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Gênero, Violência e Rede Social (página 2)

Arneide Bandeira Cemin

2.2 Rede social pessoal e rede de narrativas

A rede social pessoal na sociedade capitalista e industrial tem como base à família nuclear (Ariès 1981) onde geralmente ocorrem as primeiras relações sociais. Conforme vão aparecendo novos vínculos com quem interagimos de maneira regular, a rede social pessoal aumenta proporcionando uma certa estrutura para o indivíduo. Segundo Sluzki (1997: 41) "a rede social pessoal pode ser definida como a soma de todas as relações que um indivíduo percebe como significativas ou define como diferenciadas da massa anônima da sociedade". Esta rede é representada por Sluzki através de um mapa mínimo (segue ilustração a baixo) que leva em consideração todos os indivíduos que interagem com o sujeito.  O mapa vem dividido em quatro quadrantes que são: 1- a família; 2- as amizades; 3- as relações de trabalho ou estudo; 4- as relações comunitárias, de serviço ou credo.

Na dimensão desses quadrantes apresentam-se três áreas. Estas áreas são classificadas por um círculo interno que corresponde às relações íntimas geralmente sendo familiares com contato cotidiano e amigos próximos; um círculo intermediário que são as relações pessoais com menor grau de compromisso tais como familiares intermediários, relações sociais ou profissionais com contato pessoal, porém sem intimidade; e por último um círculo externo de conhecimentos e relações ocasionais como por exemplo conhecidos do trabalho ou escola, bons vizinhos, familiares distantes, ou freqüentadores de uma mesma comunidade.  

Conforme Sluzki, a avaliação da rede pode ser realizada com base nas características estruturais: tamanho, composição, dispersão e densidade. Funcionais: companhia social, apoio emocional, guia cognitivo e ajuda material. Atributos do vínculo: função predominante, versatilidade, freqüência dos contatos e a história dos relacionamentos.

FUNÇÕES DA REDE

ESTRUTURA DA REDE

ATRIBUTOS DE VÍNCULOS

Companhia Social

Tamanho

Função Social

Apoio Emocional

Composição

Versatilidade

Guia Cognitivo

Dispersão

Freqüência dos Contatos

Regulação Social

Densidade

História dos relacionamentos

Ajuda Material


A rede de narrativas é o campo de histórias comuns a uma família ou a uma rede social mais ampla onde "o foco da atenção já não é o indivíduo, ou a família, ou a rede como tal, mas as histórias encaixadas no espaço virtual da conversação entre pessoas, ou seja, a narrativa" Sluzki (1997: 131). Considera que para o indivíduo se sentir parte de uma família não são levadas em conta apenas os aspectos biológicos, mas também o compartilhamento de histórias, descrições, valores e os relatos que fazem referencia aos aspectos particulares de uma determinada rede familiar.

A narrativa apresenta três elementos: os atores que são os personagens da narrativa, os roteiros, que são conversas e ações, e por último os contextos, que são cenários onde transcorrem as ações, as histórias. Estes elementos são ligados entre si e podem variar de acordo com as disposições de cada um deles.

3 RESULTADOS

3.1 Renda, religião e escolaridade

As mulheres se mostraram mais receptivas e interessadas que os homens em participar da pesquisa.  Alguns homens se negavam a participar dizendo que nunca tinham sido chamados a comparecer na delegacia e temiam "sujar" o nome, por isso preferiam não comentar nada sobre o assunto que os levou até lá. Diziam que não sabiam porque tinham sido intimados. Um homem se manifestou dizendo que nós não deveríamos pesquisar sobre casais, pois segundo ele "casal só trás problemas".

Por causa da resistência apresentada pelos homens, obtivemos uma desigualdade proporcional no total das fichas de identificação do EGO entre homens e mulheres. Ao todo foram preenchidas 24 fichas, sendo que destas, dezoito foram de mulheres e seis foram de homens.

A faixa etária tanto das mulheres quanto dos homens entrevistados se concentrou entre 20 a 45 anos, o que revelou o envolvimento de uma população bastante jovem, em atos de violência conjugal.

Quanto à religião, a mais expressiva foi a católica com 58% entre homens e mulheres. Apenas dois homens e uma mulher disseram não ter religião. O nível de escolaridade tanto entre os homens como entre as mulheres é baixo, pois 55% disseram não possuir o ensino fundamental completo o que os remete ao desemprego ou a empregos mal remunerados.

