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A ilusão de sermos pais: lições de etnopsicologia da infãncia (página 2)

Raúl Iturra
Partes: 1, 2, 3, 4, 5, 6

Que a criança brinca com a sexualidade própria e dos outros ao ser comandado pela fisiologia, que imensas vezes as pessoas adultas berram e punem porque o pequeno agarra o seu corpo e, mal pode, os genitais dos seus adultos? O que é tanto beijo e a emotividade sã, querida, normal, dentro da libido que esse futuro adulto traz consigo ao nascer, tal como amígdalas, apêndice, emotividade e profundos sentimentos de se colar ao pé dos seus íntimos? Não é para ser defendido de qualquer espécie de perigo, é porque essa emotividade é a que divide o mundo entre os meus e os outros, os que me amam sem dúvida nenhuma porque, eu os desejo, e os que não conheço e não sei se serão interessantes. Nos seus ensaios denominados Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud relata, analisa, prova, pela primeira vez, o processo de desenvolvimento do instinto sexual do ser humano desde a infância até a vida adulta. Texto que, até ao dia de hoje é a base do entendimento da nossa interacção e da nossa empatia simpática ou antipática. Texto, que foi desenvolvido nos por ele denominados "textos profanos" - para contrariar a ideia de que toda doença psicológica, nervosa, ou dos sentimentos era resultado de castigo divino. é a sua análise de 1913: Totem and taboo. Resmblances between the Psychic Lives of Savages and Neurotics, a forma de observar num livro as análises feitas no terreno sobre as psiques de Java (Kraepelin, em finais de 1700, Johan Jakob Bachofen na sua análises do denominado Direito Materno em 1863, James George Frazer e o seu estudo sobre mito, tabu, rito e religião na actividade mental em 1890, Ernest Jones e a sua disputa ou debate com Bronislaw Malinowski sobre exogamia e édipo, orientam as analises de Freud para o temor ao incesto que tem existido entre os grupos sociais não europeus e as proibições religiosas e civis na Europa, que conduzem á análise e organização com Jean Charcot do denominado Complexo de édipo em 1885. No entanto, o seu ensaio de 1914 sobre Narcisismo, o de 1915 sobre as vicissitudes do instinto, conseguem desenvolver e colocar lentamente o erotismo infantil, dentro de formas analíticas psicológicas, que ele próprio emprega numa criança denominada sempre Fritz - o seu filho Hans morto aos 4 anos - e Melanie Klein durante dois anos de psicanálise de Richard entre os três e 5 anos de idade. Todos estes ensaios - e não há outros, porque François Dolto analisa o resultado das ideias religiosas no comportamento das crianças e Alice Miller foge de modelos e usa teoria e factos históricos, não o inconsciente nem a História Religiosa Universal (Freud o primeiro, Bion o segundo) ao explicar as condutas perversas de Hitler, Mussolini, ou o ultrapassar de depressões problemáticas em Pablo Picasso, Buster Keaton. Estes e o primeiro ensaio de 1905 de Freud, estão, hoje na ribalta, por causa de um jornalismo pobre que possuímos e que orienta a sua pesquisa  para o que mais dói  aos europeus: o comércio de crianças ou a sua prostituição, como tenho referido por extenso em livros e textos. No entanto, entre os comportamentos que no Século XIX se denominavam "aberrações sexuais", existem alguns que têm,  passado a ser considerados comportamentos íntimos  permitidos, poucos punidos e rejeitados como crimes entre nós, enquanto são ritos de iniciação  á sexualidade entre não europeus, como o ritual Pedófilo Baruya da Nova Guiné analisado por Maurice Godelier, ou estudado por Malinowski entre os Masim da Kiriwina, por David Herdt entre os Sambia, e os Picunche que fazem parte do meu estudo entre os Mapuche Picunche da Cordillera de los Andes. Freud baseia as suas análises nas etnografias e estudos etnológicos e semióticos de James Frazer e Johan Bachofen especialmente as ideias existentes sobre o denominado Mito de édipo e o de Electra. A Pedofilia, a Homossexualidade masculina e feminina - hoje admitida como uma nova forma matrimonial, a Masturbação retirada da lista das aberrações e dos denominados pecados pelos grupos religiosos e das ideias de fraqueza mental de muitos membros de população europeia, enquanto é um rito de inseminação, público e colectivo, em grupos sociais estudados pelos Antropólogos. Até que em 1927 e 1930, defende em dois textos: Psicanálise e medicina de 1927 e O Mal Estar na Cultura de 1930, a possibilidade de pessoas eruditas que saibam  entendem emoções e saibam ouvir, poderem actuar como clínicos da mente, sem necessidade de serem médicos. Muitos discípulos de Freud e Klein agiram assim. Bion era médico, mas estudou o contexto do ser humano, para entender as partes psicopatas que todos temos e as partes de inteligência é o que acontece com Georges Devereux, húngaro-franco-norteamericano, discípulo de outro húngaro, Gezra Röheim e do revolucionário francês Marcel Mauss, o próprio Marcel Mauss, Robert Hertz, émile Durkheim, todos eles a contribuir juntamente com a teoria de Wundt, Tönnies e Marx, para a mudança no tratamento das crianças. é o que temos denominado Etnopsicologia e me orgulho  de praticar, com duas colaboradoras que menciono no fim destas páginas. O próprio Freud usa o contexto para explicar a mente que sofre, a origem do seu sofrimento e, se for possível, mudar. Num texto de 1925, consagrado á educação, Freud propõe acabar com o método repressivo, normalmente utilizado  para "civilizar" os "pequenos homens" . O que procura é o método de ensinar comportamento conforme os tempos e grupo social, no entanto fica um problema: o que fazer com as pulsões anti sociais que todo ser humano tem? Reprimir ou sublimar?: Ou se age de forma violenta para acabar com elas, ou  orientar -as pulsões anti sociais - para formas valorizadas e acolhidas pela vida social. é esta segunda parte que  interessa a Freud  que desenvolve toda uma teoria de orientar comportamentos infantis através do ensinar aos adultos a doçura e paciência que se deve ter para orientar o comportamento infantil para pulsões sociais aceitáveis. O problema está em quais são aceitáveis, qual o grupo social, qual o século, o ano ou o tempo do qual falamos. De facto, não há nem tempo nem espaço para falar da teoria da educação de Freud, que devo tratar  no meu próximo livro. Mas, pelo menos - e desculpe o leitor -  uma síntese do que pensava sobre as pulsões, travar e dinamizar: «Une violente répression d'instincts puissants exercée de l'extérieur n'apporte jamais pour résultat l'extinction ou la domination de ceux-ci, mais occasionne un refoulement qui installe la propension á entrer ultérieurement dans la névrose. La psychanalyse a souvent eu l'occasion d'apprendre á quel point la sévérité indubitablement sans discernement de l'éducation participe á la production de la maladie nerveuse, ou au prix de quel préjudice de la capacité d'agir et de la capacité de jouir la normalité exigée est acquise. Elle peut aussi enseigner quelle précieuse contribution á la formation du caractére fournissent ces instincts asociaux et pervers de l'enfant, s'ils ne sont pas soumis au refoulement, mais sont écartés par le processus dénommé sublimation de leurs buts primitifs vers des buts plus précieux. Nos meilleures vertus sont nées comme formations réactionnelles et sublimations sur l'humus de nos plus mauvaises dispositions. L'éducation devrait se garder soigneusement de combler ces sources de forces fécondes et se borner á favoriser les processus par lesquels ces énergies sont conduites vers le bon chemin. "Qui n'a jamais subi les brimades parentales s"exprimant sous la forme d"un catégorique "ne fais pas ça" accompagné, pour tout justificatif, d"un laconique " ce n'est pas bien " ? Cette conduite, parfaitement compréhensible - les parents veulent protéger leurs enfants - est loin, cependant, de recevoir l"approbation de Sigmund Freud, qui doute que la répression de toute pulsion infantile soit bénéfique aux futurs adultes qu"elle est pourtant sensée aider á se construire »[1] 

