Página anterior Voltar ao início do trabalhoPágina seguinte 

A retórica do ressentimento e as demandas de reconhecimento (Dois pequenos ensaios sobre cultura, po (página 2)

Luís Roberto Cardoso de Oliveira

O Efeito Bouchard

Mesmo com a flexibilização da proposta original de Parizeau, e com a ampliação do apoio ao SIM provocada pela divulgação da proposta de parceria, no início da campanha oficial o número de simpatizantes do SIM parecia não ter aumentado muito em relação ao referendum de 1980. Quando, no dia 7 de setembro de 1995, foi definida a redação da questão a ser submetida à população do Quebec em 30 de outubro, dando início formal a campanha referendária, a maioria das pesquisas de opinião situava as intensões de voto em 58% NÃO e 42% SIM respectivamente, contra os 59,6% NÃO e 40,4% SIM depositados nas urnas em 1980.9 De acordo com análises divulgadas na imprensa, apesar da demanda de uma maior autonomia para o Quebec, com a eventual ampliação de poderes para a província — especialmente na área cultural —, encontrar grande respaldo na opinião pública local, a perspectiva de separação do Canadá não conta com o mesmo apoio da população, e dai a insistência dos defensores do NÃO em enfatizar a percepção de inviabilidade da proposta de parceria, assinalando que o SIM só poderia desembocar na separação.10 Por outro lado, o carácter relativamente ambíguo da questão, somado a total falta de propostas do campo do NÃO, que procurassem dar algum tipo de resposta às reivindicações do Quebec, mantinha aberto algum espaço para o crescimento do SIM. Entretanto, se o campo do NÃO se limitava a apontar as prováveis dificuldades econômicas e a perda de status internacional que uma possível vitória do SIM traria, tentando amedrontar o eleitorado, os defensores do SIM investiram a maior parte do tempo dedicado à preparação do referendum tentando mostrar que o Quebec estava não só preparado para enfrentar as eventuais adversidades da separação, mas que a independência tinha tudo para melhorar as condições de vida da população.

O fato é que, se os federalistas pareciam negar a existência do problema que motivou a realização do referendum, na medida em que não apresentavam propostas e afirmavam que a população já estava cansada dos debates constitucionais (depois dos fracassos de Meech e Charlottetown), indicando que o que interessava no momento era a criação de empregos e o crescimento econômico, os soberanistas pareciam dirigir quase todas as suas forças para a necessidade de correção de desequilíbrios econômicos que estariam colocando o Quebec em desvantagem no seio da federação,11 sem conseguir desenvolver um discurso mais elaborado sobre a questão do reconhecimento da identidade distinta do Quebec e da necessidade de reparação dos atos de desconsideração que os quebequenses teriam sofrido.

Apenas com a nomeação de Lucien Bouchard como representante oficial do Quebec nas negociações da parceria com o Canadá em caso de vitória do SIM é que o quadro começa a mudar um pouco. Não só devido a sua credibilidade pessoal como principal defensor da apresentação de uma proposta de parceria ao Canadá, mas sobretudo devido ao seu carisma e capacidade retórica, através da qual conseguiu expressar um sentimento de indignação que ainda não tinha sido adequadamente articulado até então na campanha.12 A nomeação de Bouchard foi anunciada no dia 7 de outubro, e na mesma época ele decide mudar sua estratégia política quanto a permanência em Ottawa, onde concentrava suas atividades de campanha nas sessões diárias do "período de questões", quando confrontava Jean Chrétien no parlamento.13 A partir de então Bouchard passa a dedicar a maior parte de seu tempo a aparições em comícios nos mais diversos locais e regiões do Quebec. Como revelam os números da tabela abaixo, a mudança de estratégia não demorou muito para começar a fazer efeito.

Mas, antes de discutirmos os números da tabela alguns esclarecimentos se fazem necessários. A primeira coluna, identifica os institutos de pesquisa seguidos das datas em que estas foram realizadas e seu significado é mais ou menos óbvio. Entretanto, gostaria de chamar atenção para a divisão da apresentação dos dados em três colunas: Resultados Brutos, Ponderação Proporcional, e Ponderação Realista. A experiência com outras votações similares no passado permitiu que os institutos de pesquisa quebequenses desenvolvessem uma fórmula bastante simples e efetiva para prever a distribuição real dos indecisos no dia da votação. É a este cálculo que se referem as duas últimas colunas, que já representam uma primeira interpretação dos dados brutos colhidos na pesquisa e expostos na coluna anterior.

Assim, a chamada ponderação realista atribuiu sistematicamente 75% dos votos dos indecisos para a posição contrária à soberania, e apenas 25% para os partidários do SIM. Para se ter uma idéia do grau de precisão deste tipo de previsão, basta olharmos para os resultados da última sondagem no final da tabela e verificarmos que, enquanto os dados brutos davam uma vantagem de 6% para o SIM, que contava com 46% das intensões de voto contra 40% dos federalistas, após a aplicação da ponderação realista a vantagem passa para o campo do NÃO, que venceria por 50,5% a 49,5% dos votos. Isto é, quase exatamente os mesmos números apurados nas urnas no dia da votação: 50,6% NÃO contra 49.4% SIM.

Progressão das Intenções de Voto Após a Divulgação da Questão do Referendum
Realizado em 30 em Outubro de 1995 no Quebec*

*Tabela retirada de um artigo de Pierre Drouilly ("Et si l’improbable se produisait?"), divulgado na página do GROP na World Wide Web [ http://www.coopcrl.qc.ca/base/politique/drouil5.html ].