Como conseqüência a renda também é baixa ficando em torno de um a dois salários mínimos. Das dezoito mulheres, seis disseram não ter emprego. Entre os seis homens entrevistados, um disse estar desempregado e dois fazem bico[4] para se manterem.

Quanto aos motivos da denúncia obtivemos a mesma proporção de ocorrência registrada na estatística da Delegacia da Mulher que segundo o jornal "Diário da Amazônia" de março de 2004, as principais queixas que levam a denúncia na Delegacia da Mulher são crimes de lesão corporal, ameaça de morte, além da violência doméstica de modo geral. No ano de 2001 foram registradas 2.526 ocorrências, em 2002 esse número aumentou para 3.401, tendo uma pequena redução em 2003 com 3.338 registros. Encontramos equivalência entre os resultados de nossa pesquisa e os registros estatísticos da Delegacia da Mulher.

Em decorrência da complexidade do estabelecimento de contatos interpessoais, impossíveis de se efetivarem em curto prazo, e ainda considerando o fato deles serem mediados posteriormente por protocolos de pesquisa "invasivos" na medida que abordam questões e espaços tratados em âmbito privado a exemplo das questões relativas a parentes homossexuais, usuários e/ou vendedores de drogas, filhas que engravidam antes do estabelecimento de laços afetivos e de bases econômicas capazes de orientar a condução da vida familiar, considerando ainda, que essas vivências são tratadas em geral como sigilo de família, foi possível, em um ciclo do Programa de Iniciação Cientifica (PIBIC/CNPq), estudar 18 homens e 06 mulheres e entrevistar em profundidade dois casais cujas redes totalizaram cinco mulheres e dois homens.

As redes foram divididas em Rede A e Rede B e são melhor compreendidas por heredogramas[5], nos quais são representados os sujeitos pesquisados. Salientamos ainda que todos os nomes referidos neste artigo são fictícios para resguardar a identidade dos sujeitos da pesquisa.

3.2 Mobilidade Social

O tipo de mobilidade social apresentada na Rede A e B é de deslocamento horizontal na estrutura social, que é comprovado pela trajetória dos ascendentes. Na Rede A os ascendentes do ex-casal Viviane e José sempre trabalharam na roça como bóias-frias e meeiros, eles próprios também trabalharam como bóias-frias e meeiro e hoje trabalham como vendedores de churrasquinhos e bananas e batatas fritas em uma praça do centro da cidade de Porto Velho, e pelo fato de sua filha sair de Porto Velho onde tinha vergonha de ser camelô, indo para o Mato Grosso trabalhar como empregada doméstica.

Na Rede B, o pai de Josilda era operário de construção civil e a mãe era dona de um pequeno restaurante. O pai de Jerônimo herdou uma padaria que pertencia ao seu avô, onde fabricava pão com tecnologia manual e mão de obra familiar. Depois que se casaram Josilda trabalhou como manicure e Jerônimo montou uma oficina mecânica que funcionou na década de 70 e 80 quando o garimpo de ouro no Rio Madeira, em Porto Velho, estava no auge da exploração. Há vinte anos eles mantêm um pequeno comercio que Jerônimo pretende deixar como herança para seus filhos. A filha Cristina juntamente com o ex-marido tentou três vezes manter um bar, mas devido às brigas e separações acabou falindo e fechando. Cristina já trabalhou também como empregada doméstica e agora está desempregada. Uma de suas irmãs é faxineira numa instituição privada e seu ex-marido é faxineiro numa instituição bancária no centro da cidade.

3.3 Rede Social. Rede A: ex-casal Viviane e José

Na rede A apresentamos as relações significativas para o ex-casal Viviane e José.

Dados da Historia de Vida do Casal

A trajetória de migração deste casal iniciou no Paraná quando Viviane e sua família, retirante nordestina migraram para lá na década de 1950 em busca de trabalho nas lavouras de café. A família de José também era de trabalhadores rurais, o pai vindo da Bahia e a mãe do interior de São Paulo, fronteira com o estado do Paraná. Depois que se casaram, ela com 19 e ele com 20 anos, partiram para São Paulo retornando em seguida para o Paraná, os dois sempre trabalhando no meio rural como trabalhadores temporários (bóias-frias), no corte da cana e na colheita de laranjas. No ano de dois mil, os dois, juntamente com seu casal de filhos, migraram para Porto Velho passando a atuar como mercadores ambulantes de alimentos (churrasquinho, bananas e batatas fritas).

