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Um pouco de filosofia na ciência jurídica (página 2)

Marco Aurelio Paganella

Para melhor entendimento do sistema estrutural apregoado, o mestre vienense concebeu uma pirámide, a chamada "Pirámide de Kelsen", segundo a qual, uma norma hierarquicamente inferior encontra fundamento de validade na imediatamente superior e assim sucessivamente, até que se chegue à chamada norma hipotética fundamental - acima da própria Constituição - e, digamos, "inserida" no (in)consciente coletivo dos componentes de determinado Estado. Por aqui (pelo (in)consciente coletivo) já se percebe ser impossível, em termos de Ciên-cias Jurídicas, uma concepção pura, na acepção da palavra, e desprovida de qualquer ponderação valorativa.

Neste diapasão, considera-se o ordenamento jurídico como um complexo de relações normativas escalo-nadas, na base do qual e como ponto de apoio de todo o sistema estaria a norma fundamental ou, em alemão, a Grundnorm. Afinal, onde há hierarquia, há interdependência e onde há interdependência entre normas, a validade das que estão num patamar abaixo dependem das que estão logo acima. E, se não houvesse uma "solução de continuidade plausível e coerente", esta inter-relação hierárquica "terminaria" no infinito, razão pela qual o sistema se encerra no pressuposto lógico do já mencionado (in)consciente coletivo dos membros de determinado Estado.

"Do conceito de validade é que se pode partir para o conhecimento do fundamento de todo o ordenamen-to jurídico: a norma fundamental (Grundnorm). De fato, na cascata das recíprocas relações de validade entre as normas é que reside a chave para a dissecação do conceito de norma fundamental, que nada mais é que o fundamento último de validade de todo um sistema jurídico. O sistema jurídico, para Kelsen, é unitário, orgánico, fechado, completo e auto-suficiente; nele, nada falta para o seu aperfeiçoamento; normas hierarquica-mente inferiores buscam o seu fundamento de validade em normas hierarquicamente superiores. [...]

Assim, o conjunto de normas forma a ordem jurídica, que é um "sistema hierárquico de normas legais". Toda ordem jurídica requer um regresso ad infinitum por meio das normas, até a norma fundamental (esta é "pressuposição do pensamento jurídico", e não um dado histórico). Caso contrário, inexistente a norma funda-mental, devem-se aceitar pressupostos metafísicos para a fundamentação da ordem jurídica (Deus, ordem uni-versal, contrato social, Direito Natural etc.). O que se pode reconhecer é que existe um consentimento de todas as pessoas em aceitar a Constituição, e é a partir desse simples dado que deve raciocinar o jurista; esse é o "princípio da eficácia" de Kelseniano. Kelsen termina por afirmar que a "ciência jurídica não tem espaço para os juízos de justiça", mas somente para os juízos de Direito."7

Em suma, Hans Kelsen, com sua teoria, entende que a Ciência do Direito pode ser pura, dotada de cer-teza, rigor e especificidade na sua investigação, a par do distanciamento e/ou afastamento das conotações valo-rativas, históricas, éticas, etc. que permeiam as ciências humanas. E, deste modo, um juiz somente poderia utili-zar-se da eqüidade, dos princípios gerais de direito, da analogia, dos costumes uma vez autorizados pelas pró-prias normas que compõem o sistema, haja vista que, ao julgar e prolatar uma sentença, o magistrado está crian-do uma norma individual e, como tal (como norma), deve encontrar seu fundamento de validade em disposições hierarquicamente superiores.