Um rápido exame da tabela sugere que, de fato, o efeito Bouchard não pode ser desprezado. Se deixarmos de lado o resultado da primeira sondagem após o início formal da campanha, realizada em 8 de setembro, e que dava uma pequena vantagem nas intensões de voto para o SIM, verificamos que a opção pelo SIM entre os eleitores com posição definida só volta a liderar as intensões de voto na pesquisa do dia 9 de outubro, realizada dois dias depois da nomeação de Bouchard como "negociador chefe" do Quebec no caso de uma vitória dos soberanistas. Por outro lado, embora este dado não signifique ainda a consolidação de uma tendência na progressão das intensões de voto, pois o NÃO voltaria a conquistar a preferência dos eleitores em três das quatro pesquisas seguintes, a partir da sondagem CROP de 16 de outubro a opção pelo SIM passa a ocupar definitivamente a liderança entre os eleitores decididos em todas as pesquisas até a realização do referendum.

Além disto, deve-se observar que dai em diante a opção pelo SIM não para de crescer, e é bastante significativo que esta progressão coincida exatamente com a realização dos principais discursos e declarações pronunciadas por Bouchard durante a campanha, entre os dias 14 e 27 de outubro. Uma característica central destes discursos e declarações era a articulação entre as demandas de reconhecimento do Quebec, expressa na proposta de parceria, e o elenco de "agressões", de atos de desrespeito ou de desconsideração, que a população quebequense teria sofrido ao longo da história de relacionamento com o RDC.

Atos estes que não revelariam apenas esforços muitas vezes bem sucedidos de tentar levar vantagem política e econômica na relação com o Quebec, mas que se constituiriam numa verdadeira afronta moral ou de manifestações de desprezo por parte do Canadá inglês. Como veremos, esta idéia de afronta moral foi muito bem transmitida por Bouchard que, através de uma retórica do ressentimento, utilizou bem a tradição e a experiência dos quebequenses para incutir um sentimento de indignação, motivando-os a enfrentar o problema votando pelo SIM no referendum. Drouilly chama atenção para a importância da atuação de Bouchard na campanha ao trazer de volta a dimensão simbólica da questão, que teria sido colocada em segundo plano até então pelos dois lados na disputa. Do meu ponto de vista, a importância da dimensão simbólica não estaria só no fato da mesma ser constitutiva da problemática do reconhecimento e da percepção do insulto moral, mas por permitir, nos discursos de Bouchard, uma vinculação entre razão e emoção que também me parece constitutiva do problema. É esta relação entre razão e emoção que gostaria de explorar um pouco agora.

A Evocação Obrigatória dos Sentimentos (Retórica e Emoção)

Devemos sobretudo a Mauss a identificação da importância da expressão dos sentimentos como uma obrigação moral (1979:147-153), especialmente no âmbito das sociedades primitivas, chamando atenção para o fato de que "toda uma série de expressões orais de sentimentos não são fenômenos exclusivamente psicológicos ou fisiológicos, mas sim fenômenos sociais, marcados por manifestações não-espontâneas e da mais perfeita obrigação..." (Idem:147).14 Na mesma direção, gostaria de sugerir aqui que a percepção do insulto moral demandaria freqüentemente, e de maneira particularmente acentuada nas sociedades modernas, a evocação obrigatória dos sentimentos. Não porque tal percepção exigiria que os atores experimentassem diretamente a emoção do insulto, mas de que seria sim, necessário, a identificação com ela. Isto é, a identificação com a emoção ou sentimento de ressentimento, no caso do insulto moral, permitiria a socialização do significado da experiência e, assim, uma compreensão intersubjetivamente compartilhada do fenômeno.

Meu argumento é que mesmo quando a socialização da percepção não conduz a uma articulação adequada ou elaborada do significado social (moral) desta experiência, ela viabilizaria uma identificação publicamente partilhada do problema e sua classificação como um ato indevido.15

Neste ponto, seria interessante introduzir as idéias de Strawson sobre o papel do ressentimento na fenomenologia do fato moral, as quais se articulam bem tanto com a visão proposta por Mauss sobre a relação entre expressão de sentimentos e moral, como com a minha caracterização da desconsideração como um insulto moral (Cardoso de Oliveira 1997), desenvolvida através de um diálogo com Taylor (1994) e Berger (1983) sobre cidadania, identidade e dignidade. Strawson define o ressentimento como uma reação a uma ofensa/agressão ou à indiferença, e que tem como foco as atitudes ou intensões dos outros para conosco, enquanto seres humanos: "...Se alguém pisa na minha mão acidentalmente, enquanto tenta me ajudar, a dor pode não ser menos aguda do que se ele pisá-la num ato de desconsideração ostensiva a minha existência ou com o desejo malévolo de me machucar. Mas, geralmente, devo sentir no segundo caso um tipo e grau de ressentimento que não devo sentir no primeiro..." (Strawson 1974:5) Em outras palavras, o ressentimento seria provocado mais pela atitude ou pelas intensões que motivam e dão sentido ao ato, do que pelo ato em si, se podemos fazer esta distinção no plano analítico. Da mesma forma, o sentimento de gratidão, o oposto do ressentimento, seria motivado pelo tratamento marcado pelo uso de boas maneiras e gentilezas. Por outro lado, se o ressentimento, enquanto sentimento, tem um forte componente emocional, não deixa de ter também uma dimensão cognitiva, que toca diretamente à razão, e que permite a compreensão por parte de terceiros da experiência do ressentimento de um sujeito qualquer, como reação pessoal a uma atitude ou intensão indevida de outrem. Pois é exatamente esta capacidade de compreender através da identificação com o ressentimento do outro, e que Strawson caracteriza como reação simpática ou vicária (impessoal e desinteressada) à atitude que teria provocado o ressentimento, que marcaria a dimensão moral dos sentimentos em pauta. O sentimento equivalente ao de ressentimento no caso da reação vicária seria o de indignação ou de desaprovação moral. Isto é, não se trata de associar a dimensão moral exclusivamente à reação vicária, pois ela também está presente na experiência (pessoal) do ressentimento, mas de chamar a atenção para o fato que a dimensão moral se caracterizaria por poder ser socializada e/ou intersubjetivamente compartilhada. Além disto, assim como o sentimento de ressentimento está associado a demandas que fazemos aos outros em relação a nós mesmos, e o sentimento de indignação moral é vinculado a demandas que fazemos a terceiros em relação a outros, o sentimento de obrigação (moral) estaria articulado com as demandas que fazemos a nós mesmos em nossas relações com os outros, e completaria o conjunto de sentimentos acionados na fenomenologia do fato moral:

"...Assim como existem atitudes reativas pessoais e vicárias associadas com demandas aos outros da parte de ego, e com demandas aos outros com relação a terceiros, também existem atitudes auto-reativas associadas com demandas a si próprio com relação aos outros. E aqui temos que mencionar fenômenos tais como o sentimento de se sentir comprometido ou obrigado (o ´sentido da obrigação´); o sentimento da consciência pesada; o sentimento de culpa ou de arrependimento ou ao menos de responsabilidade; e o fenômeno mais complicado da vergonha". (Strawson, 1974:15).

Mas, com esta breve exposição das idéias de Strawson, podemos voltar a discussão do efeito Bouchard, através da articulação, inspirada em Mauss, entre a evocação obrigatória dos sentimentos e a percepção do insulto moral. Do meu ponto de vista, boa parte do chamado "efeito Bouchard" se deve ao sucesso do atual 1º ministro do Quebec em evocar sentimentos de ressentimento entre os francófonos da província, através dos discursos ou das declarações políticas que pronunciou entre 14 e 27 de outubro de 1995. Para ilustrar a retórica de Bouchard reproduzo abaixo seis trechos destes discursos ou declarações de Bouchard, que foram selecionados por Trudeau na carta aberta dirigida ao 1º ministro em 3 de fevereiro de 1996, divulgada sob o título "J’accuse Lucien Bouchard!", e onde faz uma série de reparos à atuação de Bouchard durante a campanha para o referendum. O fato de terem sido selecionados por Trudeau neste contexto dá uma idéia, por si só, da repercussão política destes trechos durante a campanha.16

(1) "Depuis trente ans, il y a eu je ne sais combien de dizaines de négociations entre le Québec et le reste du Canada: dans tous les cas on a échoué...On a profité de notre faiblesse politique..." (discurso pronunciado em 14 de outubro de 1995 no Centro Comunitário de Saint-Justin, Rosemont)17

(2) "Durant 30 ans, la raison profonde pour laquelle...on n’a jamais réussi à convaincre le Canada anglais (de concéder) la moindre revendication historique du Québec, ce n’est pas parce qu’on a envoyé des gens qui n’étaient pas des bons négociateurs. On avait les meilleurs. On avait René Lévesque." (discurso pronunciado em 18 de outubro de 1995, em Saint-Léonard)18

(3) "Alors qu’il y avait une alliance avec René Lévesque pour faire une entente qui avait du bon sens, ces sept province anglophones...l’on laissé tomber, une seule nuit [la nuit des longs couteaux]" (discurso pronunciado em 23 de outubro de 1995, no Cégep de Limoilou)19

(4) "[La Constitution de 1982] a réduit les pouvoirs du Québec dans le domaine de la langue et de l’éducation... René Lévesque l’a refusée. Claude Ryan l’a refusée.

L’Assemblée nationale du Québec l’a refusée." (discurso pronunciado em 25 de outubro de 1995, 19h00, télévision de Radio-Canada)20

(5) "On a rapatrié la Constitution en 1982 contre notre volonté... parce que les intérêts du Canada anglais étaient tels qu’il fallait qu’ils fassent cela." (discurso pronunciado em 27 de outubro de 1995, 19h30, télévision de Radio-Canada)21

(6) "Ils (le Canada anglais) on repoussé la main du Québec en 1990... Il n’y a personne qui est venu faire de manifestation à Montréal pour nous dire "On vous aime." Ils ont tout simplement dit non à Meech" (discurso pronunciado em 27 de outubro de 1995, 19h30, télévision Radio-Canada)22

Os seis trechos de discurso selecionados por Trudeau são representativos da temática e do tom privilegiados por Bouchard em seus pronunciamentos durante o último mês da campanha, os quais têm em comum o fato de serem bastante agressivos em relação ao RDC, que teria se aproveitado sistematicamente da sua condição de maioria política para impor ao Quebec sua visão do país, sem atentar devidamente para as demandas da minoria francoquebequense.

Nos trechos mais duros, como o de número 3 por exemplo, Bouchard chega a acusar o RDC de atos de traição, o que Trudeau — como um dos atores envolvidos no evento tematizado no referido discurso — não pode aceitar. Além do fato de todos os trechos fazerem referência a experiências que, do ponto de vista simbólico, ocupam um lugar privilegiado na memória dos franco-quebequenses, e que são particularmente apropriadas para dramatizar a relação com o Canadá inglês, eles chamam atenção para pelo menos três aspectos importantes da perspectiva do Quebec: (a) os riscos de minorização dos francófonos dentro do prórprio Quebec, sinalizando um provável desaparecimento do fato francês na América do Norte; (b) as dificuldades de negociação de suas demandas no plano federal, onde a condição de minoria não daria muito espaço para a barganha política; e, (c) a falta de reconhecimento da especificidade do Quebec, percebida como uma negação do valor da cultura ou dos méritos da forma de vida quebequense. Em certa medida este último aspecto representaria a essência do insulto moral ao negar os méritos das características ou traços identitário-culturais a partir dos quais a coletividade ou os sujeitos (cidadãos) que a compõe se situam no mundo. Diferentemente das reivindicações tradicionais da cidadania, normalmente satisfeitas no plano da promulgação de leis e do respeito a direitos, as demandas de reconhecimento supõe a internalização de um valor ou a aceitação dos méritos do grupo que apresenta a demanda.

