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A Prostituição Judaica no Início do Século XX: desafio à construção de uma identidade étnica positiv (página 2)

Marcelo Gruman

A expansão urbana a partir de 1850 movimentou o porto do Rio de Janeiro, centro das atividades de importação e exportação, e incrementou a imigração para a cidade. Entravam marinheiros em trânsito, imigrantes estrangeiros ou migrantes de outras regiões do país em busca de melhores condições de vida, abrindo com isso mercado ao baixo meretrício. Por outro lado, a fixação, na cidade, da nova aristocracia do café abriu espaço para o desenvolvimento da prostituição de luxo, vinculado á expansão dos lazeres noturnos. Meretrizes estrangeiras, de diferentes categorias e preços, disputam de maneira acirrada o espaço na cidade que se expandia em ritmo acelerado. Surge a figura da "francesa", meretriz freqüentadora de um determinado espaço e ocupante de um determinado lugar na hierarquia da prostituição. A categoria englobava não só aquelas realmente nascidas na França, mas todas as que representassem esta cultura tida por superior.

Iniciar-se sexualmente pelas mãos experientes das "francesas" tornou-se símbolo da modernidade e do refinamento dos costumes. A prostituição de luxo tinha mesmo uma função "civilizadora" ao introduzir os jovens nas "artes do amor" e ensinar códigos mais modernos de civilidade aos rudes fazendeiros e demais provincianos.

Prostituição e modernidade caminhavam de mãos dadas num momento em que havia um esforço por parte de distintos setores sociais no sentido de se auto-representarem como uma sociedade que ingressava numa nova era "sintonizando seus passos ao ritmo da modernização das demais nações européias" (Rago 1991:45). A grande cocotte era presença obrigatória nas estréias de espetáculos, freqüentava as altas rodas ao lado de seus amantes e protetores. As artistas de cabarés, de teatros e de cafés animavam a vida noturna e ditavam a moda "francesa" ao desfilarem com trajes caríssimos e cobertas de jóias, símbolo da prosperidade e requinte de seus protetores e caracterização da ostentação que se perseguia.

"Sobre a cortesã européia, especialmente a "francesa", lançavam-se adjetivações amedrontadas, olhares curiosos, gritos de alerta, pois aparecia como muito mais sedutora e experiente do que qualquer outra. Percebida como alguém proveniente de uma sociedade mais avançada, onde imperavam hábitos totalmente desregrados (...) tornava-se temível e desconhecida aos olhos deslumbrados dos paulistas provincianos (Rago 1991:43).

Nos anos 1920 houve um progressivo refinamento dos cafés-concerto, transformados em cabarés, onde se

dançava com as cocottes, jogava-se pôquer e se consumiam drogas da moda. O chope gelado era trocado pelo champanhe francês. Na obra de ficção Madame Pommery, de Hilário Tácito, esta nova realidade ganha forma na figura da prostituta que dá nome á obra e que administra um dos cabarés da cidade de São Paulo. O autor descreve a passagem de uma sociedade "arcaica", que consumia produtos ultrapassados como a cerveja, para uma sociedade "civilizada" em que o champanhe era consumido corriqueiramente, entrando na vida cotidiana daqueles que queriam ser reconhecidos como parte da modernidade. Duas passagens do texto ilustram o argumento:

"Vendia-se cerveja, arvorada em bebida de gente fina, a dois mil-réis a garrafa. E achavam caro! O champanha, considerado um luxo de nababos, venerava-se nos armários com cerimoniosa devoção; e apenas descia deles em datas inesquecíveis, com estrondos escandalosos, cujos ecos, dilatados pela fantasia dos sobreviventes, se repetiam por largo tempo nas imaginações e nas conversas" (Tácito 1998:21).

"O uso do champanha a trinta mil-réis a garrafa devia tornar-se compulsório. E a assistência profissional a ninguém seria prestada a menos de cem mil-réis. Os coronéis, em breves prazos, estariam ensinados e convictos que pagar mais barato é ignóbil, e não beber champanha uma torpeza. Então beberiam champanhadas e pagariam satisfeitos; pois esta casta de tipos não cede por nenhum preço a reputação de finos e dadivosos perante o mulherio" (Tácito 1998:56).

A relação entre modernização e prostituição também se verificou no extremo norte do país, em Belém e Manaus, no período conhecido como "boom da borracha", entre 1890 e 1910. A expansão da demanda mundial e a subida de preço da borracha levaram ao aumento da população e trouxeram suporte financeiro para a transformação destas duas cidades em centros urbanos modernos, com prédios públicos imponentes, residências suntuosas, luz elétrica, avenidas arborizadas, telefones e serviço marítimo freqüente vindo da Europa, América do Norte e sul do Brasil.

A prosperidade era visível pela quantidade de produtos de luxo importados e pelo uso de vestimenta européia por parte da classe média e alta no dia-a-dia. Esta vantagem financeira permitia que uma classe de pessoas privilegiadas viajasse á Europa, onde eram expostas ás tendências culturais e sociais a serem imitadas. O francês era a língua estrangeira preferida e Paris, a referência intelectual e da moda, enfim, a fonte cultural de onde todas as idéias brotavam. Assim como nas duas grandes cidades do sudeste, em Belém e em Manaus o dinheiro vindo da exploração dos seringais sustentava o jogo e a bebida, dois dos principais (se não os principais) passatempos da elite. Não é por acaso, por exemplo, que o café mais conhecido de Belém se chamasse Moulin Rouge.

O prazer a ser encontrado deveria ter o estilo francês, seu estilo de vida, de preferência na companhia de prostitutas bem vestidas, adornadas com jóias e brancas. A vestimenta refletia as crenças, valores e aspirações que habitavam o imaginário social daqueles que queriam ser modernos. O Brasil da Belle époque é era uma sociedade que buscava acabar com a imagem de uma nação habitada por indivíduos de origem indígena ou africana.