Esta seria a síntese das lições sobre a educação de crianças, no caminho de Freud e dos seus discípulos. Do que trata esta teoria, elo central de toda teoria analítica na nossa sociedade, é da necessidade de combinar as chamadas de atenção sobre o comportamento e as permissividades, desde que os adultos saibam agir ao pé da emotividade coordenada pela razão e não apenas pelas suas conveniências, ou por causa delas. O que os adultos querem é manter uma certa paz quer para que eles entendam, ou para que a criança se torne num adulto sóbrio, calmo e conhecedor, no seu dia de autonomia. E nada mais digo neste parágrafo, deve passar a ser outro livro, de Durkheim a Cyrulnik...

É deste temática, não organizada nas salas de clínica, que falo neste livro, fruto de uma longa conversa com a minha orientada e amiga Angélica Espada nos Seminários de Doutoramento no nosso Departamento de Antropologia do ISCTE, em debate com todo o Seminário, e com a imensa, incrível, até sacrificada colaboração da minha discente do ano anterior 2003-2004, Idalina Alves Lopes, futura membro do meu Seminário de Doutoramento em Etnopsicologia da Infância. Idalina aprendeu teoria e factos, fixou o meu português e corrigiu várias das ideias defendidas por mim, defendidas de forma ou pouco claras ou enganadas. Sem elas, este livro não estaria escrito. Três anos de trabalho meu, 20 anos de trabalho de campo, textos sobre a matéria citados no livro e três meses de revisão de todo o texto por Idalina Alves Lopes. Devo a Idalina, praticamente, a feitura do livro, a Angélica as ideias e ao meu discípulo, amigo e orientado para o doutoramento, José Manuel Filipe, uma profunda revisão das ideias. Ele queria mais, mas há limites.

A minha observação desta temática é muito complexa e delicada. Como digo no livro do O Saber Sexual das crianças, tenho tido que me comportar como uma árvore que vê, ouve, cala e responde apenas quando perguntado. E manipular a minha própria ética para não intervir na proibição de factos que, na minha própria cultura, são delitos. Usar os poucos Antropólogos que estudaram a sexualidade das crianças, invocados no livro, e "agarrar-me" a Freud, Charcot, Bion, Melanie Klein, François Dolto e, especialmente á minha interlocutora, Alice Miller. Daniel Sampaio tem sido um excelente crítico ao escrever na Net o que pensa daquilo que eu estudo e Idalina, a mais feroz censora para me dar a entender estas lides. Os membros do meu Seminário de Etnopsicologia da Infância na Licenciatura do ISCTE, ou têm apoiado, os mais novos; ou proporcionado ajuda e ideias com os seus sentimentos do que é escândalo, os mais perto da minha geração.

Como diz Victor Hugo, o livro não é meu, é do povo. Assinei, com Jean Marie Tremblay da Universidade de Quebec, a acta que retira os direitos de autor. O meu amigo, editor e grande animador para esta temática, o Analista João Cabral Fernandes, deve saber o que fazer....

Quanto a mim, com Idalina e Angélica...vamos continuar como companheiros de rota dentro desta temática da qual apenas a prensa fala, com grande escândalo....e sem soluções.

Obrigado a todos pelo empurrão á análise destas ideias, especialmente a pioneira Angélica Espada e a agora, profunda conhecedora, Idalina Alves Lopes que, enquanto fixava o meu livro, lia, aprendia mais do que eu tinha ensinado, incrementou o meu saber e soube corrigir os enganos de entendimento teórico. Devo-lhes uma parte imensa do texto...., especialmente o ânimo e espírito para não travar a escrita e a pesquisa que o apoia.

Raúl Iturra

Natal de 2004

INTRODUÇÃO

Falar de crianças, é uma temática complexa. Primeiro, porque o conceito, ás vezes, é usado como substantivo para definir um comportamento, outras vezes como adjectivo se queremos denegrir indivíduos do nosso grupo social dos quais não gostamos, revelando assim a existência de um pensamento negativo sobre pessoas do nosso grupo social. Por outras palavras: é um conceito manipulavel. A definição de criança pode ser complexa: não é um conceito que faça referência sempre á mesma idade, porque pode-se ser denominado criança ao nascer, nos cronológicos quatro anos, ou, como definem a lei positiva e canónica no caso português pode-se tornar a ser criança por diminuição da capacidade de entender o real ou desenvolvimento da capacidade de usar a razão E, finalmente, o conceito criança muda conforme é empregue nas várias ciências que falam dos mais novos, no senso comum - o mais usado - e na cultura que é referida, é dizer, muda conforme seja permitido agir dentro dum Estado, uma Nação, Etnia, ou Grupo Social tout court. Apenas pode entender-se, neste ponto, que ser criança é estar sujeito a adultos com capacidade de optar e gerir recursos que rendem lucro e mais valia, o cerne da nossa interacção social, a corrida, a concorrência entre seres humanos, ao demonstrar que se sabe mais pela maturidade da capacidade de pensar. A lógica dos mais novos, parece-me ser, como tenho definido em outros textos, uma estrutura de ideias em processo de formação, de acumulação de ideias, experiências e formas de pensar: uma epistemologia em crescimento. A relação adulto - criança começa pela simpatia dos mais velhos ao festejar, com encorajamento e carícias, essa primeira vez que um ser humano pequeno pronuncia um som que parece palavra, ou a começar a distinguir entre os mais próximos que ama e desdenhar esses que aprende a não gostar ou dos que, emotivamente, sabe ter medo e afastar. Todos estes sentimentos, são o objecto científico do meu interesse para analisar, entender uma emotividade em crescimento, uma epistemologia em formação e assim a amar ou colocar a prudente distância. Ou, simplesmente, para a ensinar a reproduzir a nossa cultura, os nossos pensamentos, língua, costumes, amostra de amor permanente para os mais pequenos. Ou, ao contrário, desenvolver um processo educativo que permita a sua liberdade de entender, desenvolver livremente o seu imaginário, criar uma fantasia, entender disciplina, carinho, emotividade sedutora, formas de comportamento para ser pessoa com identidade própria entre tanto ser humano diferente. Comportamento com a criança na base de processos diferenciados de tanta forma diferente de ser que existe, entre tanta cultura de várias gerações em coexistência a partir de contextos históricos diferenciados. Em síntese, a criança é uma entidade desconhecida que pensamos saber orientar porque nasce, ou, melhor dizendo, porque a concebemos na base da paixão. O tal senso comum que referia.