Os dois primeiros trechos fazem alusão ao longo processo de negociação do patriamento da Constituição canadense, que teria começado formalmente em 1962, quando o Quebec assina o acordo Fulton-Favreau (sobre o qual voltaria a traz em 1964), e coincide mais ou menos com o início da chamada "Revolução Tranqüila", que marcou a modernização do Quebec e a assunção de uma posição política mais afirmativa no âmbito da federação, tanto no que concerne a valorização da identidade franco-quebequense como no tocante à ampliação da autonomia político-administrativa da província. Se o início da Revolução Tranqüila tem como marco a chegada do PLQ ao poder, através da eleição de Jean Lesage em 1960, o movimento é reforçado nas eleições provinciais de 1962, quando o PLQ é reconduzido ao poder com a bandeira da "nacionalização da eletricidade",23 sob o lema bastante significativo de Maîtres chez nous ("Mestres de nós mesmos"). O período se caracteriza por transformações que viabilizam a formação de uma elite político-econômica moderna de origem francófona, com a ampliação do acesso ao ensino superior, ao lado da intensificação do processo de urbanização do Quebec e, como o lema sugere, trata-se de um movimento de afirmação da identidade (ou da maioridade quebequense) que muda um pouco o carácter do nacionalismo vigente, até então sob a liderança da igreja católica e mais preocupado com as possibilidades de sobrevivência cultural do grupo enquanto tal.24 A observação destas mudanças que vieram com a Revolução Tranqüila é importante para se entender a intensificação das negociações das relações entre o Quebec e o RDC, assim como dos pontos de estrangulamento entre eles.

Neste quadro, a menção a René Lévesque no trecho nº 2, um político absolutamente central na história recente do Quebec e até hoje muito admirado pela população francófona da província,25 cumpre o papel de enfatizar a falta de receptividade das demandas do Quebec por parte do RDC, não apenas devido a divergências ou diferenças de perspectiva, mas por uma falta de atenção ou de interesse mesmo do Canadá inglês em ouvir a voz do Quebec.

Afinal de contas, como seria possível depois de tantas negociações e com negociadores do calibre de René Lévesque não se ter tido sucesso nem mesmo na transmissão do ponto de vista da província? Na mesma direção, a menção a Claude Ryan (ex-lider do PLQ e federalista) ao lado da Assembléia Nacional no trecho nº 4, que nunca aceitaram as condições do patriamento, cumpre a função de enfatizar o carácter impositivo e irrazoável através do qual a Constituição de 1982 teria sido imposta.26 Tendo em vista que os próprios federalistas não aceitam a nova Constituição e se sentem ameaçados por ela, só a intransigência e a falta de consideração para com o Quebec explicariam a insistência do RDC em negar o carácter distinto do Quebec.27

De fato, todos estes discursos e declarações são pronunciados com um alto grau de dramaticidade, onde os ouvintes são convocados a se situarem enquanto atores nas imagens re-construídas pelo orador, e se deixam tocar simultaneamente nos planos da razão e da emoção. Pois, já não conseguem distinguir nitidamente entre a compreensão cognitiva dos atos ou situações tematizados nos discursos, e a identificação com os personagens dramatizados nos discursos do orador, viabilizada através da evocação dos sentimentos dos atores. Esta conexão é particularmente clara no caso do trecho nº 3, onde é feita a acusação de traição.

A referência a famosa "noite das facas longas" no trecho nº 3 é particularmente dramática, contundente e polêmica, na medida em que evoca fortes sentimentos dos dois lados. Isto é, assim como os francófonos interpretam o ocorrido como um ato de traição, e portanto como uma agressão imoral (ou como um grande insulto moral), os anglófonos não aceitam em hipótese alguma a acusação, e se sentem igualmente ofendidos com a insinuação de que tal ato teria de fato transcorrido. De toda maneira, a noite em pauta (com ou sem as "facas longas") teria acontecido no dia 4 de novembro de 1982, véspera da sessão constitucional que aprovou o patriamento da constituição no parlamento. Segundo decisão da Corte Suprema do Canadá, para que a Constituição fosse legitimamente patriada e emendada era necessário que o governo federal contasse com o apoio de uma maioria significativa,28 e o acordo ou aliança (mencionada no discurso de Bouchard) que o 1º ministro do Quebec (René Lévesque) havia feito cerca de seis meses antes com seus pares de 7 das outras 9 províncias canadenses, todas anglófonas, poderia inviabilizar os planos de Trudeau quanto a realização do patriamento. Com a decisão da Corte o "Grupo dos Oito", como ficaram conhecidos os participantes do acordo, poderia impedir qualquer fórmula de patriamento que não fosse de seu agrado, o que dava ao grupo um peso político maior do que o de Ottawa nas negociações.29 Para a concretização do acordo o Quebec havia inclusive aberto mão do direito de veto a futuras mudanças constitucionais, previsto na formulação inicial de Trudeau, o que caracterizaria a sua boa fé nas negociações e daria fôlego à acusação de traição às províncias anglófonas no desenrolar dos acontecimentos.30

Com o objetivo de encontrar uma solução para o que percebia como um impasse nas negociações, Trudeau teria oferecido a Lévesque a possibilidade de realização de um referendum para aprovar as condições do patriamento a serem formalizadas e, segundo ele, a divulgação da manifestação de Lévesque em apoio à proposta teria irritado seus parceiros do Grupo dos Oito, para os quais a referida manifestação já seria uma quebra do acordo. Deste modo, os primeiros ministros das 7 províncias se sentiram a vontade para se juntar às outras duas e a aprovar a proposta de patriamento encaminhada por Ottawa, já sem a cláusula que dava ao Quebec um direito de veto. Contudo, a versão destes mesmos acontecimentos que vigora entre os franco-quebequenses, e que Bouchard retoma no discurso que fez à nação no dia 25 de outubro, é de que no meio da noite do dia 4 de novembro os 7 primeiros ministros teriam ido ao encontro de Jean Chrétien num hotel de Ottawa para confabular contra o Quebec.31 Versão esta que Trudeau afirma ser uma falsidade histórica. De qualquer forma, a imagem da "noite das facas longas" teve grande repercussão na imprensa (francófona e anglófona) e foi muito efetiva para evocar os sentimentos de ressentimento, viabilizando assim a percepção do insulto moral entre os franco-quebequenses.

