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O ensino de arte nas séries iniciais da educação básica e o conceito teatral de fisicalização (página 2)

Ricardo Ottoni Vaz Japiassu

O alvo original da pesquisa era um grupo de crianças e pré-adolescentes na faixa dos 7 aos 11 anos, regularmente matriculados nas quatro primeiras séries do ensino fundamental. O grupo foi inicialmente concebido para ser constituído por 6 pares de sujeitos de ambos os sexos (6 meninos e 6 meninas), perfazendo um total de 12 estudantes - sendo que cada série (1ª, 2ª, 3ª e 4ª) seria representada por 3 alunos. Mas, para minha surpresa, a classe multisseriada possuía, no início dos trabalhos, um total de 16 alunos (4 além do previsto).

O fato é que na Escola Regina Miranda, como em muitas outras instituições de ensino, existiam alunos adolescentes, repetentes, matriculados em todas as séries. Decidi aceitá-los na classe e assumi o desafio de desenvolver a pesquisa nestas novas condições.

Do grupo de 16 alunos com o qual teve início o trabalho, apenas 3 estudantes deixaram a turma: o primeiro (12 anos/4ª série), por motivo de mudança domiciliar; o segundo (14 anos/4ª série), por ter sido promovido da 4ª para a 5ª série, com base no aproveitamento obtido numa classe de aceleração e o terceiro (10 anos/3ª série), por receio da mãe de que as aulas de Teatro pudessem prejudicar o fraco desempenho escolar do filho.

A evasão desses 3 estudantes deu-se ainda durante o primeiro mês de atividade. Os demais permaneceram no grupo até o encerramento dos trabalhos e apenas, eventualmente, deixaram de comparecer a uma e outra sessão por motivo de enfermidade ou de ordem pessoal. O grupo permaneceu portanto com 13 alunos até o final do ano letivo. Deste total, 11 estudantes enquadravam-se na faixa etária (7 a 11 anos) e apenas 2 eram já adolescentes (duas moças, ambas com 13 anos).

Foram realizadas 24 sessões de jogos teatrais, perfazendo um total de 48 aulas (cada sessão equivalia a duas aulas "gêmeas" de Educação Artística: Teatro). Além do registro integral em áudio e vídeo das sessões, o comportamento dos escolares foi anotado em fichas individuais nas quais eu descrevia suas dificuldades, avanços no aprendizado do Teatro e aspectos do seu relacionamento com colegas. Paralelamente, mantive uma espécie de "caderneta de campo" na qual eram redigidas, semanalmente, as minhas reflexões, observações e notas sobre o desenvolvimento do trabalho com o grupo.

Ao longo do processo de trabalho ocorreram 3 reuniões com os pais e responsáveis pelos alunos (uma antes do início dos trabalhos, a segunda, no mês de julho, e a última, em novembro, próximo ao encerramento do ano letivo). Fiz entrevistas com os professores regulares dos educandos, coletei depoimentos de seus colegas e familiares, funcionários da escola e também consultei documentos escolares relativos a cada um dos sujeitos do grupo.

As aulas-sessões de Teatro cumpriam sempre o seguinte ritual:

Círculo de discussão, que instalava a sessão;

Jogos tradicionais infantis, nos quais eram enfatizados aspectos originais de teatralidade;

Jogos teatrais direcionados especificamente para apropriação do conceito de fisicalização;

Avaliação coletiva e auto-avaliação das ações desenvolvidas pelas equipes, logo após seu desempenho na área de jogo;

Círculo de discussão, que encerrava os trabalhos do dia.