Eu próprio fiquei de boca aberta no dia que fui pai e adorei a minha própria criação, com um certo tremor no meu comportamento ao não saber muito bem como fazer para desenvolver uma capacidade de amar e de entendimento. Cada mês ou ano que passava, era preciso pensar e organizar uma estratégia diferente a ser empregue na minha interacção com eles, a minha cônjuge, os parentes, amigos e vizinhos e comigo próprio, processo de estrutura emotiva e material mutável dia após dia. O trabalho de sermos pais, a ilusão de sermos pais. Não esqueço factos que apoiam esta dificuldade da omnipotência humana, esse agir que nos faz deuses perante os nossos, mas deuses de pés de barro: ás vezes as crianças não queriam almoçar ou jantar por se terem fartado de guloseimas durante o dia. Guloseimas que dão conta do apetite, mas não de alimentação ao longo do dia. Fiquei preocupado. Qual o milagre a aplicar? Solução: íamos juntos as compras, juntos a seleccionar o que íamos comer e, se bolachas, chocolates, rebuçados eram escolhidos, eu lembrava docemente, com palavras simples por causa da idade, que a seguir íamos ter um debate sobre a compra...sem chicotadas, bem entendido, mas á distância que o carinho pela nossa criação, permite e por causa da alimentação. Perante palavras firmes, explicativas e comportamento militante do crescimento livre mas bem nutrido, os meus pequenos decidiam não escolher, começando assim a exercer domínio sobre si, a pensar, a optar. A trocar o prazer efémero por um crescimento sustentado para um futuro de adulto que sabe ser e dizer. Em troca, nós próprios aprendemos a ter prazer ao fazer o nosso pão, batatas esmagadas com azeitonas, pratos de comida decorados com o imaginário, desenhos nas cascas dos ovos, tudo a ser engolido enquanto analisávamos a colaboração ou a preguiça do outro nas artes culinárias, voir, na interacção afectiva entre progenitores, obra humana os pequenos, e temas interessantes para falar, conforme a idade. Os presentes de guloseimas ficaram proibidos de ser aceites, em troca de bolos feitos em casa por todos nós. Eu diria, perante essa queixa que eu sofri também, pura aplicação de senso comum.

É assim que entendemos as crianças? Com esse trabalho de imaginação do adulto, que nem sempre está feliz consigo próprio e os outros por causa da estreita economia que devemos aplicar para viver ou as impaciências amorosas que acontecem dentro de um grupo em permanente movimento de crescimento dentro da História? é dizer, grupo social em permanente mudança emotiva ou abstracta e material ou simbólica. Serão esses mais novos os anjos prometidos e sonhados pela paixão e a cultura social? Anjos silenciosos e submetidos aos seus adultos, que sabem cantar e recitar? Que desenham, gatinham com a baba a escorregar da dentada a nascer? Sermos pais, é brincarmos? Ou ver, ouvir e calar até a necessidade de falar para alimentar o crescimento de filhos e, especialmente, de pais.

São os temas que trato no livro que lê. Mas, trato de duas temáticas, no meu ver, bem mais interessantes. No meu pensamento, para entendermos criança, esse "subentendido", como refiro mais á frente, esse ser que....está ai...anda por aí...berra por aí....é preciso saber ser adulto que, com serenidade e sabedoria saloia ouve, vê, cala e fala quando perguntado,... E nada mais para fazer e ser progenitor. Escolas de pais, até hoje, existem apenas as que frequenta a descendência e só para acompanhar a subordinação dos futuros cidadãos a uma lei que obriga a um comportamento regulamentado pela lei codificada e pelo costume que vive na nossa mente. Sermos pais, é passar os nossos "concebidos" pelo saber social, com carinho e certas palavras estritas de disciplina, com compreensão que não se confessa pelos actos cometidos pelos pequenos, para comentar na mesa de jantar com calma e sinceridade aberta. Sermos pais é uma obrigação que dura apenas os anos que decorrem entre a concepção e o desenvolvimento da capacidade de entender, na inteligência dos mais novos, no seu imaginário jamais recalcado. Até esse dia em que a criança é o adulto que nos substitui enquanto nós ficamos a reorientar a nossa vida de ser pais sem filhos, quer na nossa casa, quer num lar. Nunca em casa deles: é a sua família a ser criada, a crescer, a entender e continuar a nossa obra durante gerações vindouras. Até ao dia em que os nossos pequenos preencherem, adultos anciões, o nosso lugar vago porque o corpo não resiste até á eternidade.

Mas, um segundo ponto me interessa definir e entender: essa descoberta de Sigmund Freud em 1885, sobre a existência de vida libidinosa erótica no corpo e mente das crianças. Como diz um autor moderno, do nosso Século - Boris Cyrulnik, estamos em frente de pequenos patinhos vilãos. Que manipulam, que gritam, que trocam beijinhos por um objecto do seu desejo, que nos fazem correr. E, entre a concepção e o começo do entendimento, que acontece entre nós na estudada e analisada idade dos quatro anos, a paternidade/maternidade transpira, corre, cala, amua, dá carinho, tudo talvez durante o mesmo dia, ou por épocas. Às vezes, especialmente nos Séculos XX e XXI, um dos adultos pensa que este comportamento é por causa do outro cônjuge e vai-se embora e abandona sua ninhada, ás vezes, para sempre. Faltou-lhe saber o que Freud andava a dizer e a desenvolver a partir de 1909[2]. Este não apenas analisa o caso do pequeno Hans, como toma emprestado ou é-lhe dado por Ferenczi o caso da criança australiana Arpád[3], ou ainda a psicanálise de Richard que faz a discípula de Freud, Mélanie Klein, como a de tantos outros que ela relata na sua obra, toda citada dentro deste livro, como a troca de ideias entre Freud e Ferenczi, começada em 1900 e que leva Freud a escrever um livro específico sobre o erotismo das crianças, especialmente sobre aberrações sexuais[4]. O livro analisa o nascimento da libido erótica na criança, o seu desenvolvimento ao longo da infância e as aberrações cometidas por adultos com a dita pequenada. Temática de toda actualidade nestes dias e que me levara a escrever este difícil texto. Difícil, pelo debate entre autores e correntes, especialmente conductistas ou do comportamento, que Malinowski usou em Antropologia, ou de abstracção psicanalítica, a escola de Freud contra a qual Malinowski e outros Antropólogos, se haviam rebelado. Até ao dia de hoje, em que aparece um autor de importância dentro da análises dos símbolos, ideias, conceitos, que pretende, e consegue, converter a pesquisa de Freud sobre a procura do prazer em procura de verdade, e a fugida de Freud de Thanatos, ou á morte, em aceitação da realidade dura e dolorosa que vivemos, a aceitação do sofrimento como maneira de entender a verdade de forma religiosa - religiosa, é dizer, com ideias éticas, rituais, míticas, sem necessidade de uma divindade que intervenha no comportamento, muito embora seja analisada pelos Antropólogos e Terapeutas como forma de estratégia perante o sacrifício que é a vida. Este autor é Wilfred Bion, exaustivamente analisado neste texto.

