente dissociados de sua dimensão ético-moral sem que sejam completamente descaracterizados.

Estou me referindo à discussão sobre o significado e a fundamentação normativa da demanda relativa a cobrança de juros, em vista da demora em receber a indenização pelos reparos feitos no congelador. Assim como boa parte dos ítens que compunham o conjunto de demandas arroladas na causa formalizada por A, o valor inicialmente estabelecido a guisa de juros foi reduzido à metade (US$ 40,13) durante as negociações, e o problema não se encontra aí. De fato, as restrições que faço à negociação deste ítem do acordo não têm muita relação com o montante do valor finalmente definido para os juros, mas sim com o conteúdo simbólico expresso ou embutido neste valor, o qual contém déficits de significado absolutamente relevantes no que concerne às demandas de correção normativa que motivaram a formalização da causa.

Neste sentido, é interessante notar que, enquanto na justificativa apresentada por A a Q para a cobrança de juros chamava atenção a ênfase dada à perda financeira de A, — que só agora estaria sendo reembolsado pelo concerto dos danos provocados por Q—, na conversa privada com o mediador a perda financeira era relativizada por A, ao afirmar que a cobrança de juros "era mais uma questão de fundo emocional", em resposta à falta de atenção de Q para com os vários telefonemas e cartas enviadas por A, na tentativa de negociar um acordo que dispensasse a formalização de um processo jurídico. Um pouco mais adiante, ao reafirmar sua disposição em reduzir o valor correspondente aos juros, A insiste que, não obstante isto, "seria bom que eles [os representantes da companhia] não fossem recompensados por ignorar as pessoas". Aliás, o fato de A aceitar sem problemas a redução no valor dos juros, devido mesmo a sua dificuldade em atribuir maior relevância à dimensão financeira deste ítem da causa, mas não admitir em hipótese alguma a sua eliminação do acordo, fortalece a idéia de que a falta de consideração da companhia em relação às suas reclamações seria, na realidade, a agressão que do seu ponto de vista não poderia ficar sem reparação.

Ao mesmo tempo que estas manifestações de A indicam a importância por ele atribuída à desconsideração de Q em relação a sua pessoa (e aos seus direitos de cidadão), que aparece como a principal motivação da cobrança de juros, sugere também uma dificuldade especial em articular um discurso que dê sentido à demanda enquanto reparação de um direito. Isto é, na medida em que sua transformação literal (sem qualquer justificativa específica) em perda financeira não permite nem mesmo o reconhecimento do direito agredido. Assim como sua identificação como problema emocional enfatiza a dimensão psicológica da questão, a qual reforça exclusivamente o aspecto subjetivo da experiência, inviabilizando a apreensão da dimensão normativa do fenômeno e, portanto, a reparação do direito de fato agredido.

É verdade que as partes envolvidas nesta disputa não estavam muito motivadas para discutir os "méritos" da causa, e isto contribuiu para a definição dos rumos tomados pelo processo de negociação que levou ao acordo. Seja em virtude da ausência de grandes divergências quanto a responsabilização dos danos sofridos por A, seja devido a preocupação deste em relação a recuperação do prejuízo financeiro decorrente dos concertos realizados no congelador, a atitude das partes revelava uma priorização das estratégias de maximização de ganhos (ou de minimização de perdas) em oposição a uma avaliação mais criteriosa dos direitos eventualmente agredidos. De qualquer forma, o fato de A não ter conseguido comunicar adequadamente sua demanda de reparação das agressões que lhe haviam sido impostas por Q, —ao não levar em consideração suas reclamações anteriores à formalização da causa—, não permitiu um melhor tratamento da questão durante a sessão de mediação, e nem mesmo fez com que Q percebesse o caráter agressivo de sua atitude. Como assinalei acima, apesar desta atitude de Q ter sido abertamente criticada por A no início da sessão, o aspecto então enfatizado foi o agravamento da perda financeira expressa na cobrança de juros. Nestas circunstâncias, os direitos infringidos não poderiam ser mais que, na melhor das hipóteses, apenas parcialmente reparados. Pois, sem que as partes compartilhem explicitamente o reconhecimento do problema, este só pode ser resolvido de forma unilateral e potencialmente ambígua. Quando este reconhecimento não ocorre, a indenização eventualmente negociada não tem como absorver (ou expressar) o significado normativo cobrado nas demandas das partes, e não pode trazer consigo a força revigoradora da afirmação de cidadania e de respeito/consideração à pessoa do indivíduo agredido, que só o reconhecimento público da importância ou do merecimento dos respectivos direitos pode viabilizar. Como veremos, a discussão dos direitos das partes é melhor equacionada no caso abaixo, que se constitui num bom exemplo de acordo equânime.

