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Feijó. Naturalista brasileiro em Cabo Verde no século XVIII (página 2)

Maria Estela Guedes

O século XVIII é o do utilitarismo e da economia, o que se reflecte na História Natural: o naturalista fala do que é útil ou inútil, do que pode ou não dar lucro. Os governantes mais esclarecidos aspiram á felicidade dos povos, de acordo com um ideário materialista, segundo o qual as riquezas naturais serão tanto melhor aproveitadas quanto melhor e mais completo for o conhecimento científico delas, como aconselha Vandelli (8). é possível criar um paraíso na Terra, eis a grande utopia do tempo de Rousseau. As Luzes estão assim directamente ligadas ao naturalismo: os governantes são membros das academias, muitos passam pelas faculdades de Filosofia Natural, fazem por isso dela um instrumento de poder e uma questão de Estado. A maior parte do memorialismo é económica, exemplo das Memórias Económicas da Academia Real das Ciências, do "Ensaio Económico sobre as Ilhas de Cabo Verde", de Feijó, exemplo ainda de muitas memórias de Vandelli. Perto de uma centena delas, na maior parte inéditas, foi publicada recentemente, de tal forma que remete para os economistas o trabalho de maior envergadura até agora empreendido acerca dele (9). O naturalismo promove a agricultura, as pescas, a indústria, a multiplicação de seres vivos e produtos naturais úteis, estuda novas aplicações para eles, visa o bem estar e riqueza das nações, e para isso dispõe de uma técnica moderna de catalogação, a sistemática de Lineu. No seu horizonte brilha um mundo ignoto, fonte de bens difícil de avaliar na sua grandeza, e que ainda é preciso conquistar: as colónias, que então justamente se chamavam "conquistas". A Europa promove as viagens filosóficas, sequiosa de conhecimento desses estranhos mundos para os poder dominar, Portugal segue-lhe os passos, com muito atraso.

AS CARTAS PARA O MINISTRO

Era sob o ministério de Mello e Castro que decorriam as expedições régias e actividades no Real Jardim Botânico da Ajuda, daí não só que o ministro seja o interlocutor de Feijó e dos outros filósofos naturais, como também de quantos, em especial governadores, enviavam das conquistas amostras de produtos dos três reinos para o Real Jardim Botânico da Ajuda e Gabinete de História Natural, uma das sua dependências.

O naturalista escreve ao ministro, mas não há nesta correspondência nenhuma relação de intimidade, tratando-se apenas do recurso usual á epistolografia para apresentar matéria científica ou outra. As cartas constituem uma descrição física, obedecendo em todos os pontos ás exigências de um curso ministrado por Domingos Vandelli, e que existe em manuscrito na Academia das Ciências, com o título de "Viagens Filosóficas…" (10). Numa época utilitarista, e sendo Vandelli um economista, conselheiro de finanças de D. João VI, não é de admirar que o seu curso, dirigido aos naturalistas que deviam partir para as conquistas, e em especial para o Brasil, seja uma História Natural Económica adaptada ao que se pretendia deles em territórios ainda inexplorados.