No início do ano de 2004 eles separaram-se, ela com 43 anos de idade e ele com 41 anos. Três meses depois, ela constituiu um novo casamento e ele experimenta novas relações, que fez questão, diante de nós e de sua parceira circunstancial, presente no momento da entrevista, de repetir que procurou a sua ex-mulher pedindo o retorno da relação, reafirmando que ela foi precipitada e ele injustiçado por ser acusado de infidelidade, que ele afirma, "jamais cometeu".

Análise da Rede A: Viviane

A composição da rede social da Viviane é ampla, pois apresenta relações familiares (família do atual marido); amizade de trabalho e da igreja evangélica, inclusive ela lamentou durante a entrevista que o pastor a tivesse proibido de comungar por causa de sua nova união não formalizada de acordo com os preceitos religiosos, porém isso não a fez romper o compromisso com a igreja, visto que prepara as condições para o retorno: quer fazer a separação jurídica e oficializar a nova relação, pensando mesmo em ter filho com o novo marido.

A rede social de Viviane apresentou dispersão alta, já que três pessoas citadas como importantes, os pais dela e a filha, moram no estado de Mato Grosso. A filha migrou para lá porque tinha vergonha de ser camelô e atualmente está trabalhando como empregada doméstica naquele estado. A densidade é considerada média, pois nem todas as pessoas citadas se conhecem, ela encontra-se amparada pelos filhos e pelas novas relações com os familiares e conhecidos do atual marido.

As funções de companhia social, apoio emocional, guia cognitivo e ajuda material, são distribuídas entre as relações familiares e amizades de trabalho. A função de regulador social atribuímos ao filho e ao atual marido, pois durante a pesquisa presenciamos uma cena onde o filho dizia para a mãe, num tom bastante imperativo, para não falar mais sobre o assunto. Depois ela nos contou que o marido também havia feito o mesmo pedido, e por isso ela nos solicitou que não estendêssemos a pesquisa aos sujeitos da sua rede pessoal. Portanto a rede ficou restrita a ela e ao seu ex-marido, evidenciando a impossibilidade de produção discursiva por parte deles, talvez como forma de superar pelo silencio um fato que precisa ser esquecido: a presença incômoda do seu ex-marido.

O silenciamento, neste caso, foi efetuado pela interdição masculina (filho e marido). Mesmo assim, ela desejou finalizar o protocolo de pesquisa conosco, evidenciando seu desejo de falar sobre o assunto. E ela conseguiu o consentimento do marido e nos concedeu seu relato de vida e respondeu a entrevista semi-estruturada, desde que ocorresse fora do espaço doméstico, de modo que a pesquisa continuou na clínica de psicologia da Universidade Federal de Rondônia - UNIR. Ela destacou como ponto de conflito o fato dele ser infiel, o controle que ele exercia sobre os ganhos monetários dela, a rejeição sexual e a depreciação do seu corpo e de sua pessoa praticada por ele ao compará-la aos padrões estéticos valorizados socialmente, destacando-se o racismo, pois segundo ela, ele dizia que ia arrumar uma mulher "bem branquinha e loira, porque não gosta de preta". Viviane é negra e José é branco, louro e tem olhos azuis. Ela nos disse que nas ocasiões em que ele a evitava sexualmente Viviane disse-nos que "...metia o pé na porta do quarto e partia para cima dele na cama porque eu gosto de sexo" concluiu com ênfase que nos surpreendeu dado o nosso estereótipo da mulher evangélica, como assexuada.

José

A rede pessoal de seu ex-marido é bastante restrita. Os familiares não foram citados na rede, nem o filho que atualmente mora e trabalha com a mãe na venda de "churrasquinho" e nem a filha que mora no estado do Mato Grosso. O que ele fez questão de frisar foi seu estado de mágoa por ter sido forçado a separar-se por exigência da mulher e pressão dos filhos. Chegando a comentar que o filho "não compreende o lado dele", tendo por isso ficado em defesa da mãe. Apenas três amigas de trabalho foram citadas como desempenhando a função de companhia social e apoio emocional

A pesquisa evidenciou a desvantagem econômica dele em função da partilha dos "bens de produção" do casal, ele ficando com o carro que possibilita apenas a venda de batatas/bananas fritas e ela com o carro que permite a venda de churrasco, acompanhamentos e refrigerantes, gerando uma diferença significativa na renda: ele ganhando entre 400 a 500 reais mensais e ela aproximadamente 1000 reais mensais. Os carros aqui referidos não são automóveis, e sim os chamados "carrinhos" de venda ambulante. O cotidiano de trabalho deste ex-casal os aproxima em função da vizinhança de seus carros de venda. Ambos trabalham na praça Getúlio Vargas. O acesso ao espaço de venda é feito pela compra do ponto através da associação de camelôs.

