Duas leituras da infância segundo Monteiro Lobato



Emília. O nome de uma boneca provavelmente é a primeira "palavra-chave" que a memória puxa do fundo dos arquivos pessoais quando o assunto é Monteiro Lobato. A palavra Emília certamente abrirá algumas gavetas empoeiradas, onde a memória guarda O Sítio do Picapau Amarelo e todos os seus habitantes. Pode ser que, além de histórias infantis lidas e assistidas  na tv, as gavetas também guardem Jecas Tatus, um artigo chamado Paranóia ou Mistificação, ou quem sabe, algumas histórias envolvendo petróleo. 

O que for lembrado depois de Emília pode variar bastante de leitor para leitor. De qualquer forma, a boneca, sempre metida onde não é chamada, estará sentada no topo de tudo o que estiver arquivado com a etiqueta "Monteiro Lobato". Clichê maior que começar artigo sobre Lobato falando de Emília não há. A força da boneca, porém, é grande: se Gustave Flaubert disse "Madame Bovary sou eu", Emília poderia muito bem ter dito, em suas Memórias, "Monteiro Lobato sou eu". 

Mas Emília só começou a falar em 1921, ano de lançamento de Narizinho arrebitado, livro que iniciou a série de aventuras dos habitantes do Sítio. Antes disso, Lobato já havia escrito três livros de contos: Urupês, Cidades Mortas e Negrinha. É deste último livro o conto homônimo sobre uma menina que, como Narizinho, tem sua vida transformada por uma boneca. 

No conto Negrinha 1, o cenário é uma fazenda. Esta fazenda pertence a uma velha senhora, Dona Inácia, que cria uma menina órfã, a Negrinha do título. As Reinações de Narizinho 2 acontecem em um sítio, que pertence a outra velha senhora, Dona Benta, que cria a menina órfã e reinadora do título. Dona Benta  é 

a mais feliz das vovós, porque vive em companhia da mais encantadora das netas - Lúcia, a menina do narizinho arrebitado, ou Narizinho como todos dizem. 
Dona Inácia é 

ótima (...) mas não admitia choro de criança (...) Assim mal vagia, longe, na  
cozinha, a triste criança [Negrinha], gritava logo nervosa: - Quem é a peste que está chorando aí? 
 

Narizinho, a encantadora, é neta da dona do sítio. Negrinha, a peste, é filha de escrava da dona da fazenda. Uma menina é apresentada como Lúcia, e depois como Narizinho. A outra é apresentada como Negrinha, e se tem nome, não é dito no conto. O apelido Narizinho tem origem em uma característica física, o nariz arrebitado. A menina   

tem sete anos, é morena como jambo, gosta muito de pipoca e já sabe fazer uns biscoitos de polvilho bem gostosos. 

Negrinha também tem sete anos, e seu apelido também tem origem em uma característica física.   

Preta? Não, fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados (...) seus primeiros anos vivera-os pelos cantos da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos

 
O nome "inicia a existência religiosa e civil da criatura. O pagão é apenas uma perspectiva de direitos até que lhe imponham o nome", afirma Luiz da Camara Cascudo
3. Sem nome, não há batismo, documentos, identidade social ou identidade individual.  O que é imposto a Negrinha é um apelido que, dentro dos costumes de tratamento brasileiros poderia até  ser considerado afetivo. Essa possibilidade desaparece algumas linhas depois:   

Que idéia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa (...) - não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam.

Seu corpo "era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo." 

O narrador entra nas casas pela cozinha, cômodo em que nos são apresentadas as meninas. Em seguida, descreve-as fisicamente. As primeiras informações que se lê sobre Negrinha e Narizinho lembram dados de Censo do IBGE: nome, filiação, idade, cor. Essas "fichas" das crianças servem para mostrar o lugar que ocupavam na sociedade brasileira. O fato de aparecerem pela primeira vez na cozinha, mostra o espaço que ocupavam dentro de casa, na família. 

A cozinha era o lugar das mulheres. Narizinho sabe cozinhar, e isso funcionacomo mais um atributo, porque saber cozinhar bem era ato valorizado na educação das mulheres da época. Seu papel ativo na cozinha revela que ocupa um lugar importante dentro da família. Negrinha vive "pelos cantos", como um "gato sem dono". Seu papel passivo, dentro de um grupo duplamente passivo (criadas negras), num lugar consagrado ao sexo "frágil", torna-a ainda mais "coisa". 

Portanto, Negrinha não tem nome - tem apelido; não tem família - tem dona, que não cuida dela; não tem cor definida - é mulatinha escura; não tem lugar dentro da cozinha, dentro da casa, dentro da sociedade. Não é à toa que parece "um gato sem dono" - sua condição é quase a mesma de um animal. "Aprendeu a andar, mas quase não andava". 
Apesar de todas essas diferenças, as duas garotas vão encontrar na companhia de bonecas as experiências que trasnformarão suas vidas. 

Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma - na princezinha e na mendiga. E para ambas é a boneca o supremo enlevo.


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