Página anterior Voltar ao início do trabalhoPágina seguinte 


A Síndrome de Otelo – quando o ciúme se torna patológico (página 2)

Thiago de Almeida

Muitos são os comportamentos que revelam que uma pessoa pode estar se excedendo em seu ciúme, se acaso, não esteja tão claro pára a própria pessoa. Comportamentos tais como examinar bolsos, carteiras, recibos, contas, roupas íntimas e lençóis, ouvir telefonemas, abrir correspondências, seguir o cônjuge ou mesmo contratar detetives particulares para fazer isso costumam não aliviar e ainda agravar sentimentos de remorso e inferioridade das pessoas que padecem de ciúme excessivo. Um exemplo disso é caso que Wright (1994) descreveu de uma paciente que chegava a marcar o pênis do marido com caneta para conferir a presença desse sinal no final do dia.

O ciúme é de grande interesse da psiquiatria, sobretudo para a forense e também para a psicologia, a partir do momento que sua manifestação é patológica e destrói a harmonia do relacionamento (Gillard, citado por Todd, Mackie & Dewhurst, 1971; Torres, Ramos-Cerqueira & Dias, 1999; Rassol, 1996). Ainda que de grande importância para ser estudado, outro fator complicador deste estudo é a vagueza e a indistinção do limite entre o ciúme normal e o patológico (White & Mullen, 1989).

De acordo com os autores Kingham & Gordon (2004), o ciúme patológico é um conjunto de pensamentos e emoções irracionais, junto com comportamentos extremos ou inaceitáveis, em que o tema dominante é a preocupação com a infidelidade do parceiro sexual sem base em evidências concretas. Bishay, Petersen e Tarrier (1989) e Tarrie et al (1990) propuseram que pessoas com ciúme patológico tendem a fazer distorções sistemáticas e erros em suas interpretações e percepções de eventos e informações, então um evento precipitador dá chance á suspeitas inconsistentes e provocam o ciúme patológico.

O ciúme patológico pode ser diagnosticado ainda que o parceiro considerado infiel realmente o seja ou tenha sido (Kingham & Gordon, 2004; Soyka, Naber & Völcker, 1991). Uma das dificuldades para se diagnosticar o ciúme patológico é a possibilidade de haver outra psicopatologia dominante. Dentre as co-morbidades mais comuns relatadas está o Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), sugerido por alguns autores (Tarrier et al (1990); Dolan & Bishay (1996); Parker & Barret (1997); Gangdev (1997); Torres, Ramos-Cerqueira & Dias, 1999; Michael, Mirza, Babu & Vithayathil, 1995; Cobb & Marks, 1979).

Um estudo realizado por Cobb & Marks (1979) analisou quatro sujeitos com ciúme patológico acompanhado por rituais compulsivos. Neste estudo os autores chegaram á conclusão de que o ciúme patológico pode se diferenciar do TOC na medida em que ele sempre envolve duas pessoas. Ainda assim, o ciúme patológico pode surgir decorrente ao abuso de certas substâncias, transtornos mentais, transtornos de personalidade, neuroses e psicoses (Kingham & Gordon, 2004).

Alguns autores chegam a equiparar o ciúme patológico a um estado de delírio (Enoch & Trethowan, citado por Kingham & Gordon, 2004). O fundamento do delírio nesta psicopatologia é limitado á desconfiança ao cônjuge, sendo que outros sintomas (delirantes) não são colocados. Neste delírio, pacientes com ciúme patológico têm a tendência a serem violentos com o cônjuge e em alguns casos podem chegar a cometer crimes (Mukai, 2003).

Mukai (2003) ressalta ainda que o delírio no ciúme patológico não deve ser equiparado ao delírio da esquizofrenia, pois é um delírio limitado aos pensamentos de infidelidade. No caso do ciúme patológico os delírios são passíveis de possuir crenças equivalentes não-delirantes em indivíduos sadios, ou seja, o delírio e o não-delírio são muito similares, pondo em questão a distinção entre normal e patológico.

No que tange o ciúme patológico, geralmente, não há fatos reais e, se existem freqüentemente superam o valor do acontecimento. Indubitavelmente, a definição para o ciúme patológico deve incluir, uma inexplicável suspeita associada á fidelidade do parceiro que modifica os pensamentos, sentimentos e o comportamento do paciente. Como esta suspeita não é confirmada por qualquer prova real e não somente prejudica a vida da pessoa que sofre deste transtorno, como também afeta o parceiro e o relacionamento. Há tentativas para confirmar estas suspeitas são comuns e pode envolver a interpretação da correspondência do parceiro, a checagem dos seus trajetos e a contratação de detetives particulares. Então, freqüentemente, a pessoa enciumada interroga constantemente seu parceiro sobre os eventos que ocorreram em seu dia e sobre os supostos episódios de infidelidade.

