Página anterior Voltar ao início do trabalhoPágina seguinte 


Cidadania (página 2)

Atahualpa Fernandez


Dizendo de outro modo , a concepção republicana não diz , á maneira moderna e liberal , que embora o direito coaja á gente, reduzindo assim sua liberdade, compensa este dano prevenindo um grau maior de interferência. Uma proposta republicana coerente sustenta que o direito propriamente constituído é constitutivo da liberdade, o que descarta este tipo de retórica sobre compensações, esta retórica de um passo atrás para dar dois adiante. De acordo com a mais recente doutrina republicana ( da concepção da liberdade como cidadania) , as leis de um estado factível, e em particular, as leis de uma república , criam a liberdade de que desfrutam os cidadãos; não mitigam essa liberdade, nem sequer de um modo ulteriormente compensável (Pettit).

Por certo que a potencial capacidade das leis para produzirem esses efeitos só será levada a cabo á medida que , concebidas como instrumentos de construção social (de uma sociedade ainda em processo de construção), sejam aplicadas com respeito aos interesses e as idéias comuns do povo e se atenham á imagem de um direito cuja função seja a de, a) negativamente, impedir o indivíduo do esquecimento de si próprio, enquanto entidade livre , separada e autônoma , e b) positivamente, de o afirmar na sua liberdade e, assim, na sua cidadania .

Quando as leis se convertem em instrumentos da vontade arbitrária de um indivíduo ou de um grupo, então, de acordo com esta concepção, passam a ser aplicadas como expressão de um regime em que os cidadãos se convertem em "dependentes" e se vêem inteiramente privados de sua liberdade: todos e cada um deles vivem, por dizê-lo com Harrington, "a mercê de seu senhor"; todos estão completamente dominados pelo poder sem restrições do indivíduo ou do grupo ao mando.


Vale a pena deter-se aqui para empreender uma pequena exploração lateral que nos aclare um assunto cuja precisa definição parece de toda estranha - ou simplesmente dada por pressuposta - ás teorias normativas modernas. Refiro-me , particularmente, ao fato de que, segundo a concepção republicana clássica , o cidadão , como indivíduo plenamente livre , é sui iuris , dono e senhor de si mesmo ( de acordo com a célebre fórmula do direito romano, recuperada pelo republicanismo moderno, desde Marsiglio de Pádua até Kant) , isto é , que "não depende de ninguém" no sentido republicano de "dependência" , quer dizer , que não pode ser arbitrariamente interferido por ninguém (por nenhum particular, nem tampouco pelo Estado)10 .

Agora bem; a tradição republicana ocidental sempre reconheceu que na sociedade civil abundam os sujeitos que andam longe de ser "donos de si mesmos", ou dito de outra maneira, que a sociedade civil é um espaço cheio de assimetrias, de dependências e de relações sociais "alienadas" ( na versão que o jovem republicano Hegel deu á "dependência do outro"). De Aristóteles a Marx, passando por Marsiglio, Maquiavel, Harrington , Montesquieu , Rousseau , o grosso das Ilustrações escocesas (Ferguson, Adam Smith) e alemã ( Kant, o jovem Hegel), a tradição republicana sempre viu e analisou a sociedade civil como um espaço de todo ponto político, isto é, atravessado por relações de poder11 .

A conclusão que o republicanismo não democrático sacou de sua mirada "política" sobre a sociedade civil é esta: os "dependentes", os "alienados"12 , os não plenamente livres na sociedade civil, os que, em suma, não podem ser considerados sui iuris ( os escravos, por certo, mas também os criados, os assalariados, as mulheres, os forasteiros e as crianças), não podem ser tampouco cidadãos ; seu próprio lugar na sociedade civil lhes condena á "inexistência política". Em apoio dessa conclusão vinha , naturalmente, a se empregar todo o arsenal da artilharia axiológica republicana: um "dependente" não pode governar-se a si próprio , não pode , pois, ser virtuoso , aspirar á excelência ; um "dependente", sem propriedades que assegurem sua autonomia de juízo , não pode ingressar na deliberação pública sem injetar nesta traços temíveis; um "dependente" despossuído não tem nenhum interesse pessoal na preservação da república, não pode , portanto, ser um bom "cidadão" etc. etc.

O republicanismo tradicional ( não democrático), desde Aristóteles até Kant, viu na democracia um intento de subversão anti-republicana por excelência, um despotismo dos pobres livres13 : a posição de exclusão dos "dependentes" aceita como dado inamovível, e traduz em termos político-jurídicos o fato de que o alieni iuris não é livre e igual na vida civil e, em certa medida, nem sequer um "in-divíduo" (individuum não é senão a tradução latina do grego átomos, que significa "indiviso") ; privado de igualdade, está privado de liberdade e de existência separada e autônoma - pois na tradição republicana, neste preciso sentido, in-dividualidade , igualdade e liberdade cidadãs são indivisíveis. E os dois projetos políticos mais característicos do republicanismo democrático moderno, o de Jefferson na América e o de Robespierre na Europa, fracassaram, como é de sobra conhecido (Matthiez; Beard).

E aqui reside, de fato, o grande problema do qual nasce historicamente o "liberalismo" no primeiro terço do século XIX. Entre Kant e Adam Smith , de um lado, e Benjamin Constant , do outro, medeia a Revolução Industrial. Os "criados" , os "dependentes" que tão expedidamente Kant pôde deixar fora da cidadania, haviam-se convertido entretanto em um percentual imenso da população. O trabalho assalariado ( a "escravidão moderna", na formulação de Adam Smith) crescia sem parar : como excluí-lo, como privá-lo de toda existência política, sem arriscar a "ordem social" mesma, aquilo que para Locke era o único fim legítimo do governo?14

A solução liberal do século XIX consistiu em despolitizar completamente a esfera privada da sociedade civil; e o novo conceito liberal de cidadania surge dessa nova mirada, despolitizada, da sociedade civil. Logo, o liberalismo, historicamente considerado, é a resposta ao problema representado pela conjugação simultânea de duas exigências políticas : a exigência democrático-republicana de universalizar a cidadania ( uma longa tradição que, arrancando de Ephialtes e Péricles desemboca em Robespierre e Jefferson) ; e, por outro lado, a exigência republicano-tradicional ( o republicanismo, digamos, de impromptu latino) de excluir de existência política não somente aos escravos, senão a todos os pobres, ou como disse Cicerón, á abiecta plebecula , isto é, a quem vive por suas mãos. A satisfação da primeira exigência levava á subversão da "ordem social", ameaçava a estrutura vigente da propriedade; ceder á segunda, era tanto como provocar a secessio plebis.