Rede B: Cristiane, Josilda Jerônimo, Carla e Márcia

A rede B foi construída a partir da Cristiane ampliando-se com a sua prima Carla, os pais de Cristiane: Jerônimo e Josilda; e ainda Márcia, amiga de Josilda.

Resistência masculina e generalização da violência

Antes de apresentarmos a análise quanto às narrativas da rede trataremos da resistência masculina em abordar o assunto da violência entre o casal. Além da recusa em colaborar com a pesquisa, e mesmo diante de denuncias formais eles em geral dizem ignorar o motivo pelo qual foram intimados. O ex-marido de Cristiane não participou da pesquisa porque não compareceu aos cinco encontros combinados, incluindo duas idas a sua residência (que anteriormente era a residência do casal) num bairro periférico de difícil acesso que se originou a partir de uma invasão no ano de 2000, e que ainda hoje não possui as condições  adequadas para moradia como iluminação pública, saneamento básico, água encanada, transporte coletivo, posto de saúde e posto policial.

Entretanto as tentativas não foram vãs, pois em uma das idas á sua residência, tivemos oportunidade de conversarmos com uma de suas vizinhas. Ela relatou que ali os casos de violência física são freqüentes e citou dois casos, sendo um vivenciado por ela mesma e o outro foi uma tentativa de homicídio, que envolvia um casal visinho, onde a mulher dependente química tentou matar o marido no meio da rua utilizando uma faca. Só não conseguiu cometer o crime porque os vizinhos viram a briga e a seguraram. Ao ser atendido no hospital, levantou-se sua ficha policial onde constava acusação de homicídio. Ele foi preso, e a mulher foi embora não se sabe para onde. Hoje ele se encontra em liberdade condicional. Passa o dia com a filha que tem 10 anos de idade, e a noite vai para o presídio e a criança dorme na casa de vizinhos.

O caso vivenciado pela própria vizinha com quem conversamos foi o abandono que ela sofreu de seu ex-marido e pai de suas duas filhas que, na época tinham entre 3 e 6 anos de idade. Ela nos contou que estava morando com ele em Recife e decidiram voltar para Porto Velho. Ele pediu que ela partisse primeiro, com as duas filhas, e prometeu reencontrá-las dali a um mês em Porto Velho. Porém, isso não aconteceu. Ele escreveu algumas cartas (que tivemos a oportunidade de ler porque ela nos mostrou espontaneamente. A impressão que tivemos foi a de que elas apresentavam um tom de preocupação e de carinho com a mulher e as filhas), mas depois perderam o contato porque ela considerou que as cartas não eram o bastante, frente ao imenso esforço que ela despendia ao criar as duas filhas sem a presença paterna.

Hoje ela mora com um outro homem que ajudou a construir sua casa de madeira reaproveitada e ainda inacabada, e a casa onde mora a filha mais velha (em terreno que ela disse que é de propriedade dele). Esta filha é solteira e teve um filho aos 15 anos de idade. Para sustentar o filho, trabalha a noite numa lanchonete e, por causa disso, não teria dado continuidade aos estudos, que foram interrompidos no ensino fundamental. A mãe, se "vira como pode" vendendo roupas e cosméticos de consumo popular. Ela demonstrou preocupação quanto a possíveis tentativas de sedução do marido para com suas filhas, dizendo evitar que fiquem a sos.

Análise da Rede B: funções, estrutura e atributo dos vínculos

A composição desta rede é de relações familiares, amizades e trabalho. A relação comunitária apresentada entre as mulheres foi a igreja e para o Jerônimo foi a associação de moradores, onde assume o cargo de líder comunitário. As redes apresentam baixa dispersão, já que as famílias procuram morar próximas. Um dos motivos apontados é o fator econômico, como exemplo, temos o caso da residência do casal Josilda e Jerônimo que é descrita por eles como pequena, entretanto nela moram sete adultos e quatro crianças. Outro fator é a ajuda mútua que se torna possível com a proximidade da família, particularmente o cuidado das crianças pela avó. A falta de condições adequadas para a moradia pôde ser apreendida ainda pelo comportamento apresentado pela família em todas as nossas visitas: o espaço doméstico é inacessível para os de fora em função do sentimento de vergonha pelo que eles consideram a precariedade da casa, a começar pela falta de espaço. Esse motivo foi reafirmado pelos membros da família como razão para não adentrarmos o espaço doméstico, em todos os nossos contatos.