"O CASO DO REFRIGERADOR SUSPEITO"

Este é um caso no qual os autores (A1 e A2) estavam processando o querelado (Q) por US$ 40,00, somados aos custos da causa, para recuperar os prejuízos sofridos numa transação comercial com Q, a qual deveria ser formalmente desfeita sob a alegação de que Q teria intencionalmente distorcido as informações sobre o produto comprado por A1 e A2. Os autores dividiam um apartamento e haviam comprado um refrigerador GE de segunda mão na loja de Q, com base na estimativa deste último de que se tratava de um aparelho de 6 para 8 anos de idade. Mas, quando o refrigerador foi entregue, os compradores checaram sua idade com o fabricante e descobriram que o aparelho tinha, na realidade, 13 anos de idade. Neste momento os autores fizeram, sem sucesso, uma primeira tentativa de devolver o refrigerador para Q e mandaram cancelar o cheque de US$ 250,00 que haviam lhe dado como pagamento. Os US$ 40,00 pedidos como indenização pelos danos sofridos se dividem da seguinte maneira: US$ 25,00 que haviam sido pagos inicialmente como depósito para bancar os custos com o transporte/entrega do refrigerador, US$ 10,00 para cobrir a taxa que o banco cobrou pelo cancelamento do cheque, e US$ 5,00 que os autores teriam gasto enviando cartas "certificadas", com comprovação de recebimento, ao querelado e ao Serviço de Proteção ao Consumidor local. Além de demandar este valor em dinheiro, os autores também queriam que Q fosse apanhar o refrigerador indesejado no apartamento. Q estava negando as alegações de que teria distorcido intencionalmente as informações, mas estava disposto a desfazer a transação, com tanto que os autores lhe pagassem outros US$ 25,00 para cobrir seus custos com o transporte do refrigerador a ser apanhado no apartamento dos autores. As partes acabaram chegando a um acordo no valor de US$ 20,00, com o compromisso de que Q pegaria o refrigerador sem cobrar nada.

Diferentemente da situação anterior, as partes envolvidas no "Caso do Refrigerador Suspeito" tinham como principal interesse o esclarecimento do "mérito" da disputa e a afirmação ou reparação dos direitos eventualmente atingidos. Embora este interesse quase nunca deixe de estar presente em Pequenas Causas, e apareça com força em boa parte dos casos, se mostra particularmente importante nas causas, como esta, onde o valor monetário da disputa não justificaria a formalização da demanda. Pois, além da "chateação" de passar uma manhã (e as vezes parte da tarde) no Juizado, o custo das horas não trabalhadas, somado aos gastos com transporte, supera com freqüência os US$ 40,00 demandados no caso em pauta.20 De qualquer forma, ao lado desta preocupação com o equacionamento dos direitos, o caso também se caracteriza por uma forte divergência entre as partes quanto ao significado dos eventos que provocaram o conflito inicial e seus desdobramentos.