O texto não é fácil. Freud, Klein, Miller, Bion, Malinowski, Godelier, eu próprio, somos os poucos que dentro de um texto com este objectivo, é possível estudar. Como os casos de Hans, Arpád, Richard e os que eu próprio tenho estudado entre o povo Picunche que analiso no meu trabalho de campo, bem como os estudados dentro da Europa.

É o livro que entrego para o debate entre todos nós e para sabermos, finalmente, que a vida erótica existe desde o primeiro dia de um ser humano, que é um processo em diversos contextos, factos entre nós crime, entre outros rituais. E que muitas de denominadas "birras" das crianças que, conforme Bion, ainda não entraram no desenvolvimento da razão, pelos 4 anos de idade, são devidas a insatisfação sexual, emotiva, de sentimentos da libido. O anjo é preparado pelas Igrejas, porque é preciso tomar conta do facto mais complexo entre nós: o incesto, actividade existente faz séculos e, hoje em dia, analisada e julgada na praça pública...por nós, os encarregados de orientar a vida além do incesto do nosso lar. Sermos pais disciplinadores e educadores, é uma ilusão. Sermos pais atentos aos factos eróticos do nosso lar e especialmente á pedofilia, masturbação, violação, adultério, é, em conjunto com o incesto, o objectivo da paternidade de todo progenitor.

Raúl Iturra, 11 de Setembro de 2004

Primeira Lição

A MATERIALIDADE DOS AFECTOS

As crianças observam-nos. As crianças sabem de nós. As crianças descortinam-nos. Esses pequenos seres entre os 12 meses e os cinco anos, imitam-nos. Procuram em nós uma satisfação sentimental das suas emoções e colmatar os seus desejos de uma resposta simpática no difícil processo de amar. Um processo que requer um parceiro, esse processo de ida e volta, conjugado no verbo amar: de simpatia, de antipatia, com raiva, ou, simplesmente, não amar. Em síntese, uma complexidade entre as relações baseadas nas emoções, nos sentimentos e na intimidade do desejo. é esse descortinar dos nossos afectos que permite aos mais novos aprender a ser adultos, com bem ou mal-estar na cultura, como referia o nosso mestre Freud no seu texto de 1930[5], ao desenhar aberrações sexuais do seu tempo. Os mais novos escrutinam o nosso agir, decidem se é bom ou mau para eles e não vão a votos, é um observar sem democracia. Ditadura dos mais novos que obriga os mais velhos, a um comportamento adequado aos seus sentimentos definidos pela epistemologia cultural, que os mais novos desconhecem. È uma procura de empatia simpática, a mais primária das emoções, referidas no meu livro de 2000 - O saber sexual da infância e no anterior de 1998, Como era quando não era o que sou ou O Crescimento das Crianças, para os quais remeto ao leitor, por falta de espaço. Ditadura, essa, referida ao adulto como uma entidade que ensina, predica, pratica sentimentos agradáveis e é observada com toda a atenção. Observação, capacidade baseada na existência de uma expressão material dentro da qual os sentimentos adquirem uma materialidade que possibilita o descortinar de sentimentos. Materialidade emotiva, como e porquê? A primeira ideia que me ocorre, é a da relação adulto e criança, esse carinho imenso que leva ao contacto físico, no dormir juntos, esse sadio relacionamentos de beijos, abraços, apertos que, eventualmente, poderia levar ao prazer do orgasmo ao mais novo na sua natural procura de afecto. Ou do mais velho, facto delituoso definido pela lei como pedofilia. Esta materialidade também acontece em outras sociedades, tal como a referida pelo antropólogo Maurice Godelier[6] entre os Baruya da Nove Guiné, no seu texto de 1981. Baruya ou etnia que pensa de forma analógica que a reprodução é possível quando acontece nos factos: tem-se sémen se é transferido entre jovens portadores e dado a beber ao pré - púbere, materialmente incutido para a continuação social da vida na História. O jovem Baruya mais velho deve casar com a irmã do iniciado, mulher que passa a ser a mãe dos seus filhos. Esses beijos e abraços entre irmãos de qualquer idade, são denominados na nossa lei europeia delito de incesto, caso acabe, como tenho observado no meu trabalho de campo, em prazer erótico. Prazer que em outras sociedades, não é delito. Refere Bronislaw Malinowski[7], o fundador da Antropologia Social Britânica, no seu texto de 1928, que entre os grupos sociais da Melanésia, não há incesto se acontecerem relações eróticas entre parentes de clãs diferentes: os filhos o são apenas da mãe, e o homem, parceiro da mulher, necessariamente de outro clã. Não existe pai. Porém, não incesto. Para nós, o incesto é punido porque é corrente o seu acontecimento no processo da prolongada permanência sob o mesmo tecto de pessoas de família consanguínea. Ocorre-me também pensar em outra materialidade de afectos descortinados pelas crianças, como a masturbação ou formas de auto erotismo, retiradas de qualquer espécie de código falado em família, notícias comentadas, da catequese e a confissão. Conversas que levam a perguntar se a criança tem "acarinhado as partes proibidas do corpo", ou definições de catecismos anteriores ao actual, sobre debilidade mental consequência do auto erotismo. Costume social que intima a fazer parte do fair-play ou divertimento erótico entre adultos que a criança pode não ver, mas sabe que a porta do quarto, sempre aberta, ocasionalmente se fecha e fica proibido de entrar. Relação sexual íntima que passa a ser social porque aos adultos falam, sem explicar, em conversas de mesa. Diferente das formas referidas por Freud em 1913[8] entre os nativos australianos, ou por Georges Devereux[9]ao falar dos nativos da Europa em 1932 ao compara-los com os Mohave dos EUA em 1961. Ritos organizados por adultos do mesmo sexo, como transferência dos mais novos para uma nova hierarquia social. Baseada, necessariamente, na sexualidade. Conversa ausente da vida familiar europeia. Ou, como Malinowski diz no texto invocado, ao perguntar aos ilhéus do Arquipélago Kiriwina se acontecia fellatio, amor entre o mesmo sexo, relações físicas entre adultos e crianças, os habitantes riram por causa do autor não saber do jogo sexual entre parceiros de diferentes clãs, no primeiro caso, o do carinho procurado entre amigos, no segundo caso, e a iniciação ritual para a vida adulta, no terceiro. Comportamento da prática material de sentimentos que entre todos nós existe e que tem lançado vários Códigos orientadores da conduta sexual, individual e em grupo, como os Dez Mandamentos[10], a Lei Hebraica, as XII Tábuas da Lei Romana, do Código de Justiniano[11] que legislou na Europa entre 527 e 1453 até causarem guerras entre Estados por causa de se avassalar ou não, ao Vaticano. Disputas que levaram ao Direito Canónico a governar Europa, até á separação do Continente entre várias alternativas cristãs para o entendimento do real. Direito, berço da lei civil napoleónica que hoje orienta as nossa vidas. é possível apreciar o elo de toda legislação vigente, no controlo da sexualidade. O processo da sua materialidade não tem pensamento, a paixão carece da racionalidade que a teoria económica desenvolveu recentemente. Ou porque essa racionalidade não prevalece no campo da paixão. A ditadura dos mais novos é necessária para que adultos de emotividade mal desenvolvida, ajustem os seus sentimentos á ética cultural. A geração que substitua procure esse único valor possível: amor oferecido, amor correspondido. Comportamento amadurecido capaz de entender as inúmeras mudanças da expressão material da afectividade na cronologia da vida. A ditadura dos mais novos é o grito de batalha que procura verdade, amor, definições do que não vê e não compreende. A adolescência, essa etapa difícil da vida, procura respostas empáticas e não apenas: "isso não é contigo", ou análises de pais em desesperada procura de Françoise Dolto[12], Alice Miller[13] e Daniel Sampaio[14]. Derradeira lição que recebe um ser humano ao passar da juventude á paternidade. Paternidade que devia conspirar com a infância e escrever o livro da vida que tem por título a materialidade dos afectos.