A densidade é alta, pois todas as pessoas apresentadas na rede se conhecem. A Rede apresenta homogeneidade quanto a idade das pessoas apontadas como significativas, e também em relação a classe social e cultura. As funções de companhia social, apoio emocional, guia cognitivo e ajuda material, são divididas como na rede anterior entre família e amizade. Nos momentos de crise a família foi apresentada como importante meio para a superação dos mesmos, com exceção da Carla que disse recorrer a amigos em detrimento da família.

As narrativas da rede

Cristiane é uma jovem de 27 anos, tem um casal de filhos de pais distintos, sendo o mais velho do seu atual ex-marido. No momento ela está desempregada por culpa de seu ex-marido que, segundo ela, a fez perder o emprego de doméstica após ligar várias vezes para a casa de sua patroa dizendo que ela tinha um caso com o namorado da mesma. Cristiane disse ter dificuldades de conseguir um emprego por ter estudado só até o Ensino Médio e não possuir conhecimentos de computação.

Durante a sua narrativa se deu conta de estar repetindo a história de sua mãe que foi diversas vezes agredida fisicamente por seu pai em presença dela e de seus irmãos e irmãs. Relatou que aos dez anos de idade, vendo seu pai ameaçar matar a sua mãe com um espeto de churrasco, ela se colocou em defesa dela apontando uma faca no pescoço do pai e dizendo: "se você matar a minha mãe eu mato você". Depois disso seu pai teria cessado de bater em sua mãe.

Há dois meses está separada, e já fez duas denúncias contra seu ex-marido na Delegacia da Mulher. A primeira vez apresentou como motivo a tentativa dele fazer sexo a força com ela, e o ciúme dele que ela diz ser "doentio". Na segunda denúncia, o motivo foi à ameaça de morte.

Durante a narrativa, Cristiane também levantou como motivo de sua separação, as brigas constantes quando o marido chegava bêbado em casa e a agredia fisicamente ela e seu casal de filhos. Disse ser humilhada por não trabalhar e viver as custas dele, porém quando conseguia um emprego ele dizia que ela queria sair para se encontrar com outros homens. A relação de marido e mulher era de dominação por parte dele, pois não aceitava o seu posicionamento e escolhas.

Outro ponto de disputa foi a casa, que havia sido comprada com o dinheiro de ambos, pois Cristiane descobriu que o ex-marido tinha registrado a casa no nome da irmã dele. Cristiane disse que ele fez isso porque desconfiava que ela em qualquer oportunidade iria tomar a casa que ele considerava dele. Ao denunciar o ex-marido Cristiane saiu de casa com seus dois filhos e foi para a casa de seus pais levando apenas as roupas e os filhos.

Cristiane também relatou casos extraconjugais que o ex-marido mantinha. Este foi um dos motivos que a fez sair de casa para a casa de seus pais, em uma das brigas. Diz que nessa ocasião "flagrou" o ex-marido com outra mulher (uma adolescente de 15 anos que freqüentava o bar deles),   em sua cama.

Os motivos da união relatados por Cristiane foram os freqüentes presentes que recebia de seu ex-marido quando estavam namorando, e as festas que freqüentavam. "Ele me levava para os "piseiros" e eu achava que seria sempre assim: presentes e festas..." Na época ela tinha dezessete anos e ele vinte e três. Cristiane disse também que ele era muito carinhoso, tinha um pouco de ciúmes, mas não como agora que chega até a agir agressivamente. Quando estava com 20 anos ficou grávida e tentou abortar, mas não conseguiu. Quando seu pai descobriu expulsou-a de casa e foi amparada por sua prima Carla. Durante a gravidez seu ex-marido não deu nenhum apoio, pois pensava que ela havia engravidado de outro homem, somente quando a criança estava com três meses que ele a reconheceu como filho e passaram a morar juntos.

Durantes os dois primeiros anos Cristiane disse que o seu casamento foi bom "logo no começo quando começamos a morar juntos foi bom, mas depois veio a desconfiança, ele não confiava em mim, junto com ciúme doentio dele, fui desgostando dele porque ele me batia".

Cristiane relata que o marido não chegou a usar armas nas agressões, mas já utilizou fio elétrico e a própria força física: "... ele  já me bateu de fio elétrico, já deu assim na minha cara, me puxou pelos cabelos, me arrastou, me jogou contra a parede, me jogou no chão, que eu já fiquei toda ralada, já me jogou pra fora de casa, tudo isso ele fazia comigo e as crianças presenciaram tudo".

