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A situação do marxismo no Brasil (página 2)

Sergio Lessa

A estas debilidades estruturais, acrescente-se uma concepção stalinista de militância, que mescla o mais extremado voluntarismo ao misticismo laico (crença em doutrinas e em líderes infalíveis e em uma concepção teleológica da história) e á mais completa ignorância teórica. Se, no cenário europeu, o stalinismo promoveu o rebaixamento do nível teórico dos militantes e dirigentes, em nosso país potencializou a ignorância já predominante. O desconhecimento da história e da filosofia é um fator importante para que a praxis revolucionária seja marcada por «crenças» em «doutrinas», por um misticismo laico que concebe o desenvolvimento humano como o fatal desdobramento de um destino teleologicamente inscrito nas «leis irreversíveis da história». Também por isso, os partidos comunistas e, após o golpe de 1964, as inúmeras organizações revolucionárias que surgiram, não foram capazes de produzir uma interpretação da realidade brasileira que desse conta das nossas determinações decisivas. E, conseqüentemente, foram incapazes de conceber uma estratégia viável para a revolução brasileira

Esta incapacidade em romper completamente com o conservadorismo, a incapacidade para produzir uma Weltanschauung revolucionária que superasse a ideologia dominante, ao fim e ao cabo, está na raiz da histórica incapacidade das forças de esquerda no Brasil superarem os horizontes democrático-radicais. Ao permanecerem permeadas pela ideologia oligárquico-conservadora, ao serem marcadas pelo patriotismo e pelo nacionalismo de casernas, as forças de esquerda, em que pesem momentos de radicalização política, raramente deixaram de ser o apêndice á esquerda da fração mais liberal da burguesia. Por isso não é um exagero afirmar que a concepção marxiana da emancipação humana, tanto hoje como nas décadas passadas, é tão estranha á prática política da esquerda brasileira, quanto o é para o conservadorismo oligárquico.

O movimento guerrilheiro nos anos 1960-70

O movimento guerrilheiro dos anos 1968/73 se desdobrou tendo por base a equivocada tese segundo a qual a ditadura militar era uma «contrarevolução» que visava «refeudalizar» o Brasil e reverter o limitado processo de industrialização, com base no capital nacional, que o país conheceu entre os anos 1935/55. Por isso, essa forma radical de luta, na maior parte dos casos, foi acompanhada por um programa político bastante moderado, centrado na defesa da indústria e do capitalismo nacionais

contra o imperialismo e o latifúndio. No momento em que o capital nacional, a oligarquia e as multinacionais pactuavam, com enorme sucesso, uma nova divisão do poder entre as suas diversas facções, a esquerda se lançou á luta armada com uma plataforma democrático-nacionalista que tinha por eixo defender a «burguesia nacional» e os camponeses contra a aliança entre os latifundiários e o capital estrangeiro. Os revolucionários pressupunham como eixo da sua estratégia um inexistente conflito entre a «burguesia nacional» e o imperialismo. Neste contexto, o guevarismo e o foquismo, sustentados e inspirados pelo exemplo cubano, conduziram a um confronto militar, heróico certamente, mas precipitado e descabido, que levou á morte as poucas centenas das melhores cabeças e corações que o movimento revolucionário havia produzido naquela quadra histórica.

Os equívocos desta heróica experiência armada fez renascer, nas universidades brasileiras, o intento de criticar tanto a esquerda tradicional como as propostas revolucionárias mais rescentes. Com todas as dificuldades de um debate levado a efeito sob forte repressão, o ensaio do Prof. Francisco de Oliveira, «Crítica da Razão Dualista», contribui para mostrar as falácias da concepção tradicional que via no Brasil uma porção feudal justaposta a outra porção capitalista. Logo após, o «Escravismo Colonial», de Jacob Gorender refuta a tese de que no período colonial o Brasil fosse escravista ou feudal, argumentando que o escravismo e as relações agrárias de colonato eram a face mais perversa

do processo de acumulação primitiva do capitalismo internacional, e que, por isso, estes aparentes anacronismos eram perfeitamente contemporâneos ao desenvolvimento capitalista europeu.

No âmbito, ou na área de influência do antigo PC, foram elaboradas duas novas tentativas de interpretação da peculiaridade brasileira. A primeira delas buscava pensar o Brasil a partir das considerações de Marx e de Lenin acerca da «via prussiana» de desenvolvimento do capitalismo.

