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Identidade e Individuação (página 2)

Sergio Lessa

A vida cotidiana, em todos os seus setores e em cada uma de suas dobras e fissuras, rigorosamente em todos os seus momentos, indica-nos, sem remissões, que as nossas vidas são de tal forma interdependentes uma das outras que nossa forma de viver, de sentir e de pensar seria impossível se não pudéssemos, incessantemente, ter acesso aos produtos das atividades de outros indivíduos do nosso bairro, da nossa cidade, do nosso país e do nosso planeta. O que nós somos, enquanto indivíduos (enquanto personalidades sociais rigorosamente singulares, únicas, como veremos logo a seguir), depende com a mais rigorosa necessidade destas relações sociais que articulam em um mesmo processo histórico a vida de cada indivíduo no planeta com o destino de todo o gênero humano. Correspondentemente, as questões mais prementes da humanidade, são todas elas planetárias tanto no sentido de afetarem toda a humanidade como também no sentido que não contam com soluções nacionais. Desde a degradação ecológica do planeta (o buraco de ozônio ou o aquecimento global) até questões como o desemprego, a miséria crescente de bilhões, a crise de energia e o esgotamento de recursos naturais, são todos problemas planetários e cujas soluções só podem se dar em escala mundial. Somos, hoje, para além de um gênero biológico, um gênero socialmente construído: a história de cada indivíduo, de cada nacionalidade, de cada continente é cotidianamente partícipe da história universal do gênero humano.

Nossas vidas são partícipes da história universal no sentido mais puro do termo. O que produzimos e do que carecemos têm uma relação imediata com o que outros produzem ou carecem. Estes "outros" vão desde o vizinho do nosso bairro, até o chinês do outro lado do planeta, passando por toda a humanidade: é o "outro" no sentido mais universal, isto é, todos aqueles que "não sou eu" e que se encontram no planeta Terra. Não há, na história da humanidade, nenhum outro momento histórico em que, de modo tão evidente, tão patente, os indivíduos tenham sido tão interdependentes uns dos outros. Nunca, antes, vivemos uma situação na qual tantos indícios cotidianos se acumulam a evidenciar como a vida de cada um é parte do destino de todos e como, reflexivamente, a vida de todos está presente na vida de cada um. Como nunca, enfim, os indivíduos viveram vidas tão genéricas, tão permeadas por possibilidades e necessidades que apenas podem existir enquanto produções coletivas de toda a humanidade.

Este é um dos aspectos do problema de se ser humano hoje em dia: somos, na acepção mais pura do termo, um ser genérico. O outro aspecto, rigorosamente oposto a este caráter crescentemente genérico da vida de cada um de nós, está no crescente isolamento dos indivíduos uns dos outros, na crescente solidão que assola a existência de cada um de nós. E este isolamento solitário, curiosamente, manifesta-se mais intensamente nos locais de maior densidade demográfica: nos centros urbanos e, ainda mais intensamente, nos grandes centros urbanos. Quanto mais próximos geograficamente se encontram os seres humanos, mais eles desenvolvem mecanismos para se isolarem uns dos outros, mais intensamente as relações sociais evoluem no sentido de evitar que os indivíduos tenham uma existência plena de ricas e gratificantes inter-relações. Milhares de pessoas, ás vezes dezenas de milhares, fazem exatamente a mesma coisa, no mesmo momento e, todavia, não o fazem coletiva mas individualmente. Vivem o mesmo, sem compartilharem a vivência. Pensemos em um Flaflu2 de final de campeonato. O Maracanã estará lotado de indivíduos cuja única identidade é o que os separa de todos os outros indivíduos do planeta: serem rubro-negros ou pó-de-arroz. E, nem os rubro-negros entre si, nem os pós-de-arroz desenvolverão qualquer atividade que promova os seus encontros enquanto pessoas. Pelo contrário, se comportarão de forma mecânica e por rituais que, ao invés de lançar cada individualidade a um rico intercâmbio com todas as outras, as cancelará em um comportamento padronizado que reduzirá cada individualidade ao que têm de comum, de mais banal - e de casual - o fato de serem torcedores de um time ou do outro. Centenas de pessoas são capazes de se emocionarem numa mesma seção de cinema e, ao invés da catarse individual ganhar alguma dimensão coletiva pela presença de tantas outras pessoas, torna-se rigorosamente o oposto: emoções que deverão refluir para a interioridade de cada um. O resultado é que, mesmo emocionados, sequer os olhares se cruzam - como se as relações sociais não permitissem, ou não servissem, para esse tipo de intercâmbio. Em um ônibus, ou no metrô, pela manhã ou ao final do dia, milhares vivenciam situação muito parecida: a miséria existencial que se expressa no semblante sério e anódino de cada um não consegue se converter em uma vivência coletiva. O isolamento do sofrimento de cada um é condição necessária para que tal sofrimento seja suportado cotidianamente como algo inevitável e, neste caso muito diretamente, tal isolamento cumpre uma função na manutenção da reprodução social regida pelo capital. Este isolamento solitário, que faz com que nos comportemos como se fôssemos mônadas, é

uma das características mais marcantes dos indivíduos que são formados neste mundo "globalizado". Paradoxalmente, a mesma vida cotidiana que nos impõe a experiência de que não podemos existir senão em uma vastíssima malha de interações com todos os outros seres humanos do planeta também nos impõe, com a mesma dureza, a certeza de que somos apenas um átomo insignificante perdido no meio deste mundo. O que somos, enquanto pessoas, não tem lugar no gênero humano e, reflexivamente, as possibilidades e as demandas que a situação histórica mais geral nos impõe parece também não corresponder ao que necessitamos e podemos enquanto indivíduos. A conversão do gênero humano á sua dimensão mais radicalmente genérica pelo desenvolvimento das forças produtivas produziu, não individualidades que tipicamente são capazes de uma existência genérica rica e multifacetada, como seria de se esperar, e sim individualidades que apenas podem se relacionar enquanto mônadas, ou seja, pessoas que apenas podem se relacionar através da promoção do isolamento individual do todo do qual faz parte. Em poucas palavras, vivemos em uma sociedade planetária na qual os indivíduos não encontram os seus respectivos lugares enquanto autênticas individualidades humanas.

