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Breve reflexão sobre o conceito de direito adquirido (página 2)

Leandro Sarai

Segundo exemplo, agora real: No Município de Barueri/SP, foi editada uma lei em 1997 que assegurou inalterabilidade da alíquota do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza para certas atividades, por um período de 10 (dez) anos. A alíquota desse Município era relativamente baixa se comparada com outras cidades da região. A Emenda Constitucional n.º 37/02 determinou que a alíquota mínima deste imposto seria de 2%, alíquota esta maior do que as estabelecidas no Município de Barueri. Em parecer colegiado da Procuradoria do Município, entendemos que havia direito adquirido á inalterabilidade de alíquota aos contribuintes já estabelecidos na cidade e regularmente inscritos na data da publicação da Emenda. Embora tenha sido duramente criticado tal parecer, sob alegação de não haver direito adquirido na área tributária, o Município adotou o posicionamento da Procuradoria. Mas por que nesse caso há direito adquirido?

Houve expectativa legítima dos empresários do Município de que teriam uma situação mantida por 10 (dez) anos. Em razão disso, foram feitos investimentos.

Não parece legítima a mudança das regras do jogo antes do termo determinado.

Outrossim, só não seria legítima essa expectativa se a lei fosse inconstitucional, mas não se vislumbrou nenhum vício que a maculasse.

Com o advento da Emenda Constitucional n.º 37/02, a lei municipal que garantia a inalterabilidade de alíquotas não foi recepcionada, porém foram resguardados os direitos adquiridos dos contribuintes já instalados regularmente no Município.

Como se vê, se analisarmos a questão sem o enfoque da legítima expectativa não se poderia discernir acerca da existência do direito adquirido.

Terceiro exemplo: Em um contrato de compra e venda, após o comprador pagar o preço, tem direito a receber a coisa comprada? E se surgir uma lei proibindo essa venda? Em princípio haverá direito adquirido do comprador, sem falar que o contrato é ato jurídico perfeito.

Nesse caso, novamente, o comprador sabe exatamente os limites de seu direito, ou seja, sua expectativa diz respeito somente ao objeto da prestação.

E essa expectativa era legítima, pois não havia nenhum óbice no momento da contratação.

Quarto exemplo: Um determinado Município estatui benefício de complemento de aposentadoria, a ser pago até a morte do servidor inativo. Se determinado servidor estiver recebendo o benefício, será atingido por uma lei posterior que revogue a complementação? Acreditamos que nesse caso se dirá que há direito adquirido, de modo que o referido servidor continuará a receber o benefício até sua morte, conforme se verifica no seguinte julgado:

Ementa

Aposentadoria. Complementação de proventos. Empregado sob regime da CLT, do Hospital das Clinicas da Faculdade de Medicina de São Paulo. Leis 1.837, de 1951, 4.819, de 26.8.1958 e 200, de 13.5.1974, do Estado de São Saulo. Art. 153, parágrafo 3º, da C.F. e súmula 359 do S.T.F.. O acórdão recorrido, ao entender que a autora tinha 'direitos resguardados pela lei n. 200/74, o que fez foi reconhecer 'direito adquirido', respeitado pela lei nova, quando a situação era de mera expectativa de direito, pois a invalidez e a aposentação só ocorreram, no caso, em 1980. Com isso, contrariou o disposto no parágrafo 3.º do art. 153, que protege, contra a lei nova, 'direito adquirido' e não 'expectativa de direito'. e entrou em dissídio com a Súmula 359 do S.T.F., segundo a qual 'ressalvada a revisão prevista em lei, os proventos da inatividade regulam-se pela lei vigente ao tempo em que o servidor civil reuniu os requisitos necessários'. R.E. conhecido e provido para se julgar improcedente a ação. precedentes.

(STF, 1.ª Turma, RE 107627 / SP, Relator Min. SYDNEY SANCHES, j. 19/08/1988, v.u., DJ 23-09-1988, PP-24172 EMENT VOL-01516-03 PP-00458).

Mas as parcelas ainda não recebidas de complementação podem ser considerado direito exercitável? Nesse caso, parece-nos que o melhor enquadramento é na parte final do §2.º do art. 6.º da LICC, ou seja, há um termo inalterável ao arbítrio do Município, que é a morte do beneficiário.

Cuida-se de termo do tipo incerto, ou seja, o evento morte é futuro e inexorável, porém não se pode precisar o momento em que ocorrerá. (RODRIGUES, 1995:256)

Esse termo é inalterável pois, no momento em o servidor começa a receber o benefício, surge expectativa legítima de recebê-lo até sua morte.

Mais uma vez, contudo, sem utilizar o critério da legítima expectativa sob o enfoque da boa-fé objetiva, não poderíamos dizer se o termo era ou não inalterável.