"France represented a perception of cultured sensuality in contrast to the less inhibited domestic version. It was the stylish, perhaps overdressed, bejeweled prostitutes of the Second Empire and the Third Republic that characterized the social world of the demimonde where vice and virtue were no longer rigidly separated. (…) To be seen in the company of an elegantly coiffed and fashionably dressed non-Brazilian Caucasian definitely earned socio-economic status for those who could afford the expense. (…) Members of the elite and rising middle class in the Amazon were well aware of and avidly devoted to imitating contemporary moral, cultural and social trends"

(Orum 2001:90-91, grifo meu).

A presença das famílias nas ruas pressiona a polícia a atuar cada vez com maior vigor na moralização dos costumes. À medida que a cidade se expande e se urbaniza, surge um comércio mais diversificado e se multiplicam os espaços de sociabilidade - restaurantes, hotéis, cafés, teatros, bordéis, praças e passeios públicos -, mudam-se as normas de comportamento e as relações entre os sexos. Cresce também a repressão contra bandos organizados que exploravam as mulheres, levando á criminalização do lenocínio pelo Código Penal de 1890 através dos artigos 277 e 278. Segundo este último, proibia-se "induzir mulheres, quer abusando de sua fraqueza ou miséria, quer constrangendo-as por intimidações ou ameaças, a empregarem-se no tráfico da prostituição; prestar-lhes, por conta própria ou de outrem, sob sua ou alheia responsabilidade, assistência, habitação e auxílios para auferir, direta ou indiretamente, lucros desta especulação.

Penas - prisão celular por um a dois anos e multa de 500$000 a 1000$000". No ano de 1907, as penas dos cafetões e cafetinas estrangeiros passariam a incluir a deportação, conforma a lei 1641 de 7 de janeiro.

As mulheres ganham maior visibilidade no espaço urbano público. Participam de salões literários, sociedades beneficentes, ou trabalham vendendo cigarros, nos setores mais pobres. Numa conjuntura na qual a igualdade entre os sexos ameaçava a ordem tradicional estabelecida, a prostituta tornava-se essencial, ou seja, é em referência á entrada da mulher no âmbito da vida pública que a prostituição vai sendo tematizada.

Os discursos masculinos que advertiam as mulheres contra o uso "exagerado" de perfumes, jóias e roupas mais sensuais tinham como pano de fundo a ameaça latente de identificação com a cortesã, a "mulher pública" imaginada como aquela que vende o corpo como mercadoria. "Mulher" e "pública" eram termos antagônicos. O homem no espaço público sempre foi percebido positivamente, através da imagem de trabalhador. Por sua vez, a mulher fora de casa e desacompanhada precisava prestar muita atenção aos seus gestos, aparência e roupas para não ser confundida com a figura da prostituta. A liberdade da "mulher honesta" estaria sempre limitada no plano simbólico pela presença da meretriz, seja ela de luxo ou não.

Cronistas da época, como Luiz Edmundo, comentam que, no começo do século XX, a mulher pouco passeava em locais públicos, quase não saía á rua. Não obstante, relata:

"Quando, em voltas pela parte central da cidade, sente algum apetite, não entra nunca em um café, muito menos em um bar ou restaurante; em uma confeitaria, porém, entra. Aí, morde uns sanduíches, prova uns pastéis, bebe um gole de Málaga, completando a merenda com alguns doces, bonbons ou alguns confeitos" (Edmundo 1957:603).

A Confeitaria Colombo, localizada na Rua Gonçalves Dias, era uma das preferidas da pequena burguesia que começava a aproveitar os prazeres civilizados dos cafés e restaurantes que apareciam na área central da cidade do Rio de Janeiro. A Colombo era freqüentada por famílias, que sorviam as empadas de camarão e frango, os croquetes e pastéis que ficavam expostos no "empadário" colocado na entrada do estabelecimento. "Quadro íntimo e burguês, simpático e amável quadro". Lá pelas duas horas da tarde, as senhorinhas costumavam chegar e ali ficavam até as cinco e meia da tarde, quando o êxodo iniciava. Motivo: a chegada das "madames", ou melhor, cocottes, e seus coronéis.

"E todos, quase ao mesmo tempo, o que muito impressiona os que desconhecem detalhes curiosos da vida

dessa casa. Parte das mamãs, as titias, as sinhazinhas, as sinhadonas e a récua dos guabirus, atrás, arrastando as bengalas de biqueira de ferro, eternamente limpando o pêlo das cartolas, ou a endireitar, nas lapelas vistosas, o bouquet de violetas e a folhinha de malva" (Edmundo 1957:604-605).

O fantasma da prostituta servia como parâmetro de limite para o comportamento feminino no espaço urbano.

Pretendia-se, desta maneira, manter a ordem tradicional alicerçada em valores cristãos e burgueses, onde o homem trabalha e a mulher toma conta do lar e dos filhos e é institucionalizado um duplo padrão de moralidade. Ao homem, é permitido extravasar seus instintos em casas de tolerância; á mulher, é facultada a dádiva da reprodução, negada por sua vez ás "mulheres da vida".

"A manutenção da moral cristã, na qual a mulher aparecia como mãe-de-família, recolhida á vida do lar e aos afazeres domésticos, parecia impossível sem o contraponto da prostituta, á qual cabia a defesa da ordem pública, frente aos "arroubos" masculinos. (...) A imagem burguesa da "rainha-do-lar", reprodutora por excelência, não se sustentava sem o contraponto da "mulher da rua", estéril e profissional do prazer, sujeita aos caprichos e fantasias masculinas. Uma não sobrevivia sem a existência da outra (Menezes 1992:60-62).