2 A identidade

Este isolamento dos indivíduos para com o gênero humano implica necessariamente em uma fragmentação. E por duas razões. Em primeiro lugar, porque todo e qualquer indivíduo é parte do momento histórico em que vive. Isto significa, por um lado, que sem o desenvolvimento histórico passado o indivíduo, tal como ele é, não poderia sequer existir. Do mesmo modo como não poderia existir um Bach no

século XIX, também não poderia existir um Mozart no século XVII. Cada um de nós, de modo absolutamente singular como argumentaremos a seguir, é uma particularização do que a humanidade já foi capaz de produzir e de gerar ao longo da história. Construímo-nos enquanto pessoas a partir das possibilidades e respondendo ás necessidades contemporâneas. Somos, portanto, ao mesmo tempo únicos e genéricos: o que temos de rigorosamente singular, que não se repetirá jamais na história, apenas pode vir a ser enquanto particularização das possibilidades e necessidades históricas mais gerais que correspondem ao desenvolvimento humano-genérico atual. Em segundo lugar, porque todo processo de individuação - isto é, o processo de desenvolvimento de cada pessoa enquanto personalidade socialmente efetivada - é rigoroso e necessariamente único. Jamais, no passado ou no futuro, a personalidade de uma pessoa será repetida: estamos tratando da singularidade a mais radical. O indivíduo é distinto de todos os outros e, também, distinto da sociedade - do gênero - ao qual pertence. Sua personalidade é uma síntese irrepetível de elementos sociogenéricos e elementos pessoais - e isto em nada é esmaecido pelo fato de que a singularidade de tal síntese é fortemente determinada pelas necessidades e possibilidades sociogenéricas que dão a ela o suporte histórico imprescindível. Entre um Santos Dumont e Ícaro - entre o mesmo desejo de voar - a diferença está na possibilidade de cada época histórica. O mesmo, com as devidas considerações, aplica-se a toda e qualquer individualidade. A pessoa humana, portanto, é uma singularização das possibilidades e necessidades sociogenéricas da qual é contemporânea. A personalidade de cada um de nós apenas existe na, e em relação com o gênero humano do qual somos partícipes e, todavia, nenhuma identidade pessoa-gênero é possível porque cada indivíduo é um ente rigorosamente singular. Nenhum indivíduo pode ser portador da totalidade das possibilidades e necessidades humano-genéricas de um dado momento e, do mesmo modo, nenhuma configuração histórica do gênero humano seria capaz de conter em si todas as necessidades e possibilidades que brotam de todos os processos de individuação. Entre os indivíduos e o gênero humano, para utilizar uma expressão cara a Lukács (1998), desdobra-se uma autêntica determinação reflexiva: não há indivíduo sem gênero, nem gênero sem indivíduos, mas isto não significa que possa haver uma identidade entre eles. No momento histórico em que vivemos, os processos de individuação incorporam esta relação dinâmica e contraditória com o gênero pelo aprofundamento do isolamento das pessoas entre si ao mesmo tempo, e pelos mesmos atos, em que atuam na reprodução de relações sociais que tendem a aumentar a integração e a interdependência de cada um para com o todo. Desenvolve-se, assim, uma antinomia: a sociedade crescentemente globalizada é o solo histórico

do qual brotam indivíduos crescentemente isolados, que buscam o isolamento. O gênero humano, ao se desenvolver, deu origem a pessoas que são incapazes de uma rica vida social compartilhada; pelo contrário, os momentos pessoalmente mais ricos da vida de cada um são vividos na reclusão e na privacidade. A solidão é, nestas circunstâncias, quase um pré-requisito para a elevação afetiva e pessoal do indivíduo para além da banalização cotidiana. A fragmentação está instalada no próprio seio das individualidades: sua identidade se afirma privadamente, na reclusão, no isolamento; sua vida coletiva, aquelas relações que conectam a pessoa ao gênero humano, não servem de mediação para a expressão do que cada um de nós é enquanto pessoa humana. A identidade se tornou, por isso, um grande problema. A rigor, um problema insolúvel nestas circunstâncias. Já que aquilo que somos enquanto pessoas, nossas necessidades e possibilidades enquanto seres humanos, não encontra nas relações que mantemos com o gênero um canal adequado para sua manifestação e desenvolvimento, não podemos senão manter uma relação de alienação3 e distanciamento para com a vida coletiva, social. E, reflexivamente, como a vida genérica não pode ser um portador adequado das necessidades e possibilidades dos indivíduos que a compõem, torna-se de tal modo repulsiva ás individualidades que não resta a estas senão buscar a proteção do isolamento. Todavia, isoladas do gênero, as individualidades não apenas não podem construir suas identidades a partir de seu pleno desenvolvimento e das humanamente ricas objetivações que tal desenvolvimento possibilita - mas, ainda mais miseravelmente, apenas podem se constituir a partir dos gravíssimos problemas de uma individualidade antinômica ao gênero. Ser humano, por isso, torna-se cada vez mais difícil. O reflexo cotidiano - e avassalador enquanto experiência subjetiva - é acordarmos todos sem qualquer significado para as nossas vidas para além das nossas pulsões individuais. E como nossas pulsões individuais são as de indivíduos isolados, solitários, elas não possuem qualquer continuidade nem no tempo, nem em nossas vidas. São pulsões que se perdem a cada tique do relógio, tornando a vida uma angustiante roleta russa. é esta experiência subjetiva tão marcante que fornece uma aparência de realidade á definição heideggeriana da vida como um preparar para a morte, e por isso ela continua tendo aceitação entre parcelas da intelectualidade. Ela sumariza, de modo bárbaro é verdade, a experiência cotidiana de nossas vidas carentes de sentido, das nossas individualidades monádicas e perdidas em si mesmas, das nossas relações sociais impermeáveis ao que somos enquanto pessoas humanas. Sumariza a profunda desumanidade da