A resposta liberal a essas duas exigências encontradas é: universalização da cidadania, mas não de uma cidadania republicana. No novo conceito liberal de cidadania cabiam potencialmente todos , também os que na sociedade civil são "dependentes" ou estão "alienados": os criados, os aprendizes, os jornaleiros, os assalariados e, enfim, as mulheres e o povo todo.

E podiam caber: porque o liberalismo foi construindo, entre outras coisas mercê á reintrodução em grande escala do direito civil romano , a ficção jurídica de apresentar como essencialmente despolitizada a astronomicamente grande e gigantesca esfera privada da sociedade civl. Esta podia ser mostrada , agora - a partir da segunda metade do século XIX- , e em expressa ruptura com o tronco republicano - também com Adam Smith! - , como um espaço de intercâmbio e tráfico social entre livres equipotentes, como um lugar sem assimetrias nem vínculos de poder, como o imenso âmbito dos problemas apoliticamente solucionáveis mediante contratos privados entre livre e iguais16 .

As chamadas democracias liberais são , em boa medida, o resultado histórico desse processo de largo alcance, que desembocou na separada cristalização de uma esfera privada despolitizada, supostamente sem relações de poder, por um lado, e por outro, de uma esfera pública propriamente política. Não fará falta insistir aqui em que essa separação estrita resultou falida. Por um lado, mais além de toda fictio iuris, a sociedade civil está atravessada de relações de poder e subalternidade , está prenhada de sujeitos, de grupos e de classes sociais vulneráveis á interferência arbitrária de outros; a ficção liberal não serve senão para deixar aquí as coisas como estão e, ás vezes , para impetrar do Estado o pontual respeito do statu quo ante
.
Por outro lado, a ficção de que a esfera civil- "apolítica"- e a esfera pública - "política"- estão separadas como compartimentos estanques se vê reforçada pelo novo conceito liberal de uma cidadania universalizada , segundo a qual se permite a participação na vida política com total independência do nível de ingressos ( sem considerar, isto é , a posição ocupada na sociedade civil). Mas , como todo mundo sabe, essa ficção é escarnecida a diário, em todas as democracias liberais do mundo (e muito especialmente a nossa), pelo gigantesco bombeio de recursos que desde a plutocracia da "apolítica" esfera civil emanam em direção aos esforçados competidores por um posto baixo o sol na esfera "política"17 .

A soma de ambas as coisas: relações de dependência, alienação e subalternidade na sociedade civil "apolítica" , e a invasora influência dos plutocratas na vida política, convertem ao povo soberano, como agudamente observou Clarín há mais de um século, em um soberano in partibus infidelium18 .

Cass Sunstein, por exemplo, tem insistido de modo especialmente agudo neste ponto para os Estados Unidos da América: na interpretação liberal - pré New Deal - do estado de direito, a medida da neutralidade do estado se considerava o statu quo ante "impolítico" da sociedade civil. De maneira, por exemplo, que em casos de discriminação racial no mercado laboral, a Corte Suprema tendia a considerar que era um "fato" da sociedade civil que houvesse empresários que não queriam contratar trabalhadores de cor em igualdade de condições salariais. Esse "fato" era impolítico, resultado de intercâmbios privados entre os empresários e os trabalhadores de cor que aceitavam os contratos laborais oferecidos. E se considerava um interferência imprópria, violadora da neutralidade e da imparcialidade do Estado, que os tribunais se imiscuíssem em um sentido ou outro. O New Deal mudou isto radicalmente, reintroduzindo na jurisprudência norte-americana um autêntico sopro de ar republicano fresco; e isso é o que hoje está de novo ameaçado com a contra-revolução liberal.

De fato , ainda que o direito necessariamente entranhe interferência - mesmo sendo a lei forçosamente coercitiva - , a interferência em questão não será arbitrária desde que os operadores jurídicos tenham título e capacidades para interferir somente quando o façam de forma e maneira que os efeitos de suas decisões se adaptem ás opiniões recebidas da cidadania , ou , dizendo de outro modo , desde que expressem e plasmem historicamente as expectativas psico-biológicas , culturais, jurídico-sociais de validade e de legitimidade substancial de uma comunidade de indivíduos ante a qual o discurso jurídico deve apresentar-se justificado, isto é, ante a qual a qualidade do discurso jurídico e político será medida por sua humanidade, pela precisão de sua adesão á natureza humana e que sirva para iluminar, fundamentar e constituir determinado agrupamento social em uma comunidade verdadeiramente ética.


Mas não se trata somente de que a tradição republicana seja capaz de reconhecer esta dimensão jurídico-política da cidadania. Mais importante ainda é a circunstância de que, além desse simples reconhecimento, é exatamente na tradição republicana que podemos encontrar vias adequadas de articulação dessa forma de vínculo social relacional : modos adequados de combiná-lo, de potenciar e cultivar seus melhores lados, e de mitigar ou jugular seus lados destrutivos e perigosos; sempre e em tudo condizente com a obrigação ética de produzir, reproduzir e desenvolver a cidadania, a liberdade e a dignidade humana com respeito aos variados caprichos de nosso entorno sócio-cultural.

Daí que a idéia de cidadania é central na perspectiva republicana porque permite enfrentar-se ás hipertrofias e hipotrofias dos distintos vínculos sociais relacionais: aos excessos e defeitos, isto é, das relações de comunidade, de autoridade, de proporcionalidade e ainda dos mesmos vínculos sociais de igualdade nos que se inserta a própria relação de cidadania . Da mesma forma, e em igual medida, porque permite enfrentar-se também á fagocitação de um tipo de vínculo social por outros: as restrições antiacumulatórias e antireacionárias ao uso do poder, por exemplo, tratam de evitar que os vínculos sociais de autoridade (o poder político) socavem tanto as bases da vida social comunitária como a eficácia mesma da liberdade e, consequentemente, da cidadania20 ; as restrições antialienatórias e antiacumulatórias ao uso da propriedade privada, por exemplo, tratam de evitar que os vínculos sociais de proporcionalidade (o mercado) socavem as bases da vida social comunitária; as restrições antialienatórias e antiacumulatórias ao uso do direito de sufrágio tratam de evitar a corrupção da relação de igualdade cidadã por contágio dos vínculos de proporcionalidade. E a famosa "eterna vigilância cidadã" (republicana) que trata de evitar que o abuso de autoridade por parte dos mais astutos e egoístas rompa os vínculos da igualdade cidadã e degrade a concepção de justiça em uma banalização do uso do poder ao serviço de espúrios e injustificados interesses políticos e/ou econômicos, isto é, degrade a res publica a imperium.