Da mesma forma, os trechos de número 5 e 6 exploram imagens percebidas como agressivas ao Quebec, e que confirmariam a percepção de falta de compromisso e/ou de consideração do RDC para com a província. No primeiro deles é retomado o tema da falta de interesse em negociar as demandas do Quebec, caracterizada pela decisão de impor ao Quebec a solução acordada entre as demais províncias no momento em que o Grupo dos Oito se dissolve, e a Belle Province deixa de se constituir num constrangimento "legal" para a aprovação do patriamento: "...os interesses do Canadá inglês eram" de tal ordem que não valia a pena esperar pela anuência do Quebec. O último trecho se refere ao grande comício pela unidade do Canadá, promovido pelo comitê do NÃO no dia 27 de outubro com o apoio de organizações espalhadas por todo o país, e que conseguiu reunir mais de duzentas mil pessoas no centro de Montreal. O evento trouxe simpatizantes do NÃO de todas as províncias, que invadiram Montreal para declarar amor ao Quebec. Para boa parte dos militantes do SIM a manifestação soou como uma declaração falsa e/ou descompromissada e, portanto, como uma agressão de última hora. O discurso de Bouchard que menciona a manifestação foi pronunciado no mesmo dia, e é ao carácter duvidoso desta declaração de amor que Bouchard se refere quando afirma que por ocasião da rejeição do acordo do Lago Meech, por parte de duas províncias anglófonas, nenhuma manifestação deste tipo teria sido feita.

Ainda que polêmicos e/ou exagerados em alguns casos, os trechos reproduzidos acima são bem sucedidos no sentido de, através da evocação do sentimento de ressentimento, conseguir tornar inteligível a percepção do insulto moral, expresso na negação do reconhecimento da identidade distinta do Quebec, e que aparece como um ato de desconsideração unilateral, suscitando a reação de indignação ou de reprovação moral de que nos fala Strawson. Deste modo, talvez pudéssemos dizer que a articulação entre retórica e emoção nestes casos teria evocado sentimentos cognitivamente fecundos na medida em que teriam ampliado o horizonte do ator, permitindo uma melhor compreensão de sua experiência. Pergunto-me agora se esta articulação entre retórica e emoção também não poderia produzir resultados na direção oposta, evocando sentimentos passionais que, ao invés de ampliar, limitariam o horizonte do ator e constrangeriam sua capacidade de compreensão.

No próprio caso do Quebec, consigo pensar em pelo menos dois exemplos de articulação perversa entre retórica e emoção, que sugerem cautela quanto a avaliação do potencial da retórica do ressentimento para a percepção do insulto moral. Inicialmente, gostaria de mencionar a abertura da fala de Parizeau aos militantes do SIM quando o exprimeiro ministro reconheceu a derrota no referendum, com um discurso muito emotivo em que culpava empresários e os imigrantes pela vitória do NÃO: "Nous avons été battus pour l´argent et le vote ethnique" ("perdemos para o dinheiro e para o voto étnico").32 Apesar dos militantes parecerem apoiar a declaração infeliz de Parizeau no momento, a repercussão do discurso foi muito negativa, inclusive para a maioria franco-quebequense, e no dia seguinte havia um forte sentimento de que Parizeau deveria renunciar ao cargo, o que ele fez nas semanas que se seguiram. A alusão aos interesses "anti-patrióticos" do grande capital foi considerada suficientemente forte, mas a recriminação com ar de acusação ao voto étnico foi tomada como uma agressão intolerável. O segundo exemplo, contudo, teve uma repercussão mais ambígua, embora tivesse implicações éticas e cognitivas igualmente criticáveis. Estou me referindo a um dos discursos de Bouchard enunciado nas semanas que antecederam o referendum, e no qual recrimina "la faible natalité chez les québécoises blanches..." ("a baixa taxa de natalidade entre as quebequenses brancas"). Além das implicações potencialmente racistas ou etnicistas da afirmação, Bouchard enfrentou protestos de líderes feministas que recusavam frontalmente o papel de reprodutoras ou procriadoras a elas atribuído. Embora a taxa de natalidade tenha sido vista tradicionalmente como um problema político no Quebec, na medida em que foi sempre percebida como um freio importante ao crescimento dos desequilíbrios entre anglófonos e francófonos no Canadá, é inacreditável que o tema tenha sido abordado nestes termos por Bouchard, especialmente no momento em que os soberanistas fazem um esforço para tirar qualquer conotação étnica do nacionalismo quebequense, fazendo mesmo questão de enfatizar a dimensão territorial em oposição à étnica, chamando atenção para o carácter democrático do nacionalismo quebequense, que seria aberto à inclusão de qualquer cidadão, independentemente de sua origem étnica, racial, lingüística e etc.

Neste contexto, gostaria de sugerir, a guisa de conclusão, que o significado e as implicações da retórica do ressentimento em casos concretos devem ser balizados através do potencial de fecundidade cognitiva dos sentimentos efetivamente evocados. Isto é, enquanto as reações passionais caracterizariam um déficit cognitivo importante e a demanda em prol do sancionamento de relações ou de instituições ilegitimáveis, a mobilização de sentimentos que conduzissem o ator a uma melhor compreensão do insulto moral teria um carater elucidador e, porque não, emancipatório.