situação histórica em que nos colocamos enquanto seres humanos. Em suma hoje apenas podemos ser pessoas humanas em uma relação contraditória, antinômica por vezes, de confronto quase sempre, com o gênero humano do qual fazemos parte e o qual auxiliamos a se reproduzir pelos nossos atos. A humanamente autêntica identidade, por isso, apenas pode ser, por falta de melhor expressão, "marcadamente negativa"; isto é, se articula pela reafirmação da legitimidade e autenticidade de necessidades não-atendidas, de privações incompatíveis com as relações sociais predominantes. é a afirmação da necessidade pelo humano, contra a desumanidade das relações sociais genéricas, que pode servir de base para um processo e individuação mais rico e menos desumano. Por mais importante e decisivo que isto seja nos dias em que vivemos - e queremos salientar que é de fundamental importância -, não podemos deixar de reconhecer o quanto é limitado. Pois uma identidade, cujo núcleo mais substancial está na afirmação da autenticidade das privações incompatíveis com as relações sociais predominantes, está muito distante de uma individualidade que se realiza plena e omnilateralmente4 na interação com o gênero.

3 A essência do problema

Como isto foi possível? Como a humanidade se colocou nesta situação tão absurda? Não conheço nem a história nem os processos de individuação o suficiente para uma resposta cabal a esta questão. Todavia, a essência desta situação histórica está na propriedade privada, sem lugar a dúvidas. A propriedade privada foi, por milênios, fundamental ao desenvolvimento humano. Enquanto a produção não foi suficiente para abastecer todos os indivíduos, enquanto a carência foi uma condição insuperável da vida humana havia, em linhas gerais, apenas duas possibilidades históricas para a organização social. Ou se dividia toda a produção igualitariamente, ou não se fazia. A divisão igualitária da produção, quando não há abundância, significa que todos serão igualmente carentes e, também, que toda a produção será consumida, nada ou muito pouco restando para o desenvolvimento das forças produtivas. A divisão não igualitária exibia grandes vantagens: a concentração da produção nas mãos de uma minoria possibilitava que uma sua parte ponderável fosse destinada ao desenvolvimento das forças produtivas. Estas sociedades passaram a se desenvolver mais rapidamente que as igualitárias e paulatinamente as foram conquistando e transformando-as em escravas. Esta primeira forma, mais primitiva, de expropriação dos produtores deu origem á propriedade privada em sua forma mais bárbara, a escravista. é importante salientar que a sociedade de classes e a exploração dos homens pelos homens surgiram não porque os homens seriam pretensamente egoístas, mesquinhos, concorrenciais, etc. Isto não passa de uma indevida generalização a toda a história dos indivíduos burgueses que somos hoje. A sociedade de classes se impôs a toda humanidade porque foi por milênios a mais adequada ao desenvolvimento das forças produtivas. A propriedade privada, esta relação de expropriação dos trabalhadores do produto do seu trabalho e a sua correspondente apropriação pela classe dominante, é constitutiva do ser dos homens por pelo menos dez mil anos. E, na medida em que as forças produtivas foram se desenvolvendo, as sociedades também o foram, fazendo com que a própria propriedade privada passasse por transformações importantes, sem jamais deixar de ser, obviamente, uma expropriação. No cenário mediterrâneo, da forma escravista passou á feudal e, depois, á capitalista. No resto do planeta onde surgiu, assumiu a forma peculiar do modo de produção asiático, o qual permaneceu vigente até ser destruído pela generalização do capitalismo a todo o planeta. Frente a todas as outras, o que é peculiar á propriedade privada burguesa é que sua forma elementar não é nem a terra, nem os escravos, mas a mercadoria. Ainda que não seja uma criação da sociedade burguesa, a mercadoria se explicita plenamente apenas com o surgimento do capitalismo industrial, o capitalismo maduro. Em toda a história anterior, a vigência da mercadoria foi sempre limitada pelas relações sociais, acima de tudo pelas relações de propriedade escravistas, feudais ou asiáticas. Apenas com o capitalismo maduro todo e qualquer produto, inclusive a força de trabalho, pôde se converter em mercadoria. E, com isto, a relação social elementar do mundo dos homens passou a ser a mercadoria. é essa conversão de tudo á mercadoria a essência do paradoxo de um mundo globalizado ao extremo gerar individualidades que se comportam, e se compreendem, enquanto mônadas. Esta é a essência da situação em que a interdependência de cada um para com todos os outros produz, não uma rica vida de interações e cooperação, mas um individualismo extremado e, nas condições atuais, seu correlato, uma profunda solidão.