A indústria do prazer para os ricos era simbolizada pela figura da cortesã "francesa" e pelo consumo de champanhe. Estas prostitutas gozavam de um nível de vida elevado por conta dos presentes recebidos (roupas e jóias) e do preço que cobravam pelos serviços prestados. O rico empresário ou o político influente, ao consumir o corpo da meretriz "francesa", consumia, sobretudo, um estilo de vida considerado moderno e civilizado.

AS "POLACAS" : MISéRIA OU ESCOLHA VOLUNTÁRIA?

No extremo oposto desta realidade, há histórias de vida pautadas pela miséria e pela exploração desregrada daquelas que ficaram conhecidas como "polacas". A partir dos anos 1880, passam a ser recrutadas, acompanhando a tendência geral do tráfico de mulheres, nos países da Europa oriental e da Europa mediterrânica. As "polacas" sintetizavam a imagem das mulheres pobres oriundas das regiões agrícolas e industrialmente atrasadas do continente europeu.

No Rio de Janeiro e em São Paulo, o termo "polaca" remetia comumente á figura da meretriz, não necessariamente polonesa. Entendia-se que eram mulheres loiras vindas dos países da Europa oriental que a imaginação popular romantizava e confundia totalmente. Nos registros policiais em que aparecem, ou mesmo na imprensa, as "polacas" não eram associadas, ao menos de uma forma direta, á figura da prostituta judia, embora esta fosse chamada de "polaca" quando aparecia nas notícias. A atração que exercia, seja ela polonesa, austríaca, russa ou judia, fundou-se na constituição de um imaginário voltado para a idealização das regiões distantes, povoadas por gente diferente, "onde ocorriam histórias fantásticas de nobres, num país onde até então grande parte das prostitutas provinha dos continentes de escravas e ex-escravas negras, principalmente no Rio de Janeiro. Mulheres loiras, ruivas, claras, delicadas, de olhos verdes ou azuis tornavam-se mais misteriosas e inatingíveis para uma clientela masculina seduzida pelos mistérios fantásticos da vida moderna e impulsionada pelo desejo de desvendar física e simbolicamente os labirintos" (Rago 1991:294).

Uma das interpretações para o aliciamento destas moças é o fato de o capitalismo ter transformado profundamente a sociedade camponesa tradicional. Grande parte da Europa não conseguia acompanhar a

dinâmica da industrialização e a invasão da tecnologia no campo, levando á miséria e ao desemprego milhares de pessoas. As aldeias pobres conheceram um processo brutal de desagregação da sociedade camponesa tradicional como fruto das mudanças propiciadas pela mecanização dos campos e pela urbanização acelerada. A ilusão da cidade obrigava pais a venderem suas filhas para os mercadores de prazer de modo a garantir sua sobrevivência, sobretudo na Europa oriental e mediterrânica, agrária por excelência. No caso dos judeus, o quadro se agravava pelos diversos pogroms efetuados, espalhando o terror e a miséria pelas comunidades judaicas. A maioria das estrangeiras que, posteriormente, ficaram conhecidas por "polacas", provinha da Polônia, Hungria, Áustria, Rússia, Portugal, Espanha e Itália.

No Brasil, o debate sobre a natureza da prostituição pendia entre os que defendiam sua criminalização e os

que viam no fenômeno as conseqüências de uma realidade miserável e injusta. Segundo Evaristo de Moraes, em Ensaios de Patologia Social, publicado em 1921, a prostituição deveria deixar de ser um assunto de polícia e passar a ser assunto de médicos, associada á carência econômica e á doença, e não á criminalidade. A "prostituição-crime" seria uma concepção retrógrada das causas que levam moças a vender seu corpo por dinheiro. Educação, trabalho e uma família estruturada por meio do casamento seriam as soluções a serem buscadas. "Assim, educando-se moral e religiosamente a prostituta, facilitando-lhe um trabalho honesto, incentivandolhe o casamento, contribuir-se-ia para sua reabilitação. Ou ainda, incidindo sobre as condições ambientais que empurravam a mulher á prostituição, isto é, melhorando as condições intelectuais, morais e econômicas das classes proletárias, melhorando e espalhando a educação, regulamentando-se o trabalho noturno das jovens eliminar-se-iam as causas da prostituição" (Moraes 1921:137).

Não é possível estimar a quantidade de prostitutas que vieram traficadas da Europa, principalmente das aldeias pobres da Polônia, Romênia, Rússia, Áustria, Hungria, Itália, Espanha e Portugal, bem como se vieram por conta própria ou após promessas de casamento e enriquecimento. Apesar de a miséria ser um fator importante no aliciamento das moças, muitas já vinham como prostitutas experientes enquanto outras eram mais recentes na profissão e sonhavam poder "fazer a América" com o seu trabalho tanto quanto outros imigrantes "decentes".

O mesmo argumento vale no caso das prostitutas judias, vítimas de perseguições religiosas e da miséria.

"There was an increase in the numbers of jewish prostitutes in all large European, Near Eastern and Asian cities as traditional communal societies were splintered by political and religious persecution combined with economic crisis. A consequence of the disintegration of patriarchal control of sexual behaviour in villages resulted in women"s being inveigled or coerced into - or they freely chose - the profession one author described as the most "sensible employment option" " (Orum 2001:92).