Segunda Lição

O REAL DOS PAIS: CAIM E ABEL

Durante anos de textos, em todos eles, como ao proferir conferências, costumo dizer que toda a sociedade tem duas culturas, a do adulto e a da criança e que ambas as culturas estão entrelaçadas e que para entender uma, é preciso entender a outra no seu comportamento e na sua epistemologia. Ao escrever este livro as minhas dúvidas fizeram-me pensar outra vez e hoje eu diria que toda sociedade tem adultos e crianças, hierarquizados pela forma de materializar os seus sentimentos em emoções diferentes, como acontece em diferentes culturas em todo o mundo. Por outras palavras, há comportamentos emotivos diferentes nas diferentes cronologias que cruzam um ser humano, há formas de exprimir sentimentos com variações, como uma sonata: allegro, jocosso, minuet, bourrée, dança, contradança, ou serenidade, divertimento, alegria, tristeza, fugir, ser punido, punir, explicar, entender, calcular, pedir, depender. Mas, principalmente, depender: o mais novo, dos cuidados, alimentação, agasalho, vigilância, correcção, carinho, amor, raiva, engano, ensino, formas de se estar juntos enquanto um facto muito importante acontece: a mudança do tempo entre todos os seres humanos: os mais novos crescem, é dizer, aprendem o cálculo das contas da vida, lucro e mais valia, a ganhar autoridade e independência, autonomia, enquanto os mais velhos começam a perder a lembrança, a agilidade das mudanças culturais, até passarem a depender também, do antigo subordinado. é uma dança com duas pontas: a subordinação do mais novo durante um tempo, a subordinação do mais velho, em tempos posteriores, ao seu descendente e antigo subordinado. Há, porém, ascendentes e descendentes ao longo da vida que: ou estão em cantos extremamente diferenciados, com uma supremacia e autoridade absoluta do mais velho, passando pela paridade de actividades, ao ser o mais novo adulto independente e com a sua própria família, até ao dia de velhice da antiga autoridade. Factos que observamos e nos parecem evidentes, factos aos quais nos habituamos. Desenvolve-se em cada cultura um processo de lidar com as diferenças, que muda na História, na genealogia, no contexto económico da cultura, com as descobertas científicas, novas maneiras de tratar o corpo e de saber procurar uma alta auto estima pessoal, a nossa própria mais valia, o nosso próprio objecto do desejo ou de aceitar as infelicidades desenvolvendo o nosso entendimento[15].

Mas, nem todas as culturas ou comportamentos de interacção nas sociedades do mundo regulamentam essa conduta de forma semelhante. Há toda a análise de grupos não europeus ou europeizados mais tarde, tratados como etnias e não como Nação ou Estado, que a Antropologia estuda[16]. A Psicologia é parte desta análise de comportamento e entendimento do comportamento cultural e a Etnopsicologia é uma parte desta ciência, um método para entender uma mente cultural, suas ideias, ritos, mitos, organização social, estrutura de parentesco, processo de interacção social e as suas abstracções em representações simbólicas e semióticas.

Cada grupo social tem uma ideia diferente da serenidade e de paz na interacção entre adultos e crianças, assim como cada grupo social define o que é a vida adulta e a vida da criança, de forma diferente e heterogénea, com uma cronologia de idade que varia conforme os costumes e a lei. Grupos sociais que recebem no seu seio pessoas que analisam a realidade cultural e o seu comportamento a partir da sua própria teoria - como tenho analisado no texto - experimentando retirar das formas normativas dos povos analisados, conceitos que condigam com a teoria europeia, psicanalítica ou comportamental[17]. Em síntese, pode-se dizer que a heterogeneidade de sentimentos e emoções que existem dentro de uma sociedade, são vividas de forma diferente entre os indivíduos de diferentes idades e hierarquias e entre as diferentes culturas. Há os grupos que definem a idade a partir da iminente maturação do indivíduo que entra na época pré-púbere, com a menstruação nas raparigas e o começo de sinais de pêlo púbico nos rapazes, que anuncia a sua necessidade de começar a receber sémen dentro do seu corpo, da maneira analisada por Maurice Godelier[18] para os Baruya da Nova Guiné.