A força de trabalho é o que imediata e diretamente conecta cada indivíduo á sociedade, ao gênero humano. Ela é ao mesmo tempo expressão das características individuais (força, inteligência, habilidade, traços de personalidade como ser mais ou menos paciente, mais ou menos irrequieto, etc.) e do estágio de desenvolvimento das forças produtivas. A força de trabalho, enquanto tal, é ao mesmo tempo imediatamente individual e rigorosamente genérica: apenas pela síntese das determinações mais pessoais com as possibilidades e necessidades geradas, no limite, por todo o desenvolvimento humano, a força de trabalho pode vir a ser. Ela não pode existir nem enquanto pura expressão individual, pois está imediatamente conectada ao desenvolvimento das ferramentas, formas de energia, capacidade de produção de matérias-primas, etc., etc., como também não pode existir como mera expressão do desenvolvimento das forças produtivas porque são os indivíduos, e não as forças produtivas, que trabalham. A força de trabalho de cada indivíduo é uma expressão muito adequada e clara de como os indivíduos são ao mesmo tempo genéricos e singulares: genéricos porque determinados historicamente, genéricos porque interferem na história do gênero, e singulares porque não haverá jamais dois indivíduos exatamente iguais.

Ao a força de trabalho, após longo processo histórico, finalmente se converter em mercadoria, a conexão mais imediata do indivíduo com o gênero humano incorporou a cisão entre valor de uso e valor de troca que particulariza a mercadoria. A relação típica de cada indivíduo com o gênero é cada vez menos o que se é enquanto pessoa, e passa a ser cada vez mais exclusivamente o potencial de lucro de sua força de trabalho. O que importa, no capitalismo, na relação do gênero com o indivíduo, não é outra coisa senão a utilidade de sua força de trabalho. E a única utilidade da força de trabalho é a produção da mais-valia, já que é a única mercadoria que, uma vez consumida, produz maior valor que o seu próprio.

Como uma outra face da mesma moeda, a utilidade da força de trabalho em produzir maior valor que o seu próprio só existe em uma sociedade em que há a necessidade e a possibilidade de a força de trabalho ser adquirida enquanto uma mercadoria. Em outras palavras, apenas pode existir em uma sociedade que disponha de um quantum de riqueza social acumulada e disposta a comprar a mercadoria força de trabalho. Está é a função social básica do capital: comprar força de trabalho e consumi-la na produção, gerando com isso mais-valia que se converterá, em seguida, em acréscimo ao capital que, então, poderá adquirir ainda mais força de trabalho e assim por diante. é a intensificação e a generalização desse processo que nos conduziu á situação presente, na qual todas as relações sociais fundamentais, mesmo aquela do indivíduo consigo próprio, são mediadas pelo dinheiro. Numa sociedade em que a relação social mais elementar (e, portanto, mais universal) é a mercadoria, o que de fato importa nas interações entre os indivíduos não é o conteúdo do que é trocado, mas a lucratividade na relação. Nada importa a não ser a lucratividade: é isto que nos conduziu á situação absurda de produzirmos bombas atômicas ao invés de eliminarmos a miséria da face do planeta. é esta situação histórica rigorosamente universal que reflexivamente se conecta ao individualismo extremado dos nossos dias: nos relacionamos não pelo que somos enquanto pessoas humanas, mas enquanto força de trabalho reduzida á sua dimensão mais primitiva e coisificada, qual seja, a capacidade de produzir mais-valia. E isto tem uma relação evidente com os processos de individuação e com o paradoxo de um mundo globalizado produzir um extremado individualismo. Antes, porém, de prosseguirmos na exploração desta conexão entre a individuação e a mercadoria, devemos mencionar um outro aspecto da vida contemporânea sob a regência do capital que tem um enorme impacto sobre os processos de individuação: seu rescente caráter destrutivo.

4 A agudização da essência do problema: o caráter destrutivo do capital

István Mészáros (2002) tem o enorme mérito de nos ter ofertado a análise mais profunda, completa a articulada do caráter destrutivo da reprodução do capital em nossos dias. Sua monumental obra Para Além do Capital discorre por muitas centenas de páginas de um denso texto, sobre o como e o porquê de a reprodução do capital e a produção de desumanidade terem se tornado sinônimos. Sintetizando seu argumento principal em alguns poucos parágrafos - o que significa, alerto desde já, uma absurda simplificação - a Revolução Industrial teria levado a humanidade a uma nova fase de sua história: a superação da carência e a entrada na abundância. Esta tese ele retira diretamente de Marx e é mais conhecida: em todas as formações sociais anteriores, o parco desenvolvimento das forças produtivas não possibilitou que a produção fosse maior do que as necessidades de toda a sociedade. A carência, portanto, era uma condição de vida insuperável da vida humana. E, nestas circunstâncias, como argumentamos acima, a propriedade privada e a sociedade de classes eram mediações indispensáveis ao mais rápido desenvolvimento das forças produtivas.