A abordagem histórico-cultural da formação de conceitos

O processo ontogenético de formação de conceitos foi examinado e estudado por Vygotsky de maneira radicalmente inovadora na sua época. Suas investigações lhe permitiram identificar 3 grandes fases no processo de desenvolvimento das formas superiores de funcionamento mental humano, as quais percorrem uma trajetória que começa com o pensamento sincrético até alcançar o pensamento categorial (por conceitos). Cada uma dessas fases, por sua vez, foi subdividida por ele em diversos estágios (Vygotsky, 1987):

Primeira Fase - Agregação desorganizada, Amontoado, Sincretismo ou Coerência Incoerente: O significado das palavras denota para o sujeito apenas um conglomerado vago e sincrético de objetos isolados, quer dizer, o sujeito confunde elos subjetivos com elos reais entre as "coisas". Objetos são agrupados sob o significado de uma palavra que, embora de fato reflita alguns elos objetivos com as "coisas" nomeadas, também refletem elos fortuitos relacionados com as impressões subjetivas e percepções singulares do sujeito.

Segunda Fase - Pensamento por Complexos: Os objetos isolados associam-se na mente da pessoa não apenas devido ás impressões subjetivas que podem eventualmente sugerir mas, principalmente, por causa das relações que, de fato, existem entre eles. Os elos são necessariamente concretos e factuais.

Terceira Fase - Pensamento por Conceitos: O sujeito é capaz de abstrair e isolar os elementos que integram sua experiência, sintetizando-os abstratamente para uso instrumental em novas situações concretas. O conteúdo das vivências da pessoa pode começar a ser organizado de forma abstrata, sem referência a quaisquer impressões ou situações concretas.

Como unidade mínima para acompanhamento e análise da gênese do pensamento conceitual, Vygotsky (1987:103) elegeu o significado das palavras porque "o pensamento e a palavra não são ligados por um elo primário. Ao longo da evolução do pensamento e da fala, tem início uma conexão entre ambos, que depois se modifica e se desenvolve." Ou seja, no seu entendimento, o significado de uma palavra era algo que se encontrava em permanente transformação, que evoluía.

A compreensão de que o significado das palavras são formações dinâmicas, que se modificam á medida que o ser humano se desenvolve, possibilitou-lhe identificar as várias fases evolutivas do pensamento verbal até que este pudesse alcançar o patamar formal, categorial, atingindo assim o nível mais elevado e superior do seu funcionamento.

A pesquisa revelou que todos os escolares encontravam-se na fase denominada por Vygotsky de Pensamento por complexo, em diferentes estágios do processo de posse "genuína" do conceito teatral de fisicalização. Todos os sujeitos, no entanto, forneceram provas de avanços na conceptualização das noções de cooperação e fisicalização, trabalhadas sistematicamente no grupo. Mas, é importante que se diga, nenhum dos alunos demonstrou então operar categorialmente (formalmente) com estes conceitos.

O aprendizado de conceitos teatrais no sistema de jogos de Spolin

Com base na estrutura fundamental das atividades lúdicas com regras, que põe em movimento as dimensões "legislativa", "executiva" e "judiciária" do acordo coletivo do grupo, desenvolveu-se o método de ensino do Teatro adotado na intervenção pedagógica relatada aqui (Japiassu, 2001:73-78).

A partir do conceito cotidiano de jogo com regras foi possível promover o fortalecimento do conceito social de cooperação no grupo acompanhado. Paralelamente, á medida que os escolares avançavam no entendimento da importância da complexa cooperação semiótica necessária ao desenvolvimento da linguagem teatral, desde uma perspectiva improvisacional, importantes conceitos, específicos do Teatro, passaram a ser abordados intuitiva e sensorialmente - até porque já se encontravam implícitos nas atividades propostas á turma em forma de jogos (Spolin, 1992, 1975).

A apropriação dos conceitos sociais ou "científicos" especificamente teatrais, particularmente o conceito de fisicalização, privilegiou a percepção intuitiva, sensorial dos estudantes - que pode ser mobilizada paralelamente ás formas logocêntricas de conhecimento. A fisicalização refere-se á capacidade dos jogadores de tornarem visíveis para observadores do jogo teatral objetos, ações, lugares e papéis envolvidos em uma representação cênica, sem o auxílio de qualquer suporte material ou pivô que não seja o próprio corpo do sujeito.