Notas

1. Comunicação apresentada no Grupo de Trabalho 17, "Rituais, representações e violência na política", durante a XXII Encontro Anual da ANPOCS, em 1998. Agradeço aos comentários de Yves Chaloult que, no entanto, não é responsável pelos eventuais problemas interpretativos do texto.

2. Em 20 de maio de 1980 foi realizado o primeiro referendum sobre a soberania do Quebec, quando os federalistas, defensores do NÃO, tiveram uma vitória folgada: 59,6% votaram NÃO, enquanto apenas 40,4% votaram pelo SIM.

3. "Você aceita que o Quebec se torne um país soberano, depois de ter oferecido formalmente ao Canadá uma nova parceria econômica e política, no quadro do projeto de lei sobre o futuro do Quebec e do acordo assinado em 12 de junho de 1995?".

4. O Bloco Québécois é um partido federal e, apesar de defender a soberania do Quebec, fazia as vezes de "oposição oficial" em Ottawa, quando da realização do referendum em outubro de 1995. Depois das últimas eleições federais em junho de 1997, o papel de oposição oficial passou para o Partido da Reforma, que ultrapassou o Bloco Québécois em número de assentos no parlamento, assumindo a posição de segundo partido mais votado no país.

5. A Aliança Democrática do Quebec (ADQ) é uma dissidência do Partido Liberal do Quebec (PLQ), de orientação federalista, que tem posições nacionalistas mais fortes, identificadas com o relatório do comitê Allaire, o qual demandava uma transferência massiva de poderes de Ottawa para o Quebec, e que foi instituído pelo PLQ em abril de 1990 para aconselhar o governo após a derrota do Acordo do Lago Meech. A divergência em relação ao entendimento entre o governo do PLQ e Ottawa sobre o referendum para aprovar o acordo de Charlottetown, em 1992, provocou a cisão que deu origem à ADQ.

6. A constituição do Canadá ficou guardada no parlamento inglês até 1982, quando foi patriada e, até então, não podia ser emendada autonomamente pelos canadenses. Em 1982, com a constituição patriada, Trudeau consegue aprovar e anexar à constituição uma carta de direitos que não reconhece a especificidade quebequense e põe em risco aspectos considerados importantes da lei 101 da língua francesa, na medida em que estes possam ser percebidos como ameaça a direitos individuais, cuja defesa passa a se constituir num imperativo absoluto.

7. Em outro lugar, procuro caracterizar a desconsideração como o reverso do reconhecimento, cuja prática fére direitos de cidadania que apesar de não encontrarem respaldo no plano legal podem ser fundamentados intersubjetivamente no plano moral, e discuto algumas de suas implicações para a compreensão da afirmação da identidade quebequense (Cardoso de Oliveira 1997).

8 ."Responder sim, é efetivamente se dar um país. Isto quer dizer que os quebequenses vão ter seu país".

9. Conforme a tabela abaixo, com exceção da primeira pesquisa de opinião realizada após a divulgação da questão referendária pela empresa Léger & Léger, no dia 8 de setembro, e que dava uma diferença menor entre os partidários do SIM (47,1%) e do NÃO (52,9), todas as demais indicavam números mais próximos ao resultado do referendum de 1980.

10. Um dos aspectos mais enfatizados pelo campo do NÃO se referia à dificuldade, ou mesmo à impossibilidade, de um Quebec soberano conseguir manter o dólar canadense como moeda, o acesso ao passaporte canadense para a população, e ainda compartilhar as forças armadas com o Canadá. Os defensores do SIM insistiam que estes três pontos seriam negociados com o Canadá e, de fato, a viabilização de um acordo de parceria com estas características dava uma certa ambigüidade à idéia de soberania, e tornava mais distante a perspectiva de separação do Canadá.

11. Veja os 14 números do Boletim publicado pelo "Secrétariat à la restruturation", divulgados entre março e outubro de 1995.

12 . Além disto, Bouchard é uma figura especial cujo mana, associado ao carisma pessoal e habilidade retórica, foi significativamente aumentado em sua história recente. Pois, depois de ter conseguido um desempenho excepcional para o recém criado Bloco Québécois nas eleições federais de 1993, Bouchard passou por uma provação que marcou muito sua vida e a população do Quebec. Em 24 de novembro de 1994 Bouchard é hospitalizado em estado grave, com uma infecção na perna esquerda provocada pela "bactéria carnívora" e é obrigado a amputar a perna. Após um período relativamente curto de convalecência, no dia 22 de fevereiro de 1995 Bouchard entra triunfalmente na Câmara dos Comuns, como se tivesse ressuscitado para defender os interesses do Quebec no Parlamento. Neste sentido, sua trajetória lembra a de muitos Xamãs em sociedades tribais, que passam por experiências de provação similares no processo de aquisição de seus poderes especiais (ver, inter alia, Melatti 1970:65-76).

13. Como líder da oposição oficial, Bouchard ocupava a maior parte do tempo alocado para as sessões de pergunta no parlamento, quando a oposição tem o direito de cobrar respostas públicas do governo às críticas que levanta. A grande cobertura que estes debates recebem da imprensa fazia da oportunidade de confrontar Chrétien (primeiro ministro do Canadá) diariamente uma estratégia de campanha razoável.

14. Como sabemos, a dimensão moral da expressão dos sentimentos, assim como a troca de dádivas, não se manifesta apenas nas sociedades ditas simples ou primitivas. Contudo, como indica Godbout (1992 e 1994:297-302) para a dádiva, apesar destes atos ou sentimentos continuarem tendo um significado moral na sociedade moderna, entre nós eles só se realizam de maneira plena quando trazem consigo a aparência de um ato gratuito ou espontâneo, relativizando a sua obrigatoriedade.