Quinto exemplo, também próximo de nossa realidade atual: Um indivíduo está próximo de sua aposentadoria quando, em razão lei nova, são alteradas as regras para obtenção do benefício. Como o indivíduo não havia completado os requisitos para se aposentar, ficaria, em princípio, de acordo com jurisprudência do STF, sujeito a essa nova lei, uma vez que "não há direito adquirido a regime jurídico" (STF, Pleno, MS 22094 / DF, Relatora Min. ELLEN GRACIE, DJ 25-02-2005, p. 6, LEXSTF v. 27, n. 317, 2005, p. 118-145, RTJ 194/0874; 2.ª Turma, RE 293606/RS, Relator Min. CARLOS VELLOSO, j. 21/10/2003, DJ 14-11-2003, p.35). Porém, pode-se simplesmente dizer que não há direito adquirido a regime jurídico? é tudo ou nada? Ou do indivíduo já pode se aposentar, ou não tem direito a nada?

Não nos parece que se possa simplesmente afirmar que não há direito adquirido a regime jurídico. De fato, o indivíduo ainda não podia se aposentar. Porém, a mudança das regras do jogo não pode operar de forma inflexível para todos os indivíduos. Os diferentes devem ser tratados de forma diferente, para que todas as relações fiquem equilibradas.

Não nos parece justo que um indivíduo possa se aposentar, por exemplo, com determinado tempo de contribuição e outro, com tempo diverso, para depois ambos receberem idêntico benefício.

Indivíduos que ingressem em um regime de aposentadoria após alteração legislativa, submetem-se integralmente a esta. Porém, os que já estavam regidos pela lei anterior devem ter tratamento diferenciado.

Seria algo como um "direito adquirido proporcional". Além disso, se é para algum critério prevalecer, que prevaleça o critério da isonomia.

Daí o cabimento das regras de transição, que, todavia, devem cuidar adequadamente da situação de cada indivíduo para que haja justiça.

Justiça, como teremos oportunidade de cuidar em outro artigo, é algo matemático, embora não sejamos competentes para matematizá-la, para transformar as relações sociais em funções e demonstrar o correto ponto de equilíbrio.

Nada obstante, a teoria do caos demonstra que estamos próximos disso. (TRUMP, 2005)

Sexto exemplo: um indivíduo se compremete, simplesmente e unilateralmente, entregar prestações pecuniárias mensais a outrem, sem especificar um termo final ou condição resolutiva, e sem haver contraprestação da outra parte.

Parece razoável que a obrigação perdurará até que o promitente revogue sua declaração. Feita a revogação, só se poderá falar em direito adquirido ás parcelas percebidas e nunca áquelas vincendas.

Por ser ato de liberalidade, deve ser interpretado restritivamente e em benefício do devedor. (art. 114 do Código Civil).

Além disso, há um limite em seu próprio patrimônio, além do qual não se pode legitimamente, esperar nada. A propósito, o art. 548 do CC proíbe a doação de todos os bens.

Diferente seria a situação se o beneficiário houvesse cumprido alguma contraprestação, em razão da qual teria direito á prestações. Nesse caso, em princípio, o indivíduo em débito teria cumprir as prestações correspondentes, caso contrário, deverá indenizar a outra parte pelos danos causados pela frustração da expectativa existente, para que a relação fique equilibrada.

Para terminar, uma última questão, que ficará para reflexão: Pensando acerca de uma lei que compromete o Ente Público, obrigando-o, por exemplo, a entregar mensalmente e eternamente determinado benefício pecuniário a uma pessoa jurídica. é possível criar uma obrigação perpétua? Como ficam as gerações futuras? Os legisladores futuros? Não é demais lembrar que a Lei é manifestação de vontade do ente que a edita.

Essa questão também terá relação com as cláusulas pétreas previstas na Constituição. Esse tema, contudo, fica para um outro artigo.

Para o presente, apenas concluímos que o direito adquirido é o direito subjetivo exercitável, delimitado, inclusive no seu conteúdo temporal, incorporado, não apenas no patrimônio do indivíduo, mas em sua alma, em razão de suas expectativas, desde que legítimas, segundo a boa-fé objetiva.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BEVILÁQUA, Clóvis. Código civil dos estados unidos do brasil comentado. Ed. histórica. Rio de Janeiro, 1940.

CARRAZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

REALE, Miguel. Visão geral do Projeto de Código Civil . Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 40, mar. 2000. Disponível em: < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=509>. Acesso em: 30 out. 2006.

RODRIGUES, Silvio. Direito civil. v.1. 25.ed. São Paulo: Saraiva, 1995.

SILVA, José Afonso. Comentário contextual á constituição. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

TRUMP, Matthew A. What is chaos? August 14 1998 disponível em : <http://order.ph.utexas.edu/chaos/index.htmlAcesso em ago.2005.

 

 

Autor:

Leandro Sarai

lsarai[arroba]adv.oabsp.org.br



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