Esse desenvolvimento das forças produtivas, ensejado pela propriedade privada, terminou conduzindo á Revolução Industrial e á situação em que, finalmente, a produção tornou-se maior do que a necessária para toda a humanidade. A carência foi substituída pela abundância como a condição insuperável da vida humana e isto introduziu uma mudança histórica fundamental: a sociedade de classes, e a propriedade privada, deixaram de ser indispensáveis e se converteram em entraves ao pleno desenvolvimento das forças produtivas. Nos termos os mais simples, isto ocorre porque o preço das mercadorias está subordinado á lei da oferta e da procura. Ora, se há uma produção maior do que a necessidade, a oferta tende a ser maior do que a procura e os preços caem abaixo do mínimo necessário para a reprodução do capital. é preciso, para que o capital continue a se reproduzir, que a produção da abundância não resulte numa oferta maior do que o consumo e, para tanto, é fundamental que se crie mecanismos de consumo que esgotem a produção sem, contudo, diminuir a procura pelas mercadorias. Ou seja, é necessário encontrar formas de consumo que esgotem as mercadorias sem que atendam

plenamente ás necessidades das pessoas. Isto é conseguido através do consumo destrutivo: as guerras e o complexo industrial-militar em primeiro lugar, mas também o consumo perdulário e a obsolescência planejada jogam aqui um papel fundamental. Como o objetivo está na geração de lucros, na reprodução do capital, e não no atendimento do que é autenticamente humano, na era da abundância todo desenvolvimento das forças produtivas e todas as riquezas sociais estarão voltadas para evitar o que os economistas chamam de "superprodução": um outro nome para a abundância! Produz-se, por exemplo, bombas atômicas porque elas dão mais lucro que produzir vermífugos. Para que as bombas atômicas dêem lucro, todavia, é imprescindível a mediação do Estado. Será ele o encarregado de transferir uma enorme quantidade de riqueza produzida pelos operários ao complexo industrial-militar. Do mesmo modo com a produção agrícola: todos os governos têm seus estoques reguladores... do preço e não da fome das pessoas! Milhares e milhares de toneladas de alimentos são estocados em um mundo cheio de famintos para não permitir que, levados ás pessoas carentes, aumentassem a oferta e derrubassem os preços. Quanto da riqueza produzida socialmente é utilizada para promover a riqueza de uns poucos e manter milhões sem acesso aos alimentos mais básicos! E os

exemplos são quase tão numerosos quanto as mercadorias da nossa vida cotidiana. Todo e qualquer desenvolvimento das forças produtivas também evolui no mesmo sentido. Consideremos o exemplo da robotização. Ela permite que a humanidade se livre de uma enorme quantidade de trabalho, não porque o robô trabalhe, mas porque potencializa a força de trabalho dos indivíduos humanos. Com o advento da informática e dos robôs podemos produzir muito mais com muito menos horas de trabalho. E isto é, em si mesmo, muito positivo, pois significa que podemos viver mais confortavelmente tendo que trabalhar menos; significa que transformamos com maior eficiência a natureza para produzir os bens indispensáveis á nossa reprodução. Todavia, no período da abundância, o efeito é justamente o inverso. Como a produção é maior do que o consumo, o aumento da capacidade produtiva aumenta o perigo da superprodução e da queda geral dos preços. Para enfrentar esta situação, as empresas possuem apenas uma única alternativa: produzir mais, melhor e mais barato que o concorrente para ocupar a fatia de mercado que ainda não lhe pertence. Nesta luta de vida ou morte entre os capitalistas, vence quem extrair maior mais-valia de seus operários e isto se consegue fazendo com que eles produzam mais em troca do mesmo salário. As novas tecnologias como os robôs e a informática cumprem precisamente este papel: permitem que menos trabalhadores produzam mais do que no passado. Assim, o desenvolvimento das forças produtivas, o desenvolvimento das capacidades humanas em retirar da natureza com maior eficiência aquilo que necessitamos para nossa reprodução leva ao desemprego e á maior intensificação do ritmo de trabalho dos que estão ainda empregados. O aumento da produção e o aumento da capacidade produtiva, sob o reino da abundância, geram justamente o seu oposto: a miséria dos desempregados e a intensificação da jornada de trabalho dos que ainda estão empregados.

Todavia, não apenas a quantidade do que é produzido é um problema para o sistema do capital nos dias de hoje. Também o que se produz é problemático. Temos meios e tecnologia para produzirmos bens que durem uma vida inteira (desde lâmpadas até geladeiras, de carros a casas, etc.). Mas, como é necessário alavancar o consumo a todo custo, as mercadorias devem ser planejadas para quebrarem o mais rapidamente possível. A humanidade passa a conhecer a obsolescência planejada: as mercadorias devem quebrar rapidamente para que possam ser substituídas por outras novas. Ou, por exemplo, nos casos das roupas, devem sair de moda rapidamente para que sejam jogadas fora antes sequer de terem sido consumidas pela metade do que seria a sua vida útil. Novamente, os exemplos são infinitos.

Neste processo insano que se tornou a reprodução do capital, a destruição da natureza é uma sua conditio sine qua non. Todos os recursos naturais devem ser o mais rapidamente convertidos em mercadorias, mesmo com os custos ecológicos que estamos assistindo. E, analogamente, o próprio corpo humano, não mais apenas como fonte de força de trabalho, mas como parte natural do nosso ser individual, deve estar a serviço do lucro: a medicina deixou há muito de ser o tratamento de nossas doenças para se converter em um mecanismo de produção de lucro através das doenças e da dor humanas. A mercantilização da medicina, a mercantilização da educação e mesmo das religiões são apenas os aspectos finais do processo de conversão de quase (e este quase é fundamental, pois não há como haver identidade entre capital e totalidade social) todas as relações sociais em mercadorias. Hoje consumimos não o que necessitamos, nem o que nos faz bem, nem o que nos assegurará um futuro melhor. Consumimos o que dá lucro, mesmo que nos faça mal e mesmo que destrua o planeta e o nosso corpo. Vivemos o momento mais intenso da contradição entre a humanidade e as relações desumanas que o desenvolvimento histórico desta própria humanidade gerou: esta é a essência das alienações que marcam nossas vidas. O impacto imediato desta situação, no que diz respeito aos processos de individuação, pode ser detectado na ficção científica. O futuro que projetamos para nós não é outro que uma enorme tragédia: de MadMax a Matrox, passando por Blade Runner, qual o futuro que contemplamos senão uma situação muito pior e mais desumana que a presente? Nossa relação com o futuro inclui medo, pavor: melhor seria não ter que se pensar sobre ele. Afinal, no futuro, não estaremos todos mortos, como dizia Keynes (1982)? A vida perde a dimensão do futuro e do longo prazo, tudo se resolve no dia a dia e a história já não mais tem lugar na consciência dos indivíduos típicos,