Ao «autoritarismo» inerente á via prussiana, seria necessário que os comunistas desdobrassem uma plataforma «democrática» que priorizasse a aliança estratégica com os setores liberais. A segunda vertente, que nasce como uma flexão crítica da hipótese da via prussiana, afirma ser o caso brasileiro uma via original, hipertardia, de desenvolvimento do capitalismo. Nesta circunstância, a luta estratégica pela democracia seria um equívoco, pois o país não reuniria condições para a implantação de uma sociedade democrática. Daí a postulação da «centralidade do trabalho» como decisiva para a elaboração de um programa para a revolução brasileira.

Estas duas novas tentativas, contudo, terminam por não florescer. Entre outras razões, porque a crítica que faziam ás concepções tradicionais, ainda que indispensáveis para a constituição de um teoria que dê conta da especificidade brasileira, se restringiu a um debate fortemente mediado pelas necessidades políticas imediatas. Neste particular, estas novas tentativas de explicação da realidade brasileira não conseguiram romper com o tradicional «taticismo» dominante. A concepção de mundo tradicional da esquerda brasileira, fundamentalmente suas concepções filosóficas conservadoras e de fundo stalinista, permaneceram relativamente incólumes ao crivo crítico. O praticismo e o voluntarismo, associados ao misticismo laico e ao centralismo do universo estaliniano, não foram fundamentalmente abalados pelas duas novas tentativas, no âmbito de influência do PC, de interpretar a realidade brasileira.

O marxismo brasileiro nos anos 80-90

A já difícil relação entre a produção teórica universitária e a militância política num país como o Brasil adquiriu, já na década de 1970, uma nova qualidade. Por um lado, a produção universitária recusa in limine a ignorância e a indigência teórica que grassa entre os «práticos». Isto termina por conduzir, nas condições brasileiras, a uma solução, por assim dizer «aristocrática»: a formação de grupos de intelectuais de esquerda que, dissociados das organizações de esquerda, procuram academicamente se qualificar para dirigir o país. O esforço mais duradouro e influente nesse sentido é o do CEBRAP. Nele, a forte influência marxista inicial vai sendo lenta mas seguramente substituída por uma leitura liberal da realidade brasileira até adotar formalmente as teses da social democracia européia e abandonar o campo do marxismo. Enquanto a produção acadêmica e os militantes revolucionários

rompem com as poucas ligações que mantinham até então, o acelerado processo de industrialização nos anos 1969-73 lançam as bases para a eclosão das mais importantes greves operárias sob a ditadura militar.

Diferente das anteriores, são agora greves de grandes indústrias, algumas de mais de 30 mil trabalhadores, e que se alastram com uma plataforma de combate ao arrocho salarial. Ao lado das greves, movimentos de massa pela democracia, enfrentamentos com os aparelhos repressivos, renascimento do movimento sindical, estudantil, etc., dão suporte ao desenvolvimento e amadurecimento de uma nova geração de militantes -- e, entre eles, de marxistas.

Esta nova geração, contudo, tem sua gênese marcada por uma enorme debilidade. Já que, no atraso brasileiro, partidos e sindicatos não produzem teoria, a perda de contato com a produção universitária

potencializou as carências teóricas e práticas da nova geração. O desconhecimento das particularidades do capitalismo brasileiro, bem como a inexistência de uma crítica radical dos pressupostos filosóficos do curioso amálgama entre o estalinismo e do conservadorismo brasileiro, terminam por contribuir para que a nova geração de revolucionários não jogasse um papel decisivo na crise aberta pelo processo de redemocratização política.

Vulnerável teórica, política e ideologicamente, a nova geração de marxistas terminou por reproduzir uma variante da velha e esclerosada forma de militância stalinista. O voluntarismo e a crença no desenvolvimento teleológico da história, característicos dos velhos tempos, são agora revividos com uma tintura abertamente religiosa, fornecida pela Teologia da Libertação. A vontade de lutar pela justiça e a fé no socialismo, agora concebidos nos moldes de um igualitarismo cristão, substituem a compreensão científica da realidade.