Por conseguinte, parece de todo razoável supor que o objeto e a função de todo discurso jurídico e político deveria consistir, em última instância, na articulação combinada dos vínculos sociais relacionais estabelecidos pelos indivíduos, sendo que, para tanto, é de todo desejável que se parta de indivíduos dotados de inatas constrições cognitivas, com capacidade autotélica21 de automodelar-se, com motivações próprias, plurais e genuínas de perseguir a virtude e de estabelecer determinados vínculos sociais relacionais (dos quais emergem a moralidade e a juridicidade) e, desde aí, por meio de atos que são qualificados como "valiosos", desenhar um modelo normativo e institucional que evite, em um entorno social prenhado de assimetrias e desigualdades, a dominação e a interferência arbitrária recíprocas, garantindo uma certa igualdade material e, em último termo, estimulando e assegurando a titularidade e o exercício de direitos (e o cumprimento de deveres) de todo ponto inalienáveis e que habilitam publicamente a existência dos cidadãos como indivíduos plenamente livres.


Isto significa, em termos mais modestos e mais realistas, um compromisso mais específico e virtuoso - no sentido davirtú de Maquiavel (que Cícero denominou virtus e os republicanos ingleses traduziram como civic virtue ou public-spiritedness)- no sentido de definir e de construir desenhos institucionais, normativos, discursivos e sócio-culturais os mais amigáveis possíveis para com as funções próprias de nossas intuições e emoções morais. E, quando isso não seja inteiramente possível, que se defendam desenhos institucionais, normativos, discursivos e sócio-culturais opostos a sempre possível manipulação perversa dessas intuições e emoções.

Em definitivo, estamos firmemente convencidos de que o modelo institucional que melhor reflete, entre todos que conhecemos, esse ideal de cidadania22 é o da república democrática defendida pela Ilustração. E não somente pelo fato de que a tradição republicana seja capaz de reconhecer a pluralidade das motivações da vida social humana - coisa que supõe já uma notável vantagem de partida com relação ao monismo motivacional da tradição liberal -, senão porque seu peculiar talante de modelo ético-político aberto aporta valores de cidadania essencialmente útil para tomar (no nosso caso) o direito como práxis e um poderoso instrumento de construção social e, muito particularmente, para assimilar os câmbios formais e materiais no processo de tomada de decisões ante a dinâmica fluída e contingente do entorno sócio-cultural em que se dá a constituição psico-ético-histórica do ser humano.

Em definitivo, estamos firmemente convencidos de que o modelo institucional que melhor reflete, entre todos que conhecemos, esse ideal de cidadania22 é o da república democrática defendida pela Ilustração. E não somente pelo fato de que a tradição republicana seja capaz de reconhecer a pluralidade das motivações da vida social humana - coisa que supõe já uma notável vantagem de partida com relação ao monismo motivacional da tradição liberal -, senão porque seu peculiar talante de modelo ético-político aberto aporta valores de cidadania essencialmente útil para tomar (no nosso caso) o direito como práxis e um poderoso instrumento de construção social e, muito particularmente, para assimilar os câmbios formais e materiais no processo de tomada de decisões ante a dinâmica fluída e contingente do entorno sócio-cultural em que se dá a constituição psico-ético-histórica do ser humano.

NOTAS DE RODAPé CONVERTIDAS

1. Sobre as ruínas de tronos e altares do medievo tardio, e inspirado nos ideais políticos do Mediterrâneo antigo - como palingenésico, pois, da Antiguidade clássica -, o republicanismo fez o mundo moderno; e o liberalismo, que vem retificando-o desde o segundo terço do século XIX, poderia acabar destruindo-o (Doménech). Para os efeitos que aquí nos interessa, não trataremos do tema sob a perspectiva do comunitarismo, porquanto que o mesmo não se nos afigura uma grande tradição histórico-política prenhada de conseqüências práticas e institucionais, como as outras duas, senão mais bem uma "moda" acadêmica anglo-saxônica , efêmera e episódica, segundo se está vendo. Em verdade, pensadores como Charles Taylor, Alasdair MacIntyre, Michael Sandel, Michael Walzer, entre outros , objetam a pretensão de seus opositores de inferir princípios de justiça sem prévia concepção do bem da pessoa. Eles sustentam, em síntese, que tal pretensão conduz a propositura de fórmulas de justiça vazias ou , se não, implica passar de contrabando uma certa concepção de bem. Além disso , os autores comunitaristas também sustentam que as concepções do bem se articulam por meio das práticas e convenções de uma sociedade, pelo que os princípios que se inferem delas variam segundo as sociedades, contrariamente á aspiração de inferir princípios universais de justiça. Isto conduz a um tipo de relativismo como o que aqui é mencionado e devidamente rechaçado. (Atahualpa Fernandez). Sobre o papel central desempenhado pelo pensamento republicano no período fundacional do mundo moderno cfr.: Ovejero et al.; Skinner; Pettitt; Pocock; Sunstein.

2. Claro que esta concepção relativa á obrigação do Estado só é possível se tomamos como premissa uma idéia de direito fundamentada, entre outras coisas, numa moral de respeito mútuo, ou seja, de que somos nós mesmos quem, ao conceber o direito como uma estratégia adaptativa, outorgamos direitos morais a todo o homem, com vistas a viabilizar os quatro modelos elementares de vínculos sociais relacionais e, assim, a vida social mesma. Com isto, o aparente mistério de que existam direitos que não foram outorgados se soluciona da maneira mais simples: todos os direitos, inclusive os fundamentais, têm de ser outorgados a seus portadores, só que já não são outorgados nem por atos particulares, nem pela lei e tampouco em função de premissas religiosas ou metafísicas, senão por nós mesmos ao nos conceber baixo uma moral de respeito recíproco e universal. Não há, pois, direito que não seja outorgado para resolver os problemas adaptativos a ele relacionados. E isto implica uma nova concepção do Estado, segundo a qual este não pode ser concebido como Estado mínimo com obrigações puramente de proteção, senão que tem de ter uma função positiva: a de prover as bases mínimas de uma vida respeitável. Hoje podemos ver que a visão do Estado do século XVIII, que trata de manter em nossos tempos o liberalismo, é a conseqüência de uma moral fragmentada que, por sua vez, foi a ideologia da burguesia. Fixou-se na ficção de que todos ( egoistas por natureza) podem prover para si mesmos os meios necessários a sua existência e se fecharam os olhos ao fato de que a hipertrofia dos lados perversos do vínculo de proporcionalidade ( cuja conseqüência é a acumulação da riqueza nas mãos de uns poucos), rompe todos os vínculos comunitários e de igualdade , criando ( com o monopólio do reconhecimento da autoridade) um poder que restringe , não assegura e não promove a liberdade (plena) dos indivíduos. (Atahualpa Fernandez).


