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Senso comum, ciência e filosofia - elo dos saberes necessários à promoção da saúde (página 2)

Ediara Rabello Girão Rios

Discutir o papel da ciência na sua articulação com o senso comum revela-se fundamental para que se compreenda a necessidade de considerar o saber de cada comunidade para o desenvolvimento de pesquisas e de intervenções no que concerne à promoção da saúde sob o enfoque da educação em saúde.

O saber científico deve-se fazer entendido pelo saber popular. A ciência adota uma taxinomia muitas vezes impronunciável pelo senso comum, tornando complicada a compreensão desse tipo de linguagem pelos leigos e, em conseqüência, dificultando a comunicação entre os dois saberes. É ideal que se busquem estratégias de forma a viabilizar a comunicação entre profissionais da saúde e as comunidades envolvidas nas ações de saúde. Cremos que a criação de metáforas simplifique os termos existentes ou traduza-os, quando necessário, para a linguagem nativa, a fim de que a comunidade trabalhada seja beneficiada com o avanço científico e com os conhecimentos relacionados à saúde.

De que vale o pesquisador se voltar somente para os livros, para o conhecimento científico? Será que cairá ele no erro de não observar novos fatos determinantes na comunidade em estudo? Mesmo que o saber popular entre em divergência com o conhecimento científico, torna-se necessário que o estudioso tenha seriedade para entender o real motivo dessas diferenças. Esses fatores poderão ser determinantes ao bom termo da atividade realizada no campo de atuação do cientista, podendo também modificar sua percepção como pesquisador em relação ao seu objeto de investigação. Para Fachin3, o progresso científico, de forma geral, é um produto da atividade humana, para a qual o homem, compreendendo o que o cerca, passa a desenvolvê-lo para novas descobertas. E por relacionar-se com o mundo de diferentes formas de vida, o homem utiliza-se de diversas formas de conhecimento, por intermédio dos quais ele evolui e faz evoluir seu habitat.

Objetivando contribuir para o desenvolvimento de pesquisas voltadas para a educação e a promoção em saúde, procuramos sensibilizar os profissionais da área de saúde sobre a necessidade de fortalecer esse elo de saberes. Precisamos examinar e compreender o comportamento das comunidades da maneira mais rigorosa e profunda possível, contemplando a dimensão científica e filosófica. Como cada comunidade possui seus saberes próprios em relação a hábitos e crenças para a promoção da saúde, cabe ao pesquisador elucidar os valores e saberes para com eles aprender, vez que há amplos aspectos do senso comum ainda não investigados pelo campo científico.

As experiências de vida de cada comunidade estimulam a resolução dos problemas enfrentados por elas através de opções diversas. Assim, as pessoas são capazes de produzir saberes, organizar e sistematizar pensamentos sobre a sociedade e, dessa forma, fazer uma interpretação que contribui para seu questionamento científico.

Construção compartilhada do conhecimento como instrumento para a promoção da saúde

Desde a Antigüidade até a Idade Média, a teoria do conhecimento não pode ser considerada como disciplina filosófica independente, apesar de encontrarmos na Filosofia antiga numerosas reflexões epistemológicas, especialmente na República de Platão4 e no livro VII, na Metafísica de Aristóteles5; porém, estes princípios de investigação epistemológica estavam ainda englobados nos textos metafísicos e psicológicos.

A teoria do conhecimento, como disciplina autônoma, aparece pela primeira vez na Idade Moderna, devendo considerar-se como seu fundador o filósofo John Locke, que trata de forma sistemática as questões da origem, essência e certeza do conhecimento humano, na sua obra fundamental Ensaio sobre o entendimento humano, em 1690. Em seguida, Leibnitz tentou na sua obra Novos ensaios sobre o entendimento humano, editada como póstuma em 1765, uma refutação da epistemologia defendida por Locke. Entretanto, considera-se como verdadeiro fundador da teoria do conhecimento dentro da filosofia continental européia Immanuel Kant. Na sua obra epistemológica Crítica da Razão Pura (1781), trata essencialmente de dar uma fundamentação crítica do conhecimento científico acerca da natureza, da realidade empírica. A filosofia de Kant é também chamada de transcendentalismo ou criticismo, visto que utiliza o método transcendental para investigar sobre que bases e pressupostos supremos o conhecimento se assenta1.