Esta análise de Godelier não apenas refere a fellatio como forma de adquirir sémen transferido de um corpo novo já com ejaculação, mas sem ter tido intimidade com mulheres, dando a beber do seu pénis esse sémen á criança, cuja irmã será a mãe dos seus filhos, muito embora a vida deles continue na casa dos homens apenas com a obrigação de penetrar a mulher de tempo em tempo: existe o mito da vagina dentada, que define o perigo do pénis ser cortado se ficar muito tempo dentro da mulher, ou se a mulher for a própria vagina dentada vestida de mulher. Pensou-se que era ideia de selvagens, até o Antropólogo Robertson Smith[19], ter descoberto que o mito existe também no Continente Europeu, o que justifica que no Velho Continente os coitos sejam rápidos e curtos, sem interessar o orgasmo da mulher que pode procurar o seu erotismo com outros homens ou mulheres, ou pensar que é assim e a sua missão é apenas ter filhos e amamentar[20]. Fora da Europa, é obrigação das mães tratar das crianças até estas serem transferidas para a casa dos homens por um padrinho escolhido pelo pai entre os membros do clã; no Capítulo 4 refiro e lembro que em 1905 e 1913, Freud denominou aberração sexual esta actividade que ficou classificada como neurose de comportamento até aos dias de hoje. A questão é: se uma cultura orienta a sexualidade á maneira da análise de Freud e seus discípulos, como é que a lógica da História, ou Religião, permite no catecismo não apenas a fellatio, bem como a masturbação - primeira forma de entrar na vida erótica da maior parte dos povos - e a homossexualidade? Talvez seja preciso distinguir o que Malinowski faz no seu texto de 1929 ao denominar "punição ás aberrações sexuais" referindo os comportamentos sexuais não heterossexuais - zoofilia - com animais e pessoas do mesmo sexo, que denomina homossexualidade. No entanto, não adscreve nem analisa doença nenhuma a estes comportamentos, porque os Massim não apenas praticam sexualidade "aberrante", os pais permitem essa realidade e é o dever das mães ensinar sedução ás filhas e dos pais formas de penetração aos filhos. Apesar de não serem sempre bem sucedidos, não há punição nem para os ascendentes nem descendentes. O nome do homossexual entre eles é Albino e entende-se que é um comportamento devido a falta de pigmentação quer no corpo, quer nos genitais.[21].

A análise de Freud, incluída na mesma nota de rodapé (5), é mais estrita. Toda a sua teoria sobre a sexualidade está orientada para a definição de um verdadeiro processo reprodutivo. Bem entendido, estas ideias não apenas são retiradas das suas ideias religiosas e de classe social, bem como da teoria que separa entre o que parece ser o que mais orienta eroticamente o ser humano dentro da sua cultura, e as lembranças esquecidas do Id que parecem empurrar e orientar as pessoas para um comportamento não definido por essas normas. O ascetismo freudiano reage contra a descoberta da procura de prazer entre os seres humanos que sabem que vão morrer e, antes de falecer, o erotismo como a alimentação devem ser os mais importantes comportamentos entre todos eles. Comparando a sua teoria de 1905, acrescentada até 1920, com a sua análise estática de 1913, ele separa os seres humanos entre civilizados e selvagens que não têm outra orientação que o seu instinto - o que leva a pensar que não conhecia, apesar das fontes, as normas de vida dos não europeus. A sua teoria da sexualidade de 1905, é uma defesa das formas de vida calmas, serenas, normativas, pacíficas, especialmente ao analisar o comportamento sexual das crianças que podem ser vítimas de atropelos de adultos, sem entender o que é uma emoção libidinosa. A sua teoria de 1913, é a análise de adultos que têm comportamentos de crianças na sua vida sexual, é dizer, não distinguem entre opções, que continuam com a espécie de opções infantis que levam a acudir permanentemente ao totem - ao patrão do clã - para desculpar, com sacrifícios, jejuns e oferendas. Para Freud o acto mais temido pelos povos australianos: o incesto é um conceito que ele deriva da teoria evolutiva que marcava o pensamento desde Darwin. O comportamento sexual de hoje, seria um escândalo permanente para o autor, especialmente pelas mudanças, das denominadas aberrações a comportamentos legais e lícitos, permitidos, excepto em povos dentro dos quais os textos sagrados são cumpridos com rigidez e podem causar psicoses entre os que se separam dessa maneira de ser, definida pelos Muçulmanos, Cristãos Romanos e Israelitas. O livro está destinado a salientar um Pater Famílias interiorizado, incutido, subsumido no consciente e inconsciente de todo indivíduo e que comanda no super ego de toda criança e, mais tarde, do adulto. A teoria Romana das Doze Tábuas, como analiso no Capítulo 2, o Código de Justiniano, os éditos de Constantino, O Direito Canónico e a Catequese, são a base da análise, apesar de ser apenas Bion a reconhecer a base religiosa do comportamento psíquico, consciente ou inconsciente. Este é o interesse de entendermos a teoria psicológica e a compararmos com o nosso próprio comportamento activo e público ou de interacção, como gosto denominar. A autonomia existe até um certo ponto, quer para este autor, quer para Malinowski: a interacção é regulamentada pela procura de felicidade na vida. Felicidade associada a emoções, sentimentos e fornicação ou amor com orgasmo, ou simplesmente, carinho e respeito que, por não serem naturais, passam a ser parte de um sistema que denominamos cultura. Esta é a base da análise de todos os autores que tratam de crianças e adultos das suas emoções e formas de as materializar, no curto espaço de tempo que medeia entre o nascimento e a morte, e a ideia central de toda a teoria cultural.

Não há apenas os casos referidos. Há mais como por exemplo o caso dos Maconde de Moçambique, analisado por Jorge Dias, mas que me foi também relatado por um nacional de Moçambique, do povo Maconde[22]. Parece que a hipótese procurada por Freud e analisada mais á frente é mais universal do que se pensava. émile Durkheim na sua obra de 1912, estuda o ritual Intichiuma da etnia Arunta da Austrália Central[23]. Ritual que ele denomina positivo e que consiste em ensinar aos mais novos, já não crianças, mas sim pré-púberes, a tomar conta do alimento do qual subsistem, larva de lagarto que habita ao pé dos rochedos do deserto, sítio ao qual se dirigem com o sacerdote Aleteucha, em jejum e por vários dias, até aprenderem a subsistência da tribo. Como a análise de Durkheim sobre as formas totémicas de reprodução humana, ao estudar o Totem Exogâmico de Mana, que fixa as regras matrimoniais entre clãs e proíbe o incesto causado por intimidade erótica entre parentes[24], formas de comportamento ensinadas pelo Aleteucha com o consentimento do grupo doméstico e a sua colaboração.