Nessa peculiar circunstância veio á luz uma nova «ideologia revolucionária» eclética, profundamente confusa e amorfa. Ela se caracteriza pela síntese da Teologia da Libertação com as antigas concepções stalinistas de militância e acerca do papel do indivíduo na história. Ao ser confrontada com a necessidade de uma proposta para restruturação do Brasil no contexto da decadência da ditadura militar, a nova geração, por mediações as mais variadas, terminou por elaborar um nebuloso programa estratégico. A partir de uma crítica formal ao modelo soviético e ás antigas concepções políticas da esquerda dita «tradicional», valoriza as concepções democráticas de cunho liberal

radical. Segundo esta crítica, a raiz do problema soviético estaria na concepção não-democrática dos revolucionários russos, sobretudo a de Lenin, acerca da relação partido-massas. Pela mediação desta concepção, ao tomarem o poder os bolcheviques teriam substituído as massas pela vanguarda, dando origem á toda mazela soviéticas. Os autonomistas e os ecologistas contribuíram também com novas concepções acerca da relação entre a vanguarda e a massa, e entre o homem e a natureza. O resultado, ao fim e ao cabo, é a afirmação de uma proposta democrático-radical, que além da democracia formal (igualdade efetiva entre os concorrentes eleitorais, controle do poder econômico nas disputas eleitorais, controle das fraudes, etc.) exige também uma política de distribuição de rendas e de reforma agrária. Sintomaticamente, contudo, esta confusa visão de mundo que marca a nova geração de militantes, reconhece no direito á propriedade privada e nos mecanismos políticos democrático-burgueses a panacéia contra os males do «totalitarismo soviético».

O momento decisivo na conformação desta nova geração de militantes pós-ditadura militar é a criação do Partido dos Trabalhadores, em 1979. Desde esta data, até hoje, o PT é a expressão institucionalizada da confusa ideologia democrático-radical acima delineada. Contudo, já nos primeiros anos de sua existência, os traços mmais radicais e progressistasdesta concepção de mundo vão sendo paulatinamente substituídos por posições políticas e concepções teóricas cada vez mais liberais.

Para esta moderação do ideário do PT, além dos fatores ideológicos acima mencionados, é decisivo o crescimento do peso político da burocracia, tanto no interior do partido como também nos sindicatos a ele articulados. Dada á necessidade de modernização do aparato sindical para que as negociações entre capital e trabalho pudessem se desenvolver a contento nas novas condições políticas (fim do ciclo militar) e econômicas (enorme parque industrial, crise do capitalismo internacional, surgimento do modelo japonês, do just-in-time e da produção flexível), em poucos anos se desenvolveu uma volumosa burocracia sindical cuja razão de ser é negociar com o patrão. A negociação por empregos e salários, e não mais a superação da exploração do homem pelo homem, passa a ser o horizonte desta nova camada da burocracia sindical. Por um desenvolvimento análogo passou o Partido dos Trabalhadores.

A «profissionalização» dos seus militantes avançou rapidamente, e seus salários aumentaram de tal forma que ser funcionário do PT passou a ser um bom emprego, e não mais um compromisso político-revolucionário. Através de um processo cuja história ainda está para ser contata, tanto no interior dos sindicatos de esquerda, como no próprio PT, os militantes mais radicais vão sendo paulatinamente afastados dos órgãos decisórios, os congressos e encontros são crescentemente manipulados pela burocracia sindical e partidária, e as teses marxianas clássicas acerca do capitalismo e do socialismo, que nunca chegaram a ser nele dominantes, perdem cada vez mais espaço.

Estes fatores internos foram potencializados pela queda do muro de

Berlim, pelo desaparecimento da URSS e pela crise do capitalismo mundial sob a pressão do novo modelo japonês. O que nos importa das influências destes acontecimentos na realidade brasileira, é que o fluxo de abandono das posições marxistas, tanto na Universidade, como entre os «práticos», se torna avassalador. Ganha um novo impulso a valorização da democracia burguesa e do mercado enquanto mediações indispensáveis para a efetiva liberdade humana.

O reflexo no interior do Partido dos Trabalhadores é decisivo. Por meio deste processo aqui apenas esboçado, o PT termina por alterar em profundidade seu funcionamento interno. As instância dirigentes centrais adquirem um peso crescente na estrutura partidária, a burocracia se transforma numa instância decisória informal cada vez mais importante, -- e estas mudanças são decisivas na implementação de uma concepção de mundo cada vez mais distante daquela original, democrático-radical (a qual, por sua vez, longe estava de ser marxista).

Com isto, a principal pólo aglutinador da esquerda e dos marxistas brasileiros, o PT, terminou por migrar, das suas posições reformistas iniciais para um projeto político palatável ás forças conservadoras brasileiras. Fundamentalmente, moderou sua proposta de reforma agrária, de modo a torná-la muito mais limitada; acatou como válida a proposta de intensas privatizações da empresas e serviços públicos; abandonou a tese da moratória da dívida externa e acenou com a necessidade dos capitais estrangeiros para desenvolver o país.