O sucessor imediato de Kant foi Fichte, que apresenta a teoria do conhecimento pela primeira vez com o título de teoria da ciência e manifestando uma confusão entre a teoria do conhecimento e a metafísica. Em oposição a esta forma metafísica de tratar a teoria do conhecimento, surge o neokantismo, que se esforçou para propor uma evidente separação entre os problemas epistemológicos e metafísicos. O neokantismo conseguiu propor essa separação, porém de forma exclusivista, o que depressa fez surgir várias correntes epistemológicas contrárias1.

A Filosofia está dividida em diversas disciplinas, entre as quais se situa a teoria do conhecimento. A Filosofia, segundo Hessen1, é uma auto-reflexão do espírito sobre o seu comportamento (capacidades, atitudes, funções) valorativo (valorizador), teórico e prático. Como reflexão sobre o comportamento teórico, a filosofia é a teoria do conhecimento científico ou teoria da ciência, como afirma Fichte6. Como reflexão sobre o comportamento prático do espírito, a Filosofia é a teoria dos valores. Por último, a reflexão do espírito sobre si mesmo constitui o caminho para se chegar a uma teoria da concepção do universo. Portanto, a esfera total da Filosofia divide-se em três partes: teoria da ciência, teoria dos valores e teoria da concepção do universo. Acrescenta-se ainda que a teoria da ciência divide-se em: formal - que é a lógica, e material - que é a própria teoria do conhecimento. Esta divisão, proposta por Hessen1, reafirma a posição da filosofia moderna acerca da fundamentação da teoria da ciência, herdeira do imbricamento do racionalismo cartesiano e do empirismo inglês, que ratifica a separação da ontologia clássica entre forma e conteúdo. Enfim, neste sentido, a lógica se ocuparia da forma da ciência, implicando na exigência de correção e rigor do raciocínio, e a teoria do conhecimento, ocupando-se da verdade de seu conteúdo.

Deste modo, indicamos o lugar que a teoria do conhecimento ocupa no conjunto da Filosofia, sendo definida como teoria material da ciência ou teoria dos princípios materiais do conhecimento humano, pois se dirige aos supostos materiais mais gerais do conhecimento científico e pergunta pela verdade do pensamento, isto é, pela sua concordância com o objeto. Daí também ser denominada de teoria do pensamento verdadeiro, em oposição à lógica, que seria a teoria do pensamento correto.

Neste contexto, aparece um dos problemas epistemológicos a serem resolvidos, visto que a epistemologia se limita ao conhecimento científico. Existe outro tipo de conhecimento, que não seja científico? O neo-positivismo vienense, e hoje o empirismo lógico que o sucedeu, não reconhecem como válida a teoria do conhecimento senão na medida em que ela se reduz à epistemologia; assim, L. Rougier, na França, declara que não existe outro conhecimento a não ser o científico1.

Contrário a esse pensamento, Alves7 e Freire-Maia8 defendem que o conhecimento científico configura-se apenas numa espécie singular de conhecimento, pois o senso comum, com suas idéias organizadas, explicativas e interpretativas dos fenômenos culturalmente contextualizados em cada sociedade, é um saber que também constitui certas circunstâncias em conhecimento. Freire-Maia8, citando Mattalo Júnior, define senso comum como um conjunto de informatizações não sistematizadas que aprendemos por processos formais, informais e, às vezes inconscientes, e que inclui um conjunto de valorações. Essas informações são, no mais das vezes, fragmentárias e podem incluir fatos históricos verdadeiros, doutrinas religiosas, lendas ou partes delas, princípios ideológicos às vezes conflitantes, informações científicas popularizadas pelos meios de comunicação de massa, bem como a experiência pessoal acumulada. Quando emitimos opiniões, lançamos mão desse estoque de coisas da maneira que nos parece mais apropriada para justificar e tornar os argumentos aceitáveis.