Os rituais de iniciação são um processo central dentro da vida das etnias. No caso Maconde, as raparigas são transferidas para uma casa de mulheres, dentro da qual as mais velhas e não parentes ensinam formas de fornicação, cujo primeiro objectivo é agradar ao homem, para o conquistar, seduzir, tê-lo mais vezes com ela, e assim assegurar o nascimento de novos seres humanos. Especialistas do grupo abrem os lábios da vagina com uma incisão para facilitar a penetração do homem e a entrada do esperma no denominado ninho da vagina. Como acontece no mito do Eufuko entre as raparigas Handa de Angola, relatado por Rosa Maria Melo[25] na sua tese de doutoramento no ISCTE. Entre os Maconde, os rapazes são retirados na época da puberdade para a casa dos homens e ensinados por jovens e outros membros clãnicos, a masturbar-se e como entrar no corpo duma mulher, para o que é usada a narração oral ou desenhos ou, ainda, o recto de um homem maior. O objectivo é sempre a reprodução, biológica e social como acontece de forma mais complexa, pelo detalhe da análise, entre os Baruya da Nova Guiné, no momento de começar a criar sémen, hierarquia e relações parentais entre os membros da tribo sempre com a ideia da relação exogâmica que permite não apenas a circulação de pessoas, bem como a circulação dos bens, como analisa em detalhe Malinowski no seu texto de 1926. Detalhe que destes grupos salienta, a união familiar, definida como crianças que são filhos de todos, todos tomam conta de cada pequeno como se o tivessem parido ou engendrado[26]. Uma paternidade amável, amante e amada, como refere a nota de rodapé desta página. Uma maternidade cuidada, descrita quer por Malinowski na obra citada e nas outras analisadas no texto, quer por Sir Raymond Firth[27], quer ainda por Sir Archibald Reginald Radcliffe-Brown[28]: amamentam, tomam conta, ajudam, colaboram nos trabalhos umas das outras e, conforme a análise de Firth, a mãe tem um papel de carinho, mas económico principalmente: é quem dá a terra aos filhos que nascem do seu matrimónio num outro grupo familiar ou Hapu, trabalha de forma igual ao marido, seja o matrimónio monogâmico ou poligâmico. Homens e mulheres trabalham juntos e o cuidado dos descendentes está dividido entre a época da amamentação do mais novo e o aprender a desembrulhar-se entre os membros da família. O Hapu - que são normalmente muitos, é praticamente uma aldeia, até á época de trabalhar de forma autónoma, época na qual torna ao Hapu da mãe, caso o matrimónio tenha sido patrilinear, ou fica no Hapu maternal, caso o matrimónio seja matrilinear. Diferente do caso analisado por Malinowski na Melanésia, é o estudado por Radcliffe-Brown na África do Sul e na Ilha de Tonga na Melanésia. Analisa os Ba-Thonga, os Nama e os Tongan e encontra uma paternidade inexistente, razão pela qual o seu primeiro texto é denominado "O irmão da mãe" ou, de facto, The Mother"s Brother in South Africa[29]. A realidade da paternidade, como Malinowski analisa em vários textos estudados no Capítulo IV deste livro, é inexistente. Há, sim, uma genealogia clãnica -totémica que delimita as possibilidades de reprodução de forma exogâmica, como referi. O papel da mãe passa a ter uma importância emotiva e económica muito marcada. Apesar da genealogia ser matrilinear, a autoridade é patriarcal, mas pela linha do irmão da mãe. Muito embora seja o homem quem faz a criança no corpo da mulher, crianças que, na idade da puberdade vão circular para a casa do irmão da mãe - tal e qual os filhos da mulher do irmão vão para a casa do irmão desta, a autoridade, enquanto o grupo é de procriação e trabalho é a do homem da mulher, quero dizer é patriarcal, apesar de este ter que obedecer, por sua vez, ás instruções do irmão da mãe, autoridade suprema dentro do seu grupo doméstico. Como referi num outro texto meu, não há Baloma nem reprodução para uma mulher que não tenha irmãos, como analiso mais á frente. Este facto, que o autor vê acontecer entre os povos estudados na África do Sul, que inclui os Banto, acontece também noutros sítios do mundo não Europeu. A realidade dos pais, podia dizer neste parágrafo, é heterogénea e múltipla. No caso dos Maori, há tantos pais como consanguíneos colaterais e ascendentes tenha o homem da casa, e tantas mães como consanguíneos do mesmo tipo tenha a mãe; e cada um deles, pelo facto de viverem muito unidos, exerce as funções que nós denominamos da paternidade dele ou dela. O próprio comentário do autor refere a impossibilidade de aplicar o nosso sistema de parentesco entre grupos baseados na concentração da família e não na sua dispersão. Não apenas porque no Hapu podem morar mais do que cem pessoas, todas elas parentes e possibilitadas de celebrar matrimónio - excepto se são filhos dos mesmos pais, mas se um dos ascendentes é diferente, já a relação é possível. Porque o problema não está centrado na ideia de incesto que Malinowski analisa ao debater com Freud e Ernest Jones: estes últimos reclamam a universalidade do tabu do incesto. O próprio Radcliffe - Brown dedica um opúsculo ao conceito Polinésio de tabu ou proibição, ao referir proibições além das matrimoniais, como refere no texto, página 13, como evitar o nome da pessoa que não é apreciada. O conceito tapu ou tabu para nós, é a infracção que denominamos pecado na linguagem religiosa que abrange a palavra, como por exemplo, tratar das crianças e as ensinar, como comenta ao falar de Frazer[30]. A universalidade para Radcliffe-Brown não está no facto da relação sexual, está na proibição de trespassar o que o sistema religioso define como pecado. Ideia muito próxima de Freud, Charcot e outros, mas bastante longínqua das análises de Malinowski, cujo interesse é entender o dever de exogâmia entre os Massim, não por pecado. Sejamos justos com o texto sobre repressão sexual de Malinowski, que não acertei no Capítulo 4: o incesto é apenas entre pessoas que têm relações íntimas endogâmicas porque os bens não circulam, ficam parados dentro do mesmo grupo que não vê incrementar a sua riqueza ao estabelecer alianças com outros indivíduos cuja obrigação é auxiliar, trocar, emprestar, e, de forma mais importante, incrementar uma população em permanente risco de extinção por causa das tecnologias fisiológicas, bem como pela crença na reencarnação. As ideias de Freud especialmente e mais tarde as de Lacan, baseiam-se na genética do Século XIX; hoje em dia, muito embora o incesto seja um delito para acabar e nasça a legislação que permite a união entre irmãos nos Países do Norte de União Europeia - e, de facto, em qualquer um sítio da terra - as de Malinowski estão baseadas na ideia por ele sempre negada da economia: circular pessoas para outras terras, é circular Direito de Propriedade. O incesto [...] esse problema da realidade dos pais de hoje em dia, que lutam para o evitar mas nem sempre com muito sucesso, até entre ascendentes e descendentes, como comento no Capítulo respectivo e ao longo de todo o livro. Aliás, os pais de hoje, para entrar na realidade, devem entender que há sucessivas levas de incesto permitido e incesto proibido[31]. Como sabemos, a relação de incesto é punida entre nós com prisão, para evitar o que se denomina abuso sexual intra familiar. Aliás, conforme a pesquisa net, parece não ter havido movimento nenhum em procura da relação incesto: há outras emotividades em jogo, especialmente a hierarquia familiar, a autoridade que orienta a transferência de bens e saberes, a abertura a interacção social e outras actividades. Muito embora, o incesto tenha sido, e ainda seja uma forma de relação que conserva o símbolo do poder, não apenas entre os sabidos Inca e Faraós, bem como em grupos aldeãos do Egipto actual, como diz o recentemente desaparecido (12 de Março 2004) Historiador Britânico Keith Hopkins[32]. O incesto para a análise de Malinowski é um complexo familiar e não pessoal: é a batalha entre o direito paternal que orienta o nosso comportamento, e o direito maternal que orienta a exogâmia entre os Massim que estuda para definir o problema. De resto, mais á frente trato do assunto.