De fato, se a descoberta do descompasso entre as informações do querelado e do fabricante sobre a idade do refrigerador fez com que os autores se sentissem imediatamente agredidos, pois do seu ponto de vista não se tratava apenas de um descontentamento com o produto mas de um ato de falsa representação da parte de Q, que os teria enganado, o querelado também tomou a primeira tentativa dos autores em desfazer o negócio como uma ofensa. Apesar da transação ter sido realizada com A1, que havia visitado a loja de Q sozinho, foi A2 que telefonou para Q demandando a anulação do negócio sob a alegação de falsa representação.

Além de não ter gostado da alegação/acusação feita por A2, cuja legitimidade como parte interessada na transação era questionada por Q, na medida em que não havia participado da negociação que envolveu a concretização do negócio, Q indicou ter ficado irritado com A2 quando este mencionou, durante o telefonema, que o esforço feito na verificação da idade do refrigerador havia sido provocado pela identificação de um barulho estranho no funcionamento do eletro-doméstico. Sabendo que A2 não tinha qualquer conhecimento técnico sobre refrigeração, e já tendo sido "acusado" de falsa representação, Q recebeu a afirmação de A2 como um agravante significativo ao que via como alegações irresponsáveis do interlocutor. Não só por causa do contexto em que foi feita a afirmação mas, também, por se sentir indevidamente questionado em sua competência enquanto técnico em refrigeração, que discordava radicalmente do diagnóstico "precipitado" de A2.

Isto é, para não falar nada sobre a demora em desistir do negócio. Pois, embora o telefonema tenha sido feito poucas horas após a entrega do aparelho, como o negócio havia sido fechado três dias antes, Q acreditava que a verificação da idade do refrigerador com o fabricante poderia ter sido feita antes, evitando-se assim o desperdício de tempo e dinheiro com a realização da entrega.21

O principal argumento de Q para se defender da acusação de falsa representação era o fato de que, além de ter insistido com A1 que a idade por ele atribuída ao refrigerador era fruto de uma suposição imprecisa ("um chute"), não havia se preocupado, — diferentemente dos autores—, em identificar a idade cronológica do aparelho. Segundo ele, no mercado de comercialização de refrigeradores usados o importante não seria a idade cronológica do equipamento, mas sim sua longevidade prospectiva. Como as condições do refrigerador negociado revelavam uma perspectiva de vida útil equivalente a de um aparelho com seis ou oito anos de idade, ele havia sido classificado nesta faixa etária. Por outro lado, a relativização da idade cronológica dos refrigeradores de segunda mão seria particularmente radical no caso dos aparelhos do tipo e marca do refrigerador negociado, pois o fabricante não teria introduzido qualquer modificação neste modelo durante os últimos quinze anos.22

Contudo, o clima dentro do qual as negociações para a dissolução do negócio se desenvolveram foi totalmente desfavorável ao esclarecimento das diferenças de perspectiva e dos eventuais mal-ententidos, os quais foram se tornando cada vez mais fortes e irritantes do ponto de vista das partes, independentemente dos alegados esforços que ambas teriam feito para resolver o problema da melhor maneira possível. Neste sentido, vale a pena mencionar dois ou três eventos que caracterizam bem esta situação.

