Ciência, vivência, consciência...

Enviado por Ladislau Dowbor


  1. Inícios
  2. Faculdade
  3. Tempo de luta
  4. Polônia
  5. Rumo ao Sul
  6. A volta
  7. Nicarágua, Nicaraguita
  8. Gerações
  9. Prefeitura
  10. Áreas de pesquisa em desenvolvimento
  11. Nota bibliográfica

Março de 1997

A formação científica é apenas parcialmente um processo técnico. Conjugam-se e se articulam raízes emocionais, história vivida, meio social e também instrumentos técnicos e visões teóricas. A ênfase do presente artigo será portanto na "mistura" dos diversos níveis. Sugere-se ao leitor uma leitura crítica: nada mais perigoso do que um economista falando de si mesmo, com a imensa propensão que temos, porque uma nuvem de hipóteses sempre nos circula na cabeça, de pensar que o ocorrido já nos era previsto. Esta capacidade de previsão a posteriori não ocorre, é preciso dizê-lo, somente entre economistas.

Inícios

Nasci na França, em 1941, de pais poloneses, numa casa jogos na fronteira espanhola. É provavelmente difícil um brasileiro imaginar o que era nascer na Europa em 1941, no meio de um conflito que ceifou 80 milhões de pessoas. Nascia-se onde se podia. Como a Espanha era de moralidade elevada, as pessoas ricas iam jogar e se divertir na França, e assim o regime franquista semeou os Pireneus de casinos. Os meus pais, que tinham participado da I Guerra Mundial, e na Segunda já não se entusiasmavam com os hinos patrióticos, fugiram dos alemães pelo sul da Polônia, e foram parar na França, e continuaram fugindo para o sul à medida que os alemães avançavam. Assim fui nascer nos Pireneus, numa casa de jogos. Tudo tem as suas razões.

Nascer no estrangeiro é importante, porque já se nasce fora do lugar. Ou seja, a criança já é obrigada a tomar consciência de como é, pois as crianças, que reagem agudamente a qualquer diferença, de roupa, sotaque ou cultura, têm com uma criança estrangeira um prato cheio. Assim, desde os primeiros anos, vão se confrontando culturas: nada é realmente espontâneo, natural, óbvio, pois cada coisa é vista de uma forma em casa, e de outra forma na rua. Em casa era pai e mãe, a Polônia, a religião, os valores. Na rua e na escola, outra cultura, outros valores. Não havia um sistema "natural" de valores, e sim a possibilidade de diversas valorizações para cada coisa. Desde pequeno, a necessidade da escolha.

A guerra é outro fator. Todo europeu é marcado por ela. Marcado em particular pela profunda convicção de que qualquer homem, rico ou pobre, educado ou não, em determinadas circunstâncias vira herói, e em outras vira bicho. De ver as aberrações de que o ser humano é capaz em certas circunstâncias, perde-se a visão do "homem bom" e do "homem mau" como determinantes do comportamento. Segundo o ditado, o homem é as suas circunstâncias. Mais importante do que glorificar o bom ou perseguir o mau, é pensar nas circunstâncias, no contexto que constrói ou destrói as relações sociais.

Em 1951 chegamos ao Brasil, pois meu pai, um engenheiro metalúrgico, tinha conseguido um contrato com a Belgo-Mineira, em João Monlevade. Ficamos alí na Vila dos Engenheiros, e era um choque para mim, o primeiro choque no Brasil, de ver um universo tão profundamente dividido entre os de cima e os de baixo, entre a Vila dos Engenheiros e a Vila Tanque, onde viviam os trabalhadores. A grande impressão de quem chega da Europa, realmente, é de que a divisão em Casa Grande e Senzala continua intacta, por mais tecnologia moderna que se introduza. De certa forma, sedimenta-se outra idéia, que se tornaria consciente mais tarde, de que modernidade é uma forma digna de relações humanas, e não abundância de máquina ou automóvel.

Meu pai nunca gostou do autoritarismo dos luxemburgueses. Expôs-me um dia um plano simples de melhoria da produtividade da laminação, corrigindo um erro estrutural grotesco da fábrica. Perguntei-lhe o que acharam na diretoria: olhou-me espantado, pois nunca iria comunicá-lo à diretoria, não era do seu interesse. Marcou-me muito a atitude, pois me parecia óbvio que uma pessoa que vê uma forma de melhorar algo tomaria providências para fazê-lo. Na visão do meu pai, obviamente, a fábrica era "eles", o outro lado da cerca, outro mundo. Assim um engenheiro numa empresa estava ao mesmo tempo dentro e fora, cumpria a sua obrigação e recebia o seu salário. Cada lado cumpria apenas a sua obrigação. Um dia solidarizou-se com um trabalhador contra um engenheiro alemão. Pouco tempo depois procurava emprego em São Paulo. A fábrica também dividia o mundo em "nós" e "eles".

Minha mãe era médica. Enquanto o meu pai abria espaço em São Paulo, ficamos em Belo Horizonte, onde estudei no Colégio Loyola, morando na Gameleira. Em plena Afonso Pena, uma mendiga, com um bebê evidentemente subnutrido nos braços, veio lhe pedir esmola. Minha mãe viu a criança, armou um escândalo, não arredou o pé enquanto não chamaram médico, ambulância, o diabo. Eu, com 11 anos, puxava a minha mãe pelo braço, morrendo de vergonha. Mas ela era assim, não tolerava o intolerável, e não tinha nenhum medo de escândalo. Certas coisas simplesmente não se aceitam. Ainda hoje, vinte anos após a sua morte, sinto como que uma herança da sua solidez. É preciso dizer que já para se formar médica nos anos vinte, uma mulher tinha de ser um bocado mulher.

A sua solidez não foi suficiente para se adaptar, ou a sua capacidade de se indignar seria demasiada para o cotidiano do Brasil. Com a morte de Stalin, decidiu voltar para a Polônia, preparando o retorno da familia. O retorno não aconteceria. Efeito indireto da guerra, enquanto o segmento brasileiro da família engrenava na realidade local, ela foi sendo reabsorvida pela familia na Polônia. Como o meu pai trabalhava em empresas do interior, eu e meu irmão, ambos adolescentes e já instalados em São Paulo, passamos a viver a ampla liberdade da vida nas pensões da cidade, gozando intensamente as esquinas, os bares, os jogos de futebol nas várzeas, toda uma dimensão de vida e uma riqueza de convívio que compensavam amplamente a perda da vida familiar organizada. Era a riqueza cultural brasileira digerindo rapidamente as heranças européias, como tinha feito com tantas gerações de imigrantes.

As emoções andam por caminhos desconhecidos. Apaixonei-me desesperadamente por uma moça judia, de origem polonesa como eu. O pai, ao descobrir que a filha andava com um goi, mandou-a sumariamente para Israel, para que conhecesse rapazes circuncizados. A Europa e os seus ódios continuavam ativos no Brasil, e nos colhiam, a mim e à Pauline, com toda força. O pai tinha perdido a familia na Polônia, e não perdoava que a filha não herdasse os seus ódios. Trabalhei um ano inteiro, era 1963, tentando juntar dinheiro para encontrá-la em Israel, numa época em que viajar para a Europa era um acontecimento. Como meu pai trabalhava na Açonorte, em Pernambuco, fui trabalhar no Recife, onde me tornei repórter do Diário da Noite e do Jornal do Comércio.


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