O debate contemporâneo entre os marxistas brasileiros

A incompletude das classes sociais decisivas na formação social brasileira, a que acima brevemente nos referimos, tem uma outra conseqüência além das exploradas até agora. Se ela tem impossibilitado o desenvolvimento de uma classe operária consciente de suas possibilidades históricas, não é menos verdadeiro que tem dificultado o surgimento de uma burguesia capaz de se desenvolver para além da subordinação ao capitalismo internacional. A contrapartida histórica de uma classe operária imatura tem sido, até o momento, a inexistência de uma burguesia para-si, que supere o papel secundário que exerce na acumulação internacional do capital.

Devido á crise econômica mundial, que impossibilita o delineamento nítido do lugar a ser ocupado pela economia brasileira na acumulação internacional do capital, a burguesia brasileira, incapaz de formular um projeto próprio de desenvolvimento, apenas consegue responder á violenta crise que assola o país através de medidas pontuais e paliativas. Sem que o capitalismo internacional defina uma nova função á economia brasileira no contexto da acumulação global do capital, a burguesia não consegue compor um projeto estratégico.

Esta situação faz com que, desde meados da década de 1970, o Brasil esteja imerso numa crise econômica sem precedentes. Os anos com inflação acima dos 1500% se sucedem com enorme frequência, o país já passou por reformas monetárias que alteraram a moeda sete vez neste período, todo o receituário neo-liberal (com exceção da dolarização da economia, que começa a ser tentada nestes dias que estou escrevendo o artigo) já foi aplicado, sem sucesso. A taxa do desemprego e do semiemprego aumenta seguidamente, ao mesmo tempo em que se verifica a diminuição numérica da classe operária, mesmo em anos nos quais aumenta a produção, graças á introdução de novos métodos de gestão e produção industriais. Se a situação do marxismo é preocupante, não menos

verdadeiro é que os setores dominantes da sociedade brasileira encontram enormes dificuldades em oferecer uma saída, ainda que conservadora, para o impasse em que se encontra o país.

Como as classes dominantes não conseguem produzir uma estratégia para a superação da crise nacional, os marxistas conseguem, de algum modo, sobreviver e se reproduzir, apesar das suas carências históricas.

Os remanescentes mais expressivos dos agrupamentos marxistas compõem hoje a ala esquerda do PT, ou se localizam em algumas universidades, em especial, mas não exclusivamente, no Estado de São Paulo. De um modo geral, este são dos dois pólos - universidades e PT -- em que se concentram, atualmente, os marxistas brasileiros.

1. A crítica ao marxismo vulgar

Nesse contexto, dois são os temas decisivos que polarizam o debate entre os marxistas brasileiros na atualidade. O primeiro deles é a crítica do marxismo vulgar e do stalinismo, um empreendimento que se apresenta como exigência absoluta para a sua sobrevivência.

Diferentemente do que ocorreu no cenário europeu, a crítica do stalinismo e do marxismo vulgar em nosso país não pode se propor a nenhuma recuperação do passado. Não conhecemos entre nós nenhuma tradição marxista senão aquela de filiação stalinista. Trata-se, portanto, de uma abertura de horizontes completamente originais, em se tratando da realidade brasileira. O passado, não apenas não serve como apoio para este empreendimento, como tem se revelado um enorme pesadelo a assombrar o cérebro dos vivos.

Na superação do marxismo vulgar e do stalinismo brasileiros, as questões decisivas envolvem a concepção teleológica da história e, articulado a este problema, a superação das concepções que se caracterizam pela dicotomia, tipicamente althusseriana, entre infra e superestrutura.

Em poucas palavras, típico do marxismo vulgar brasileiro é a afirmação da determinação direta da subjetividade pelo mundo material e a redução do indivíduo a träguer da infra-estrutura. Todavia, paradoxalmente, esta determinação direta do subjetivo pelo material convive lado a lado com a concepção epistemológica pela qual o objeto do conhecimento é absolutamente distinto do objeto real. Deste modo, a explicação marxista vulgar da relação entre a subjetividade e a materialidade se reveste de dificuldades verdadeiramente insuperáveis. Estas dificuldades estão na origem de uma dicotomia teórica que pode ser sintetizada nestes termos: o conteúdo do pensamento é determinado de modo absoluto pela materialidade e, ao mesmo tempo, é o produto exclusivo da subjetividade.