Para o argentino Carlos Cossio, "A ciência jurídica deve estudar a conduta humana enfocada em sua dimensão social, e não a norma jurídica. A fim de chegar a essa conclusão, partiu de uma análise onto-lógica do direito, determinando sua essência e situando-o no campo da cultura. Cultura é tudo o que o ser huma-no acrescenta às coisas (homo additus naturae, diziam os clássicos) com a intenção de aperfeiçoá-la. Abrange tudo o que é construído pelo homem m razão de um sistema de valores. O espírito humano projeta-se sobre a natureza, dando-lhe uma nova dimensão." (grifos).8

O pressuposto fundamental da teoria egológica de Carlos Cossio é vislumbrar o Direito como incrustado e/ou incorporado no próprio ego - daí o nome - em justaposição com a própria conduta do ser dotado de cognição. A egologia, portanto, denota que os problemas que exsurgem seriam resolvidos por meio da intuição, do pensamento inerente ao ser humano, pois, por esta acepção, a inteligência apreenderia imediatamente a es-sência do direito, não sendo necessário recorrer-se, a princípio, a nenhuma norma.

Sobre o tópico, Cossio enfatiza: "Quando os aviões alemães, em 1914, estavam criando o risco de ser Paris bombardeada, os franceses transportaram a Vênus de Milo ao subterráneo do Louvre, envolvida em sacos de areia, a fim de protegê-la contra eventuais bombas. Assim se fez com o patrimônio artístico do Museu. Por que não se pode proteger o Direito francês, que é também uma realidade cultural? A resposta só podia ser uma: por-que na conduta dos franceses estava o Direito francês, não podendo ser assim resguardado em subterrá-neos."9

Como visto, o cerne da teoria egológica reside, sobretudo, na conduta humana compartilhada em todas as suas inter-relações. O próprio "portenho" esclarece: "La conducta, claro está, es la propria vida humana; para hablar del Derecho como conducta, se requiere en ésta uma especificación. El Derecho siempre es vida humana, ni más, ni menos; pero no toda vida humana es Derecho. Cuando nos referimos al Derecho como con-dicta no se trata de una conduta cualquiera, sino de la conducta humana em su interferencia intersubjetiva o con-ducta compartida."10

Sendo assim, como sintetizam EDUARDO BITTAR e GUILHERME DE ASSIS ALMEIDA, o Direito, segundo essa teoria, "é um objeto cultural composto de uma única unidade formada de substrato e sentido. O substrato é a pró-pria conduta humana, e o sentido "é a intenção objetivante que, como conhecimento do expressado pelo substrato, tem o sujeito cognoscente que conhece o objeto cultural. O sentido só pode constituir-se quando esti-ver referido a um valor e fundamentado no valor, de modo que o sentido se integra com esta valoração, que o sustém."11 (grifos).

Na abalizada lição de MARIA HELENA DINIZ, resumindo, "Para a teoria egológica, a ciência do direito deve ter por objetivo o conhecimento do direito, que seria o conhecimento da conduta humana em sua interferência inter-subjetiva e dos valores que a informam. Deve, portanto, o sujeito pensante estabelecer, intelectivamente, uma relação entre conduta e valor, a fim de obter o conhecimento do direito. A pesquisa jurídico-científica deve partir da observação da conduta, valendo-se da compreensão para que, mediante a consideração de valores possa captar o "sentido normativo" de seu objeto."12

Destarte, para a teoria egológica, mais importante que a própria norma (teoria pura do direito) é a condu-ta humana e a própria interação do ego (pensamento (in)consciente) em sociedade.

Como corolário, a bem da verdade, não há que se considerar que uma teoria seja melhor ou pior que a outra. Tampouco deve-se entender que o europeu está mais à frente que o sul-americano, por questões geográfi-co-econômicas ou, ainda, por ser mais famoso. A constatação relevante deste estudo, perfunctório, é certo, mas com conteúdo de inescusável significação, é a de que ambas as teorias contribuem sobremaneira para o pro-gresso social, na medida em que uma complementa a outra, sem exclusão das inúmeras outras teorias existen-tes.

Ora, determinar que as relações interpessoais estejam única e exclusivamente, pelo sistema prescrição-sanção, vinculadas a um conjunto de normativo (teoria pura do direito), seria uma postura e uma atitude deveras acanhada, bem como seria um inequívoco desconhecimento à essência do ser humano.