aqueles que representam a média do espírito do nosso tempo. Isto tem, é evidente, um pesado impacto sobre os processos de individuação. Ao nos constituirmos enquanto pessoas, em uma situação social com estas características mais gerais, não podemos encontrar nem nossa conexão com o gênero humano nem nossa conexão com a história a não ser pela mediação da mercadoria. Esta conexão, por si só, já implica em uma fantástica redução do ser humano á coisa. Todavia, isto ainda não é tudo, pois na época da abundância e da produção destrutiva esta conexão do indivíduo com o gênero pela mediação da mercadoria adquire um conteúdo destrutivo que termina por ser ainda mais intensamente alienado que a situação conhecida por Marx no século retrasado. No século XIX, o desenvolvimento das forças

produtivas pelo capital podia ainda cumprir algum papel civilizador e revolucionário, hoje não há mais qualquer possibilidade neste sentido. E quase todos os aspectos da vida coletiva passam a ser de tal modo destrutivos que, aos indivíduos resta, tipicamente, buscar em sua interioridade e em seu isolamento algum cantinho em que sua humanidade possa, ainda que de forma pobre e parcial, manifestar-se e sobreviver. Isto posto, voltemos á questão da identidade.

5 Identidade e Individuação, hoje

Em uma sociabilidade, cuja forma elementar é a mercadoria, não são as pessoas que se relacionam diretamente, mas sim as mercadorias. As pessoas apenas interagem pela mediação da mercadoria, tendo a mercadoria entre elas. E se comportam, as pessoas, segundo as propriedades das mercadorias que cada uma possui. Como diz Marx, "As mercadorias não podem por si mesmas ir ao mercado e se trocar." Elas "são coisas" e para que cheguem ao mercado "é necessário que os seus guardiões se relacionem entre si como pessoas, cuja vontade reside" nas mercadorias. Apesar de não serem mercadorias, as pessoas passam a se comportar e a interagir como se fossem as mercadorias. "As pessoas aqui só existem, reciprocamente, como representantes de mercadorias e, por isso, como possuidores de mercadorias." Nesse contexto, é imprescindível que as pessoas se reconheçam umas ás outras [...] como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, desenvolvida

legalmente ou não, é uma relação de vontade, em que se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica ou de vontade é dado por meio da relação econômica mesma (MARX, 1983, p. 79-

80).

é por esta mediação mais geral que as particularidades da propriedade privada de cada um de nós é um elemento importante na configurção das nossas personalidades, das nossas individualidades. Faz toda uma diferença, quando se trata da constituição da substância social da individualidade, se a pessoa é proprietária privada de capital (e, neste caso, de muito ou pouco capital) ou se apenas possui a sua força de trabalho. Faz toda uma diferença se o indivíduo personaliza uma relação econômica no campo ou na cidade, se é comerciante, médico ou jardineiro. Faz também diferença se a posição do indivíduo frente á propriedade privada se altera. Um trabalhodor no comércio que se converta em proprietário de uma grande cadeia de lojas, ou um operário que se "eleve" á Presidência, são situações em que a substância dos indivíduos se alterará pela mediação da propriedade privada, pela mediação das novas necessidades e possibilidades postas ao indivíduo pela alteração de sua posição em relação á expropriação dos trabalhadores. Pode-se ter ou não consciência deste fato; a determinação social - ainda que suas conseqüências possam variar com a presença ou ausência da consciência - é, neste caso, inevitável pela ação dos indivíduos isolados.

Ao nos convertermos em "guardiões de mercadorias", não somos mais capazes de uma interação social autenticamente humana, despida da coisificação promovida pela adoção da necessidade da mercadoria como nossa vontade. E, reflexivamente, a sociedade organizada a partir da propriedade privada burguesa (aquela que tem na mercadoria a sua forma elementar) é impermeável ás relações sociais que correspondam adequadamente ás necessidades autenticamente humanas. Dadas as necessidades da reprodução do capital, devemos viver em centros urbanos que concentram cada vez mais pessoas; e, pelas mesmas necessidades do capital, ao nos aglomerarmos em centros urbanos o fazemos por meio de relações sociais coisificadas que nos isolam uns dos outros e possibilitam que apenas as mercadorias se encontrem diretamente. Isto que já seria uma condição, digamos, "normal" da vida sob a regência do capital, no mundo contemporâneo ganha em dramaticidade. Com o aprofundamento do caráter destrutivo da reprodução do capital, o desenvolvimento das forças produtivas se converte em produção crescente de miséria, destruição do planeta e dos nossos corpos, tensão social e medo

generalizado. Se, ao nos convertermos em "guardiões de mercadorias", perdemos a capacidade de nos relacionarmos enquanto seres autenticamente humanos, na época da reprodução destrutiva as coisas tornam-se ainda piores, pois nem sequer enquanto mercadorias nossas individualidades podem encontrar algum conforto no "mundo das mercadorias". Nossos empregos, quando existem, estão ameaçados. O futuro, seja ele qual for, certamente será pior do que o presente, tal como o passado é melhor do que os dias que vivemos: é isto que significa viver a crise estrutural do capital.