Nestes anos de crescimento das teses liberais, a incapacidade em superar esta dualidade subjetividade/objetividade terminou por conduzir uma parte significativa dos marxistas brasileiros, através de mediações que não podemos sequer mencionar aqui, para uma concepção política dual, na qual indivíduos e sociedade compõem dois pólos necessariamente opostos e antinômicos. Sob várias formas, entre a esquerda marxista no país, ressurgiu uma problemática típica do liberalismo clássico, qual seja, a busca de um modelo político capaz de absorver de modo ideal os inevitáveis atritos produzidos pelas antinômicas relações entre indivíduos e sociedade. A individualidade terminou por se converter no locus por excelência da liberdade, o mercado adquiriu funções positivas na regulamentação das inevitáveis disputas individuais; e a política e o Estado, passaram a ser considerados como mediações indispensáveis, pois essenciais á civilização.

Certamente nem todos os marxistas que, de algum modo, compartilham das concepções do marximo vulgar, caminharam tão longe em direção ao liberalismo. Uma parte ponderável deles não retira todas as consequências políticas por nós apontada no parágrafo acima. Contudo, estas ressalvas

não desautorizam nossas afirmações, apenas chamam a atenção do leitor para a necessidade de matizá-las.

Já em meados da década de 1970 se delineou uma reação ao marxismo vulgar brasileiro. Entre os «práticos» e também no meio universitário, se desenvolveu uma corrente gramsciana que promoveu, para sermos sintéticos, uma leitura anti-leninista do comunista italiano. O eixo desta leitura, até hoje, continua sendo a afirmação da necessidade de um longo processo pedagógico que conscientize as classes populares dos seus interesses históricos, construindo deste modo uma contra-hegemonia á dominação burguesa. Lido por este prisma, o conceito de hegemonia de Gramsci, associado ás influências da pedagogia do oprimido de Paulo Freire e á Teologia da Libertação, forneceu os elementos para uma crítica do marxismo vulgar no sentido de revalorizar as concepções democráticoradicais característica da nova geração de revolucionários pós-ditadura militar.

De modo análogo aos marxistas vulgares, é também necessário assinalar que nem todos os gramscianos brasileiros compartilham desta leitura do pensador italiano, nem compartilham com a concepção liberal do conceito gramsciano de hegemonia. São exceções, contudo, que não invalidam nossas considerações enquanto uma aproximação sucinta á realidade, e não como uma exploração detalhada da mesma.

O terceiro pólo nesta disputa teórico-filosófica é constituído pela corrente lukácsiana. Baseada principalmente no último Lukács, postula uma concepção ontológico-unitária do mundo dos homens, no interior da qual a subjetividade e a objetividade são sintetizadas, pela mediação do trabalho, em um novo ser, qualitativamente distinto da natureza. Ao conceber o ser social enquanto causalidade posta por atos teleologicamente orientados e restringir a teleologia ás ações singulares, esta vertente teórica oferece uma outra possibilidade de superação das antinomias entre a superestrutura e a infra-estrutura típicas do universo stalinista ou marxista vulgar, sem recorrer ás concepções liberais. De modo análogo, a crítica, a partir da perspectiva lukácsiana, das concepções dualistas acerca do mundo dos homens, tem possibilitado a recusa tanto da concepção dicotômica da relação entre

subjetividade e objetividade típica dos marxistas vulgares, como também das concepções liberais centradas na dicotomia citoyen/bourgeois.

Tal como ocorre entre os marxista vulgares e os gramscianos, não são pequenas as diferenças entre os lukácsianos. Apenas agora se realizam os primeiros esforços no sentido de sistematizar as isoladas investigações acerca do pensador húngaro bem como acerca da realidade brasileira. Politicamente, as diferenças são também muito significativas; de tal modo que a fragmentação que caracteriza os marxistas brasileiro se faz também presente nesta terceiro posição do debate teórico-filosófico.

2. Reforma ou Revolução

O segundo pólo do debate contemporâneo entre os marxistas brasileiros diz respeito á esfera política enquanto tal, e sua forma mais expressiva tem sido o debate entre reforma e revolução. Sucintamente, o debate poderia ser colocado nos seguintes termos: a revolução é ainda um tema contemporâneo, ou a evolução histórica teria descartado de uma vez para sempre esta categoria da esfera política?

é evidente que esta disputa está intimamente relacionado ao debate teórico-filosófico mais geral. O fundamento filosófico das propostas reformistas é a concepção que considera essencial ao mundo dos homens a antinomia, tipicamente liberal, entre citoyen/bourgeois. Por outro lado, a reafirmação da unitariedade ontológica última do mundo dos homens, que recusa a antinomia citoyen/bourgeois em nome da potencialidade ontológica da explicitação categorial do para-si do gênero humano, se apresenta como um dos pontos de apoio filosófico ás propostas revolucionárias.