3. Nesse sentido, é de sobra conhecido que, para Aristóteles, por exemplo, a existência separada e autônoma, a formação do indivíduo, quer dizer, de seu caráter, é um logro ético de primeira ordem e no qual intervém por muito o próprio indivíduo, que se automodela e se faz a si próprio, á medida que é capaz de eleger seus desejos e resolver seus conflitos interiores, integrando mais ou menos harmonicamente seus distintos "eus" (ou módulos), fazendo-se mais e mais encrático: somente dele pode dizer-se que é "uno e indivisível", ou seja , indivíduo. Para Aristóteles - e isto marca a diferença com relação ao pensamento platônico da felicidade do homem virtuoso em qualquer circunstância -, ser enkratés é uma condição necessária para ser livre e feliz, mas não suficiente. O bom controle sobre si mesmo, o ser sábio e senhor de si mesmo (precisamente para satisfazer o imperativo do oráculo, por se conhecer a si próprio), a "força interior" (uma possível tradução de enkratéia) ou a liberdade respeito dos próprios impulsos, em uma palavra : a capacidade de superar os obstáculos internos, é imprescindível para ser feliz e livre ( no sentido de que nenhum obstáculo interno frusta sua vontade e que, para os estóicos, corresponde á ataraxia : uma disposição de ânimo cujo logro é uma tarefa individual e que permite alcançar o equilíbrio emocional graças á diminuição das paixões e desejos e a fortaleza frente á adversidade) , mas também o é um entorno que não levante diques externos á realização da firme vontade do enkratés ( palavra que designava em grego coloquial a quem tinha poder ou capacidade de uma firme e virtuosa disposição sobre algo; desse adjetivo deriva o substantivo enkratéia, verossimilmente um neologismo socrático -Jaeger).Com efeito, a consideração das constrições externas e a idéia de que o virtuoso não pode ser incondicionalmente feliz , faz de Aristóteles um teórico do indivíduo e da polis mais realista que Platão - seu mestre e em relação ao qual Aristóteles guardou respeito e admiração muito tempo depois de sua morte (Guariglia). Em câmbio, o homem acrático, incontinente ou perverso, "não é uno, senão múltiple, e no mesmo dia é outra pessoa e inconstante" (ética Eudemia, 1240b). Ignorante de si mesmo, o Akratés - aquele que viola o silogismo prático e ignora os mecanismos causais que, operando dentro dele, colapsam sua vontade - é, segundo a célebre definição aristotélica, quem atua contra seu melhor juízo, ou seja, quem, havendo decidido conscientemente um curso de ação como o melhor ou mais conveniente para ele, é incapaz de levá-lo a cabo, pois é débil de vontade e incapaz de impor suas próprias decisões deliberadas a seus impulsos e compulsões. Isso leva ao homem vicioso, desesperado da debilidade de sua vontade , a enfrentar a si mesmo, pois ao estar dissociados seus desejos e seus sentimentos, torna possível " que um homem seja seu próprio inimigo" (ética Eudemia, 1240b). Daí que a liberdade e a cidadania exijam, antes de tudo, um indivíduo enkrático que, por dizê-lo com o apóstolo dos gentiles, conhece-se muito bem a si mesmo, que entende o que faz e faz o que verdadeiramente lhe parece virtuoso e justo; isto é, de um indivíduo que, afrontando de forma virtuosa os adversos retos racionais, os problemas emocionais, os fatores ou resíduos de irracionalidade e as eventuais constrições informativas exteriores desenhadas para perturbar a realização de suas firmes convicções, desejos e juízos, não ceda ante nenhuma outra coisa senão somente ante a força da virtude moral e da sensatez.


4. Esta idéia sugere, de pronto, que um sistema social complexo torna aconselhável dispor de certo sentido do "eu interior" para sobreviver nos intercâmbios recíprocos e para desenvolver aquilo que os psicólogos denominam uma "teoria da mente", isto é, a certeza de que os outros também têm intenções e preferências (desde logo de primeira e de segunda ordem) , crenças , pontos de vista e desejos. Trata-se de um exercício de distanciamento intelectual com relação aos domínios específicos em que estão estruturadas nossas intuições - morais ou de outro tipo -, de um exercício no qual se desprega uma intencionalidade de segunda ordem e a que Sperber denomina de módulo metarepresentacional, isto é, um módulo conceitual especial de segunda ordem. Enquanto outros módulos conceituais processam conceitos e representações de coisas, geralmente de coisas percebidas, o módulo metarepresentacional processa conceitos de conceitos e representações de representações. Muitas das investigações atuais postulam que a função da capacidade de conceber e processar metarepresentações é dotar aos seres humanos de uma psicologia intuitiva. Em outras palavras, este é um "módulo da teoria da mente", e seu domínio próprio está constituído pelas crenças, os desejos e as intenções que dão lugar á conduta humana. A capacidade para compreender e classificar as condutas não como simples movimentos corporais senão em termos de estados mentais subjacentes é uma adaptação fundamental dos organismos que devem cooperar e competir entres eles de muitas maneiras. Uma vez que se tem na ontologia estados mentais e capacidade para atribuí-los a outras pessoas, não há mais que um passo, ou não há sequer um passo, até ter desejos acerca destes estados mentais - desejar que alguém creia tal coisa ou que alguém deseje uma outra - e gerar intenções para modificar os estados mentais de outras pessoas. A comunicação humana é tanto uma maneira de satisfazer esses desejos metarepresentacionais como de explorar as capacidades metarepresentacionais da audiência. Um organismo que está dotado somente de módulos perceptivos e módulos conceituais ( um processo perceptivo seria: "há uma nuvem"; inferir desta percepção "é possível que chova" é um processo conceitual) de primeira ordem possui crenças, mas em câmbio não tem crenças acerca das crenças próprias ou alheias, nem uma atitude reflexiva respeito delas. O vocabulário relacionado com suas crenças está limitado ao vocabulário de saída de seus módulos e não pode conceber nem adotar novos conceitos nem criticar ou rechaçar os velhos. Um organismo que, em câmbio, está dotado também de um módulo metarepresentacional pode representar-se conceitos e crenças acerca de conceitos e crenças, pode avaliá-los criticamente e aceitá-los ou rachaçá-los no terreno das metarepresentações. Em resumo, trata-se de suas classes diferentes de módulos e de crenças ou representações: as crenças "intuitivas" originadas em módulos de primeira ordem e as crenças "reflexivas" surgidas do módulo metarepresentacional. Isso, em qualquer caso, poderia ser uma das justificações psicológicas mais profundas da idéia segundo a qual não há vida moral(ou jurídica) , nem bom conhecimento, sem intencionalidade de segunda ordem ( sem preferências sobre preferências, ou sem crenças sobre crenças). Nesse sentido, negar que tenha sentido discutir ou argumentar a favor e em contra das preferências dos indivíduos implica, desde logo, negar que tenha sentido o fato de que os indivíduos mesmos reflexionem pertinente e adequadamente acerca de suas próprias preferências. Significa negar filosoficamente ás pessoas a possibilidade ou a oportunidade de que deliberem acerca de se o que consideram "o melhor" é realmente o melhor para elas. Mas isso é tanto como negar-lhes a condição mesma de pessoa. Pois o mesmo que com as crenças, acontece com os desejos: porque os humanos, á diferença do resto dos animais, se distinguem pela capacidade de tomar distância intelectual e emotiva sobre seus desejos e preferências. E a mais clara evidência disso é que todos temos preferências sobre nossas próprias preferências, quer dizer, preferências de segunda ordem. Desejamos isto ou aquilo, mas desejamos também desejar isto e aquilo. Desejamos fumar, por exemplo, mas desejamos não desejar fumar. Desejamos ser de alguma maneira (quiçá distinta da que somos), e isso equivale a desejar ter determinados desejos (seguramente distintos dos que normalmente temos). Quanto sofrimento humano deixa sua raiz mais profunda em um conflito entre as ordens de preferências.


