A economia da família

Enviado por Ladislau Dowbor


  1. A família como unidade econômica
  2. A poupança famíliar
  3. Família e trabalho
  4. Referenciais individuais e sociais
  5. Sofá, TV e salgadinho
  6. Há lugar para vida inteligente

Março de 2003

Nós nos reproduzimos através de gerações sucessivas. E a unidade básica de organização desta reprodução é a família. Ou pelo menos foi: hoje, o processo está se tornando incomparavelmente mais complexo e diversificado.

A família como unidade econômica

Vísta pelo ângulo da economia, a reprodução de gerações numa família se constrói através de laços de solidariedade. Os pais cuidam das crianças, e dos seus próprios pais já idosos, e serão por sua vez cuidados pelos filhos. A solidariedade é marcada pela panela, pelo fato de um grupo sobreviver em torno do mesmo fogão de cozinha. Não é à toa que "lar" tem a mesma raiz que "lareira", como é o caso também, por exemplo, de "foyer" e "feu" em francês. Como a criança não tem autonomia para sobreviver, e nem o idoso, a sobrevivência das sucessivas gerações dependia vitalmente no passsado, e ainda depende em grande parte nas sociedades modernas, da solidariedade famíliar.  

Em termos econômicos, a fase ativa da nossa vida, tipicamente dos 16 aos 64 anos, pode ser vista como produzindo um excedente: produzimos nesta idade mais do que o consumido, e com isto podemos sustentar filhos e idosos, eventuais deficientes, ou doentes, ou pessoas da família, mesmo em idade ativa, que não tenham como sustentar-se. Em outros termos, a economia da família permite, ou permitia, uma redistribuição interna entre os que produzem um excedente, e os que necessitam deste excedente para sobreviver.

O que está acontecendo, é que a família está deixando de assegurar esta ponte entre produtores e não-produtores. A família ampla, onde se misturavam avôs, tios, primos, irmãos, praticamente desapareceu, ainda que sobreviva em regiões rurais. O capitalismo moderno, centrado no consumismo, inventou a família econômicamente rentável, composta de mãe, pai e um casal de filhos, o apartamento, a geladeira para 12 ovos, o sofá e a televisão. É a família nuclear.

A tendência mais recente, é a desarticulação da própria família nuclear. Nos Estados Unidos, apenas 26% dos domicílios têm pai, mãe e filhos. Na Suécia, seriam 23%. Hoje contam-se nos dedos os amigos que não estão divorciados. Mesmo quando estão juntos, pai e mãe trabalham, os filhos estão na escola (quando está tudo em ordem), e a vida famíliar resume-se frequentemente a uma pequena roda cansada olhando para as bobagens da televisão no fim da noite.

O próprio casamento tem um futuro incerto. Um balanço da situação na Europa ocidental e em países de expressão inglesa, constata que há quarenta anos havia em torno de 5% de nascimentos sem casamento. Hoje, esta proporção ultrapassa 30%. Esta tendência pode ser muito desigual: no Japão, apenas 1%. Entre os hispánicos nos Estados Unidos, são 42%, e entre negros americanos, 69%, enquanto a média geral americana é 33%.

A mudança profunda e acelerada na estrutura famíliar terá sem dúvida profundo impacto sobre um grande número de dinâmicas sociais, a cultura, os valores, as formas de convívio. Interessa-nos aqui particularmente a dinâmica da reprodução social.

O ser humano nem sempre obedeceu à filosofia geral do homo homini lupus, homem lobo do homem. Para além da família, havia as comunidades, os clãs, tribos, quilombos, sociedades mais ou menos secretas e as mais diversas formas de solidariedade social. Ou seja, podia-se procurar o vizinho. Hoje, nesta era da sociedade anônima, uma pessoa está literalmente só na multidão urbana. A urbanização, e sobretudo a metropolizaçao, contribuiram para isto, mas também contribuiram a televisão, a formação dos subúrbios e das cidades-dormitório, e uma série de fatores tão bem estudados por Robert Putnam em Bowling Alone.

Voltaremos a isto. O que nos interessa neste momento, é o fato que junto com a família é a própria articulação da comunidade e da solidariedade social que se fragilizam.

Com a revolução tecnológica, o conhecimento torna-se um elemento central dos processos produtivos. Com isto, se uma geração atrás a infância terminava com o quarto ano, hoje, para a maioria das pessoas, a fase dependente no início da vida tende a estender-se cada vez mais, e vemos com frequência jovens que vivem uma pós-adolescência tardia, buscando mais um ano de estudo, à procura de um emprego no horizonte.

Do lado do idoso, havia uma certa lógica nas sociedades de antigamente. Vivia-se até os 50 anos, quando muito, e o tempo de criar os filhos era a conta justa.  Hoje, uma pessoa pode perfeitamente viver até os 80 ou mais anos, e a terceira idade assume uma dimensão que cobre entre um quarto e um terço da nossa vida. Trata-se, aqui também, de uma fase de dependência muito precária, pois os sistemas de aposentadoria, tanto em termos de cobertura como de nível de remuneração, são amplamente deficientes, enquanto a família comercialmente correta simplesmente evita o convívio.  

Ou seja, o tempo de dependência da nossa vida aumentou dramaticamente, enquanto a família, que assegurava a redistribuição do excedente entre as gerações – e entre as fases remuneradas e não-remuneradas das nossas vidas – está se tornando cada vez menos presente. Este processo torna absolutamente indispensável a presença de mecanismos sociais de redistribuição de renda, suprindo o papel que as famílias estão deixando de desempenhar. Trata-se de uma redistribuição de renda já não só dos ricos para os pobres, mas entre gerações.

Passamos a depender, portanto, de mecanismos formais de redistribuição do excende entre produtores e não produtores. Neste contexto, o ataque generalizado ao Estado, a redução do espaço do Estado de bem-estar – que aliás nunca foi muito amplo entre nós – e sobretudo a privatização das políticas sociais, tornam portanto a situação absolutamente dramática para amplas faixas da população. A continuidade do processo se rompe.

Tentar reduzir o Estado, sobretudo nas suas dimensões sociais, constitui portanto um absurdo, e uma compreensão completamente equivocada do rumo das transformações sociais. Os paises desenvolvidos, que possuem de forma geral amplas políticas sociais, se dotaram de máquinas estatais que gerem, em média, 50% do produto interno bruto. Em comparação, nos nossos pobres países em desenvolvimento o Estado gere em média 25% do Pib.

É importante lembrar que as políticas públicas, apesar de todo gosto que temos em criticar o Estado, constituem de longe o instrumento mais eficiente de promoção de políticas sociais, e em todo caso as únicas que permitem o reequilibramento social. Basta constatar a excelência nesta área atingida pelo Canadá, pela Suécia, ou ainda comparar o Canadá com  os Estados Unidos, onde com o dobro do gasto não se chega nem longe da qualidade dos serviços de saúde canadenses. Isto sem falar de Cuba, onde a excelência na área da saúde é atingida com recursos extremamente exíguos. A razão é bastante simples, e meridianamente clara por exemplo na saúde: uma empresa privada quer ter mais clientes, o que no caso da saúde significa mais doentes. Com isto se perde a visão essencial da prevenção. Na educação, o processo é semelhante, com as universidades privadas aumentando simplesmente o número de alunos por professor: aluno é dinheiro, professor é custo. As pricipais universidades americanas são privadas, mas sem fins lucrativos. No caso brasileiro, com a forte concentração de renda, o setor privado, quando entra no social, busca naturalmente servir quem pode pagar, e gera o luxo para elites, drenando recursos e privando os serviços humanos do seu papel de reequilibrador social.


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