No Brasil tanto este debate, como sua relação com as concepções filosóficas de fundo, apresentagrandes similitudes com o debate internacional. As propostas reformistas partiram tanto da constatação da amplitude e da profundidade das derrotas revolucionárias, como também da crítica ao marxismo vulgar e á sua mecânica submissão do político ao econômico. Tanto no Brasil como no debate internacional, a revalorização da «política» e da sua «autonomia» levou á «redescoberta» do papel central do indivíduo para a ação política, á «redescoberta» do «sujeito» e, por estas e outras mediações, á revalorização das teses liberais acerca da liberdade, do indivíduo, do mercado e do Estado. Ao fim e ao cabo, a constatação das derrotas revolucionárias, e a redescoberta dos

valores liberais, conduziu uma parcela ponderável da antiga esquerda revolucionária para posições reformistas, quando não conservadoras. A superação da exploração do homem pelo homem, tendo em vista uma sociabilidade emancipada do capital, deixa de ser um projeto político para se reduzir a uma utopia -- generosa, é verdade, mas nem por isso factível. E esta utopia é substituída pela proposta «não-utópica» de humanização do capitalismo, da busca de uma superior «racionalidade» para as relações sociais. E, neste limitado horizonte, não tem custado muito a passagem da proposta reformista de uma transição eleitoral e nos marcos da democracia burguesa do capitalismo ao socialismo -- para uma outra proposta «realista», «não-utópica», da humanização e democratização do capital.

Também não é uma exclusividade do debate entre os marxistas brasileiros o fato de a avassaladora vitória da contra-revolução fazer com que a defesa da revolução apenas possa se dar nos temas mais abstratos, teóricos, «de fundo». Como a revolução não está na ordem do dia, e como a reprodução da ordem capitalista é o projeto hegemônico, o debate não pode ter por eixo o delineamento de uma plataforma para a revolução, e por isso termina por fixar-se o exame teórico da possibilidade da subversão revolucionária da ordem capitalista e sua substituição por uma sociabilidade emancipada.

O desenvolvimento deste debate terminou por constituir no Brasil dois campos antinômicos, que hoje já se encontram orgânica e institucionalmente separados. O primeiro, que possui a hegemonia ideológica tanto no PT quanto nas universidades e sindicatos, propõe um projeto de transformaçãopaulatina do capitalismo de modo a democratizálo e aproximá-lo aos modelos do Wellfare State europeu. Para esta corrente, o equívoco do capitalismo brasileiro não estaria na exploração do homem pelo homem, mas na forma extremada em que se desdobra esta exploração. Os limites deste projeto, sendo breve, está no reconhecimento da legitimidade da propriedade privada, do trabalho assalariado, do mercado e do Estado como mediações as mais adequadas (as mais «livres») para a resolução dos inevitáveis conflitos fundados pela essência individualista e egoísta do ser humano. Ainda que este projeto políticoeconômico exiba distinções com o projeto da elite conservadora -- e por mais significativas que sejam esta distinções -- a sua filiação ás teses liberais clássicas torna esta vertente política uma interlocutora natural do conservadorismo oligárquico nacional.

O segundo campo que se delineou neste debate congrega todos os que se propõe á superar o capitalismo, a propriedade privada, o trabalho assalariado, etc., em direção á sociedade comunista. Neste campo, a heterogeneidade é muito grande; as filiações teóricas e ás interpretações da trajetória do movimento revolucionário neste século variam enormemente -- o que tem dificultado a articulação das diferentes correntes revolucionárias ao redor de algumas intervenções políticas ou teóricas unificadas.