5. Daí que uma das principais debilidades do pelo demais muito estimável livro de Pettit seja a de haver construído, de bom começo, a noção de liberdade como não-dominação de um modo que exclui quase por completo o autocontrole psicológico ; é que dessa debilidade resultou as dificuldades com que tropeça ao final do livro, á hora de defender a noção de virtude cidadã.

6. Isto implica, desde logo, o pressuposto "inclusivista" de que todos os indivíduos têm de contar por um, e nenhum por mais de um - o pressuposto que distingue a concepção de republicanismo aquí adotada de suas variantes modernas-, e que incorpora já uma sorte de compromisso igualitário: significa que a comunidade política é requerida não somente para tratar os indivíduos como iguais, senão também para criar as condições necessárias e as possibilidades reais para que essa igualdade seja ( efetivamente) levada a cabo. Dito de outro modo, uma concepção republicana democrática terá de ser também "inclusiva", dar espaço para que gentes procedentes de todos os rincões da sociedade possam impugnar as decisões legislativas, executivas e judiciais. Este requisito significa que o Estado terá de ser representativo de diferentes setores da população, que os canais de disputa terão de estar bem estabelecidos na comunidade e que o Estado terá de se guardar da influência das organizações empresariais e de outros interesses poderosos (Pettit). Note-se ainda que desde suas primeiras formulações a justiça sempre foi associada com a igualdade e, nessa mesma medida, foi evolucionando ao compasso desse princípio ilustrado. No Livro V da ética a Nicómaco, por exemplo, Aristóteles desenvolveu a sua doutrina da justiça ( que, ainda hoje, representa o ponto de partida de todas as reflexões sérias sobre a questão da justiça ) situando a igualdade (proporcional ou geométrica) como o cerne deste valor, isto é, como núcleo básico da justiça. De fato, e neste particular sentido, tanto em situações experimentais como de observação, já se demonstrou que o objetivo da justiça baseado na igualdade é capaz de anular quaisquer outras considerações contrapostas. Inclusive o princípio básico do comportamento humano que é maximizar o próprio benefício, é rechaçado em favor de maximizar uma distribuição equitativa (um princípio da igualdade): alguns estudos indicaram que, ademais de sentir-se desgraçadas quando obtêm menos do que crêem que merecem, as pessoas se sentem verdadeiramente incômodas quando obtém mais do que merecem ou quando outras pessoas obtêm mais ou menos do que merecem. Em síntese, dado um conjunto determinado de condições qualificativas, as pessoas sempre tratarão de atuar de uma maneira que pareça justa, quer dizer, igualitária (Clayton e Lerner). Mas, como é quase ocioso recordar, a igualdade não é um fato. Dentro do marco da espécie humana, que estabelece uma grande base de semelhança, os indivíduos não são definitivamente iguais. O princípio ético-político da igualdade não pode apoiar-se portanto em nenhuma característica "material"; é mais bem uma estratégia sócio-adaptativa, uma aspiração desenvolvida ao longo de nossa história evolutiva, que passou de aplicar-se a entidades grupais mais reduzidas até englobar a todos os seres humanos (como proclamam, aliás, as mais conhecidas normas acerca dos direitos humanos da atualidade). A justificação de tal princípio descansa, desde suas origens, no reconhecimento mútuo, dentro de uma determinada comunidade ética, de qualidades comuns valiosas e valores socialmente aceitos e compartidos, os quais representaram uma vantagem seletiva ou adaptativa para uma espécie essencialmente social como a nossa que, de outro modo, não haveria podido prosperar biologicamente. A regra, portando, é do trato igual, salvo nos casos em que, por azar social (origem de classe, adestramento cultural, etc.) ou azar natural (loteria genética - que inclui a distribuição aleatória de talentos e de habilidades - enfermidades e incapacidades crônicas sobrevindas, etc.), dos quais não somos absolutamente responsáveis, o tratamento desigual esteja objetiva e razoavelmente justificado. Que embora a igualdade constitua o núcleo básico da justiça ( e parece muito intuitivo que se trata de uma emoção moral arraigada em nossa arquitetura cognitiva mental : o mais canalha dos homens sempre reagirá ante um tratamento desigual no que se refere a sua pessoa), as reais e materiais desigualdades entre os membros de nossa espécie exigem o desenho de estratégias compensatórias para reparar, na medida em que se possa fazer, as desigualdades nas capacidades pessoais e na má sorte bruta. Dito de outro modo, justiça e igualdade não significam, necessariamente, ausência de desníveis e assimetrias, já que os indivíduos são sempre ontologicamente diferentes, mas, sim, e muito particularmente, ausência de exploração de uns sobre outros. Daí que tratar como iguais aos indivíduos não necessariamente entranha um trato idêntico: não implica necessariamente, por exemplo, que todos recebam uma porção igual do bem, qualquer que seja, que a comunidade política trate de subministrar, senão mais bem a direitos ajustados ás diversas condições (Dworkin). Nas palavras de Zeki e Goodenough: "For instance, in a literal sense, human equality is a myth. Variation ensures that each of us has our own package of strengths and weaknesses. Neither of us has the ability to paint respectably, write good detective fiction, compose songs or play sweeper for even a middling kind of football team. Yet, as a legal matter, the democratic societies in which we live treat us as the equal of those who can do these things. This equality myth is a key element in the maintenance of a particularly admirable kind of social order, a counterfactual that pays dividends in fairness and stability. Proving the law wrong in its declared assumptions may not actually affect the utility of those assumptions (p.e. Goodenough)".