Nossas vidas são cotidianamente ameaçadas pela violência e pelos conflitos armados. A luta de classes encontra a sua forma mais bárbara: o conflito armado "despolitizado" da propriedade privada dos marginais contra a propriedade privada do status quo. Não há perspectivas para que, enquanto "guardiões de mercadorias", venhamos tipicamente a ser bem sucedidos sequer no que diz respeito ao acúmulo de capital, para não mencionar sermos felizes enquanto pessoas humanas. Nesta situação mais geral, os processos de individuação são incapazes de consubstanciarem individualidades cujas identidades estejam libertas de duas características fundamentais. A primeira, ser guardiã de mercadoria. A segunda, a busca na interioridade do indivíduo de algum consolo para a desumanidade que nossas personalidades, e a sociedade no seu conjunto, necessariamente têm que ser portadoras.

é esta situação ontológica o fundamento para que os processos de constituição das identidades pessoais estejam tão fragmentados. Sem poderem encontrar na sociedade as mediações e os complexos sociais (desde valores até instituições, desde objetos até relações pessoais, etc.) que possam servir de expressão, e de elevação dos indivíduos a uma consciência superior das suas mais autênticas possibilidades e necessidades enquanto pessoa humana, os indivíduos não podem senão adquirir uma consciência muito limitada e rebaixada do que são de fato enquanto seres humanos. Do mesmo modo, não podem incorporar em seus atos senão esta consciência rebaixada, alienada, o que significa que não são tipicamente capazes de objetivarem atos que os elevem a patamares superiores de humanidade.

Reflexivamente, a reprodução social que pode ser sintetizada a partir de tais atos é pobre na produção de complexos e mediações sociais que expressem as necessidades não-alienadas de toda a humanidade. Fecha-se um círculo: indivíduos, que se reduzem a "guardiões de mercadorias", reproduzem uma sociedade de proprietários privados, e esta permite que a vida dos indivíduos tenha uma imediata dimensão social apenas se, e quando, forem proprietários privados (ricos ou miseráveis, aqui não importa).

Esta identidade com a mercadoria, a forma contemporânea da propriedade privada, não apenas se impõe como um limite insuperável a todos nós enquanto individualidades, como ainda introduz no cerne de nossas personalidades individuais o caráter destrutivo do mundo das mercadorias dos nossos dias. Tanto do ponto de vista afetivo mais íntimo, quanto do ponto de vista social mais geral, nossas vidas perderam qualquer sentido e qualquer razão de ser: o que fazemos, cotidianamente, senão buscarmos consolo para este fato tão avassalador do ponto de vista da subjetividade? Nossos "projetos", nossas "decisões", etc. não são eles, quase sempre, carentes de qualquer sentido mais substancial e duradouro justamente porque não podem ir um milímetro além destas duas determinações?

é neste momento de profunda perda de sentido da vida, que o individualismo mais extremado se constitui na forma típica das individuações nas últimas décadas. Sua expressão ideológica mais nítida foi o pós-modernismo. A tese de que a "morte das grandes narrativas" haveria enterrado a história pode ser, hoje, descartada em poucas palavras. Nem a história é uma narrativa (Kant, no século passado, já tinha sido superado por Hegel), nem o que eles denominam de "grande narrativa", uma concepção de mundo racional, se tornou desnecessário. A história ou é pensada enquanto um processo universal ou não é nada: disto os pós-modernos nos deram seu testemunho pessoal ao se auto-destruírem por não serem capazes de oferecer qualquer interpretação de mundo digna do nome.

Hoje, décadas depois, podemos perceber claramente como pós-modernismo, individualismo e neoliberalismo são distintas cabeças da mesma Hidra de Lerna. A concepção - de tão pueril, como puderam sequer levá-la a sério - de que todas as concepções racionais de mundo seriam "totalitárias" porque empregariam o conceito de totalidade; a idéia de que o Estado Mínimo dos neoliberais possibilitaria a expansão máxima da democracia porque o poder antes concentrado no Leviatã se infiltraria por todo o corpo social; e, por fim, a proposição de que com o fim das "grandes narrativas" e dos projetos revolucionários os indivíduos poderiam se relacionar sem o constrangimento psicológicos e sociais das classes e das ideologias - todas estas concepções não fazem parte do mesmo caudal ideológico que predominou nas últimas décadas e que, em se tratando dos processos de individuação e da constituição das identidades das pessoas, serviram como justificativa para o paradoxo de uma humanidade intensamente globalizada não ser capaz de produzir senão a mais profunda solidão e angústia nos indivíduos? E isto, entre aqueles que ainda têm o que comer; os que já foram reduzidos ao patamar da mera sobrevivência biológica sequer o luxo desta crise existencial lhes é dada enquanto possibilidade de vida! O Estado Mínimo dos neoliberais, o extremado individualismo do pós-modernismo e a perda de sentido da vida são fenômenos que, nas últimas décadas, se interpenetram. Aprofundaram a mercantilização de setores econômicos (como a saúde e a educação, a religião e o lazer) que ainda não haviam sido integrados á circulação do capital, intensificaram a mercantilização das relações inter-pessoais, intensificaram o peso dos valores individualistas nos atos cotidianos de cada um de nós, estimularam o desenvolvimento de projetos de vida fundados na idéia do isolamento e da reclusão como forma de se evitar a barbárie coletiva, como os "condomínios" e as "casas de campo" fora dos grandes centros urbanos. E, por sua vez, tudo isso apenas foi possível enquanto um momento particular da história mais geral de uma sociedade cuja forma elementar é a mercadoria, o capitalismo.