As "polacas" chegaram ao Rio de Janeiro por volta de 1867. Em setembro de 1879, uma notícia do Jornal do Commercio dá conta de que o Dr. Félix da Costa, terceiro delegado de polícia, havia concluído um inquérito que objetivava identificar os indivíduos que exploravam a prostituição, prática conhecida por lenocínio, remetendo-o ao chefe de polícia da capital federal. Dentre as informações coletadas, verificou-se a existência de uma associação composta de judeus russos, alemães, austríacos e de outras nacionalidades que contratavam mulheres na Europa para o Brasil, "servindo-se de diversos embustes e ardis, incluindo mesmo o casamento, para illaquear a boa fé de algumas famílias de que ellas lhes entregam as suas filhas" (Wolff & Wolff 1975:434). Enquanto as prostitutas tinham como local de origem, em sua maioria, as aldeias européias, os cafetões provinham das principais cidades

da época, com destaque para Paris, Londres, Barcelona, Nápoles, Varsóvia, Viena e Odessa. Nesta última cidade, reuniam-se os traficantes das regiões balcânicas que, dali, dispersavam-se por inúmeros países agenciando o negócio próprio de mercadoria barata. Boa parte das "polacas" chegava ao Brasil depois de passarem pela cidade de Buenos Aires, conhecida, entre 1880 e 1930, como o terceiro centro do tráfico de mulheres do mundo. Era considerada o mercado distribuidor para

todo o continente sulamericano, saindo de lá várias mulheres que se destinavam aos bordéis do Rio de Janeiro. Na capital argentina funcionava, desde 1904, uma organização de cafetões "polacos" que definia todas as regras de participação no negócio, desde os casamentos que deveriam realizar, os lugares onde deveriam recrutar as moças, os preços a serem pagos á família, as somas que deveriam ser entregues á polícia como forma de suborno. Era uma espécie de filial da organização fundada na Polônia, aparecendo na Argentina pública e legalmente como Sociedade Israelita de Socorros Mútuos Varsóvia. Em sua obra autobiográfica, Boris Fausto conta que, desde criança, ouvia seu pai referir-se, "com um orgulho temperado de mistério", ao fato de que, quando vivia na Argentina, integrarase na luta contra a Zwi Migdal, "uma sinistra sociedade destinada á exploração de mulheres":

"Movido pelo sentimento de repulsa e pelo fato de que muitas prostitutas provinham de regiões próximas á que nascera, Simon se tornou membro de uma das sociedades de combate - a Associação Judaica para a Proteção das Moças e das Mulheres, fundada em Londres, que tinha em Buenos Aires seu principal centro de atuação na América Latina (Fausto 1997:61).

Possivelmente, o termo "polaco" deriva do nome da associação, estabelecendo uma correlação com a atividade ilícita e a identidade étnica ou religiosa. Anos depois, a Sociedade cindiu-se em duas: uma parte ficou sob o comando dos "polacos" e passou a se chamar Zwi Migdal, cuja atuação se fez sentir no Brasil através de duas associações: a Sociedade Feminina Religiosa e Beneficente Israelita, em São Paulo; e a Associação Beneficente Funerária e Religiosa Israelita, no Rio de Janeiro. Cada uma dessas associações, tanto na Argentina quanto no Brasil, possuía uma sede social, sinagoga e cemitérios próprios, além de estatutos e todo o aparato necessário ao auxílio dos sócios. Criavam redes de solidariedade á margem das comunidades judaicas instituídas, com uma história e memória particular. O artigo 20 do estatuto da Sociedade Israelita de Socorros Mútuos Varsóvia, por exemplo, dizia o seguinte: "Seu objetivo é criar um fundo comum destinado a socorrer seus associados em caso de enfermidade ou de suas conseqüências, e proteger os mesmos, prestando-lhes a força moral que esta associação pode ter, propendendo sempre á fraternidade de seus associados".

No Brasil, a Zwi Migdal n ão monopolizava, como em Buenos Aires, a prostituição e o tráfico de drogas, dividindo o controle dos bordéis, cassinos e prostíbulos com outras organizações. "Polaco" se transformou em sinônimo de cafetão e judeu, bem como "polaca" passou a significar mais corriqueiramente a prostituta judia. A partir de 1881, uma série de atividades filantrópicas de senhoras da classe média norte-americana e européia é desenvolvida no intuito de "salvar" tais moças da prostituição, inclusive com a fundação de entidades

criadas exclusivamente para este fim: a Union Internationelle des Amis de la Jeune Fille, a International Catholic Girls" Protection Society, a Traveller"s Aid Society " s , a Jewish Association for Preventive and Rescue Work. O que estas associações não compreendiam era que muitas das moças que chegavam á América do Sul já eram prostitutas nos seus países de origem ou quiseram entrar na profissão por livre iniciativa para "fazer a América".

Viajavam em busca de melhores condições de trabalho, em um mercado mais competitivo que o europeu. As Américas vinham recebendo contingentes masculinos em grande proporção, constituíam um grande potencial (Kushnir 1996:67). No Rio de Janeiro, especificamente, foi fundada no ano de 1915 a Froien Farain (Associação das Mulheres Judias), que atuava no campo da ajuda e beneficência aos imigrantes, incumbindo-se de controlar a atividade dos rufiões a fim de evitar que estivessem presentes nos portos de desembarque de imigrantes. O objetivo era impedir o aliciamento,

"ao mesmo tempo em que se empenhavam para tirá-las de suas garras se porventura viessem a ser enganadas por cáftens com promessas de casamento ou de sucesso na dourada América, como era usual na época" (Falbel 1998:236).

Os "polacos" costumavam viajar para as aldeias pobres da Polônia, como Lodz, e de outros países do leste

europeu, afetadas pela miséria econômica e pelas perseguições políticas e religiosas - os pogroms. Apresentavam-se como comerciantes enriquecidos na América, que retornavam á aldeia natal em busca de uma esposa da mesma nacionalidade, introduziam-se nas famílias pobres e logo se insinuavam como pretendentes á mão da filha mais velha.