Não pretendemos fazer apologia ao senso comum e muito menos subestimar a contribuição da ciência em benefício da Humanidade, mas apenas resgatar o valor do senso comum no processo de produção e socialização do conhecimento, pois, se de um lado consideramos aceitável a idéia de que quando se trata do mesmo ponto, é de se esperar, no entanto, que a ciência seja mais segura, mais exata, mais refinada; não se pode afirmar, porém, que tudo que seja científico seja mais preciso e mais certo do que tudo o que nos vem do conhecimento vulgar8; por outro, não podemos desconsiderar que o senso comum e a ciência são expressões da mesma necessidade de compreender o mundo, a fim de viver melhor e sobreviver. E para aqueles que teriam a tendência de achar que o senso comum é inferior a ciência, eu gostaria de lembrar que, por dezenas de milhares de anos, os homens sobreviveram sem coisa alguma que se assemelhasse à nossa ciência. A ciência, curiosamente, depois de cerca de quatro séculos, desde que ela surgiu com seus fundadores, está colocando sérias ameaças à nossa sobrevivência7.

Alinhamo-nos aos epistemólogos continuístas, como Alves7, defensor da tese de que a ciência traduz-se num saber derivado da busca de superar problemas que emergem da esfera do senso comum: a aprendizagem da ciência é um processo de desenvolvimento progressivo do senso comum. Só podemos ensinar e aprender partindo do senso comum de que o aprendiz dispõe. Assim, não podemos ignorar e subjugar a "sabedoria popular". Essa reação acontece muito claramente no campo da saúde e da educação. Os profissionais tornam-se detentores do saber técnico e científico, inacessíveis à população; então, tornam-se "mestres" que ditam o certo e o errado, bem como impõem comportamentos que julgam eficazes, no caso da saúde, para a melhoria da qualidade de vida e da promoção da saúde.

Ao estudar sobre o assunto, Valla9 afirma que temos dificuldade em aceitar que as pessoas humildes, pobres, moradoras da periferia sejam capazes de produzir conhecimento, de organizar e sistematizar pensamentos sobre a sociedade e, dessa forma, fazer uma interpretação que contribui para a avaliação que nós fazemos da mesma sociedade. É possível afirmar que os profissionais e a população não vivem uma experiência da mesma maneira. São sujeitos distintos que têm um objeto em comum, porém o interpretam cada um adaptando-o à sua realidade e contexto histórico, social e político. Os saberes da população são elaborados sobre experiência concreta, a partir das suas vivências, diferentemente daquela vivida pelo profissional. Nós oferecemos o nosso saber por que pensamos que o da população é insuficiente e, por esta razão, inferior, quando, na realidade, é apenas diferente e algumas vezes insuficiente.

Daí a importância de se reconhecer no outro (população) a capacidade de captar os fenômenos nas suas diferentes nuances e então ser visto como construtor de conhecimento. Martins10, falando do conhecimento produzido pelas classes subalternas, propõe que o saber das classes populares é mais do que ideologia, é mais do que interpretação necessariamente deformada e incompleta da realidade do subalterno. Nesse sentido, também a cultura popular deve ser pensada como cultura, como conhecimento acumulado, sistematizado, interpretativo e explicativo, e não como cultura barbarizada, forma decaída da cultura hegemônica, mera e pobre expressão do particular.

Talvez a tarefa mais intensa para os profissionais da saúde e educação nos contatos que desenvolvem com as classes populares é aceitarem o fato de que o saber também é produzido por aquela classe, e isso se deve à formação escolarizada da classe média, aliada a uma sociedade capitalista e consumista que procura deter em suas mãos os meios de produção, inclusive do conhecimento.