Pouco depois deste primeiro telefonema mal-sucedido, os autores fizeram nova tentativa de negociar um acordo, agora através de A1, a qual não teve melhor sorte. Neste segundo telefonema, A1 se dizia disposto a abrir mão do depósito de US$ 25,00 que havia deixado com Q no momento em que o negócio foi fechado, desde que este concordasse em transportar de graça o refrigerador indesejado de volta para a loja. Mas, ainda sob o impacto da conversa com A2, Q não recebeu bem a proposta, dizendo que não poderia deixar de cobrar US$ 25,00 para transportar o refrigerador de volta, com o objetivo de cobrir os custos do serviço, pois, caso contrário, teria um prejuízo desnecessário, na medida em que não seria responsável pela anulação da transação. Esta contra-proposta teria deixado A1 verdadeiramente irado por que, aos seus olhos, se a aceitasse estaria concordando em "pagar uma multa" para devolver uma mercadoria que não era aquela que ele havia concordado em comprar. Assim, teria acabado a conversa aos gritos com Q, dizendo que bloquearia o cheque de US$ 250,00, e ameaçando-o de formalizar uma reclamação no equivalente ao PROCON local. Se a contra-proposta de Q havia sido interpretada por A1 como uma confirmação de suas supostas "mal-intenções" ao realizar o negócio, as ameaças de A1 também soaram como uma agressão para Q. Aliás, quando semanas mais tarde Q recebeu a carta do Serviço de Proteção ao Consumidor, seguida de uma notificação (convocação) do Juizado, teria chegado a conclusão de que os autores queriam mesmo era litigar a qualquer preço, e verbalizou sua impressão durante a sessão de mediação: "isto só pode ser uma piada! primeiro o Serviço de Proteção ao Consumidor, depois o Juizado por US$ 25,00...vou deixar isto de lado e, quando chegar a hora, eu vou...".

Nesta direção, as coisas ainda ficariam piores entre as partes quando, pouco antes de formalizar as reclamações no Serviço de Proteção ao Consumidor e no Juizado, e com o objetivo de contemplar as exigências de Q para resolver o problema de uma vez por todas, um dos autores ligou para a loja de Q propondo que ele fizesse a entrega do novo refrigerador que os queixosos haviam comprado noutro local. Neste caso ele aproveitaria a viagem para trazer de volta para a loja o refrigerador indesejado, e os queixosos estariam dispostos a pagar os US$ 25,00 exigidos por Q. Acontece que Q estava fora da cidade quando o telefonema foi feito e, da maneira como o recado foi passado para ele, a nova proposta foi tomada como uma agressão inominável. Pois, segundo Q, a proposta dos autores seria similar a situação em que um consumidor encomenda um filé "para viagem" num restaurante determinado, e telefona para um concorrente, solicitando que este último faça a entrega. Para Q, tal proposta seria o cúmulo do abuso e não merecia qualquer resposta.

Entretanto, quando o espírito da proposta foi explicitado durante a sessão de mediação, Q ficou surpreso e admitiu rever sua interpretação de que tal proposta seria necessariamente uma provocação. A partir dai, ambas as partes começaram a admitir a existência de problemas de comunicação entre elas e a relativizar as alegações de agressão que haviam feito até então. Apesar disto, até que a definição dos termos do acordo fosse concluída as negociações ainda passaram por momentos de tensão, e quase foram definifitamente encerradas por duas vezes, quando as partes ameaçaram levar o caso para o juiz, para que fosse decidido no âmbito de uma audiência judicial.

O problema é que, ao começar a traduzir o entendimento alcançado até então em propostas alternativas para a formalização do acordo, as partes demonstraram que aspectos importantes do equacionamento normativo da causa ainda não tinham sido suficientemente esclarecidos, ou satisfatoriamente negociados, dando todas as indicações de que, sem o enfrentamento das pendências de ordem normativa, qualquer tentativa de substantivação do acordo seria inviabilizada. Este condicionamento das negociações fica particularmente claro quando levamos em conta que os termos finalmente acordados são os mesmos que, ao serem propostos pela primeira vez, quase provocaram um desentendimento definitivo entre as partes. Assim quando, —no momento em que as acusações mútuas de agressão já estavam começando a ser relativisadas—, A2 propõe que Q pague apenas os US$ 25,00 do depósito e faça o transporte do refrigerador de volta para a loja, o querelado afirma não estar disposto a pagar nada, embora aceite se responsabilizar pelo transporte do refrigerador. A1 ainda tenta insistir na proposta, lamentando que eles não tivessem conseguido se entender antes, mas Q reage com irritação e ameaça abandonar as negociações.