7. Uma observação paralela acerca da noção de liberdade: para começar, diremos que para ser plenamente indivíduo, para gozar de plena existência individual, separada e autônoma, é necessária a liberdade plena. E a liberdade (plena), a exemplo do que ocorre com a individualidade, também não pressupõe a (plena) existência ab initium et ante saecula de indivíduos (plenamente) separados e autônomos, senão que a (plena) existência separada e autônoma desses indivíduos pressupõe a (plena) institucionalização histórico-secular da liberdade. De fato, na vida social tudo é possível : o melhor - se houver - e, desde logo, o pior. Tão é tudo possível na vida social, que até é possível nela a declaração de inexistência individual, o certificado de defunção social de alguns humanos: a escravidão é a morte do "indivíduo" para todos os efeitos do trâmite social, sua desumanização total por via de redução do sujeito a mero instrumentum vocale , segundo a célebre formulação do direito romano ( ou "instrumento animado" , para usar a expressão de Aristóteles).Para existir como indivíduo separado e autônomo é , pois, e ao menos , necessária a prévia institucionalização da liberdade; é necessário não ser escravo, não ser tratado como um instrumento , senão como um fim em si mesmo - aliás , dito seja de passo, perde-se habitualmente de vista que quando Kant formula a exigência de tratar aos demais como fins em si mesmos, não está dizendo nada radicalmente novo e "moderno", mas que está repetindo o mesmo que sustentaram todos os filósofos morais e todos os juristas republicanos ao menos desde Aristóteles, ou seja: que aos livres não se lhes pode tratar como escravos , quer dizer, como instrumentos ( "vocais" ou "animados"). Pois bem, o liberalismo entende por liberdade somente a liberdade negativa, e esta é definida de tal maneira que uma pessoa é livre quando está livre de coerção, quer dizer, que não há ninguém nem tampouco uma lei que lhe ponha impedimentos. De liberdade positiva se fala, em câmbio, quando uma pessoa tem a capacidade e a oportunidade de atuar, ou seja, de que o Estado não só deve proteger senão também ajudar o indivíduo, de criar oportunidades para que o indivíduo se possa ajudar a si mesmo. Para citar um exemplo que se encontra em Hayek: no primeiro caso, um montanhês que cai em um abismo do qual é incapaz de sair, é livre neste sentido porque não há ninguém que o impeça de sair; já no caso de liberdade positiva, nosso montanhês precisamente não seria livre neste sentido, se não pode sair, ainda que ninguém o impeça - falta-lhe a capacidade e a oportunidade de atuar. O direito proíbe, por exemplo, matar a outro indivíduo se não é em circunstâncias muito extremas, e isso supõe uma restrição óbvia de meus cursos de ação, supõe uma interferência. Mas dita interferência não é arbitrária, senão que precisamente está justificada pela proteção geral da liberdade dos cidadãos, assim que não pode implicar uma violação de minha liberdade mais que em um sentido muito primário. Trata-se, em síntese, de uma concepção robusta de liberdade, aqui entendida em seu sentido republicano-democrático, como "não interferência arbitrária", ou seja, como um aparato histórico-institucional que imponha ao Estado a obrigação de assegurar e de promover, no contexto de uma sociedade igualitária, a liberdade necessária para que o indivíduo possa autoconstituir-se como entidade separada e autônoma, e que, em igual medida, garanta ao mesmo - como já dissemos antes, plena capacidade para resistir á interferência arbitrária não somente do próprio Estado, mas também de si mesmo e de todos os demais agentes sociais. Sobre liberdade republicana e sua diferença com relação a liberdade liberal: Pettit; Overero et al.; Skinner ; Sandel e Atahualpa Fernandez.


8. Precisamente, no direito romano, o consentir em ser vendido a outro, participando do preço, acarretava a perda automática da cidadania (Inst. Just., I, Título 3º., 4). Nas repúblicas antigas, as dívidas não saldadas podiam levar a um livre á condição de escravidão ( daí a origem do "vender-se para participar do preço"). A maioria das póleis democráticas helênicas - não as oligárquicas - aboliram esse uso, que ameaçava permanentemente e fatalmente aos livres pobres (Ste. Croix).