Josilda, mãe de Cristiane, tem 44 anos de idade e trinta e um anos de casada. Tem quatro filhas, três delas já sofreram agressão física de seus maridos. De seus dois filhos, o mais novo tem 22 anos e é alcoólatra, segundo Josilda, que nos disse: "ele bebe até cair".

Josilda estudou até a quinta série do Ensino Fundamental e trabalha num pequeno comércio (bar) que ela e o marido construíram a mais de 15 anos. No bar ela faz praticamente todo o serviço indo dormir às três horas da manhã. Também é ela que faz todo o serviço doméstico, sem a ajuda do marido, inclusive cuidar dos netos, tarefa da qual ela nos disse, gostaria de ser dispensada. Na casa moram 11 pessoas: Josilda, o marido, os dois filhos, a Cristiane com o casal de filhos, a filha mais velha com uma de suas filhas e a filha do meio que também tem uma filha.

Josilda casou aos 14 anos de idade com o seu marido que na época tinha 24 anos. Casou depois de ter fugido com ele para Humaitá (AM). Ele havia prometido levá-la para conhecer o mundo, mas como ele não tinha dinheiro, tiveram que voltar. Os pais desconfiados que ela não fosse mais virgem pediram um exame de virgindade, mas mesmo após a confirmação de que Josilda ainda era virgem seu pai a obrigou a se casar com o seu marido.

Josilda narrou que no início o seu casamento era bom, mas a medida em foram nascendo os  seis filhos, um atrás do outro, sua relação com o marido foi piorando. Além disso, o marido começou a beber e ter relações extraconjugais. Quando ele chegava bêbado em casa, Josilda sempre apanhava e seus filhos presenciavam tudo. No inicio Josilda disse que "apanhava calada", mas depois começou a reagir batendo no marido, seguindo-o armada com revólver para fazer ameaças e atirando contra suas amantes.

Quando Josilda fez o relato de vida apontou como motivo do início da violência entre ela e seu marido Jerônimo, o envolvimento dele com bebidas e outras mulheres: "... ele foi começando a beber. Aí quando ele começou a beber ficou ruim, porque a gente não se entendia mais. Aí depois eu comecei a ter muito filho também, minha vida era cuidar de menino, que eu tive logo os seis um atrás do outro, foi seis anos seis filhos. Aí eu não tinha tempo pra ele, só era para cuidar de menino e trabalhando dentro de casa. E aí que o homem vai largar achando que a mulher não tem tempo pra ele aí vai atrás de outras na rua."

Aos 14 anos quando ficou grávida pela primeira vez perdeu o filho num aborto espontâneo. Depois desse acontecido o médico disse que ela não poderia mais ter filhos. Isso levou Josilda a adotar a filha de seu cunhado que na época não tinha condições financeiras de cuidá-la. Porém no ano seguinte Josilda ficou grávida. Durante a gravidez disse ter sofrido muitas dores devido a um tumor em seu útero, deixando-a internada no hospital por seis meses. Passou seis anos tendo um filho após o outro, o que, segundo Josilda, acarretaram hemorragias freqüentes, e prolapso uterino. As dores e o sangramento só cessaram quando Josilda fez cirurgia para extrair o útero.

Márcia

Em sua rede social Josilda citou como protagonista a amiga Márcia desempenhando quase todas as funções. Josilda retrata a amiga Márcia como mulher experiente que "já passou por tudo na vida". De fato, Márcia teve 11 filhos e dois casamentos, o motivo da separação no primeiro foram as discussões constantes motivada por "implicâncias" do marido, no segundo foi o comportamento de rejeição ao filho dela do primeiro casamento, envolvido com drogas.

Três de seus filhos já morreram, sendo um em acidente de carro, e os outros dois, envolvidos com droga, foram assassinados, um no garimpo e o outro na rebelião de 2001, na Casa Penitenciaria José Mário Alves da Silva, popularmente conhecido como "Urso Branco", em Porto Velho. Também se encontra um quarto filho dela ainda em reclusão no presídio citado, levando-a, por ocasião de uma visita a ele, ela ficou como refém durante três dias na rebelião ocorrida em maio do corrente ano, no mesmo presídio. Apesar de enfrentar sozinha tantos acontecimentos trágicos, Márcia afirma que só obteve melhorias econômicas e pessoais ao decidir ficar "sem homem dentro de casa". A partir daí construiu uma casa confortável para ela, seus filhos e netos; e os mantém e os ampara em suas dificuldades.