A fisicalização requer portanto a capacidade de abstração. é uma atividade que implica representação simbólica, convencional, sígnica: constitui-se um "reflexo de segundo grau" ou "de segunda ordem" de acordo com Vygotsky (1996a).

Quando um livro passa a ser utilizado como "bandeja" em um jogo teatral, verifica-se então que o significado cultural original do objeto (livro) foi alienado, roubado, substituído deliberadamente pelo jogador - que passou a lhe emprestar, agora, nova significação: "bandeja" (Vygotsky, 1996b).

Se alguém utiliza um livro como "bandeja" em um jogo teatral, o livro funciona como suporte ou "pivô" para a ação de "segurar uma bandeja". Outra coisa porém é "segurar" uma bandeja imaginária, sem o auxílio do pivô - no caso, o livro.

Fisicalizar uma "bandeja" implica torná-la "visível" através de um repertório gestual específico. Esse tipo de ação é altamente complexo e exige a percepção imaginária do objeto fisicalizado tanto por parte dos jogadores que o fisicalizam como por parte daqueles que observam o que está sendo fisicalizado na área de jogo.

Não é difícil concluir que o conceito de fisicalização implica a ampliação da capacidade corporal expressiva dos jogadores, de sua atenção, memória sensorial e pensamento categorial ou conceitual. Além disso, para os alunos, a fisicalização de objetos, lugares e papéis permite-lhes compreender melhor a dimensão representacional, simbólica, convencional do fenômeno teatral.

Observou-se que a apropriação do conceito teatral de fisicalização ocorre geralmente antes que o escolar possa converter em palavras o que já consegue experimentar corporalmente.

A conscientização de natureza meta-cognitiva de suas ações e operações no jogo teatral é um processo lento, que cada jogador desenvolverá em seu próprio ritmo, auxiliado por suas descobertas pessoais e pelo relato das eventuais descobertas dos parceiros de jogo, socializadas nos círculos de discussão, nas avaliações coletivas e auto-avaliações.

Esse processo de tomada de consciência, por parte do sujeito, das suas ações corporais e de suas operações mentais, necessita ser promovido, no entanto, a partir da intervenção pedagógica deliberada do professor, no sentido de possibilitar-lhe avanços em direção ao pensamento categorial. Isso pode ocorrer através da organização de um ambiente de aprendizado desafiador e estimulante que permita tanto a atividade corporal do aluno como sua fala e reflexão sobre seus gestos significativos.

Mas a abordagem do conceito de fisicalização, no sistema de Spolin, não ocorre tendo como ponto de partida a exposição ou transmissão verbal deste conceito pelo(a) professor(a). Ela se dá a partir da vivência do escolar no desempenho de ações na área de jogo e, em seguida, através dos sucessivos questionamentos feitos pelo(a) professor(a) - que terminam por conduzir a reflexão sobre a prática teatral e a significação colaborativa da atividade cênica na área de jogo. Os questionamentos do(a) professor(a), ao longo do trabalho do grupo, devem se tornar cada vez mais instigantes e desafiadores.

Algumas implicações pedagógicas de uma abordagem escolar do conceito de fisicalização

O aprendizado do conceito teatral de fisicalização pode ocorrer em ambientes escolares de extrema carência material - em que não se encontram, á disposição do(a) professor(a) de Teatro, figurinos, adereços, objetos de cena, cenários, palco ou refletores, por exemplo.

Algumas conseqüências cênicas deste conceito são:

1) Economia de recursos materiais utilizados como suportes para as ações representadas na área de jogo pelos jogadores;

2) Ênfase na expressividade corporal dos jogadores;

3) Desenvolvimento da comunicação não-verbal;

4) Abordagem anti-ilusionista da representação teatral.

