S. Frei Gil, um santo carbonário

Enviado por Maria Estela Guedes


  1. Uma história de S. Frei Gil
  2. Gil: Nemo ou Todos-os-Santos?
  3. Literatura egidiana
  4. As três ciências
  5. Legenda: o que está escrito
  6. Titivetilarius, ou a escrita do Diabo
  7. Bibliografia

 

Imagem da capela-mor de S. Frei Gil, em Vouzela.
In: Carlos Lino de Seabra, "S. Frei Gil de Vouzela"

1. Uma história de S. Frei Gil

Era uma vez um rapazinho muito dotado intelectualmente, filho de gente da corte - o pai, alcaide-mor de Coimbra, fora da roda de D. Afonso Henriques, nosso primeiro rei. Tão dotado era que, diz Eça de Queirós, mal aprendeu a ler, logo devorou os 33 volumes que constituiam a bem dotada livraria do mosteiro de Santa Cruz. Depois disto, nada mais teria o mosteiro para lhe oferecer, de modo que pensou partir para estudar medicina na Universidade de Paris. Nesta decisão lhe foi favorável o próprio rei, D. Sancho I, que muito desejava ter médicos no reino, e para tanto, em 14 de Setembro de 1199, destinou 400 morabitinos para bolsas de estudo aos escolares do mosteiro de Santa Cruz que quisessem ir doutorar-se a França. No tempo de Gil Rodrigues, ainda só havia um médico em Santa Cruz, doutorado em Paris, Mendo de nome.

Gil Rodrigues partiu com os criados. Ao chegar perto de Toledo, sai-lhes á frente um belo jovem montado a cavalo que indaga quem ele é, para onde vai e com que intenção. Gil responde e o cavaleiro argumenta que sim, a medicina não era mau futuro, mas para alcançar glória, riqueza e poder, ali em Toledo havia mestres muito melhores. Nas Covas de Toledo podia tirar o curso completo de Magia Negra. Gil Rodrigues deixa-se convencer, e entra na escola de nigromantes, cujas aulas se davam debaixo da terra. Findo um ano, o Grão-Mestre dos Demónios chamou-o de lado e fez-lhe a seguinte proposta:

"Se daqui para a frente, Gil, desejas permanecer connosco mais tempo, é absolutamente indispensável que faças uma profissão de vida mais estrita; é que, quem pretende possuir esta ciência tem que dar ao demónio um documento feito com o próprio sangue, pelo qual lhe sujeita o corpo e a alma e renuncia junto de Deus á sua justificação, assim como a Deus, á fé e ao baptismo, e se a alguém mais tem apreço é necessário renegá-lo" (Frei Baltasar de S. João, p. 30).

Gil escreveu e assinou com sangue, e o Demónio guardou o documento. Sete anos passou Gil na universidade subterrânea de Toledo, sem comer nem beber, pois tal não era necessário, substuído o alimento pelo contínuo êxtase. Já mestre nigromante, segue então para França. Em Paris correram-lhe tão bem os estudos de Medicina que breve ficou famoso pelas extraordinárias curas que realizava. Mas Gil dedicava grande parte do tempo á libertinagem, de modo que certo dia apareceu-lhe em visões um cavaleiro que lhe apontou ao peito a espada: "Muda de vida, homem! Muda de vida, se não, morres!" - avisou. À primeira, Gil Rodrigues não acreditou na visão, pois lhe tinha parecido que era de pedra o cavaleiro. Porém á segunda encheu-se de medo e determinou que não haveria terceira aparição. Logo ali começou a arrepender-se, decidindo regressar a Portugal, pois já tinha o grau de doutor em Medicina.

Ao passar por Palência viu os frades dominicanos a erguerem com as próprias mãos as pedras do seu conventinho, e pressentiu que o seu lugar era naquela Irmandade. Pediu ao prior que o deixasse ajudar os frades pedreiros e o prior acedeu. Gil penitenciava-se dos seus pecados, que eram muito mais que sete, apesar de só ter durado sete anos a penitência. Flagelava-se, jejuava, e até um cinto de ferro colocou no corpo, deitando fora a chave, para não ceder ás tentações da carne.

Findos os sete anos de provas, voltou a Portugal, entrando no convento de Santarém. Neste tempo já ele ia sendo conhecido, não só pelas curas milagrosas como pelas visões e êxtases que tinha. Também era frequente elevar-se-lhe o corpo no espaço, como se não pesasse mais que ligeira pena de avestruz. Um dia em que estava mais absorto elevou-se mesmo até ao telhado, e por mais que os frades fizessem não conseguiram puxá-lo para o chão. De outra vez, um membro da Inquisição, ao presenciar a cena, bem quis testar se era de fraudulenta ou verdadeira levitação, queimando-lhe as mãos com a chama de uma vela, mas Frei Gil não as recolheu para junto do tecto, onde o corpo flutuava, assim ficando provada a autenticidade do fenómeno.

Gil era agora uma pessoa muito diferente do que fora, e já todos o consideravam santo. Mas ele não pensava assim: se o corpo lhe era tão leve que a aragem o impelia para junto de Deus, na alma sentia um peso que o enterrava nas profundas dos Infernos. Dedicava neste lance a Nossa Senhora do Rosário grande parte das suas orações. O maldito documento que rubricara com sangue atormentava-o, por estar nas mãos do Demónio. Ao fim de muito rezar a Nossa Senhora, ela ouviu-o. Certa manhã, estava ele de joelhos na capelinha, a desfiar o rosário, eis que nos raios de luz que obliquamente desciam do céu, vinha esvoaçando o contrato celebrado com o Diabo.


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