Neste ponto o mediador faz uma intervenção importante, mostrando para as partes que, no fundo, elas não estavam lá por causa dos US$ 25,00 do depósito, mas por que tinham se sentido agredidas; seja pela alegada prática de falsa representação a que os autores teriam sido submetidos, ou pelas acusações que o querelado havia sofrido em virtude da percepção dos autores quanto ao seu comportamento. O fato é que antes de reapresentar a proposta A1 admitiu, explicitamente, estar convencido das boas intenções de Q ao avaliar a idade do refrigerador, e que não estava mais se sentindo agredido pelas atitudes de Q.

Deste modo, disse estar disposto a dividir os custos do mal-entendido, mas que não podia concordar em assumir sozinho a perda dos US$ 40,00 que havia investido na transação como um todo até então. A1 ainda recusou uma vez a contra-proposta no valor de US$ 20,00 feita por Q, afirmando que gostaria de ser integralmente reembolsado pelos US$ 25,00 do depósito. Entretanto, é interessante notar que quando Q chamou atenção para o fato de que US$ 20,00 era exatamente a metade de US$ 40,00, deixando sub-entendido que aquele valor representaria a contribuição (não intencional) de ambas as partes para o malentendido, A1 não teve dúvidas em aceitar os US$ 20,00, no que foi imediatamente secundado por A2. Embora o acordo também incluísse o compromisso de Q em transportar o refrigerador de volta para sua loja, a definição dos US$ 20,00 teve uma importância especial, na medida em que, simbolicamente, significava que as partes haviam sido igualmente responsáveis pela transformação do evento numa disputa.23

Dado que as partes não admitiam para si, aparentemente com boas razões, qualquer imputação de agressão ou de desrespeito a direitos, havendo mesmo absolvido uma a outra neste aspecto, qualquer acordo com pretensão de representar uma solução equânime para o caso tinha que marcar esta igualdade. Só assim os autores poderiam recuperar sua dignidade de cidadãos cujos direitos não haviam sido de fato agredidos, e portanto não necessitariam qualquer reparação ulterior, ao mesmo tempo que o querelado tinha a oportunidade de recuperar publicamente sua identidade de comerciante honesto e sua condição de pessoa confiável, plenamente merecedora dos direitos de cidadania. É neste sentido que, diferentemente do ocorrido no "Caso do Refrigerador Danificado", aqui a solução acordada contempla amplamente as demandas, de reparação ou de justificação, das perdas ou agressões reclamadas pelas partes ao longo da negociação.

V) Conclusão

Finalmente, gostaria apenas de, à luz da discussão dos dois casos acima, reafirmar alguns dos principais aspectos de minha proposta de articulação dos princípios da ética do Discurso com a análise de situações empíricas, ou de eticidades concretas, tendo como foco o estudo de processos de resolução de disputas (ou conflitos) através do resgate da noção de eqüidade.

Em primeiro lugar, é necessário enfatizar que a priorização de questões de aplicação normativa, —centrada na discussão do significado das soluções ou encaminhamentos dados pelos atores que enfrentam o problema de equacionar as situações que demandam uma avaliação normativa—, não é feita ao custo do abandono do ponto de vista moral ou da preocupação com a pretensão de imparcialidade das soluções propostas neste empreendimento. Isto é, o questionamento da pretensão de validade normativa, calcada no potencial de universalização das interpretações que dão sustentação às decisões ou acordos "judiciais" em sentido amplo, continua sendo um referencial fundamental para a elucidação dos casos estudados e dos discursos práticos em geral. Neste sentido, é exatamente a implementação desta perspectiva que permite a classificação dos dois casos apresentados acima como, respectivamente, um compromisso barganhado e um acordo equânime. Se, como disse acima, uma decisão ou acordo arbitrário guarda uma forte característica particularista e não consegue esconder uma dimensão de unilateralidade, em oposição ao universalismo das decisões equânimes, os compromissos barganhados trazem como marca registrada um indisfarçável déficit de significado, refletindo uma compreensão limitada da causa em pauta.