A descrição física, se hoje ainda se praticasse, enquadrar-se-ia nos serviços militares ou de defesa de um país, aliás Feijó, já o dissemos, era militar de carreira. Como Vandelli ensina nas "Viagens Filosóficas", a descrição de um país implica dar conta do clima, acidentes geográficos, natureza dos portos, desenhar mapas se fosse caso disso, sobrepor aos que houvesse a carta mineralógica, analisar fronteiras, a navegabilidade dos rios, o tipo de embarcações, aparelho de guerra, manufacturas, religião praticada, doenças endémicas, remédios nativos, costumes do povo, indumentária, tecidos, arquitectura e materiais de construção, sistema de governo, etc.. O filósofo natural devia também preparar, conservar e remeter amostras das produções naturais ao Real Jardim Botânico da Ajuda. Esta instituição era um laboratório onde se apuravam técnicas, como a purificação do anil, e uma estação aclimatadora, na qual se seleccionavam plantas úteis para introduzir onde melhor vegetassem, em Portugal ou nas conquistas. Vandelli exigia ainda que se averiguasse quais as plantas e animais nocivos e quais os seus predadores, para se introduzirem os predadores onde fosse preciso combater os nocivos. Logo á entrada das "Viagens Filosóficas" ensina a etiquetar e a assinalar localidades, medindo a longitude e a latitude; tudo isto somado, o livro eleva-se á categoria de uma bela utopia, tal como toda a empresa governamental que levou a cabo as viagens, porque, na parte das missões em que lhes cabia coligir, preparar, conservar e remeter colecções para o Real Gabinete, a correspondência foi fraca. O ministro exaspera-se, Feijó é alvo de duras repreensões, porventura merecidas. Os naturalistas acompanhavam em geral destacamentos militares, não andavam sozinhos no sertão angolano nem pelas matas da Amazónia, daí frequentes queixas por terem de se subordinar a essas missões e acumular tarefas, pois alguns, como Silva em Angola e Feijó mais tarde em Cabo Verde, eram secretários dos governos provinciais.

Cabo Verde é um arquipélago pobre, o seu interesse era sobretudo estratégico nas rotas dos navios que sulcavam o Atlântico. Não tendo muito mais para dar além da urzela, os produtos que o ministro reclamava a Feijó eram o salitre nativo e o enxofre. O enxofre, por constituir os alicerces da indústria química; o salitre, que então se importava manufacturado do estrangeiro, para baixar assim os custos da pólvora. Não os encontrará em Cabo Verde, entre as lavas expelidas pelo vulcão, pelo menos em quantidade que justificasse extraí-los (11). Mas muitos anos depois, já de regresso ao Brasil, fundará no Ceará um laboratório para extraçcão do salitre da Mina de Tatajuba, descoberta por ele (12).

Eis o motivo pelo qual as cartas de Feijó para o ministro são tão minuciosas: o fundamento do "itinerário" ou "exame" filosófico é justamente descrever, para que o Governo saiba o que governa, quem governa e como governar. Os naturalistas fornecem instrumentos para o exercício do Poder. Se esses instrumentos são falsos ou verdadeiros, eis o grande risco. No caso português, os filósofos naturais que lideraram as expedições régias são todos nativos do Brasil, anseiam pela independência, pelo que não têm interesse em oferecer riquezas á Coroa. Nenhum deles revela ter descoberto nada de relevante. Quando o conhecimento é uma arma que o oprimido oferece ao opressor, basta virá-la ao contrário para se tornar ofensiva. Afinal, a qualidade de "esclarecido" ou "iluminado" aplica-se ao despotismo. Feijó, formado na escola do liberalismo de Vandelli, assinala a existência em Cabo Verde dos "despóticos destas ilhas"(13).

Os textos atribuídos a Feijó, e outros que correm dele sob diversas assinaturas, constituem um enigma bibliográfico a que não cabe o rótulo de plágio, ao invés do que António Carreira (14) e Estela Guedes (15) deixaram já sob suspeita. Carreira analisa e publica versões do "Ensaio Económico", não publica as versões da memória sobre a erupção do Fogo em 1785, que geram enigmas similares. Conhecemos vários documentos de Feijó que referem essa erupção e dois manuscritos da memória (16), não publicada no seu tempo, mas conhecida dos naturalistas. é assim que diversos autores citam parágrafos dela, sendo as citações todas semelhantes e diferentes, divergindo por exemplo na data da erupção. Orlando Ribeiro (17) publicou a memória de Feijó a partir do manuscrito do Arquivo Histórico Ultramarino, e está conforme com ele, excepto num ponto: acrescenta uma "Prefação", importada da mais desconcertante das versões, a de Pimentel (18), por ser profundamente diversa das outras e não indicar a fonte, quando á mão tinha o manuscrito da Academia das Ciências de Lisboa, esperando-se portanto que referisse o facto de a sua fonte ser outra e não coincidir com a da Academia. Outra circunstância desconcertante é a de Botelho da Costa (19) publicar uma memória sobre a erupção do Fogo ocorrida em Abril de 1800, que inclui parágrafos da(s) memória(s) de Feijó, mas cuja autoria Botelho da Costa atribui a Marcellino António Basto. Em nenhum destes casos se pode falar de plágio, sim de obra colectiva. A obra colectiva, porque é plural, dissipa a identidade do autor singular. No caso de Feijó, dissipa-se ainda de outros modos: correm várias datas e locais de morte, e uma das versões do seu "Ensaio económico sobre as ilhas de Cabo Verde" foi publicada no Brasil sob a autoria de João da Silva Rego (in Carreira). De modo geral, as versões mais problematizantes são as do Brasil, por isso é de encarar a hipótese de Pimentel ter publicado uma versão brasileira.