9. E aqui talvez seja razoável intercalar um parêntese para lembrar que, sobre este aspecto, nos filiamos á doutrina que tende a conceber a dignidade a partir da situação básica de relação do homem com os outros homens, em lugar de fazê-lo em função do homem singular encerrado em sua esfera individual e que havia servido ás caracterizações deste valor na fase do Estado liberal de direito. Esta dimensão intersubjetiva (relacional, coexistencial) da dignidade é de suma trancendência para calibrar o sentido e o alcance atual da ética e do direito que encontram nela (na dignidade) seus princípios fundantes. E não podemos inferir nada acerca da dignidade humana a partir de nossos meros ideais políticos ou de vagas elocubrações acadêmico- filosóficas. A investigação da dignidade está estritamente vinculada com a noção de natureza humana, a qual, por sua vez, é uma questão tão fática como a medida do perihélio de Mercúrio. Resulta epistemologicamente insustentável a posição dos que postulam uma natureza humana de um certo tipo com independência de qualquer informação empírica sobre esta e meramente como condição transcendental da possibilidade da moralidade, da responsabilidade, da sociedade igualitária ou da igual "dignidade" humana. Depois, parece oportuno observar que a própria idéia de dignidade é um conceito relativo, a qualidade de ser digno de algo. Ser digno de algo é merecer algo. Uma ação digna de aplauso é uma ação que merece o aplauso. Um amigo digno de confiança é um amigo que merece nossa confiança. Se alguém é mais alto ou gordo ou rico (ou o que seja) que outro, então merece que se registre seu record, quer dizer, é digno de figurar no Guinness World Records. O que não significa nada é a tão popular dignidade genérica, sem especificação alguma. Dizer que alguém é digno, sem mais, é deixar a frase incompleta e, em definitiva, equivale a não dizer nada. De todos modos, palavras como "dignidade", ainda que privada de conteúdo semântico, provocam secreção de adrenalina em determinados juristas acadêmicos e proclives á retórica. De fato, resulta inclusive muito difícil aceitar a própria noção kantiana da dignidade humana. E a razão, como se verá, consiste em que tal noção obriga a aceitar uma forma de dualismo de duvidosa cientificidade: que há um reino da liberdade humana paralelo ao reino da natureza e não determinado por ele. Depois, Kant mesmo não oferece prova alguma de que o livre arbítrio existe; se limita a dizer simplesmente que é um postulado necessário da razão prática pura sobre a natureza da moralidade. Ora, o fundamento da moral e do direito não está na dignidade abstrata, senão na plasticidade concreta de nosso cérebro, em nossa margem de manobra, em nossa capacidade de pensar e decidir, de gozar e sofrer. Daí que nenhuma teoria social normativa (ética ou jurídica) coerente deveria admitir termos tão vazios como o de dignidade sem uma base empírica acerca da natureza humana , sob pena de converter-se em uma cerimônia da confusão revestida de um esquema teórico abstrato, vazio e meramente formal.


10. A este propósito, Tugendhat chama atenção ao fato de que, dentro da evolução atual do direito constitucional , criou-se na Alemanha dos pós-guerra um conceito novo , que também começa a ser adotado no pensamento anglosaxônico, denominado de "Drittwirkung", que significa literalmente o efeito para terceiros. Com esto conceito pretende-se afirmar que as garantias constitucionais não devem restringir somente o poder do Estado, senão também o poder que umas partes da sociedade têm sobre outras. Este passo, que reconhece que as garantias constitucionais não devem restringir somente o poder do Estado, senão todo o poder, é, segundo Tugendhat , um importante passo intermédio que não deve ser aplicado somente aos direitos negativos.

11. E aqui parece residir, em seu sentido mais radical, o significado mais profundo da celebríssima sentença de Aristóteles , trivializada até tornar-se quase que incompreensível: que o homem é um "animal político" quer dizer que todas as suas relações sociais - incluídas as relações consigo próprio - são potencialmente políticas, são relações de poder , de autoridade, de governo. Quer dizer que o homem é um animal social, que só socialmente se constitui como indivíduo separado e autônomo, e que a vida social - parte da qual é a vida intrapsíquica - está prenhada de assimetrias e desigualdades, de relações de poder. Tendemos hoje a ver essas declarações como puras metáforas, porque o pensamento liberal do século XIX - não há liberalismo propriamente dito antes do XIX - nos acostumou a ver a esfera privada como uma esfera completamente despolitizada, isto é, como uma esfera na qual não se dão relações de poder de nenhum tipo. Mas é precisamente isso o que está agora de novo em disputa: que a relação entre o marido e a mulher , entre o empregador e o empregado, entre as instituições bancárias de crédito e os clientes , entre o magnata oligopolista e os inermes consumidores ; o que está agora de novo em disputa , digo, é que tudo isso sejam relações puramente privadas em sentido liberal, quer dizer, vazias de poder e , portanto, apolíticas , insuscetíveis de transformação e intervenção política. Com efeito, muitos dos âmbitos em que os indivíduos desenvolvem boa parte de sua vida social (empresas , bairros, famílias) estão submetidos a relações de autoridade que abarcam aspectos fundamentais de sua existência. Assim, por exemplo, os proprietários dos meios de produção, com frequência tomam decisões ou impõe regras que alcançam não somente aos próprios processos de trabalho, senão que têm que ver com os modos de vida dos trabalhadores e, sobretudo, das trabalhadoras (indumentárias, decisões reprodutivas, formas de socialidade, etc.). Daí porque as versões mais igualitárias e mais participativas do republicanismo desconfiam de um sistema de produção que alimenta a venalidade e o egoísmo; criticam o férreo limite liberal entre o público e o privado e defendem que os princípios republicanos (igualdade de poder , autogoverno) não se limitem á esfera pública, senão que também devem alcançar a casa ou a fábrica; desenham propostas institucionais que limitem uma desigualdade que entendem incompatível com o sentimento cívico e a justiça material; e se mostram confiadas nas possibilidades cívicas e cooperativas de uma natureza humana que estimam maculada pelo moderno capitalismo de corte liberal. No mais, é muito provável que a idéia foucaulniana dos "micropoderes" possa encontrar aquí, na crítica da despolitização liberal da sociedade civil, uma via de fértil relaboração.

12. No direito romano, o contrário do sui iuris é o alieni iuris (Inst.Just., I, Título 8º.).

13. Para Aristóteles, sobretudo em sua Política (1290 a-b), passagem em que declara expressamente que "democracia" quer dizer governo dos pobre livres. E mais fiel que Kant ( para quem a democracia é um despotismo) á aguda análise classista aristotélica do governo foi Adam Smith: O governo civil, enquanto é instituido para a segurança da propriedade, é instituído em realidade para a defesa do rico contra o pobre, ou daqueles que têm alguma propriedade contra aqueles que não têm nenhuma (John Rae) .

14. " O governo não tem outro fim que o de preservar a propriedade", parágrafo 94 do Segundo Tratado.


15. Após as vitórias á domicílio dos exércitos napoleônicos, vinha a introdução do Código de Napoleão, grande nivelador e dissolvente de estruturas servís, estamentais e gremiais. Logo após a conquista de Moscou, não se resolveu o Imperador a implantá-lo. Este erro político do general corso foi em realidade seu pior erro como militar : os campesinos russos assim liberados de seu odiado regime de servidão haveriam provavelmente tolerado e ainda sustentado ativamente a intendência das tropas francesas ocupantes .

16. A teoria econômica neoclássica tradicional ( a de primeira e segunda geração) foi em boa medida a análise sofisticada, não da vida econômica histórico-real, senão dessa ficção jurídica. No manual mais lido por gerações inteiras de estudantes de economia, o de Samuelson (Prêmio Nobel em 1970) pode-se ler o seguinte: "Em um mercado perfeitamente competitivo, realmente não importa quem alquila a quem; assim pois, suponhamos que o trabalho alquila ao capital". A relação capital-trabalho, uma relação de todo ponto assimétrica e política para a velha economia política ( de Adam Smith a Marx), tornava-se agora, com a teoria econômica neoclássica tradicional, uma relação simétrica e impolítica (Doménech).

