Liberdade e má-fé

A principal intuição que regula todo o pensamento de Sartre sobre a primeira questão, a que tem a consciência por objecto, é explicitada por Sartre logo no seu artigo de 1936, 'A transcendência do Ego', e em mais não consiste do que na rejeição de que a consciência possa ser pensada como dispondo de conteúdo. Nem os objectos visados pela consciência, nem o mundo como seu correlato exterior, nem o próprio Eu estão na consciência. A consciência vive sob a paradoxal condição de não ter interior tendo exterior. A consciência não se “alimenta”, não “digere”, não “assimila” o estranho; a sua relação com o mundo não é uma relação de apropriação, seja no sentido de posse, seja no de tornar próprio o estranho. Isto porque o mais íntimo e próximo objecto de uma consciência não lhe é menos exterior que o mais estranho e distante objecto de consciência - este copo de água de que sou agora consciente não me é, segundo Sartre, mais exterior do que qualquer sentimento que me pudesse assaltar a consciência. Falar do copo de água ou do desejo que dele tenho é sempre falar de uma exterioridade relativamente à consciência. E, nisto a menor ou maior intimidade, a acessibilidade ou inacessibilidade pública não servem de critério para demarcar o transcendente do imanente, sequer o objectivo do subjectivo. O Eu, por mais íntimo e privado que seja, está do lado de fora do círculo sem interior que é a consciência, habitante do mundo como qualquer outro habitante, seja outro Eu seja este simples copo de água. A esta luz, ser o meu próprio Eu privado, e inacessível a outrem, é uma contingência que não traz nenhuma implicação quanto ao que se diz ser próprio à consciência. A inacessibilidade é condição necessária à subjectividade, mas não é seu fundamento. Daqui retira-se, com algum proveito, uma consequência para os debates hodiernos na Filosofia da Mente - não é pela distinção entre qualia e percepta, entre perspectiva na primeira e na terceira pessoas que se poderá realmente enfrentar o problema habitualmente reconhecido como “problema duro” acerca da relação mente/corpo.

Sem interior, sendo-lhe tudo exterior, então à consciência nenhuma relação é possível com o mundo a não ser uma relação de não ser - a minha consciência é consciência deste copo de água, desta sede e da satisfação em a matar não as sendo. Mesmo a consciência que acabo de ser, instantes atrás, já não a sou; ainda que o seja de algum modo, já não sou o meu passado; nada nele me determina; a cada instante que passa descolo-me, desenvisco-me, do instante que passa e de qualquer causalidade que me pudesse determinar no passado o que sou no presente. Sem determinismo que me desculpe o que sou, sou, enquanto consciência, no seu ser, liberdade.



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André Barata
abarata[arroba]ubi.pt


 
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