Não estamos defendendo que os técnicos/profissionais/cientistas devam abandonar seus construtos e descobertas, mas sugerimos que haja uma relação simbiótica entre os dois tipos de conhecimento, o científico e o popular. Dessa maneira, a intersubjetividade humana poderia ser mais bem compreendida, ou seja, sem a sobreposição de um saber sobre o outro, mas sim reconhecendo as possibilidades e limitações de cada um, pois, como nos diz Martins10, a cultura das classes subalternas é uma tentativa de explicar este mundo em que se vive; no entanto, não dá conta de tudo explicar, a ciência tampouco.

Acreditamos que a construção compartilhada do conhecimento é uma estratégia através da qual podemos alcançar a promoção da saúde, definida por Carvalho et al.11 como uma metodologia desenvolvida na prática da Educação e Saúde que considera a experiência cotidiana dos atores envolvidos e tem por finalidade a conquista, pelos indivíduos e grupos populacionais, de maior poder (empowerment) e intervenção nas relações sociais que influenciam a qualidade de suas vidas, fruto da relação entre senso comum e ciência.

Nesta perspectiva, está claro que as classes populares precisam ser vistas como sociais, como cidadãos ativos e transformadores da realidade em que vivem. É preciso "empoderá-los" (empower) através de políticas públicas que garantam o acesso à alimentação, saúde, educação, lazer e trabalho. Valla & Stotz12 propõem uma metodologia de ação que pressupõe a transformação da sociedade através de mudanças na concepção dos serviços básicos. Essa proposta, de inspiração gramsciana, implica a atuação da sociedade civil em momentos de crise e o replanejamento de alguns dos serviços básicos através de uma relação entre movimentos populares e os profissionais de saúde. Os interesses que materializam essa aliança estão relacionados ao uso adequado da verba pública e à qualidade dos serviços. Antes, porém, faz-se necessário, como esclarece Thorogood13, entender o que significa saúde para as pessoas, como acreditam que esta afeta suas vidas e quais as estratégias poderiam realmente facilitar e encorajar uma efetiva mudança para um comportamento saudável.

No conceito de "construção compartilhada do conhecimento", os referidos autores12,13 partem de duas dimensões: educativa e epistemológica. Na dimensão educativa, o construtivismo é a abordagem adotada, uma vez que entende o conhecimento construído pela reflexão crítica dos sujeitos envolvidos no processo de aprendizagem a partir de suas experiências prévias e das questões consideradas significativas. É uma teoria que converge para as premissas da pedagogia proposta por Paulo Freire. Na dimensão epistemológica, destaca-se o valor do conhecimento produzido na relação entre conhecimento científico e senso comum.

Concordamos com Valla & Stotz12, quando nos dizem que a imbricação dos conhecimentos técnicos com a experiência de vida da população permite visualizar um outro panorama da situação até então não revelado. Assim, essa face do fenômeno pode constituir o elemento-chave para as ações de saúde, ratificando nossa posição anterior de que, partindo de uma concepção ampla do processo saúde-doença e de seus determinantes, a promoção da saúde propõe a articulação de saberes técnicos e populares e a mobilização de recursos institucionais e comunitários, públicos e privados para seu enfrentamento e resolução14.

Esta proposta parece simples de ser desenvolvida pela educação e a promoção da saúde no cotidiano das ações de saúde. Entretanto, reconhecemos que esbarramos em dificuldades de várias ordens, em que problemas de comunicação entre profissionais da saúde e comunidade constituem-se apenas num sintoma. Na verdade, o problema fundamental é epistemológico e remete ao paradigma dominante na ciência moderna, bem como no campo da saúde: o paradigma cartesiano. A discussão que enfrentaremos no próximo tópico pretende esclarecer as conseqüências do modelo biomédico sobre a medicina moderna e os sistemas de saúde, com vistas à compreensão das dificuldades que os profissionais formados à luz deste modelo enfrentarão ao tentar assumir uma postura teórica e prática que propõe superar este modelo em direção a uma concepção holística15.