Normalmente, as moças chegavam acompanhadas, ou por maridos (em casamentos arranjados para tal finalidade) ou por amantes ou por cafetinas disfarçadas no papel de tias ou protetoras, já que a Polícia dos Portos exigia para as mulheres sozinhas determinados documentos não exigidos aos outros imigrantes: carteira de identidade do país de origem, atestado policial de boa conduta e bons costumes e certificado de exercício de uma profissão lícita ou chamamento de pessoa residente no Brasil. Dentro dos parâmetros sociais da época, a mulher só, até que provasse o contrário, era potencialmente uma prostituta (Menezes 1992:36). O "memorialista étnico"1 Samuel Malamud descreve como agiam tais cafetinas, ao relembrar a travessia que fez com sua família entre a Europa e o Brasil em 1923. A senhora que tentava aliciar uma moça que estava sob a guarda da família de Malamud falava o iídiche com forte sotaque polonês. A aparência e a vestimenta não deixavam dúvidas, para o autor, de

que aquela senhora era traficante das chamadas "escravas brancas": "ao lembrar-me dessa mulher, seu aspecto, sua maneira de se vestir e de se maquiar, assim como seu comportamento, lembro que ela era o tipo autêntico da cafetina". Aparentemente, as notícias de que a Argentina funcionava como centro do tráfico de mulheres na América do Sul já haviam chegado á Europa.

"A Argentina era o destino final de quase todos os emigrantes embarcados. Só uns poucos ficariam no Brasil. Daí a razão natural do pedido feito por um casal cuja filha adolescente embarcava para o Rio de Janeiro. Sabedores do nosso destino, aproximaram-se de meus pais e pediram-lhes que olhassem pela jovem durante a viagem, para que ela não se sentisse só. Ia a chamado de seus tios, radicados no Rio de Janeiro. A verdadeira razão era outra. A América do Sul, principalmente a Argentina, criou uma péssima fama, nos primeiros decênios do século XX, nas comunidades judaicas da Europa Oriental, devido á escravatura branca explorada por uma máfia judaica, com sede em Buenos Aires, que vivia do meretrício. (...) Passados alguns dias, já em alto-mar, começou a visitar a terceira classe uma senhora vistosamente trajada, toda perfumada e exageradamente maquiada. Ao deparar com a moça, procurou entabular conversa, indagando de onde vinha e para onde ia. Dizia ter vontade de lhe ser útil e estar pronta a ajudá-la, pois residia no Rio de Janeiro há longos anos. Minha mãe, tão logo deparou essa mulher e sua conversa com a moça, interveio e lhe fez sentir que ela viajava em nossa companhia, de modo que

dispensava seus bons serviços. Em seguida, advertiu a moça de que não mais tivesse qualquer contato com essa visitante da primeira classe. Apesar de advertida por minha mãe a não mais se aproximar, essa mulher ousada ainda procurou novos contatos com a moça e a convidou a visitá-la em sua cabine. Conversava com todo mundo, dando preferência ás mulheres" (Malamud 1986:93).

Em São Paulo, a reforma urbana de 1911 alterou a "geografia do prazer", empurrando as meretrizes para as partes mais distantes da cidade. Os bordéis ficaram confinados ao bairro do Bom Retiro (com intensa concentração de imigrantes judeus neste período), próximo ás estações ferroviárias da Sorocabana e Santos-Jundiaí. No Rio de Janeiro, a criação da Zona do Mangue, em 1870, paulatinamente passou a concentrar o baixo meretrício, expulsando as "proletárias do sexo" do centro da cidade, condicionando-o a determinadas regiões e estabelecimentos. O centro da cidade deveria ser "higienizado" para que as famílias pudessem passear pelas ruas admirando as vitrines e tomando um lanche nos cafés e confeitarias recém-inaugurados. Após 1913, a repressão sistemática da polícia contra o meretrício exercido no centro da cidade leva os prostíbulos para a região da Lapa em direção á Zona do Mangue. Faziam parte do itinerário as ruas Benedito Hypólito, Júlio do Carmo, Joaquim Silva, Mem de Sá, General Câmara, Tobias Barreto, Lavradio, Gomes Freire, Visconde do Rio Branco e Riachuelo.

A restrição á prostituição por meio da pressão legal, combinada com o aumento dos preços da borracha, encorajou as "mulheres públicas" a procurar o norte do Brasil. Em 1897, as prostitutas judias já eram as favoritas da alta burguesia da cidade de Manaus. A maioria delas era originária da Zona de Residência imposta aos judeus do Império Russo, onde imperavam a miséria e a falta de oportunidades econômicas, sobretudo após da fome de 1891. O interessante é que muitas dessas meretrizes judias passaram por Paris vindas da Europa oriental e central, sabiam falar francês e adquiriram um certo comportamento que lhes permitiam "passar" por francesas. A atração que os homens ricos de Manaus sentiam por estas judias era confundida com a identificação nacional. Se nas cidades mais ao sul a prostituta judia era "polaca", no Amazonas se transmutava em "francesa", permitindo uma melhora nas suas condições de vida.

"Jewishness, while an erotic value which could conceivably be translated into monetary gain, generally seems to be complicated by the generic attribution of French or Polish to anyone from Europe. That the Jews were among those identified as French is certain. In Europe this identity was sometimes hidden, but in the New World there was little reason to sail under a false flag. To most Amazonians any foreigner that spoke french was considered as such" (Orum 2001:93).

O esplendor do ciclo da borracha acabou no início do século XX. As atenções estavam concentradas nas duas grandes cidades do sudeste, que recebiam nos primeiros vinte anos deste século os maiores contingentes de imigrantes judeus fugidos da fome e das perseguições políticas e religiosas na Europa. As comunidades judaicas de São Paulo e do Rio de Janeiro, há pouco instaladas, sentiam-se incomodadas com  a presença de indivíduos quepoderiam colocar em xeque a aceitação dos recém-chegados ás terras brasileiras. A hospitalidade do brasileiro, sempre realçada nos discursos dos imigrantes, seria posta á prova com a visibilidade de "indesejáveis". Temia-se que o estigma da profissão fosse espalhado por todas as instituições e membros das coletividades.