Vivemos um momento em que viver não está nada fácil. Podemos perceber que o rumo seguido pela humanidade nos ameaça a todos, podemos perceber que nossas vidas estão submetidas a forças e fatores que nós não apenas não controlamos, como ainda nos são profundamente adversos; sentimo-nos crescentemente ameaçados e nos isolamos. Isolados, a ameaça torna-se ainda mais assustadora. Descremos - e com toda razão - de tudo: religião, família, governos, valores tradicionais e promessas futuras. Agimos como se não mais existissem classes sociais, pois os partidos e os sindicatos que nos auxiliavam a identificá-las nos conflitos sociais estão sem identidade neste momento contra-revolucionário. Não encontramos o nosso lugar na história e sentimo-nos perdidos e isolados. Neste contexto, os processos de individuação apenas podem constituir identidades fundadas na solidão e no isolamento. Onde seria possível ancorar a identidade de cada um de nós senão nela mesma, em sua própria interioridade? E, obviamente, como é possível que uma pessoa tenha sua identidade construída a partir de si própria e não a partir do seu confronto com o outro, com o mundo no qual vive?

Carente de conexões com o gênero, as nossas identidades pessoais perdem nitidez, definemse de modo pobre e instável, articulam-se ao redor do que temos á mão na vida cotidiana: a cosificação da mercadoria, a violência das lutas de classe, o desespero e a angústia. A solidão. Exasperados por décadas desta situação, sem conseguirmos romper este círculo alucinante e auto-destrutivo, buscamos qualquer coisa que alivie a nossa angústia nos fazendo esquecer do que somos e do que vivemos. Daqui a busca desesperada pelo lazer fácil que não provoque emoções ou que as rebaixe o quanto possível, como as novelas e os filmes de violência. Ou os noticiários que nos oferecem as notícias como se fossem latas de conserva em prateleiras de supermercado: elas não fazem qualquer sentido do ponto de vista histórico. é tão notícia ter chovido em Santa Catarina quanto ter caído uma bomba na capital do Iraque: o que cada evento tem a ver com o desenvolvimento humano é algo tão obscuro como são nítidas as mensagens e as imagens transmitidas pela mídia. Queremos viver como se o passado e o futuro não existissem, queremos esquecer as ameaças futuras para podermos viver um pouco, ao menos, do presente. Todos estes movimentos das nossas subjetividades, que conhecemos tão bem, ainda que deles não nos preocupemos com freqüência, são manifestações no interior das nossas individualidades, na construção de nossas próprias identidades enquanto pessoas humanas, dos reflexos da crise estrutural da sociabilidade contemporânea.

Não é de se admirar, portanto, que ser humano tenha se tornado algo por demais complicado. Todavia, não necessariamente as coisas tenham que permanecer deste modo. A própria abundância objetiva, o fato de a produção ser muito maior do que as necessidades de toda a humanidade, faz com que a carência tenha deixado de ser uma situação inevitável da vida humana e se tornado uma das opções abertas ao futuro da humanidade. Já temos condições objetivas de construirmos uma sociabilidade para além da mercadoria porque a propriedade privada e as classes sociais se tornaram historicamente anacrônicas: a carência histórica que as justificava ficou para trás com a Revolução Industrial. Temos todas as condições de virarmos o jogo e construirmos uma sociedade emancipada, na qual o desenvolvimento omnilateral de todos os indivíduos seja condição imprescindível ao pleno desenvolvimento das forças produtivas. Uma sociabilidade na qual a "livre organização dos produtores associados" possibilite a autêntica conexão do indivíduo com o gênero - em que nossas identidades pessoais possam ser as respostas ao mais rico intercâmbio entre todos os seres humanos. E o nome científico desta sociedade, todos conhecemos: o comunismo, tal como proposto por Marx.

Referências

KEYNES, J.M. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda. São Paulo: Abril Cultural, 1982. (p. 15)

LUCAKS G. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. Temas de Ciências Humanas, n. 4 , são Paulo: Grijalbo, 1998. (p."6)

MéSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo: Editora Boitempo, 2002. (p. 11)

MARX, K. O Capital. Vol I, tomo I, São Paulo: Ed. Abril, 1983.

Sergio Lessa

sl[arroba]fapeal.br

Universidade Federal de Alagoas

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

 

Departamento de Filosofia

Campus A. C. Simões - Tabuleiro

Maceió - Alagoas

Cep 57072-97

 

NOTAS

1 Publicado na Revista Katalysis, Dep. Serviço Social, UFSC, v.7, n.2, pp. 147-157, 2004.

2 Jogo clássico de futebol que reúne dois notáveis times adversários, Flamengo (rubro-negro) e Fluminense (pó-de arroz).

3 No sentido de Entfremdung, a desumanidade socialmente posta.

4 Lembremos: sem qualquer identidade gênero-indivíduo.

 

Autor:

Sergio Lessa

sergio_lessa[arroba]yahoo.com.br  

Prof. do Depto. de Filosofia da UFAL e membro das

editorias das revistas Crítica Marxista e Práxis.

Website: www.sergiolessa.com 



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