Em que pese estas divergências e diferenciação internas, este campo tem como eixo identificador a crítica marxiana ao capitalismo e a recusa de todo ideário liberal tanto para a economia quanto para a política. A afirmação da revolução enquanto uma possibilidade, ainda que não a curto prazo, e enquanto uma necessidade insuperável para a construção de uma sociedade emancipada, no sentido marxiano do termo, é sem dúvida o traço mais marcante desta vertente. A debilidade maior que este campo tem demonstrado no debate brasileiro é sua incapacidade em oferecer uma plataforma política para a transformação revolucionária do país -- e esta debilidade é ainda mais evidente no Brasil que na Europa, porque, ao contrário do que ocorre no primeiro mundo, o Brasil viveu, nos últimos anos, a possibilidade do PT eleger o Presidente do país. No contexto de uma possível vitória eleitoral, nos últimos seis anos o debate político na esquerda tem tipo por eixo as questões táticas e administrativas que uma eventual tomada do poder impõe á «agenda política». De forma de modo algum linear, tal como ocorreu nas décadas passadas, também agora o exame das questões teóricas de fundo, ou são postas de lado em nome da urgência das necessidades práticas imediatas, ou então suas resoluções são diretamente submetidas ao critério da necessidade política cotidiana. Uma vez mais, tal como ocorreu em toda história da esquerda brasileira, a investigação e a resolução das questões teóricas de fundo são submetidas aos interesses táticos imediatos, reproduzindo uma versão mais moderna do «taticismo» tradicional.

A máxima atenção ás necessidades táticas e administrativas imediatas, em detrimento do exame consciencioso das questões teóricas decisivas, têm reproduzido um outro traço característico da prática das gerações de comunistas anteriores: a reprodução ampliada da ignorância acerca da história e da filosofia, deixando desarmada teórica e ideologicamente a militância de esquerda em nosso país. Neste contexto, a reprodução do «praticismo» e da «ignorância», a recusa da teoria em nome das necessidades práticas imediatas, têm se constituído na ideologia da burocracia tanto do PT como do movimento sindical. Por meio do elogio da habilidade tática e administrativa e do

desprezo pelas questões teóricas (ditas «abstratas») e pelo socialismo (dito utópico); através do elogio das propostas «práticas», que reconhecem sensatamente as «limitações» do presente, em detrimento das propostas «teóricas» que não trazem ganhos imediatos aos trabalhadores; através da extremada valorização da habilidade para «articular» política e administrativamente, em detrimento do conhecimento e da filiação a princípios, a burocracia tem justificado sua submissão ás teses conservadoras e/ou reformistas e, assim, se consolida como instância decisória cada vez mais importante tanto no PT como no movimento sindical.

Por esta via, o crescimento do peso político da burocracia sindical e partidária tem fortalecido as teses liberais reformistas e isolado ainda mais, no cenário político, a esquerda revolucionária.

O impacto do fim da URSS

O fim da URSS, e a ofensiva neo-liberal que veio na sua esteira, tiveram influências marcantes na evolução do debate político no interior do marxismo brasileiro. Em primeiro lugar, levou á extinção do velho PC que, apesar de todas as mazelas, ainda era um dos referenciais da

esquerda brasileira.

Em segundo lugar, favoreceu o surgimento de um clima ideológico em tudo adverso ao marxismo. Nem mesmo aquelas correntes que há muito denunciavam o caráter não socialista da URSS ficaram imunes ao cerco. Durante alguns anos, autores marxistas, ou mesmo opiniões que apenas vagamente se aproximavam ao marxismo, foram banidas da imprensa e de debate político. No interior do movimento sindical, os conservadores, os reformistas e a burocracia em muito se aproveitaram deste clima para expandir sua influência.

Nas universidades, onde o marxismo não ocupa uma posição de destaque há anos, houve uma verdadeira caça ás bruxas. Os marxistas foram perseguidos com uma intensidade, ainda que não com a mesma violência, comparável á época da ditadura militar. No combate aos marxista, em nenhum momento a ditadura conseguiu a conivência generalizada, e mesmo a participação ativa, de parcela tão ponderável da comunidade acadêmica, como ocorreu ultimamente.

Neste clima, papel ideológico importante jogou a Teoria do Agir Comunicativo de J. Habermas. Para ser o mais breve possível, a categoria habermasiana do «mundo da vida» ofereceu um modelo alternativo á centralidade ontológica do trabalho típica da tradição marxista. Como é sabido, o «mundo da vida», enquanto «lugar transcendental» que funda a intersubjetividade, é o fundamento teórico da revalorização da linguagem e da prática da negociação na construção do consenso social; com o que

Habermas pretende superar definitivamente a «ultrapassada» proposta marxiana de explicar a história pela luta de classes.

A postulação do consenso como verdadeiro motor da história (e não mais o desenvolvimento das forças produtivas e a luta de classe) forneceu, ás teses conservadoras e reformistas, uma base de apoio para a fundamentação teórica das suas propostas. A verdadeira modernidade apenas adentraria no Brasil quando a ultrapassada proposta de exclusão do outro do cenário político fosse superada pela concepção, mais «moderna e racional», de busca do consenso entre os opositores. Ao invés da superação do capital -- utopia tornada reacionária e totalitária após o fim da URSS -- a esquerda deveria adentrar ao jogo democrático de modo a constituir um consenso nacional que levasse a introdução do Brasil entre os países capitalistas mais avançados. E, neste processo, o papel dirigente caberia aos reformistas e aos burocratas que «sabem como fazer» as coisas no Estado brasileiro.