17. O liberalismo de esquerda ( os liberais á " la norte-americana" e o grosso da social-democracia européia atual) reaciona a isso com grande vivacidade, tratando de marcar e fazer de verdade estanques os dois compartimentos e criticando a transferência massiva de recursos desde a sociedade civil privada até a vida política pública (Rawls). Naturalmente as vias de "contágio" entre a esfera "apolítica" e a "público-política" são numerosas, e não se esgotam na degeneração plutocrática das democracias de cunho liberal. Em uma original crítica do liberalismo de esquerda, George Lakoff , por exemplo, chamou a atenção sobre o papel crucial que desempenham na retórica da argumentação política pública as metáforas procedentes da vida privada familiar.


18. De fato, Clarín - grande filósofo do direito, eclipsado por sua fama de grande escritor - foi um crítico severo das graves limitações democráticas do então ainda incipiente liberalismo: "Mas ainda mais triste ( e melhor prova do que afirmo) que a ausência de leis que dêm ao direito da autonomia tudo o que em justiça lhe pertence, muito mais triste é a ausência do sentido jurídico da autonomia nos povos ; quase ninguém se queixa... da espécie de escamoteio do direito próprio, que com habilidade duvidosa mas com desdita admirável, nos dão em espetáculo contínuo os poderes constitucionais que equilibrados bem ou mal entre si, conspiram com perfeita armonia com o fim de fazer ilusória a chamada soberania popular. é o povo um soberano in partibus infidelium. E sem embargo, partidos liberais inteiros, que oferecem mil vantagens, nem sequer como guloseima de direito oferecem um remédio para impedir este jogo no qual o povo sai perdendo sempre. E é que esses partidos liberais não sentem a necessidade de converter em real essa soberania tão decantada, para crer na qual se necessita de uma fé não menos cega que para crer na eficácia das relações que a Igreja mantém com o céu"( Leopoldo Alas).

19. Sobre a natureza e as características de cada um desses vínculos cfr. Fiske e Atahualpa Fernandez.

20. Tal era o sentido da lex agrária proposta pelos irmãos Graco: restringir a acumulação da propriedade da terra, restringindo as condições de sua alienabilidade - embora essa proposta, como se sabe, tenha-lhes custado a vida. Ora, uma vida social polarizada, com extremas desigualdades, leva ao faccionalismo, á destruição de toda possibilidade deliberativa, e finalmente - como acabou acontecendo em Roma -, á completa desvigorização da cidadania. Por isso até Maquiavel - diligente funcionário a serviço da diplomacia da época pós-savonaroliana e que era um republicano de tradição latina, isto é, não democrática - deixou advertido que a viabilidade da vida civil "republicana" - ao contrário que a "monárquica" - exige certas doses notáveis de igualdade na estrutura básica da propriedade: o que queira fazer uma república donde existam bastantes gentilhomens, não poderá fazer nada se primeiro não os despede a todos, e o que queira fazer um reino ou um principado donde exista bastante igualdade não poderá fazê-lo se não extrai dentre os iguais muitos homens de ânimo ambicioso e inquieto e os converte em gentilhomens de fato, se não de nome, dando-lhes castelos e possessões e lhes favorecendo com bens e com homens, para que assim, posto em meio deles, sirva-se, para manter seu poder, dos que, a sua vez, apoiam-se nele para sustentar sua ambição, enquanto que os demais são obrigados pela força a suportar este jogo que, de outro modo, não consentiriam (Discursos). Registre-se que, direta ou indiretamente, a defesa, sóbria e vigorosa, que nos Discursos sobre a primeira década de Tito Livio ( um dos livros mais influentes na política prática das três centúrias seguintes) se faz da superioridade das constituições republicanas sobre os principados e monarquias, irradiou, em efeito, ao republicanismo revolucionário moderno, aos homens da commonwealth na Inglaterra do XVII, a Rousseau e os clubes jacobinos na França do XVIII, ao republicanismo transatlântico de Jefferson e os padres fundadores dos Estados Unidos da América. Irônica vingança contra o "sórdido tipo de vida" , afastado da ação, a que se viu reduzido Maquiavel (como puro homem de letras) quando do restabelecimento em Florença do Principado dos Medici (Skinner).

21. Aqui há que se considerar as ações que os psicólogos contemporâneos chamam "autotélicas", isto é, das ações que se valoram por si mesmas, independentemente de suas conseqüências ( uma atividade que compensa por si mesma a quem a realiza e que, por isso mesmo, proporciona inestimáveis retribuições internas). Estas são aquelas ações nas quais a típica relação meios-fins com que se soe descrever a ação humana não vige: a ação autotélica traz a recompensa em si mesma, nos próprios meios. O processo é o que conta, o caminho é a meta ou parte da meta ( e a meta é um estado mental).Um exemplo importante - ademais de clássico - é o do trabalho: o jovem Marx condenava a alienação do trabalho sob os regimes econômicos de propriedade privada precisamente porque impediam que fosse uma atividade autotélica - portanto, livre e voluntária, e não trabalho forçado -; mas não há modo de dar sentido a essa condena ética da alienação do trabalho - uma das peças decisivas da teoria marxista da justiça - no marco de uma linguagem puramente egoísta.


22. Em verdade, o liberalismo, sejam quais forem seus méritos, não pode considerar-se o legítimo herdeiro histórico da noção - antiga e moderna - republicana de cidadania , que exige virtude, independência e uma liberdade mais protéica que a pura não inteferência. Quando muito, pode reclamar para si a herança do Edicto de Caracala (anno domini 212), por meio do qual se concedeu uma desleixada "cidadania" romana aos súditos de todos os rincões do Império.



Autor:

Atahualpa Fernandez

atahualpaf[arroba]yahoo.es



 Página anterior Voltar ao início do trabalhoPágina seguinte 



As opiniões expressas em todos os documentos publicados aqui neste site são de responsabilidade exclusiva dos autores e não de Monografias.com. O objetivo de Monografias.com é disponibilizar o conhecimento para toda a sua comunidade. É de responsabilidade de cada leitor o eventual uso que venha a fazer desta informação. Em qualquer caso é obrigatória a citação bibliográfica completa, incluindo o autor e o site Monografias.com.