Jerônimo admitiu ter tido desde o início do casamento relações extraconjugais, que ele avalia como prazerosa, afirmando ser bom para o homem sair com várias mulheres, entretanto, ao ser perguntado sobre a razão do prazer ele respondeu de forma perplexa, "não saber", pois considera que todas as mulheres são iguais sexualmente, desde que estejam saudáveis. Fazendo referencia a sua mulher, disse que ela desde o primeiro filho ficou com o "útero caído" o que era "horrível de se ver". Ele nos disse em fundamento ao direito do homem ter várias mulheres, que ouvia na televisão os índices do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, quando anunciava, por exemplo, a proporção de 10 mulheres para cada homem, fazendo com que ele indagasse: onde estão as minhas outras nove mulheres? Admite que a bebida e o "mulherio" prejudicaram a ele e a sua família, disse se sentir grato por sua mulher ter sido paciente com suas bebedeiras, suas infidelidades e o uso da maior parte de seus ganhos com "farras". Disse ainda, que esse é o comportamento tradicional dos homens de sua família, cujo protagonista é o seu avô. Ele entende que deu continuidade a esse modelo e vê a imagem dele em Cristiane, sua filha que curiosamente tem um apelido que além de masculino remete para o lúdico.

Jerônimo confirmou já ter batido em sua mulher, ao ser questionado sobre o que o levava a bater em sua esposa, ele argumentou: "Maldita violência, isso é o machismo". Outro motivo, além do machismo, apontado por Jerônimo foi o ciúme que ele tinha por sua esposa com medo que ela também o traísse: "Tinha bastante ciúme dela e tenho até hoje. Como explicação ele diz que "é aquela história do machismo". Eu queria fidelidade dela, mas eu não dava, entendeu? Era uma coisa de machismo mesmo".

Carla

Carla é filha da irmã de Josilda. A mãe de Carla foi assassinada pelo namorado diante dos filhos. Ela o conheceu no presídio "Urso Branco" ao acompanhar uma amiga que visitava o marido. O assassino pretendia atingir a filha dela, Carla, que se opunha a relação deles, pois temia que sua mãe viesse a ter filhos com esse homem, subdividindo ainda mais a pequena herança deixado pelo seu pai. Por essa razão ela já não falava com a mãe há dois meses. Só voltaram a se falar porque Carla queria convencer sua mãe a romper definitivamente o seu relacionamento com o namorado ao ficar sabendo que ele havia esfaqueado sua mãe e tentado abusar sexualmente de sua irmã, na ocasião com 12 anos de idade. A ida a casa de sua mãe na noite do crime era justamente para falar sobre o fato de mais esse abuso. Quando chegou na casa, Carla impediu que os dois conversassem sozinhos no quarto suspeitando que ele pudesse vir a matar sua mãe, o que o fez pegar a faca que havia escondido em sua cintura e partir para cima de Carla que foi defendida por sua mãe que se colocou na frente dela e recebeu uma facada no pescoço que a levou a óbito.

O seu irmão mais novo por ocasião do assassinato de sua mãe, ao agarrar-se na perna do agressor foi atingido por ele com um corte superficial de faca no abdômen. Segundo Carla, por causa disso, ele "cresceu revoltado" e na adolescência envolveu-se com tráfico de drogas e morreu assassinado num confronto entre traficantes e policiais.

Com a morte da mãe, Carla assumiu a criação de seus quatro irmãos (com 12, 09, 06 e 03 anos de idade) causando com isso conflito ao seu próprio casamento posteriormente desfeito em função das criticas do modo como ela conduzia a educação dos irmãos, segundo ele, de forma muito "solta". As relações extraconjugais dele eram outro ponto de conflito: "nervoso ia para os bares beber. Aí começou a arrumar mulher ... mas eu nem ligava. – se você não arrumar nenhum filho eu não brigo não, não vou sacanear. Mas vai ter que me largar primeiro pra poder assumir."

Apesar de suas advertências ele engravidou outra mulher, levando-a a consumar a separação.

4. CONCLUSÃO

A pesquisa permitiu que chegássemos as diversas formas de relacionamentos A violência doméstica ultrapassa a relação do casal. Pudemos perceber isso no caso de Carla que relatou a tentativa de abuso sexual que o namorado da mãe fazia com sua irmã que na época tinha 12 anos. Também o envolvimento de seu irmão mais novo com tráfico de drogas e em decorrência disso o seu assassinato em um confronto com a polícia. Márcia e Josilda também relataram o envolvimento dos filhos com drogas, o que levou os filhos de Márcia a serem presos no Urso Branco e depois assassinados na rebelião de 2001.