Influência do paradigma cartesiano sobre a medicina moderna e os sistemas de saúde

Retomando nossa discussão sobre o conhecimento científico, faz-se necessário caracterizá-lo como algo racional, generalizável, empírico, conjectural e objetivo, qualidades que o destacam dos demais. Podemos, numa definição simplificada, afirmar com Freire-Maia8 que ciência é um conjunto de descrições, interpretações, teorias, leis, modelos, visando ao conhecimento de uma parcela da realidade, em contínua ampliação e renovação, que resulta da ação deliberada de uma metodologia especial (metodologia científica). Contudo, como Barreto et al.16 afirmam, o adjetivo (científico) aposto ao substantivo (conhecimento) sugere a idéia de outros conhecimentos possíveis.

A epistemologia hegemônica aplicada no cotidiano da atenção à saúde origina-se no paradigma mecanicista e analítico de René Descartes, aliado ao empirismo de Francis Bacon, reforçado pelo positivismo de Augusto Comte, no qual o todo é dado pela soma das partes e a noção de causalidade linear é prevalente, apesar das recentes mudanças ocorridas nas teorias científicas, principalmente provindas da física. Vejamos então como o paradigma cartesiano influenciou a medicina científica moderna.

Antes de 1500, a visão de mundo dominante na Europa, assim como na maioria das outras civilizações, era comunitária. As pessoas viviam em comunidades pequenas e coesas, e vivenciavam a natureza em termos de relações orgânicas, caracterizadas pela interdependência dos fenômenos espirituais e materiais e pela subordinação das necessidades individuais às da comunidade. A estrutura científica dessa visão de mundo orgânica assentava no auge do medievo em duas autoridades: Aristóteles e a Igreja. A natureza da ciência medieval era muito diferente daquela da ciência contemporânea. Baseava-se na razão e na fé, e sua principal finalidade era compreender o significado das coisas e não exercer a predição ou o controle como hodiernamente.

A perspectiva medieval mudou radicalmente nos séculos XVI e XVII. A noção de um universo orgânico, vivo e espiritual foi substituída pela noção do mundo como uma máquina. Essa metáfora dominou toda a era moderna e até hoje encontra entre os cientistas seguidores. A ciência do século XVII baseou-se num novo método de investigação, defendido vigorosamente por Francis Bacon, o qual envolvia a descrição matemática da natureza e o método analítico de raciocínio concebido por Descartes17. Esse fato permitiria construir uma completa ciência da natureza, acerca da qual poderia ter absoluta certeza, uma ciência baseada, como a matemática, em princípios fundamentais com pretensão de validade universal17,18. Foi quando Descartes se dedicou à construção de uma nova filosofia científica, passando a ser considerado o fundador da filosofia moderna15.

A partir dessas considerações, podemos então nos questionar como a filosofia de Descartes influenciou as concepções de saúde e doença, na medicina moderna, e que ainda hoje se mantém imperativa nos sistemas de saúde. A influência do paradigma cartesiano, reducionista e mecanicista sobre o pensamento médico resultou no chamado modelo biomédico, que constitui o alicerce conceitual da moderna medicina científica. Kleinman19 usa o termo "biomedicina" como sinônimo da medicina ocidental estabelecida sobre estruturas de dominação e poder dos profissionais sobre a população, reconhecendo apenas as causas orgânicas da doença e excluindo as práticas alternativas como a homeopatia e, mais recentemente, a medicina holística.

O corpo humano é considerado uma máquina que pode ser analisada peça a peça; a doença é vista como um mau funcionamento dos mecanismos biológicos, que são estudados do ponto de vista da biologia celular e molecular, e o papel dos profissionais de saúde é intervir, física ou quimicamente, para consertar o defeito no funcionamento de um específico mecanismo enguiçado.