Da mesma forma, a análise dos processos que desembocam na confecção de acordos ou decisões substantivas incorpora, imediatamente, a dimensão valorativa da eticidade sem que isto signifique uma relativização excessiva do caráter englobador da dimensão normativa do problema. Pois, se a primeira vem à tona com toda a força na motivação ou orientação da ação dos atores, a segunda garante o balizamento das pretensões de eqüidade (ou correção normativa) ao manter como foco privilegiado no processo de definição das causas o equacionamento dos direitos. Ou seja, o equacionamento da maior ou menor adequabilidade das relações que as partes estabelecem entre si ao interagirem. Assim, os valores de cidadania, indivíduo, ou mesmo a noção de fairness, que não deixa de ser um valor para os americanos, ganham grande espaço na articulação das demandas esboçadas pelas partes envolvidas nos casos discutidos, sem que se sobreponham à perspectiva relacional que a demanda ou afirmação de direitos impõe.

Agradecimentos

Gostaria de agradecer a Luiz Eduardo Soares, cujo convite para fazer uma exposição sobre a ética do Discurso no seminário que dirigia no IUPERJ, em novembro de 1989, motivou a elaboração de uma versão inicial das três primeiras partes do texto.

Agradeço também aos comentários e sugestões de Roberto Cardoso de Oliveira, sem deixar de observar que os argumentos aqui desenvolvidos são de responsabilidade exclusivamente minha.

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Notas

1. Utilizo aqui a noção Hegeliana de "Sittlichkeit" em oposição ao conceito kantiano de Moralidade para chamar a atenção para a importância da dimensão local da eticidade (ou vida ética) no equacionamento de questões de ordem moral.

2. Para Hegel, segundo Habermas, a abstração do conteúdo concreto de máximas e obrigações imposta pelo princípio do imperativo categórico faz com que a sua aplicação seja necessariamente tautológica, na medida em que 'qualquer máxima pode tomar a forma de uma lei universal" (Habermas, 1986: 16). Da mesma forma, "como o imperativo categórico prega a separação entre o universal e o particular, um julgamento considerado válido em termos deste princípio necessariamente permanece externo aos casos individuais e insensível ao contexto particular do problema a ser solucionado" (Idem).

3. A noção de eqüidade enquanto conceito analítico no âmbito da antropologia jurídica foi desenvolvido no meu trabalho sobre pequenas causas nos EUA (L. Cardoso de Oliveira, 1989), a partir de um diálogo com as idéias de Gluckman (1965;1967) e com a categoria nativa de fairness que permeia todo o mundo anglo-saxão, incluindo-se ai o universo acadêmico das ciências sociais em sentido amplo.

4. Como veremos mais adiante, a filiação da ética do Discurso à tradição das teorias morais que se preocupam com o "dever", não implica numa exclusão absoluta daqueles aspectos do "viver bem" sem os quais a esfera normativa da eticidade não poderia contar com o mínimo de motivação necessário (dos atores) para sustentar suas pretensões deontológicas. Isto é, ainda que a separação entre questões normativas e valorativas se mantenha inalterada.

5. Como espero deixar claro na discussão que se segue, ao invés de calcar/fundamentar sua abordagem numa situação marcadamente idealizada ou artificialmente construída, nos moldes da "posição original" de Rawls (1971) ou do "ideal role taking" de Mead (1970), Habermas orienta suas reflexões por uma perspectiva reconstrutivista que não abre mão de uma forte conexão com o mundo empírico ainda que esta conexão seja, com freqüência, trabalhada num nível excessivamente abstrato.

6. "...Ao contrário, as pretensões de verdade não são de modo algum inerentes às entidades elas próprias, mas apenas aos atos de fala com que nos referimos às entidades no discurso constativo de fatos, a fim de representar estados de coisas". (Habermas, 1989: 81-2).