A MARGINALIZAÇÃO DOS "IMPUROS" : EM NOME DA INTEGRAÇÃO SOCIAL

Certas representações que tentam explicar a atração que o dinheiro exerceria sobre os judeus acreditam que isso se deva ao seu caráter impessoal, de acordo com uma natureza judaica construída sobre o intelectualismo e a abstração. A tal "cultura citadina" dos judeus, de que nos fala o sociólogo da Escola de Chicago Robert E. Park, seria um produto do tipo de relações humanas que se desenrolam no ambiente urbano, ou seja, cada vez mais distantes, frias e impessoais. Seguindo o raciocínio, o dinheiro seria a contrapartida econômica da prostituição na medida em que este tipo de relação amorosa caracteriza-se pelo prazer venal e rejeição de sua continuação além da satisfação sensual. De acordo com Simmel,

"L"argent est donc le pendant économique de ce mode de rapport, puisque lui aussi représente le type générique des valeurs économiques, ce qui est commun á toutes les valeurs particuliéres" (Simmel 1999:474).

A natureza do dinheiro e da prostituição seria semelhante, ambos pressupondo a redução da relação a seu conteúdo genérico, portanto, é plausível que o primeiro sirva de mediador da segunda. Se o judeu é atraído

pelo dinheiro, e o dinheiro está intimamente relacionado com a prostituição, associa-se judaísmo e prostituição, estigmatizando o grupo por outra via. é desta associação perniciosa que os judeus imigrantes do Rio de Janeiro e de São Paulo desejavam livrar-se.

Alguns estudiosos observam que no fim do século XIX a gíria "cafetão" poderia referir-se ao cafetã, robe tradicional dos homens judeus ortodoxos do leste europeu. Para termos uma noção mais clara da relação entre judaísmo, dinheiro e prostituição, é válido atentar para a classificação utilizada por advogados do Rio de Janeiro na identificação dos diferentes tipos de cáftens existentes na cidade nas primeiras décadas do século XX. O tipo de cáften judeu, "explora o lenocínio como se estivessem á testa de uma casa de negócios para a qual a mulher é exclusivamente uma mercadoria (...) Absolutamente certo de que ela, na vida do meretrício, lhe dará lucros fabulosos, instala-a com os mesmos cuidados e preocupações que um comerciante emprega ao montar uma casa de negócios" (Kushnir 1996:105).

Daí o medo das comunidades judaicas de serem identificadas com estas personagens socialmente marginais e simbolicamente perigosas. A personagem Mme. Pommery, citada anteriormente, teria herdado certas características hereditárias judaicas que a favoreciam nos negócios do meretrício, revelando certo preconceito do autor, embora reproduzindo uma representação comum na época que associava os judeus ao lenocínio. é assim que Hilário Tácito descreve a dona do Au Paradis Retrouvé Retrouv (o uso do francês não é por acaso), filha de um judeu polonês e uma espanhola:

"A influência materna sobre Mme. Pommery limita-se, por conseguinte, aos caracteres contraditórios que lhe infundiu pela hereditariedade: disposições para a disciplina (resíduo atávico de clausuras antepassadas) e taras psicológicas de insofrível concupiscência. A parte do pai, judeu polaco, é bem mais considerável. Transmitiu-lhe o nariz adunco, estigma da raça, e, concomitantemente, o gosto das finanças, a cupidez e o faro mercantil. Além disso, educava-a" (Tácito 1998:31).

Roberto Grun (1999) nos conta que, na década de 1930, existia em São Paulo uma zona de prostituição no bairro do Bom Retiro, perto do qual se concentrava a maior parte da população judaica da cidade naquela época, bem como suas entidades. A vizinhança das prostitutas e seus agenciadores (muitas vezes, maridos ou amantes) representava um perigo de estigmatização da comunidade como um todo num momento em que ela se constituía e se fazia necessária a construção de uma identidade judaica e, sobretudo, de uma imagem positiva perante a população nativa. Para solucionar o "problema", os integrantes do grupo estigmatizado estavam proibidos de participar de qualquer atividade nos órgãos da comunidade judaica e passaram a ser identificados como "as polacas" (incluindo as cafetinas) e "os polacos", ao passo que o establishment comunitário reforçava sua identidade em oposição ao perigo do estigma.

As pessoas "honestas" boicotavam os rufiões, tidos como uma praga "mais nociva e nojenta do que a das prostitutas" (Wolff & Wolff 1975:433), nos terrenos social, cultural e religioso. Chegou-se ao extremo de negar-lhes o direito de serem sepultados nos cemitérios judaicos. Por isso, como vimos, as associações que congregavam cafetões e prostitutas adquiriram terrenos para que pudessem ser enterrados segundo o ritual judaico.