Essas características, acima destacadas, por exemplo, foram observadas nas representações teatrais dos alunos da Escola Regina Miranda. O fato de a criança e o pré-adolescente conhecerem e exercitarem-se na experimentação de suas hipóteses a respeito do conceito de fisicalização oferece-lhes nova perspectiva de visão do fenômeno teatral, até porque a precariedade de recursos materiais deixa de ser associada ao prejuízo da qualidade da representação cênica.

A regra que estabelece, no jogo teatral, a não utilização de suportes ou "pivôs" para as representações cênicas, propõe aos jogadores o desafio de tornarem visíveis objetos, ações, lugares e papéis, valendo-se exclusivamente de seus corpos. Isso faz com que os estudantes se permitam uma excitante aventura criativa, buscando conhecerem os limites e possibilidades expressivas do corpo humano.

Por fim, é preciso dizer que, ao longo das sessões de jogos teatrais, evitaram-se demonstrações corporais de como solucionar os problemas de atuação propostos aos estudantes. Não se tratava, no entanto, de deixar os escolares entregues a si mesmos mas, antes, de lhes proporcionar um ambiente favorável ao aprendizado pessoal e intransferível, a partir da experimentação prática de suas hipóteses sobre o funcionamento do complexo processo de representação semiótico da linguagem teatral.

Acredito ter exposto aqui, de maneira muito sucinta, algumas implicações pedagógicas do tratamento didático do conceito teatral de fisicalização, no âmbito do ensino de arte (Teatro), na educação escolar, conforme os procedimentos metodológicos subjacentes ao sistema de jogos teatrais de Spolin.

NOTA

1 A noção de área de jogo implica o revezamento do grupo nos papéis de "jogadores" e "observadores" e é extremamente útil para fortalecer o caráter deliberado, intencional, da comunicação teatral. A área de jogo pode ser delimitada a partir de risco de giz no chão da sala, uso de tapete, corda ou determinação verbal do espaço pelo(a) professor(a).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRé, Marli E. D. A. & LÜDKE, Menga. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: Pedagógica e Universitária, 1986.

GÓES, Mª Cecília R. de & SMOLKA, Ana Luisa B. A linguagem e o outro no espaço escolar: Vygotsky e a construção do conhecimento. Campinas : Papirus, 1993.

JAPIASSU, Ricardo O. V. Metodologia do ensino de teatro. Campinas: Papirus, 2001.

____________. Ensino do teatro nas séries iniciais da educação básica: a formação de conceitos sociais no jogo teatral. São Paulo: ECA-USP, 1999. (Dissertação do mestrado).

SPOLIN, Viola. Improvisação para o teatro. São Paulo: Perspectiva, 1992.

____________. Theater game file handbook. St. Louis, Missouri: Cemrel Inc., 1975.

THIOLLENT, M. "Notas para o debate sobre a pesquisa-ação". In: BRANDÃO, Carlos R. (Org.) Repensando a pesquisa participante. São Paulo: Brasiliense,1984.

VYGOTSKY, L.S. Teoria e método em psicologia. São Paulo: Martins Fontes, 1996a.

______________. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1996b.

____________. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

AUTOR: Ricardo Ottoni Vaz Japiassu é professor da Universidade do Estado da Bahia-UNEB; autor de Metodologia do Ensino de Teatro (Papirus, 2001); Doutorando da Faculdade de Educação da USP sob orientação da Profª. Drª. Marta Kohl de Oliveira; Mestre em Artes pela ECA-USP; Licenciado em Teatro e Bacharel em Direção Teatral pela UFBª. Endereço para correspondência: Condomínio Aldeia de Trobogy, Rua B.1, Bl. 49-C, Patamares - 41680.140 Salvador/BA.

 

 

 

Autor:

Ricardo Ottoni Vaz Japiassu                                                                                          

rjapias[arroba]yahoo.com.br

Prof. Titular UNEB/Campus XV - Valença/Ba
Doutor em Educação pela FE-USP
Mestre em Artes pela ECA-USP
Licenciado e Bacharel em Teatro pela ET-UFBa



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