Quatro séculos depois de Descartes, a medicina ainda mantém esse paradigma dominante e centrado numa abordagem hospitalocêntrica, curativista e verticalizada. Ao dissociar o ser humano em mente de um lado e corpo de outro, criou-se um dualismo que dificultou a concepção do homem como parte do universo, negando suas dimensões individuais, sociais, ecológicas, bem como dificultando uma visão sistêmica dos organismos vivos e, conseqüentemente, uma visão sistêmica da saúde. O corpo (objetivo) foi privilegiado no processo de tratamento e cura, em detrimento da mente (subjetiva), esquecendo-se que o homem é produto do meio em que vive, sendo assim o ser humano na sua totalidade resultante de uma combinação de fatores biopsicossociais, ou seja, o todo é mais do que a soma das partes.

A perspectiva epistemológica da biomedicina é positivista, assentada na pressuposição de encontrar na razão um critério inequívoco de determinação de cientificidade, freqüentemente associado de modo excludente a idéias de verdade e reprodução fidedigna de um mundo real20. Trata-se de estudar o que ocorre na realidade observada de forma objetiva. Na abordagem biomédica, o real e o objetivo é a doença, que se tornou o constructo teórico operacional em torno do qual gira toda a lógica hegemônica da biociência. É importante lembrar que a doença é vista apenas como fenômeno físico, decorrente da rigorosa divisão que Descartes fez entre corpo e mente, o que propiciou os profissionais de saúde se concentrarem na máquina corporal e negligenciarem os aspectos psicológicos, sociais e ambientais da doença.

Ocorreu um processo de redução da enfermidade à doença; a atenção dos médicos desviou-se do paciente como pessoa total. Enquanto a enfermidade é uma condição do ser humano total, a doença é a condição determinada por parte do corpo e, em vez de tratarem os pacientes que estão enfermos, os médicos concentram-se no tratamento das suas doenças. Àqueles cabe descobrir a doença, classificá-la de acordo com a nosografia médica e então administrar tratamento atual (em voga na ciência). As doenças, seus critérios diagnósticos e fatores de risco, de intersecção variável com o adoecimento e a vida levada pelos doentes obscurecem um vislumbre sobre a evolução global do paciente. Este está "esquartejado" epistemologicamente por síndromes e doenças de aparelhos orgânicos (especialistas) bem separados por uma fisiologia e fisiopatologia biomecânica que sabe muito de patologias, microorganismos, moléculas, órgãos, tecidos e sistemas do corpo e pouco das ligações e inter-relações sutis e complexas entre tudo isso e a vida vivida pelo doente20.

A partir da segunda metade do século XX, inicia-se uma crise no modelo cartesiano-positivista até então dominante na saúde. Os próprios profissionais da saúde identificam a necessidade de mudança no sistema e começam a construir um novo paradigma.

A epistemologia contemporânea sustenta e embasa essa nova visão através do pensamento de Bachelard, Popper e Kuhn, os quais têm suas reservas ao positivismo e ao dogmatismo dele decorrente. Bachelard combate o racionalismo puro, através de uma "outra ciência", possuidora de inelutável caráter social, edificada sobre rupturas e a necessidade de uma nova filosofia, aberta e histórica, em que o filósofo deve ser contemporâneo à ciência de sua própria época. Assim, configura-se o racionalismo dialético aplicado de Bachelard.

Popper, por sua vez, afirma que a ciência nos fornece apenas conhecimentos provisórios, pois está em constante modificação, e assim não há verdade final; toda teoria nova é valiosa; contudo, só será frutífera na medida em que suscitar novos problemas. Para Thomas Kuhn, a ciência desenvolve-se através de saltos que constituem as mudanças de paradigmas nas diversas áreas do conhecimento e isto distingue as atividades científicas das não-científicas. Segundo Kuhn, o novo paradigma nasce num momento de crise estabelecida da ciência, conduzida por teorias, pesquisas e escolas. O surgimento de um novo paradigma em qualquer área do conhecimento é a condição básica para o progresso da ciência21.