Neste cenário, e com este passado, a posição dos marxistas brasileiros está longe de ser confortável. Incapacitados, até o momento, de produzir um concepção filosófico-teórica que dê conta das especificidades mais genéricas do mundo dos homens, e que forneça uma base segura para a orientação das investigações acerca da realidade brasileira, as pesquisas ocorrem de forma fragmentada e dispersa, sem possibilitar a constituição de uma Weltanschauung alternativa á ideologia conservadora. Sem se apoderar teoricamente da realidade, não conseguem traçar um programa de ação coerente e com isso, fica aberto o caminho para a consolidação da hegemonia dos reformistas, conservadores e burocratas, os quais sempre sabem «o que fazer» e, para todas as situações, possuem sempre «propostas concretas».

Com a colocação em segundo plano das questões teóricas e políticas mais decisivas, o «taticismo» volta a imperar na prática da esquerda -- mesmo da esquerda revolucionária. O ato de militar se reduziu a um exaustivo praticismo, que nada mais é senão uma corrida incessante atrás dos fatos que a realidade vai produzindo. Sem tempo para estudar e refletir, fica assegura a reprodução ampliada da ignorância entre os militantes e mesmo entre as direções políticas e sindicais -- base segura e indispensável ao fortalecimento da mentalidade burocráticaconservadora, de filiação liberal, que marca hoje a maior parte da esquerda, acadêmica ou militante, do Brasil.

A situação atual do marxismo no Brasil, em suma, pode ser caracterizada por uma situação de cerco. Marcado pela incompletude das classes sociais decisivas -- peculiaridade do capitalismo brasileiro --

os marxistas não conseguiram realizar a crítica teórica da realidade nacional, crítica teórica esta que é o pressuposto de toda crítica prático-revolucionária da mesma. Mesmo em uma circunstância eleitoral

aparentemente favorável, as determinações históricas mais profundas fazem com que se fortaleça o pólo mais reformista e conservador no interior do PT e dos sindicatos, em detrimento das concepções revolucionárias.

A derrocada da URSS o avanço das teses liberais --e no plano acadêmico, a rápida difusão da Teoria do Agir Comunicativo de Habermas -- colocaram os marxistas brasileiros em uma situação ainda mais difícil, tanto nas universidades quanto nos partidos e sindicatos. Ainda que, ultimamente, possamos notar uma diminuição da pressão ideológica conservadora (afinal, em nenhum lugar do mundo o liberalismo constituiu uma alternativa de superação da crise econômica, etc.), e mesmo que floresçam iniciativa interessantes, como o surgimento simultâneo de duas revistas marxistas4, nada faz crer que os marxistas brasileiros estejam próximos a romper o cerco a que estão submetidos.

NOTAS

1 Texto publicado sob o título "La situazione del marxismo in Brasile" em Marxismo Oggi, V. 1996/2, p. 173-189, Bolonha, Itália, 1996, e com o título "The situation of Marxism in Brazil" na Latin American Perspectives, UCLA Press - Berkeley, V. 25, n.98, pp. 94-108, 1998.

2Prof. do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas, Maceió, Brasil. Doutor em Ciências Sociais pela UNICAMP. Membro da editoria das revistas Praxis e Critica Marxista.

3 - Ainda que as primeira referências a Marx datem do início do século, apenas a partir dos anos 1930 o marxismo passa a ter politicamente alguma expressão nacional, com a adesão de Luis Carlos Prestes ao Partido Comunista.

4- O ano de 1994 assistiu ao surgimento de duas novas revistas teóricas marxistas no país não vinculadas a partidos ou organizações da esquerda tradicional. A primeira Crítica Marxista, se constituiu a partir de um grupo de intelectuais marxistas professores das duas maiores universidades do país, USP e UNICAMP. A segunda Praxis é mantida por uma cooperativa de algumas dezenas de inteletuais, dirigentes e militantes sindicais e políticos.

Autor:

Sergio Lessa

sergio_lessa[arroba]yahoo.com.br  

Prof. do Depto. de Filosofia da UFAL e membro das

editorias das revistas Crítica Marxista e Práxis.

Website: www.sergiolessa.com 



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