A evitação de situações que provocam ciúme também é comum. Discussões e acusações também acontecem e podem resultar em violência verbal ou física. Dessa forma, a partir de uma emoção considerada normal, o ciúme pode se manifestar de uma forma explosiva, intensa. O indivíduo exagera em suas atitudes que expressam ciúme, não tem uma perspectiva de haver um fim, apesar de comprovar que suas suspeitas não são reais, gerando ansiedade, depressão, raiva, culpa, insegurança e desejo por retaliação. A aparição de ciúme excessivo com um sentimento de posse sobre o cônjuge e um temor de perdê-lo, originados pela existência de uma insegurança pessoal, leva a uma diminuição do respeito á pessoa amada. Desta maneira, o ciúme demonstra um sinal de instabilidade emocional acentuada, confundindo amor com posse (Hintz, 2003).

Os autores Easton, Schipper e Shackelford (no prelo) se questionam a respeito da relatividade que pode haver entre os perigos implicados pelo ciúme mórbido e o ciúme sexual, apontando para os dados de Daly & Wilson (1988) que nos mostram que o maior preditor de homicídios é o ciúme sexual até então.

Nas palavras de Mira y López: "Na realidade, o ser ciumento trava uma batalha consigo próprio, e não contra quem ama ou contra quem cobiça o bem amado. é no próprio núcleo do amor "ciumento" que se engendra a inquietação e cresce a biotoxina que o envenena" (Myra y López, 1998, p. 174). "O indivíduo ciumento permanece ambivalente entre o amor e a desconfiança de seu parceiro, tomando-se perturbado, com labilidade afetiva e obcecado por triangulações" (Hintz, 2003, p.48). Pessoas ciumentas podem se tornar obsessivas com detalhes de seus rivais (Guerrero & Afifi, 1999). Tipicamente a pessoa ciumenta precisa de constante reafirmação de seu amor-próprio. Em geral, esta desconfia de seu próprio valor e, por isso, tende a julgar que não é tão importante e nem bastante amada.

Principalmente para o ciumento irrealístico o maior sofrimento é em decorrência da incerteza quanto á traição. Consoante Ramos (2000) mais importante que a confirmação da infidelidade em si é a incerteza que consome a mente destas pessoas, porque em casos de ciúme extremo decorrentes de disfunção perceptiva, mesmo que não haja provas evidentes da infidelidade do parceiro, o ciumento toma alguns indícios como se fossem provas irrefutáveis, cuja validade ou falsidade é indiferente para o seu grau de sofrimento.

Toda relação amorosa, a princípio, pressupõe um grau de ciúmes saudável, por assim dizer. Nesse sentido, uma total apatia, segundo o que raciocinam muitos casais, pode revelar desinteresse, pesadelo mais indesejável que alguém ciumento. O problema é quando esse ciúme passa da dose ideal e esboça contornos paranóicos. Contudo, todos os parceiros deveriam considerar que a fidelidade é algo que se faz pela relação, e assim, não deve ser um limite imposto pelos parceiros. Como o ciúme é um fenômeno que sinaliza a infidelidade devemos repensar sobre o nosso próprio ciúme. Infelizmente, quando mal direcionado, o ciúme causa tristeza nas pessoas envolvidas. O ciúme pode corroer a mente de uma pessoa a ponto dela se tornar um escravo do próprio sentimento negativo. Quantos casais já cometeram loucuras e crimes por ciúme? Quantos casais na história ou na literatura, a exemplo de Otelo, já bateram, morreram, mataram ou enlouqueceram por amor e ciúme? Muitas vezes, os crimes foram cometidos por parceiros que estavam tão cegos de ciúme, que acabaram matando o outro injustamente, sem que nada posteriormente fosse provado como verdadeiro e aí foram duas vidas que se perderam. E daí, muitas vezes o arrependimento, se chega e quando chega, é muito tardio e já não importa mais.

* Prof. Thiago de Almeida é psicólogo e pesquisador do Instituto de Psicologia (USP) - Departamento de Psicologia Clínica e autor do livro "Ciúme e suas conseqüências para os relacionamentos amorosos" (disponível pelo site: http://www.editoracerta.com.br/ciumes.asp). Seu consultório fica situado á rua Alvarenga, 683 - CEP: 05509 -000 / Butantã - São Paulo / Telefone: (11) 3097 97 53. Também atua como palestrante em assuntos relacionados á Qualidade de vida.

Referências

Almeida, T. (2007). Ciúme e suas conseqüências para os relacionamentos amorosos. Curitiba: Editora Certa.

Bishay, N. R., Petersen, N., & Tarrier, N. (1989). An uncontrolled study of cognitive therapy for morbid jealousy. British Journal of Psychiatry, 154, 386-389.

Cobb, J. P. & Marks, I. M. (1979). Morbid Jealousy Featuring as Obsessive-Compulsive Neurosis: Treatment by Behavioral Psychotherapy. British Journal of Psychiatry, 134(3), 301-305.

Daly, M., & Wilson, M. (1983). Sex, evolution, and behavior. Belmont: Wadsworth.