A expressão "promoção da saúde" foi cunhada pela primeira vez em 1945, quando o historiador e médico Henry Sigerist a mencionou como uma das tarefas da medicina. Sigerist defendia uma ação integrada entre políticos, lideranças sindicais trabalhadoras e patronais, educadores e médicos. Esta união de esforços objetivava implementar políticas e programas de saúde, que são facilitados quando as necessidades básicas do indivíduo (emprego, saúde, educação, vida social) são satisfeitas22.

Depois de Sigerist apontar o caminho e a direção desse novo modelo de atenção à saúde, vários documentos e eventos importantes foram surgindo e ratificando as propostas anteriores, bem como introduzindo outras. Neste sentido, destacam-se: o Informe Lalonde (1974), a Declaração de Alma Ata (1978), o documento um Povo Saudável (1979), a Carta de Otawa (1986), a Declaração de Adelaide (1988), a III Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde (1991) e a Declaração de Jacarta (1997)14,23.

A promoção da saúde, como vem sendo entendida nos últimos 25 anos, representa uma estratégia promissora para enfrentar os múltiplos problemas de saúde que afetam as populações humanas atualmente. Partindo de uma concepção ampla do processo saúde-doença e de seus determinantes, esquecendo a máquina corporal e incorporando uma abordagem holística, propõe a articulação de saberes técnicos e populares, e a mobilização de recursos institucionais e comunitários, públicos e privados através de parcerias para seu enfrentamento e resolução. Compreendemos que a educação em saúde é um componente indispensável neste processo, focalizando suas intervenções primordialmente no indivíduo pertencente a uma comunidade onde se dão as relações sociais, culturais, econômicas e políticas, envolvendo todo o contexto e a realidade subjetiva e resgatando a cidadania e o direito de "ser e sentir-se gente"24.

Corroborando nossas reflexões, Thorogood13 informa que a relação da perspectiva sociológica para a educação em saúde e promoção da saúde é de profunda interdependência. E assim um novo paradigma vem se configurando no setor saúde, contribuindo para o desenvolvimento das ciências da saúde, permitindo ao indivíduo assumir o papel de sujeito cognoscente, em constante interação e interdependência com o mundo. Enfim, defendemos que a Filosofia, especialmente sua dimensão crítica, tem muito a oferecer na formação e atuação dos profissionais da saúde. Ela contribui, especialmente no campo da educação em saúde, para o exercício de uma reflexão sobre os pressupostos epistemológicos que presidem a formação acadêmica (domínio da ciência) e a atuação no campo (domínio do senso comum), elaborando um esforço para compreender o elo entre os saberes.

Considerações finais

O mundo presente se reconhece através de expressões como "sociedade do conhecimento" ou "sociedade da informação e da tecnologia". A ciência alcançou um desenvolvimento exponencial no século XX em todas as suas áreas. A revolução da microeletrônica, o desenvolvimento de novas fontes de energia e a revolução das biotecnologias alçaram a ciência à condição de um mito moderno. Assistimos a uma mistificação da ciência por muitos cientistas, que carecem da lucidez de reconhecer-lhe os limites. A preeminência do conhecimento científico é compreensível na medida em que seu poder e prestígio ressoam através dos artefatos tecnológicos produzidos por ele mesmo. Neste sentido, talvez os maiores difusores dos seus feitos sejam os meios de comunicação de massa.