Da mesma forma, achar que somente pela conduta compartilhada e com (bons) valores incrustados no (in)consciente coletivo o sistema jurídico funcionaria perfeitamente - e os anseios da sociedade seriam atendidos -, seria uma imensa ingenuidade.

Por este prisma, força é convir que ambas têm seus defeitos, assim como têm suas virtudes. Ademais, por estarem no campo da ciência e da filosofia, quando transportadas para o mundo fático e real, a sabedoria humana quase sempre usa o que cada uma tem de melhor.

Basta, para tanto, ater-se à seguinte dicotomia: numa situação hipotética, a ordem jurídica não mais pune o homicídio; nem por isso a esmagadora maioria das pessoas sairia por aí matando a esmo. Nesta acepção, a conduta humana (teoria egológica) segue fins quase sempre pacíficos e, caso alguém cometesse tal crime, cer-tamente sua conduta seria reprovada não apenas pelos seus pares, mas, também pela sua própria consciência, ou seja, o seu próprio ego. A sanção, neste caso, serviria para corrigir uma patologia advinda do não seguimento de uma conduta inerente ao ser humano: não matar. Logo, nesta situação, não há dúvidas de que a concepção de Cossio se aplica, sem embargo.

Noutra ponta, estando os contribuintes desobrigados ao recolhimento de tributos, logicamente que pou-quíssimos iriam atrás do Fisco se oferecendo para pagar o que não devem. Neste sentido, a teoria pura do direito tem razão de ser, visto que, coloca a prescrição de conduta vinculada diretamente à sanção, uma vez não sendo a prescrição obedecida. A punição, neste enfoque, assume releváncia significativa, pois, sem ela, ninguém segui-ria a conduta prescrita, motivo pala qual a teoria pura do direito se aplica e obtém resultados.

E o estudo e a pesquisa devem continuar, sempre no sentido do progresso e do desenvolvimento social.

é o que se tem, salvo melhor juízo.

Notas de rodapé convetidas
1 Curso de filosofia do direito. 3ª ed. São Paulo : Atlas, 2004, p. 35.
2 Idem, p. 35.
3 Lições preliminares de direito. 24ª ed. São Paulo : Saraiva, 1998, p. 16-7.
4 Curso de filosofia do direito. 3ª ed. São Paulo : Atlas, 2004, p. 337.
5 Idem, p. 354.
6 Ibidem, p. 337.
7 Bittar e Almeida. Op. cit., p. 338-9.
8 DINIZ, Maria Helena. A Ciência Jurídica. 6ª ed. São Paulo : Saraiva, 2003, p. 31-2.
9 Apud Diniz, A Ciência Jurídica, p. 62-3.
10 Apud Bittar e Almeida, Curso de Filosofia do Direito, p. 353.
11 Bittar e Almeida, Op. cit. p. 353.
12 A ciência jurídica. 6ª ed. São Paulo : Saraiva, 2003, p. 35.

BIBLIOGRAFIA

ARAUJO, Luiz Alberto David. NUNES JR., Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 3ª ed. São Paulo : Saraiva, 1999, 414p.
BITTAR, Eduardo C. B.. ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 3ª ed. São Paulo : Atlas, 2004, 570p.
COSTA, Carlos Adalmir Condeixa da. O Conceito de Liberdade na Teoria Egológica do Direito. Rio de Janeiro : Lumen Júris, 2004, 204p.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 9ª ed. São Paulo : Saraiva, 1997, 586p.
_____, Maria Helena. A Ciência Jurídica. 6ª ed. São Paulo : Saraiva, 2003, 182p.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 9ª ed. São Paulo : Atlas, 2001, 810p.
________, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. São Paulo : A-tlas, 2002, 2930p.
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 24ª ed. São Paulo : Saraiva, 1998, 396p.
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 19ª ed. Rio de Janeiro : Forense, 2002, 882p.

 

 

Autor:

Marco Aurelio Paganella

marcopaganella[arroba]adv.oabsp.org.br



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