Estes problemas exigem que se advirta o leitor de que é preciso cautela no uso da informação contida nas cartas que agora divulgamos, pois a existência de versões e de problemas de autoria tornam logo impraticável a citação. Não é decerto por só nós termos conhecimento da sua existência na Biblioteca Nacional que elas vêm á luz duzentos anos volvidos sobre o período das Luzes, sim porque ninguém, até agora, as quis divulgar. Nada garantindo que nos arquivos brasileiros não existam manuscritos gémeos mas diferentes, pois Feijó encontrava-se em ponto estratégico para enviar informações para a metrópole e para o Brasil.

Como o nosso principal objectivo é porém proceder á divulgação das cartas, passamos assim ao "Itinerário Filosófico", conjunto de observações pioneiras sobre Cabo Verde, no que diz respeito ao uso de discurso científico moderno, próprio do Iluminismo. Pioneiras sobretudo em relação ao que descreve da ilha do Fogo, a mais interessante para a geologia, e que a geologia só revela conhecer das versões da(s) sua(s) memória(s).

NOTAS

(1) "Itinerario f[i]losofico que contem a rellaçaõ das ilhas de Cabo Verde disposto pelo methodo epistolar" / dirigidas ao Illº e Exmº Senhor Martinho de Mello e Castro pello Naturalista Regio das mesmas ilhas Joao da Sylva Feijó -1783". [26]f.,[51],7p., enc. : 2 mapas estatísticos color. ; 26 cm. - Ms. - Mapas estatísticos dos habitantes e produtos da ilha do Fogo . - Inclui uma lista de plantas. Secção de manuscritos da Biblioteca Nacional, Lisboa.

(2) Maria Estela Guedes - José Álvares Maciel. In Diana Soto Arango, Miguel Ángel Puig-Samper y Mª Dolores González Ripoll (Editores): "Científicos Criollos e Illustración". Ediciones Doce Calles, Madrid, 1999.

(3) A Academia de Minas de Freiberg era então escala obrigatória. O autor do neptunismo, Werner, dava aí um curso de Geognósia.

(4) William J. Simon - "Scientific Expeditions in the Portuguese Overseas Territories (1783-1808) and the role of Lisbon in the Intellectual-Scientific Community of the late Eighteenth Century". Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa, 1983.

(5) José Augusto Mourão, Ana Luísa Janeira e Maria Estela Guedes - A paixão do coleccionador: as viagens filosóficas de Manuel Galvão da Silva. Encontro sobre Alcipe e as Luzes, Fundação das Casas de Fronteira e Alorna, Lisboa, 1997. Actas em publicação.

(6) Carta de Feijó para Domingos Vandelli. Lisboa, 23 de Julho de 1797. Arquivo histórico do Museu Bocage. CN/F-21. Oferece a Vandelli uma colecção de sementes de Cabo Verde, daqui se depreendendo que acabava de chegar a Lisboa.

(7) Feijó declara-se vítima de ameaças, segundo as quais o haviam de matar como tinham morto o Bispo D. Francisco de S. Simão. Carta para Júlio Mattiazzi, de S. Filipe da Ilha do Fogo, 16 de Fevereiro de 1784. Arquivo histórico do Museu Bocage, CN/F-5.