Muitas prostitutas e seus agenciadores costumavam freqüentar bares, cafés, cabarés, cinemas e teatros que atraíam também a "gente direita", o que nem sempre ocorria de modo harmonioso. O teatro era um elemento central na vida cultural dos imigrantes e de suas instituições e a influência dos "indesejáveis" sobre as companhias de teatro e seus atores (financiando as peças, por exemplo) causava repulsa por parte daqueles que não queriam compartilhar o mesmo espaço da sala de espetáculos com cafetões e prostitutas. Há vários relatos de imigrantes, tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo e Porto Alegre, que retratam o esforço organizado de pessoas que ficavam postadas na casas de espetáculos para impedir a entrada dos "indesejáveis" provocando tumultos, dando margem á intervenção policial para "esfriar os ânimos". Novamente recorro a Samuel Malamud, que relembra a maneira como se desenrolavam os acontecimentos em dias de apresentação teatral:

"Nas noites ou nas matinés dos espetáculos, os elementos da escravatura branca designados pela comunidade como "impuros" (em hebraico - tmeim) se postavam diante da Caixa do Teatro, procurando adquirir entradas por força. Muitíssimas vezes havia escaramuças e foi necessária a intervenção da polícia para evitar-lhes o acesso. Perto da caixa e da entrada do teatro ficava sempre um comitê comunitário montando guarda. Não foi fácil esclarecer ás autoridades policiais a razão da não admissão desses elementos ao teatro. Estão bem gravadas na minha memória as cenas que se desenrolaram na porta dos teatros onde tinham lugar os espetáculos. Os homens traziam a marca de sua ocupação estampada na face o no comportamento, enquanto as mulheres, a quem se deu o apelido de " tias " (em ií i diche ídiche í - mumes) vinham todas emperequetadas, excessivamente maquiadas e cobertas de vistosas jóias" (Malamud 1986:82, grifo meu).

Os termos "polacas", "polacos" e "tias" (possivelmente, aquelas senhoras que se diziam tias das moças que desembarcavam nos portos, já aliciadas na Europa) passaram a uma categoria de acusação, eram "sujas" e "impuras" por desafiarem normas de comportamento "normais" por parte de quem vislumbrava a integração á sociedade brasileira livre das representações estigmatizadas imputadas, agora, somente ás prostitutas. A prostituição permanece um desvio, embora não mais uma característica judaica. Aos indivíduos "honestos" era reservada a categoria "judeu"2.

Considerando os cafetões e as prostitutas como o grupo minoritário e os judeus "decentes" como o grupo englobante ou dominante, é possível afirmarmos que o que estava em jogo naquele momento era a construção de uma memória oficial, baseada em atributos positivos (gosto pelo trabalho, inteligência etc.) que facilitassem a integração á sociedade brasileira em oposição a uma "memória subterrânea" sufocada pelo silêncio e pelo esquecimento daqueles que se consideram os representantes legítimos das comunidades judaicas espalhadas pelo Brasil, principalmente as do Rio de Janeiro e São Paulo. é assim que o casal de historiadores judeus, que chamei de "historiadores étnicos", Egon e Frida Wolff, explica o porquê de negar a um casal de pesquisadores informações sobre "polacas" enterradas num cemitério carioca:

"Uns anos atrás, recebemos a visita de um jovem casal que se dizia historiadores e que conhecia o nosso livro Sepulturas Israelitas: São Francisco Xavier, Rio. Eles vieram de São Paulo queixando-se do então diretor do Centro de Estudos Judaicos da USP, que tinha recusado publicar uma "descoberta" sensacional deles, a existência de um cemitério de prostitutas em Cubatão. Sabendo de nossas pesquisas cemiteriais em geral, eles esperavam a nossa compreensão e compaixão com o maltrato a que eles tinham sido submetidos. Durante horas tentávamos explicar-lhes o porquê da recusa e que nós estávamos de pleno acordo com a atitude do dirigente em São Paulo (...) Mas também cumpre frisar que a nossa pesquisa está trancada e selada dentro do nosso arquivo em casa, e que nos recusamos de entregar os dados mesmo á Universidade de Jerusalém, que soube da nossa pesquisa" (Wolff & Wolff 1975:96).

A questão dos "indesejáveis" ou "impuros" implicava a necessidade de criação de uma auto-imagem nacional "sem manchas morais" (Falbel 1998:238). Lembremos a expressão de Mary Douglas, segundo a qual "sujeira é tudo aquilo que está fora do lugar", exigindo a construção de fronteiras ou barreiras resistentes á invasão de corpos estranhos ao ambiente interno, puro e seguro. Os tmeim eram fonte de danos morais irreparáveis, daí a necessidade de fortalecer a proteção dos "decentes". No dia 26 de setembro de 1924, o Centro Sionista do Rio de Janeiro publicou um apelo no semanário Dos Idiche Vochenblat:

"Apelamos a todos para ajudar a fortalecer a parede que erigimos com tanta força moral entre a honrada sociedade judaica local e os traficantes de escravas brancas. Exigimos que nossos concidadãos judeus afastem-se dos lugares onde se reúne aquele elemento indesejável e não freqüentem eventos e representações teatrais em que traficantes de mulheres e as vítimas dessa ralé têm livre entrada, para que nós todos não sejamos pelo amplo público considerados como pertencentes ao mesmo elemento criminoso" (Falbel 1998:242, grifo meu).

A preocupação com a confusão entre "puros" e "impuros" implica um trabalho de "enquadramento" da memória, responsável pela reinterpretação incessante do passado em função dos acontecimentos presentes e futuros. Está em jogo o sentido da própria identidade individual e do grupo, servindo a referência ao passado para a coesão dos indivíduos e das instituições que compõem o grupo. Daí ser compreensível o silêncio e o esquecimento do grupo oficial com relação á questão da prostituição judaica no Brasil, seja por moralismo ou por medo de represálias anti-semitas. No momento em que se constituíam núcleos judaicos no país, seus representantes legítimos acharam por bem relegar ao "subterrâneo" a história e a memória daqueles que poderiam comprometer a existência dos judeus no Novo Mundo. Como diz o ditado popular, "a ocasião faz o ladrão", ou seja, as circunstâncias levaram á marginalização dos "impuros". Como bem resume Michael Pollak:

"A fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa, em nossos exemplos, uma

memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou de grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o Estado desejam passar e impor. Distinguir entre conjunturas favoráveis ou desfavoráveis ás memórias marginalizadas é reconhecer de saída a que ponto o presente colore o passado. Conforme as circunstâncias, ocorre a emergência de certas lembranças, a ênfase é dada a um ou outro aspecto" (Pollak 1989:8).