As redes são conectadas a núcleos de violência de intensidades e formas diversas, a exemplo do número de pessoas que em uma rede, apesar de não ter sido expandida, mostrou que ao "puxarmos o fio" a partir da Delegacia da mulher e ao seguirmos a rede social do sujeito nos deparamos com conexões que envolvem apenados do "Urso Branco". Ao mesmo tempo, o histórico dos casais é permeado de violência desde a família de origem dos mesmos, o que nos leva a validar a hipóteses desta pesquisa sobre a generalização social da violência que se mantém instituída por redes sociais que estabelecem marcas dolorosas ao tempo em que, às vezes contraditoriamente repõe as esperanças de mudanças nos relacionamentos entre homens e mulheres.

Os motivos da violência apresentados nas narrativas tanto de homens como de mulheres foi o consumo de bebida alcoólica, relação extraconjugal e ciúme "doentio". Pudemos perceber que o tema narrativo que se mostrou relevante na rede B foi a violência contra as mulheres que se repetiu em varias gerações. Josilda relatou que o seu pai era filho de escrava que foi engravidada pelo patrão em um ato de estupro. Josilda casou-se com Jerônimo e durante vinte e cinco anos foi agredida fisicamente, três vezes ameaçada de morte com arma de fogo, faca e espeto de metal para churrasco. Ao mesmo tempo, Josilda procurava descobrir casos sexuais de seu marido e atacava as mulheres que encontrava com ele com xingamentos, tiros, facas e outras formas de ameaça, constituindo um ciclo permanente de reprodução da violência.

Todos os sujeitos da pesquisa relataram que no início do namoro e casamento não havia violência entre o casal e os motivos da união mais apresentados por eles, além da questão econômica,  foi a atenção e o carinho que recebiam um do outro, os agrados como presentes e saídas para as festas. Como motivos da separação as mulheres indicaram a perda de interesse pelos maridos quando a violência se torna presente na vivencia do casal e também quando percebem que as brigas estão prejudicando os filhos, pois a separação não acontece por desinteresse total de um pelo outro, mas pelas marcas da violência que ficam no corpo e na memória, instituindo um cotidiano difícil de ser suportado. As mulheres geralmente são as que  tomam a iniciativa quanto a separação, como foi percebido no caso de Viviane, Carla, Cristiane e Márcia.

Com a análise da Rede Social vimos ainda, que a decisão de separação é apoiada por uma terceira pessoa que apresenta uma atuação significativa na rede, como foi no caso da Viviane que foi apoiada pelos filhos e de Cristiane que foi apoiada pelos pais.

O cotidiano das relações conjugais apresentou interferências de um sistema maior que é a sociedade. Essas interferências são decorrentes da estrutura social que deveria proporcionar condições mínimas para a qualidade de vida de homens e mulheres, tais como acesso à educação escolarizada, saúde, alimentação, vestuário, moradia, transporte, segurança e lazer. Quando estes casais vivem momentos de conflito são geralmente amparadas por seus familiares que por sua vez também apresentam fragilidades estruturais e sócio-econômicas.

Vale ressaltar que a Delegacia da Mulher contribui para a redução da violência ao inibir sua propagação e aprofundamento. Entretanto, alem da ampliação dos serviços de proteção, é preciso  pesquisa para gerar conhecimento sobre o imaginário social veiculado pelas redes sociais, envolvendo problemas complexos, como é o caso da violência social em uma de suas modalidades especificas: a violência conjugal.


BIBLIOGRAFIA:

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1981.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

CEMIN, A.; SCARABEL, C. A.; SOUZA, M. F. B.; GOMES, S. M. Imaginário de gênero e violência em Porto Velho. In: Primeira versão. Porto Velho: EDUFRO. Ano III, nº 128 - janeiro de 2003.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal,1985.

PAIS, José Machado. Vida cotidiana: enigmas e revelações. São Paulo: Cortez, 2003.

SLUZKI, Carlos E.. A rede social na prática sistêmica. São Paulo: Casa do Psicólogo,1997.

Notas

(1) Texto elaborado a partir do relatório de pesquisa "Gênero, família e violência em contexto urbano (cotidiano, rede social e imaginário)".

(3) Prof ª Dr ª do Departamento de Filosofia e Sociologia.

(4) Os serviços citados como bico foram de pintor, ajudante de pedreiro e jardineiro.

(5) Adaptado da forma original, pois também consideramos as pessoas que não são parentes.

 

Naiara dos Santos Nienow

Acadêmica do 8º período do curso de Ciências da Educação.

Arneide Bandeira Cemin



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