Daly, M., & Wilson, M. (1988). Homicide. Hawthorne NY: Aldine de Gruyter.

Dolan, M. & Bishay, N. (1996). The effectiveness of cognitive therapy in the treatment of non-psychotic morbid jealousy. British Journal of Psychiatry,168 (5), 588-593.

Easton, J. A., Schipper, L. D., & Shackelford, T. K. (no prelo). Why the adaptationist perspective must be considered: The example of morbid jealousy. Behavioral and Brain Sciences.

Guerrero, L. K., & Afifi, W. A. (1999). Toward a goal-oriented approach for understanding communicative responses to jealousy. Western Journal of Communication, 63, 216-248.

Haslam, N. & Bornstein, B.H., (1996). Envy and jealousy as discrete emotions: A taxometric analysis; Motivation and Emotion, 20, 255-272.

Hintz, H. C. (2003). O Ciúme no Processo Amoroso. Pensando Famílias, 5(5), 45-55.

Kingham, M. & Gordon, H. (2004). Aspects of morbid jealousy. Advances in Psychiatric Treatment, 10, 207-215.

Leong, G. B., Silva, J.A., Garza-Trevino, E.S., Oliva Jr, D., Ferrari, M.M., Komanduri, R.V., et al (1994). The dangerousness of persons with the Othello Syndrome. Journal of Forensic Sciences, 39, 1445-1454.

Kebleris, F. & Carvalho, L. F. (2006). Investigação de uma Estrutura para o Ciúme Romântico e Sua Manifestação Patológica. Trabalho de conclusão de curso, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo.

Knobloch, L. K., Solomon, D., Haunani, C., & Michael G. (2001). The role of relationship development and attachment in the experience of romantic jealousy.Personal Relationships, 8, 205-224.

Michael, A., Mirza, S., Mirza, K. A. H., Babu, V. S., & Vithayathil, E. (1995). Morbid Jealousy in Alcoholism. The British Journal of Psychiatry, 167 (5), 668-672.

Myra y Lopez E. (1998). Os quatro gigantes da alma: o medo, a ira, o dever, o amor. Rio de Janeiro: José Olímpio.

Mukai, T. (2003). Tiapride for pathological jealousy (Othello syndrome) in elderly patients.

Psychogeriatrics, 3, 132-134.

Parrott, W.G. (2001). Emotions in social psychology: Essential readings. Philadelphia: Psychology Press.

Parker, G., & E. Barrett. (1997). Morbid jealousy as a variant of obsessive-compulsive disorder. Australian and New Zealand Journal of Psychiatry 31, 133-138.

Ramos, A. L. M. (2000). Ciúme romântico: Teoria e medida psicológicas. São Paulo: Stiliano.

Rassol, G. (1996). Practical Forensic Psychiatry - Book Review. In Journal of Advanced Nursing, 23(3), 639-640.

Rosset, S. M. (2004). O casal nosso de cada dia. Curitiba: Editora Sol.

Soyka, M., Naber, G., & Völcker, A. (1991). Prevalence of Delusional Jealousy in Different Psychiatric Disorders. British Journal of Psychiatry, 158, 549-553.

Tarrier, N., Beckett, R., Harwood, S., & Bishay, N. R. (1990). Morbid jealousy: A review and cognitive behavioural formulation. British Journal of Psychiatry, 157, 319-326.

Todd, J., & Dewhurst, K. (1955). The Othello syndrome: a study in the psychopathology of sexual jealousy. Journal of Nervous and Mental Disease, 122, 367-374.

Torres, A. R., Ramos-Cerqueira, A. T. A., & Dias, R. S. (1999). O ciúme enquanto sintoma do transtorno obsessivo-compulsivo. Revista Brasileira de Psiquiatria, 21 (3), 165-173.

Vauhkonen, K. (1968). On the pathogenesis of morbid jealousy. Finland: Kunnallispaino.

White, G. L. (1981). Some correlates of romantic jealousy. Journal of Personality, 49, 129-147.

White, G. L., & Mullen, P. E. (1989). Jealousy: Theory, research, and clinical strategies. New York: Guilford.

Wright, S. (1994). Familial obsessive-compulsive disorder presenting as pathological jealousy successfully treated with fluoxetine. Archives of General Psychiatry, 51, 430-431.

 

 

Autor:

Thiago de Almeida

thalmeida[arroba]usp.br

Website: www.thiagodealmeida.com.br/



 Página anterior Voltar ao início do trabalhoPágina seguinte 



As opiniões expressas em todos os documentos publicados aqui neste site são de responsabilidade exclusiva dos autores e não de Monografias.com. O objetivo de Monografias.com é disponibilizar o conhecimento para toda a sua comunidade. É de responsabilidade de cada leitor o eventual uso que venha a fazer desta informação. Em qualquer caso é obrigatória a citação bibliográfica completa, incluindo o autor e o site Monografias.com.