O mesmo ponto é trabalhado por Ortiz (1988), que entende que trabalhar com testemunhos não deixa de ser problemático, na medida em que a lembrança diz respeito ao passando e, quando ela é contada, sabemos que a memória se atualiza sempre a partir de um ponto do presente.

"Os relatos de vida estão sempre contaminados pelas vivências posteriores ao fato relatado, e vêm carregados de um significado, de uma avaliação que se faz tendo como centro o momento da rememoração. (...) O presente age como filtro e seleciona pedaços de lembranças, recuperando-as do esquecimento" (Ortiz 1998: ).

Embora outros grupos étnicos de imigrantes também tenham enfrentado situações semelhantes no sentido de uma construção de uma imagem positiva de sua nacionalidade ou etnicidade, a particularidade histórica dos judeus tornou o problema da aceitação social muito mais complexo. Muitos dos que emigraram para o Brasil e para outros países das Américas (Estados Unidos e Argentina, principalmente) para começar uma vida nova provinham de regiões assoladas por conflitos sociais e políticos, pogroms. Seria compreensível, deste modo, a maior preocupação da comunidade judaica em estabelecer rígidos padrões morais de comportamento, segregando aqueles que davam "armas ao inimigo" (Rago 1991:297) e zelando pela própria imagem.

O escritor judeu-gaúcho Moacyr Scliar conta que, após a publicação de um livro seu sobre as prostitutas judias, recebeu um telefonema anônimo. A pessoa do outro lado da linha o censurava por tratar de um assunto que deveria permanecer "em silêncio". Scliar argumenta que o fato de ter havido cafetões e prostitutas judias nada teria que ver com um "caráter judaico", mas com condições desfavoráveis, miséria e desagregação social. Scliar finaliza a narrativa do episódio criticando indiretamente o "esquecimento" do episódio, ao afirmar que exorcizar demônios é difícil, mas deve ser feito "e o primeiro passo para isto é, como o sabiam os exorcizadores, chamar o demônio pelo nome" (Scliar 1985:102).

A identidade judaica brasileira foi construída em referência a outros grupos sociais e aos critérios de aceitabilidade e credibilidade reivindicados por meio de um processo de negociação. Lidamos com a construção de uma memória coletiva, organizada em função de preocupações políticas do momento, que hierarquiza e classifica seus pontos de referência (acontecimentos históricos, tradições, costumes etc.), definindo o que é comum ao grupo e o que o diferencia dos outros. Ela, a memória coletiva, fundamenta e reforça os sentimentos de pertencimento e as fronteiras socioculturais por meio da adesão afetiva.

Se, em determinadas circunstâncias, a noção de impureza simbólica era aplicada pelos judeus ashquenazitas

(oriundos da Europa Centro-Oriental) aos judeus sefaraditas (oriundos da Península Ibérica e norte da África), e vice-versa, por conta de diferenças relativas aos rituais religiosos, á organização da família, costumes alimentares e porte físico, entre outras, a separação geográfica deixava de ser um marcador de distinções culturais internas á etnia. A oposição "puro" / "impuro" se associava, então, á presença das "polacas" no seio das comunidades judaicas recém-estabelecidas no país, especialmente nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.

Auto-atribuição e atribuição pelos outros são movimentos simultâneos no processo de reivindicação e reconhecimento de identidades sociais. O caso das prostitutas judias, as "polacas", mostra, no entanto, que a "tradição inventada"3 não corresponde ao que foi conservado por uma memória marginalizada ou "subterrânea" (Pollak 1989), confirmando a idéia de que as preocupações do presente colorem as lembranças do passado. O caráter político do grupo se refere a um determinado contexto histórico no qual era necessário fugir de estereótipos, transformados em estigmas, de modo a facilitar a integração dos imigrantes judeus ao país que aceitou acolhêlos.

A presença dos "indesejáveis" pouco ou nada influenciou a inserção dos judeus na sociedade brasileira. A

ascensão social experimentada pela segunda e terceira gerações de imigrantes foi conseguida, em grande medida, por meio de um ethos intelectual, condizendo a representação de "povo de sábios e intelectuais" á alcunha de "país de bacharéis" imputada ao Brasil.

NOTAS

1 O termo "memorialista étnico" é usado no sentido dado por Gutfreind (2004:30;46): "Pessoas que, do interior do seu grupo étnico, escrevem sobre ele, não delimitando tal expressão apenas á judaica. São indivíduos comprometidos com o seu grupo, criando histórias do ponto de vista pessoal, familiar, com a colaboração de seus pares. (...) Recolhem fragmentos da memória do seu grupo, que vão se ampliando, compondo uma rede com nós que se interligam, transformando-a em uma memória coletiva, preocupada

em preservar a memória da sua imigração, tornando-a história".

2 Vemos aqui o fenômeno do labeling étnico, consistindo na mudança de um rótulo estigmatizante por um mais neutro ou valorizante.

Outro exemplo é a substituição de negro por black por parte do movimento negro norte-americano na década de 1960, na luta pelos direitos civis.

3 Por "tradição inventada" entende-se "o conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado" (Hobsbawm 1984:9).

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Autor:

Marcelo Gruman

marcelogruman[arroba]funarte.gov.br

Antropólogo, Doutor em Antropologia Social (PPGAS/MN/UFRJ), Administrador Cultural/FUNARTE

Marcelo Gruman é pesquisador do Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (CERIS) e doutorando do Programa

de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional /

Universidade Federal do Rio de Janeiro.



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