7. Quer dizer, além daquela primeira dimensão interpretativa constitutiva do objeto de pesquisa e compartilhada por cientistas naturais e sociais, referente às preocupações/problemas presentes na comunidade de pesquisadores, os cientistas sociais precisam considerar uma segunda dimensão interpretativa para serem bem sucedidos em seus empreendimentos de pesquisa. Como o mundo social é simbolicamente pré-estruturado, as representações dos atores sobre suas práticas sociais são parte constitutiva destas práticas e o intérprete da sociedade tem que levar as primeiras em consideração se quiser entender as últimas (L. Cardoso de Oliveira, 1993: 67-81).

8. No primeiro volume de sua "Theory of Communicative Action" (1984) Habermas faz esta distinção através dos conceitos de Geltung (validade enquanto vigência social) e Gültigkeit (validade com pretensão de universalidade).

9. Tendo sido derivado da lógica formal, em sentido estrito, o Trilema de Münchhausen afirma que as tentativas de fundamentação filosófica, —entendidas aqui como empreendimentos puramente dedutivos—, implicariam necessariamente em pelo menos uma de três alternativas: (1) no regresso infinito, (2) num círculo lógico, e/ou (3) na decisão arbitrária de interromper o processo de apresentação de razões.

10. Num artigo posterior, discutindo as aporias das perspectivas que não reconhecem esforços de fundamentação que não impliquem na apresentação de uma prova, no sentido de dedução de proposições a partir de outras proposições ou da indução de proposições gerais a partir de proposições particulares, ou ainda da indução de predicados proposicionais a partir dos dados da sensibilidade, Apel aponta a existência de um certo dogmatismo necessariamente embutido nestas perspectivas. Tal dogmatismo seria sustentado por uma petição de princípio segundo a qual a justificação ou fundamentação filosófica deve ser sempre o resultado de uma derivação de algo mais (1990: 42).

11. De acordo com Habermas todos os seres humanos, independentemente de suas origens históricas ou culturais, compartilham as mesmas pressuposições ontológicas sobre a existência de três mundos:

"1. o mundo objetivo (como a totalidade das entidades sobre as quais afirmações verdadeiras são possíveis):

"2. o mundo social (como a totalidade das relações interpessoais legitimamente reguladas); "3. o mundo subjetivo (como a totalidade das experiências do falante sobre as quais ele tem um acesso privilegiado". (Habermas, 1984: 100).

Embora estas pressuposições possam ter significados radicalmente diferentes em culturas diversas, como a literatura antropológica demonstra, meu entendimento da argumentação de Habermas é de que quaisquer quer sejam estas diferenças elas sempre poderão ser "esclarecidas para os nativos e comunicadas aos estrangeiros em processos de ação comunicativa" (L. Cardoso de Oliveira,1989:136n).

12. Infelizmente não posso me alongar muito, no âmbito deste artigo, na discussão sobre a idéia Habermasiana de uma "interpretação racional". Para maiores esclarecimentos sobre o assunto, veja, além dos trabalhos de Habermas citados no parágrafo anterior, os de McCarthy (1981), Maranhão (1981), Thompson (1982) e L. Cardoso de Oliveira (1989).

13. Como assinala Alexy, o esboço de uma justificação antecipa, necessariamente, a possibilidade de argumentação (1990:151-90). Neste sentido, a impossibilidade lógica da realização de processos de socialização onde não há espaço para os atores manifestarem e/ou lidarem com suas dúvidas reforça nosso argumento.

14. Esta universalização é sempre fruto de um consenso (genuíno). Neste sentido, Habermas chama a atenção para a necessidade de se diferenciar esta situação daquela em que apenas pseudo-consensos são obtidos. Estes últimos acontecem em duas circunstâncias: "(a) em condições de comunicação sistematicamente distorcida, onde 'pelo menos um dos participantes engana a si próprio sobre o fato de que a base consensual de sua ação está sendo mantida de forma apenas aparente;' e pela (b) ação manipulativa, onde 'o manipulador engana pelo menos um dos outros participantes sobre a sua atitude estratégica' (Habermas, 1979: 210 e L. Cardoso de Oliveira, 1989: 119).