15. Em meu trabalho sobre pequenas causas nos EUA procurei mostrar como certo tipo de agressão à pessoa dos atores era usualmente associada ao universo das emoções, e indevidamente reduzida a um problema de ordem psicológica, que não encontraria respaldo legal, ainda que a manifestação de revolta expressa pela parte agredida contasse com a simpatia dos mediadores da disputa ou de terceiros. Ou seja, a socialização da percepção não garante, por si só, uma compreensão adequada do fenômeno (Cardoso de Oliveira, 1989:399- 451; 1996:105-142).

16 . Seguindo orientação do comitê do NÃO no referendum, Trudeau praticamente não participou da campanha. A imagem política de Trudeau está muito desgastada no Quebec, inclusive em relação às alegações de que não teria cumprido suas promessas de renovação do federalismo canadense após a vitória do NÃO no primeiro referendum, realizado em 1980. Assim, temia-se que uma participação mais ativa de Trudeau prejudicasse a campanha do NÃO.

17. "Nos últimos 30 anos houve dezenas de negociações entre o Quebec e o resto do Canadá: em todos os casos nós fracassamos...Outros se aproveitaram de nossa fraqueza política".

18 "Durante 30 anos a razão profunda pela qual nós nunca tivemos sucesso em convencer o Canadá inglês (de conceder) mesmo a menor reivindicação histórica do Quebec, não é que nós tenhamos enviado pessoas que não fossem bons negociadores. Nós tínhamos os melhores. Nós tínhamos René Lévesque." 19. "Embora houvesse uma aliança com René Lévesque para se fazer um acordo de bom senso (razoável), estas sete províncias anglófonas o abandonaram em apenas uma noite [a noite das facas longas]." 20. "[A Constituição de 1982] reduziu os poderes do Quebec nos domínios da língua e da educação...René Lévesque a recusou. Claude Ryan a recusou. A Assembléia Nacional do Quebec a recusou." 21. "A Constituição foi repatriada em 1982 contra a nossa vontade... porque os interesses do Canadá inglês eram tais que eles tinham que fazer isto." 22. "Eles (o Canadá inglês) rejeitaram a mão estendida do Quebec em 1990...Ninguém veio fazer manifestação em Montreal para nos dizer "Nós te amamos." Eles simplesmente disseram não a Meech." 23. A demanda de nacionalização da eletricidade era uma bandeira política de segmentos nacionalistas do Quebec desde os anos trinta (CHALOULT 1969).

24. No que concerne à igreja, a atuação política do padre e historiador Lionel Groulx se constituiu numa excessão significativa. Apesar de ter posições conservadoras, Groulx sempre defendeu uma perspectiva mais afirmativa da identidade nacional do Quebec, e teve grande influência no nacionalismo Québécois pelo menos até o final dos anos cinquenta. Além de ter sido fundador da importante revista L´Action Nationale em 1919, Groulx publicou nos anos 20 um dos principais romances nacionalistas do Quebec, L´Appel de la Race, que teve grande repercussão na imprensa e na população da província.

25. Além de ter criado o "Movimento Soberania-Associação" e de ter fundado o Partido Quebequense, René Lévesque foi um dos principais colaboradores dos dois governos Lesage, quando teve início a Revolução Tranqüila, e foi 1º ministro do Quebec durante 8 anos, tendo sido responsável pela aprovação da lei 101 da língua francesa. René Lévesque morreu em 1º de novembro de 1987, dois anos depois de deixar a política.

26. Assembléia Nacional se refere ao poder legislativo do Quebec, única província onde o legislativo tem o status de uma instituição nacional. Aqui, vale a pena indicar que, de uma certa perspectiva, a grande maioria da população franco-quebequense (correspondendo a pouco mais de 80% da população da província) é nacionalista. Isto é, mesmo os federalistas têm uma forte identidade nacional e em geral apoiam as bandeiras nacionalistas cuja implementação não implica em separação.

27. Aliás, até 1992 o próprio Bouchard era federalista e membro do partido Conservador- Progressista, tendo mudado de opinião após a inviabilização do acordo do Lago Meech, quando abandona a posição que tinha no governo federal e decide criar o Bloco Québécois, de orientação soberanista.

28. De acordo com a Corte Suprema, embora o patriamento unilateral da constituição (i.é., sem a anuência das províncias) não fosse de fato ilegal, violaria as convenções não escritas da vida política no Canadá e, portanto, o governo federal deveria obter suporte de uma maioria clara das províncias para que o processo de patriamento se consumasse de maneira adequada.

29. De uma maneira geral as províncias viam na anexação da carta de direitos uma ameaça à autonomia dos legislativos provinciais, e as negociações em pauta versavam sobre fórmulas alternativas para emendar a Constituição. Enquanto a fórmula Vitória, proposta inicialmente por Trudeau, previa um direito de veto a mudanças constitucionais da parte do Quebec, de Ontário, do conjunto de duas províncias do oeste, ou da união de duas províncias do atlântico, a fórmula Vancouver (ou Alberta) acordada pelo Grupo dos Oito previa que as mudanças constitucionais estariam sujeitas à aprovação de pelo menos sete províncias canadenses e do consentimento de 50% da população do país. Em 1996 o governo federal conseguiu aprovar no parlamento um princípio não constitucional similar à fórmula Vitória, com a diferença que agora a Colômbia Britânica também teria um poder de veto.

30. Da mesma maneira, o fato de René Lévesque ter assumido a estratégia do beau risque em 1984, abrindo mão do projeto soberanista enquanto se procurava articular um acordo de renovação do federalismo que contemplasse as demandas do Quebec, também reforçaria sua imagem de boa fé em oposição à percepção de intransigência em relação ao Canadá inglês. Lévesque apostou nos esforços de Brian Mulroney (novo 1º ministro do Canadá) que desembocaram no acordo do Lago Meech, o qual acabaria sendo derrotado em 1990. Assim como a imagem da "noite das facas longas", a derrota de Meech também é percebida como um ato de rejeição, i.e., como um insulto moral.