(8) Domingos Vandelli - Memória sobre a utilidade dos museus de História Natural, s/d. Ms. vermelho, Academia das Ciências de Lisboa.

(9) Domingos Vandelli - "Aritmética Política, Economia e Finanças". Colecção de Obras Clássicas do Pensamento Económico Português. Banco de Portugal, Lisboa, 1994. Prefácio, notas e direcção editorial de José Vicente Serrão.

(10) «Viagens filosóficas ou dissertação sobre as importantes regras que o flósofo naturalista nas suas peregrinações deve principalmente observar, por D.V. », 1779. Cópia de Frei Vicente Salgado. Ms. azul, Academia das Ciências de Lisboa.

(11) Embora o ministro tivesse recebido notícias em contrário, e o próprio Feijó induza na convicção de que o enxofre seria uma riqueza a extrair: "pode participar a S. Exª que me disse hoje o Administrador desta Ilha que se havia colhido de enxofre, de toda qualidade, de 95 para 100 quintais, e de caparrosa de toda a sorte, de 25 para 30 quintais. Inclusamente remeto uma lista do cálculo que eu, segundo a minha estimativa, tenho formado sobre a importância de ambos os produtos, desde a sua recolha até ser posto a bordo da embarcação que deve conduzi-los a Lisboa". João da Silva Feijó - Carta para Júlio Mattiazzi. Ilha do Fogo, 15 de Agosto de 1786. Arquivo histórico do Museu Bocage, CN/F.15.

(12) Vários documentos de Feijó e relativos ao seu trabalho no Ceará, 1802-1803. Arquivo da Casa da Moeda, Lisboa.

(13) Carta de Feijó para Júlio Mattiazzi. S. Nicolau, 19 de Abril de 1784. Arquivo histórico do Museu Bocage, CN/F-8.

(14) António Carreira - "Apresentação e comentários ao Ensaio e memórias económicas sobre as ilhas de Cabo Verde (Século XVIII), de João da Silva Feijó". Edição do Instituto Caboverdeano do Livro. Praia, 1986.

(15) Maria Estela Guedes - João da Silva Feijó, viagem filosófica a Cabo Verde. Asclepio, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Madrid, XLIX (1), 1995.

(16) Carta de Feijó para Júlio Mattiazzi. S. Nicolau, 19 de Abril de 1784. Arquivo histórico do Museu Bocage, CN/F-8.

(17) João da Silva Feijó - Memoria sobre a nova irrupção volcanica do Pico da Ilha do Fogo - 1786, uma carta para Mello e Castro, em anexo. Manuscrito Cabo Verde. Caixa 43. Arquivo Histórico Ultramarino. Dois mapas relativos á memória na secção Cartografia e Iconografia (AUH). Na Academia das Ciências de Lisboa existe um manuscrito idêntico á Memoria sobre a nova irrupção...

(18) Orlando Ribeiro publicou a memória de Feijó em "A Ilha do Fogo e suas erupções". Memórias, Série Geográfica, I, Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, 1954.

(19) J. M. Oliveira Pimentel - Memória sobre a produção do sulfato de soda no vulcão da Ilha do Fogo. Memórias da Academia Real das Ciências de Lisboa, Classe de Ciências, N.S., II, 1857. Publica a Memoria sobre a ultima erupção volcanica do Pico da Ilha do Fogo succedida em 24 de Janeiro do anno de 1785, observada e escripta por João da Silva Feijó, naturalista que foi encarregado por Sua Magestade do exame philosophico das ilhas de Cabo Verde.

(20) Botelho da Costa - A Ilha do Fogo de Cabo Verde e o seu vulcão. Boletim da Sociedade de Geografia, 5ª série, 7, 1885.

 

 

 

Autor:

Maria Estela Guedes e Luís M. Arruda

estela[arroba]triplov.com

GUEDES, Maria Estela & ARRUDA, Luís (2000) - João da Silva Feijó, naturalista brasileiro em Cabo Verde. In: As Ilhas e o Brasil. Região Autónoma da Madeira, pp: 509-524.



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