Não sem problemas, a unanimidade da ciência torna-se cada vez mais discutível. A Filosofia e mais especificamente seus saberes, como a Epistemologia, a Teoria do Conhecimento e a Filosofia da Ciência têm lançado férteis reflexões sobre a natureza, os limites e possibilidades do conhecimento científico. Entretanto, o propósito da presente reflexão restringiu-se a demonstrar a necessidade do saber filosófico como instância de reflexão capaz de estabelecer uma visão holística do conhecimento, propiciando a compreensão de que existe um elo intrínseco às formas básicas de conhecimento que precisa ser racionalmente compreendido, de modo que a educação e a promoção da saúde possam ser repensadas para além do paradigma biomédico, cartesiano.

Pode-se ter a falsa impressão de que as discussões suscitadas conduziram a uma desvalorização da ciência em benefício do senso comum e da Filosofia, quando, na verdade, procurou-se resgatar o valor do senso comum, geralmente desvalorizado, na condição de forma básica prática e imprescindível do conhecimento humano, bem como se argumentou a relevância do papel da Filosofia como saber teórico de segunda ordem, que se permite exercer uma crítica radical numa perspectiva da totalidade.

Esperamos que a reflexão apresentada contribua para que os profissionais do campo da saúde, em sua maioria formados no horizonte do paradigma biomédico, cartesiano, sejam capazes de questionar o alcance e limites hegemônicos. Urge buscar novos modelos capazes de enfrentar realidades humanas cada vez mais complexas. Talvez este exercício de repensar modelos e teorias conduza-os à compreensão de que os desafios que emergem da realidade cotidiana de suas práticas não estão dissociados da forma como tais profissionais são preparados para enfrentá-los.

Colaboradores

ERG Rios, KMB Franchi e NC Costa contribuíram na revisão bibliográfica acerca do tema e na concretização do artigo. RF Amorim e RM Silva contribuíram no aprofundamento da reflexão e revisão do texto e na busca de bibliografia complementar.

Referências

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3. Fachin O. Fundamentos de metodologia. São Paulo: Atlas; 1993.         

4. Platão. A república. São Paulo: Martin Claret; 2002.       

5. Aristóteles. Metafísica. São Paulo: Abril Cultural; 1978.        

6. Fichte JG. A doutrina da ciência de 1794 e outros escritos. São Paulo: Abril Cultural, 1980.         

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12. Valla VV, Stotz EN, organizadores. Participação popular, educação e saúde; teoria e prática. Rio de Janeiro: Relumé-Dumará; 1993.       

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14. Buss PM. Uma introdução ao conceito de promoção da saúde. In: Czeresnia D, Freitas CM, organizadores. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003.        

15. Capra F. O ponto de mutação. São Paulo: Cultrix; 1987.        

16. Barreto JAE, Moreira RVO. Imaginando erros. Fortaleza: Casa de José de Alencar/Programa Editorial; 1997.        

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18. Amorim R. A física cartesiana (a concepção da nova ciência da natureza). Revista Humanidades 1994; 11(9):108-119.        

19. Kleinman A. What is specific to biomedicine? In:________Writing at the margin: discourse between anthropology and medicine. Berkeley: University of California Press; 1995.        

20. Tesser CD, Luz MT. Uma introdução às contribuições da epistemologia contemporânea para a medicina. Rev C S Col 2002; 7(2): 363-372.        

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24. Barosso MGT, Vieira NFC, Varela ZMV, organizadores. Educação em saúde no contexto da promoção humana. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha; 2003.       

Ediara Rabello Girão RiosI;

ediara@yahoo.com

Kristiane Mesquita Barros FranchiII;

Raimunda Magalhães da SilvaII;

Rosendo Freitas de AmorimII;

Nhandeyjara de Carvalho CostaIII

IFaculdade Christus. Rua João Adolfo Gurgel 133, Papicu. 60190-060 Fortaleza CE.
IIUniversidade de Fortaleza - UNIFOR
IIIUniversidade Vale do Acaraú UVA

Ciência& Saúde Coletiva v.12 n.2 Rio de Janeiro mar./abr. 2007



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