31. O atual 1º ministro do Canadá, Jean Chrétien, era um membro importante do Gabinete de Trudeau na época.

32. Os imigrantes são significativamente classificados como alófonos, em oposição a francófonos e anglófonos, e atualmente constituem um contingente significativo dos eleitores de Montreal. Isto é, enquanto os francófonos correspondem a 82% do eleitorado no Quebec, anglófonos e alófonos correspondem a 9% cada. De fato, os dois últimos segmentos têm dificuldades de se identificar com o projeto soberanista, tendo votado quase que exclusivamente (i.é., mais de 90%) pelo NÃO, ao contrário dos francófonos que se dividem um pouco sobre a questão, e que dirigiram 61% de seus votos para o SIM.

Referências

BERGER, P. 1983."On the Obsolescence of the Concept of Honor", in S. Hauerwas & A. MacIntire (eds.) Revisions: Changing Perspectives in Moral Philosophy, Indiana: University of Notre Dame Press.

CARDOSO DE OLIVEIRA, L. 1989. Fairness and Communication in Small Claims Courts, (Ph.D dissertation, Harvard University), Ann Arbor: University Microfilms International (order # 8923299).

CARDOSO DE OLIVEIRA, L. 1996. "Entre o Justo e o Solidário: Os Dilemas dos Direitos de Cidadania no Brasil e nos EUA".RBCS, nº 31, ano 11, pp. 67-81.Também publicado em R. Cardoso de Oliveira e L. R. Cardoso de Oliveira Ensaios Antropológicos Sobre Moral e Ética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.

CARDOSO DE OLIVEIRA, L. 1997. "Democracia, Hierarquia e Cultura no Quebec". Série Antropologia nº 232. Brasília: UnB/Departamento de Antropologia.

CHALOULT, R. 1969. Mémoires Politiques. Montreal: Éditions du Jour.

DROUILLY, P. 1995. "Et si l’improbable se produisait?".Página do GROP ("Le Groupe de recherche sur l’opinion publique")na World Wide Web (http://www.coopcrl.qc.ca/base/politique/drouil5.html).

GODBOUT, J. 1994 "Libre et obligatoire: l´esprit du don", em F-R Ouellette et C. Bariteau (orgs.) Entre Tradition & Universalisme. Quebec: Institut Québécois de Recherche sur la Culture, pp. 297-302.

GODBOUT, J. & A. CAILLÉ 1992. L´Esprit du don. Quebec: Les Éditions du Bóreal.

GROULX, L. 1956. L´Appel de la Race. Montreal: FIDES.

MAUSS, M. 1979. "A expressão obrigatória dos sentimentos", em R. Cardoso de Oliveira (org.) Mauss. São Paulo: Editora Ática, pp. 147-153.

MELATTI, J. 1970. "O mito e o Xamã", em C. Lévi-Strauss et al. Mito e Linguagem Social. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, pp. 65-74.

STRAWSON, P. 1974. "Freedom and Resentment", em Freedom and Resentment, and Other Essays. Londres: Methuen & CO LTD, pp. 1-25.

TAYLOR, C. 1994. "The Politics of Recognition", in A. Gutmann (org.) Multiculturalism and "The Politics of Recognition", New Jersey: Princeton University Press.

SÉRIE ANTROPOLOGIA
Últimos títulos publicados

241. RIBEIRO, Gustavo Lins. Identidade Brasileira no Espelho Interétnico. Essencialismos e Hibridismos em San Francisco. 1998.

242. WRIGHT, Pablo G. Cuerpos y Espacios Plurales: Sobre la Razon Espacial de la Practica Etnografica. 1998.

243. RAMOS, Alcida Rita. Uma Crítica da Desrazão Indigenista. 1998.

244. BRIONES, Claudia. (Meta) Cultura del Estado-Nación y Estado de la (Meta) Cultura: Repensando las Identidades Indígenas y Antropológicas en Tiempos de Post-estatalidad. 1998.

245. TRAJANO FILHO, Wilson. Jitu Ten: A Investigação Científica na Guiné-Bissau. 1998.

246. BAINES, Stephen Grant. Imagens de Liderança Indígena e o Programa Waimiri-Atroari: Índios e Usinas Hidrelétricas na Amazônia. 1999.

247. RAMOS, Alcida Rita. Cutting Through State and Class: Sources and Strategies of Self- Representation in Latin America. 1999.

248. RIBEIRO, Gustavo Lins. Tecnotopia versus Tecnofobia. O Mal-Estar no Século XXI. 1999.

249. CARVALHO, José Jorge de. Um Espaço Público Encantado. Pluralidade Religiosa e Modernidade em Brasília. 1999.

250. CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís R. Dois Pequenos Ensaios Sobre Cultura, Política e Demandas de Reconhecimento no Quebec. 1999.

A lista completa dos títulos publicados pela Série Antropologia pode ser solicitada pelos interessados à Secretaria do: Departamento de Antropologia Instituto de Ciências Sociais Universidade de Brasília 70910-900 Brasília, DF Fone: (061) 348-2368 Fone/Fax: (061) 273-3264

Prof. Luís Roberto Cardoso de Oliveira
lcardoso[arroba]unb.br
UNB/PRONEX-NUAP

 

 



 Página anterior Voltar ao início do trabalhoPágina seguinte 



As opiniões expressas em todos os documentos publicados aqui neste site são de responsabilidade exclusiva dos autores e não de Monografias.com. O objetivo de Monografias.com é disponibilizar o conhecimento para toda a sua comunidade. É de responsabilidade de cada leitor o eventual uso que venha a fazer desta informação. Em qualquer caso é obrigatória a citação bibliográfica completa, incluindo o autor e o site Monografias.com.