15. Habermas também distingue os compromissos dos pseudo-compromissos. Com base em suas reflexões, eu caracterizei, em outro trabalho, os pseudo-compromissos da seguinte maneira: "são acordos nos quais a particularidade dos interesses é tomada como dada [acriticamente], ou chega-se a um acordo sem equilíbrio de poder" (L. Cardoso de Oliveira, 1989: 118).

16. Isto é, desde que a negociação do compromisso estivesse submetida à condições restritivas, "porque é de se supor que um equilíbrio eqüitativo (fair) [entre os respectivos interesses] só pode ter lugar mediante a participação com iguais direitos de todos os concernidos". E, continua o autor: "Mas semelhantes princípios da formação de compromissos teriam que ser justificados, de sua parte, em Discursos práticos, de tal sorte que estes não estejam de novo submetidos à mesma pretensão de equilíbrio entre interesses concorrentes" (Habermas, 1989: 94).

17. Neste sentido, é interessante notar que apesar da grande ênfase dos sistemas jurídico-legais ocidentais nos procedimentos formais que garantem a lisura do processo, estes sistemas não podem abrir mão do compromisso em viabilizar a efetivação de decisões substantivamente justas. Aliás, de acordo com uma importante publicação sobre procedimentos jurídicos em Pequenas Causas nos EUA, os Juizados têm que se preocupar não apenas com a justiça de suas decisões, mas também com a aparência de justiça das mesmas (Zoll, 1984:1).

18. O resumo dos dois casos discutidos aqui, assim como a análise dos mesmos, está baseado nos relatos apresentados em L.Cardoso de Oliveira (1989:417-440).

19. De certa maneira, nenhum direito que mereça ser classificado enquanto tal pode abdicar totalmente de sua dimensão ético-moral, na medida em que trata-se de um conceito ou categoria cuja essência está na tematização da maior ou menor adequabilidade ou correção (normativa) das relações que os atores estabelecem entre si. Contudo, a especificidade dos direitos em pauta está na dificuldade de relacioná-los diretamente com índices econômicomonetários, sem que seja feito um esforço de vinculação explícita nesta direção.

20. Supondo que uma pessoa de classe média, —situação da maioria dos "queixosos" que não representam empresas—, ganhasse pelo menos US$ 10,00 por hora, e considerando que é muito difícil passar menos de três horas no Juizado, o custo mínimo do litígio para o "queixoso" ficaria em torno de US$ 30,00, deixando de lado o transporte e as taxas do Juizado, pelas quais ele seria reembolsado em caso de vitória. Como no "Caso do Refrigerador Suspeito" tratava-se de dois "queixosos", o custo mínimo do processo passa a ser US$ 60,00. É evidente que, quando o "querelado" não aparece na primeira data marcada para a audiência, este custo é multiplicado.

21. Ainda que o "barulho estranho" identificado por A2 possa ser plenamente classificado como uma característica normal do equipamento, sua identificação quando da instalação do refrigerador não deixa de ser uma explicação razoável, da parte dos autores, para motivar o esforço de verificação da idade do aparelho. Ao enfatizar a percepção de Q sobre este ponto, estou apenas querendo mostrar as diferenças entre as partes na leitura dos acontecimentos, assim como atentar para os problemas de comunicação que marcam o desenvolvimento da disputa.

22. Durante a sessão de mediação o querelado chegou a desafiar A1 e A2 a o acompanharem numa visita a uma loja de departamentos nas imediações do Juizado onde, segundo ele, encontrariam no "show room" um refrigerador novo exatamente igual ao que os autores haviam comprado de Q.

23. Sobre a noção de "transformação de disputas", veja os interessantes trabalhos de Moore (1977), Mather & Yngvesson (1980-81), e de Felstiner, Able & Sarat (1980-81).

Prof. Luís Roberto Cardoso de Oliveira
lcardoso[arroba]unb.br



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