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Formação discursiva: um breve retorno (página 2)

Flávio Roberto Gomes Benites

[...] o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc., não existe "em si mesmo" [...] mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas). (1997a, p. 160).

3. MICHEL FOUCAULT E A FORMAÇÃO DISCURSIVA

A noção de FD em Michel Foucault é um pouco distinta daquela proposta por Pêcheux. Foucault apresenta seu conceito em "Archéologie des Sciences", nos "Cahiers pour l"Analyse" nº 9, em 1968[2], como resposta às críticas do Círculo Epistemológico feitas em relação aos conceitos e métodos utilizados por Foucault em suas obras anteriores. Mais tarde, em 1969, ele abordará a FD em "A Arqueologia do Saber". Assim, ele estabelece quatro hipóteses para perceber a relação entre enunciados.

1)      Os enunciados, diferentes em sua forma, dispersos no tempo, formam um conjunto quando se referem a um único e mesmo objeto. (FOUCAULT, 2004, p. 36).

Essa primeira idéia está vinculada aos conceitos de dispersão e descontinuidade apresentada por Foucault já no início de "A Arqueologia do Saber". Isso significa que os objetos de análise, as temáticas estão dispersos no tempo e no espaço. Decorre daí o desconforto que este filósofo causou na História tradicionalmente contada, uma vez que esta está pautada na linearidade dos fatos, na tentativa de estudá-los com a objetividade dos pensadores positivistas[3]. Por isso, Foucault argumenta, "A questão é saber se a unidade de um discurso é feita pelo espaço onde diversos objetos se perfilam e continuamente se transformam, e não pela permanência e singularidade de um objeto". (Op. cit., p. 37).

2)      A segunda hipótese diz respeito à forma e ao tipo de encadeamento entre enunciados.

Aí, Foucault encontra o estilo como um caráter permanente da enunciação. Ele cita a Medicina como exemplo, observando que ela possui um "corpus de conhecimentos que supunha uma mesma visão das coisas" (Op. cit., p. 38) e que, no entanto, suas descrições não param de se deslocar. Isso faz com que, segundo Foucault, a posição de sujeito observante muda as relações com o paciente a partir de técnicas laboratoriais, as análises e instrumentos que estão em constante transformação. Segue assim a noção de dispersão e regularidade,

Seria preciso caracterizar e individualizar a coexistência desses enunciados dispersos e heterogêneos, o sistema que rege sua repartição, como se apóiam uns nos outros, a maneira pela qual se supõem ou se excluem, a transformação que sofrem, o jogo de seu revezamento, de sua posição e de sua substituição. (Op. cit., p. 39).

3)      A outra hipótese Foucault a aponta por meio de um questionamento: "Não se poderiam estabelecer grupos de enunciados, determinando-lhes o sistema dos conceitos permanentes e coerentes que aí se encontram em jogo?" (Op. cit., p. 39).

A resposta dele é negativa, pois, com o exemplo da Gramática, o autor diz que aí também os conceitos mudam, derivando um dos outros e por vezes são até incompatíveis. Foucault propõe "analisar o jogo de seus aparecimentos e de sua dispersão" (Op. cit., p. 40) a partir da não identidade entre os objetos, os conceitos e temas.

4)      A última hipótese é concernente à identidade e persistência dos temas.

Foucault parte da idéia de que "Em "ciências" [...] é legítimo, em primeira instáncia, supor que uma certa temática seja capaz de ligar e de animar [...] um conjunto de discursos". (Op. cit., p. 40). No entanto, essa persistência dos temas deve ser visto como jogos de conceitos a partir da mesma temática. Esta permanece a mesma mas pode ser tratada sob dois olhares discursivos. Foucault cita o tema do evolucionismo:

No século XVIII, a idéia evolucionista é definida a partir de um parentesco das espécies que forma um continuum prescrito desde o início [...]. No século XX, o tema evolucionista se refere menos à constituição do quadro contínuo das espécies do que à descrição de grupos descontínuos [...]. (Op. cit., p. 41).

é então procurando descrever sistemas de dispersão que Foucault apresenta o seu conceito de FD:

Num caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva [...]. (Op. cit., p. 43).

é mediante a essas considerações que se pode vincular o conceito de FD às instáncias do poder. Essa idéia será desenvolvida por Foucault em "A Ordem do Discurso" (1970). Para o propósito deste trabalho, tenta-se apenas evidenciar essa relação sem, contudo, abordá-la de modo mais acurado. Para tanto, segue-se a idéia do filósofo,

A formação regular do discurso pode integrar, sob certas condições e até certo ponto, os procedimentos do controle (é o que se passa, por exemplo, quando uma disciplina toma forma e estatuto de discurso científico) e, inversamente, as figuras do controle podem tomar corpo no interior de uma formação discursiva. (FOUCAULT, 2003, p. 66).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao percorrer a trajetória de M. Pêcheux e M. Foucault no que diz respeito à FD, pôde-se perceber alguns pontos de divergência e de aproximação no conceito de ambos.

Uma primeira sugestão é ver que a noção foucaultiana afasta-se da ideologia pecheutiana, uma vez que o próprio Foucault a considera "inadequada", "demasiado carregada". Este procura fundamentar a sua FD como o campo das "regularidades discursivas"; ele quer descrever as relações entre enunciados, além de questionar como estes podem fazer parte da mesma "ordem de discurso".

Outra idéia que parece pertinente é perceber uma convergência na idéia de interdiscurso. Enquanto Pêcheux argumenta que uma FD pode ser atravessada por elementos que vêm de outras FDs - o que significa dizer que ela é constituída por "discursos transversos" -, Foucault assevera que os enunciados estão dispersos no tempo e no espaço e que é preciso, por meio da análise, estabelecer os nexos entre eles. Assim, a FD, nos termos foucaultianos, procura descrever "sistemas de dispersão". Paradoxalmente, ele trabalha com a idéia de unidade e dispersão.

5. REFERÊNCIAS

BARONAS, R. L. Formação discursiva em Pêcheux e Foucault: uma estranha paternidade. In: SARGENTINI, V. & NAVARRO-BARBOSA, P. M. Foucault e os domínios da linguagem: discurso, poder, subjetividades. São Carlos: Claraluz, 2004.

CHARAUDEAU, P. & MAINGUENEAU, D. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004.

FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 9.ed. São Paulo: Loyola, 2003.

_____. Arqueologia do saber. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.

PÊCHEUX, M. Semántica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 3.ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997a.

­­_____. A análise de discurso: três épocas. In: GADET, F. e HAK, T. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux, M. 3.ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997b.

NOTAS

[1] Doravante abreviar-se-á como FD.

2 Texto traduzido para o Português por Luís Felipe Baeta Neves em "Estruturalismo e teoria da linguagem". Petrópolis: Vozes, 1971.

3 Para maior esclarecimento sobre este novo olhar para a História, confira CERTEAU, M. de. A escrita da história, 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. e LE GOFF, J. A história nova. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

 

 

Autor:

Flávio Roberto Gomes Benites

frgbenites[arroba]gmail.com

Professor do Departamento de Letras da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT) - Campus de Cáceres -  Mestre em Letras pela UFPB



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