Contudo, não é do incesto que queria falar. é apenas da realidade com que se confrontam os pais, onde figuram abusos sexuais dentro da família, violações, pedofilia, incesto, adultério, violência física, abandono de pais e filhos enquanto pai e mãe devem trabalhar. Assunto de ocorrência que transcende a privacidade quando se fala das relações do lar fora de casa, apesar da proibição familiar ou da vergonha que pode acontecer entre os outros membros do grupo social pelo escândalo causado quando o grupo familiar não se comporta como é esperado. Porque, de facto, estas comparações feitas entre comportamentos paternais entre outros grupos, esse romance incrível que aparece na história dos etnógrafos que vão visitar grupos alheios, pode até não ser uma verdade. Mas, pelo menos, é o que a mente do investigador foi capaz de apreciar a partir do modelo usado para analisar a realidade desses pais. Uma mente, como denomino nos meus textos ao pensamento da cultura, que varia conforme o seu próprio contexto pessoal, histórico, experiência de vida, modelo que usa e, especialmente, a cultura á qual pertence. O caso mais típico que me lembre, é o de Meyer Fortes. Passeava pela aldeia Lo-Wiili na qual trabalhava, do grupo Tallensi da antiga Costa de Ouro, hoje Ghana, enquanto o chefe de aldeia, avô, relatava um caso de incesto familiar perante a sua neta de cinco anos, colada á sua mão. Meyer, esse Senhor de África do Sul, expulso após ser encarcerado num campo de concentração por defender a igualdade, teve a gentileza de dizer ao seu amigo se era conveniente falar assim em frente da sua neta. Para Meyer, o incesto era um delito e, como homem religioso, um pecado; para o Lo-Wiili era um facto que acontecia: a criança nascida do incesto era reclassificada na família da mãe, passava a ter o sítio da mãe, era a sua irmã e não havia divindade a punir o facto. A divindade é, entre eles, para orientar e dizer o que deve ser o futuro, com ou sem azar. Pelo que a resposta foi simples: "Porquê? Não é bom que ela saiba o que acontece para depois lembrar e guardar na memória o que acontece na aldeia? Ela não fica mal, estes meios-irmãos são de permanente ocorrência entre nós e é melhor saber a nossa genealogia"[33]. Meyer Fortes, antropólogo, psicólogo, educador, ficou sem palavras e calou, mas aprendeu e ajudou, junto com o seu discípulo Jack Goody, a organizar The People"s Party, partido a ganhar a independência do Ghana nos anos 40, a seguir á II Guerra Mundial do Século XX. Como o próprio Jack analisa nos seus textos sobre estrutura social e politica dos Lo-Dagaaba, clã dos Tallensi, as suas formas de organizar o governo e a suas relações parentais, em conjunto com formas de aprendizagem de leitura e escrita ocidental - as que existiam eram formas e notas de tipo local, entendidas apenas pelos grupos, o que não facilitava a sua união, como a escrita denominada universal ou árabe, tem conseguido no meio dos povos do mundo, tarefa á qual Jack Goody se dedicou como membro do Governo Britânico na Colónia da Costa de Ouro, a seguir á sua libertação dos campos de concentração alemães, que lhe ensinaram muito método de observação participante e muitas formas de interacção social, nem sempre amáveis ou em favor do prisioneiro. Refiro este facto, por serem, Meyer Fortes e Jack Goody os que desde a Grã-bretanha me resgataram também de um campo de concentração fascista, como o deles. Os textos importantes de Jack para este debate estão em nota de rodapé[34].

E a nossa realidade, orientada pela ética das relações? Bem diz um membro do meu seminário de doutorandos que há várias ideias que levam ao entendimento social da criança, antes de ser passada pelo crivo da terapia, psicanálise, entendimento normal do inconsciente e observação punida do consciente. Ideias retiradas do quotidiano que nos governa.

Não é que todo o dito até este parágrafo não pertença á nossa cultura e ao nosso modo de ser, pensar, sentir. Fala-se imenso do mundo globalizado, pelo que não é possível abandonar a ideia da influência em nós, dos grupos sintetizados por mim até esta página e desenvolvidos de forma prudente e sintética, nas seguintes. O mundo é apenas um e a dita globalização não é apenas de economias, mas também de emoções deveres e pensamentos. Pelo menos, Tony Giddens fala assim no seu texto sobre essa Terceira via[35]: como ultrapassar as desigualdades económicas dos diversos países do mundo, por meio de estratégias de organização estatal, politica e económica e organizar o mundo em apenas uma forma de comportamento quanto á manipulação de recursos, como comento no meu livro sobre reciprocidade e mais valia, no prelo. é parte do real dos pais preparar suas crianças na ideia de interagir com grupos além fronteiras, classe social e género, para poder ensinar a essa criançada as formas de interacção entre grupos sociais tão diferentes. Talvez os Muçulmanos Árabes, Xiitas e Sunitas do Paquistão, os Palestinianos e Israelitas da Faixa de Gaza, não tenham a paciência para se juntarem, pelo menos os seus maiores. é dever dos membros destes diferentes grupos da maior religião do mundo, ensinar a diferença teórica e teológica, os planos políticos que fazem dos Sunitas grupos Talismã para a guerra, políticas de investimento que cada grupo tem, o que os obriga a manter uma distância entre si, incluindo disputas de território sobre bases históricas, lei e hierarquia estatal. Tal e qual como acontece entre Cristãos Romanos, Cristãos Ortodoxos Russos, Cristãos Arménios, Cristãos Curdos do Líbano, Ortodoxos Gregos, Luteranos, Calvinistas, Anglicanos e outros grupos da mesma religião, que mal se entendem ou conhecem uns aos outros. é histórica a ideia de dividir o mundo do Século XV em dois grupos, conforme quem seja, assim fala: os Romanos englobavam tudo o que não estava com eles, no conceito Protestante, enquanto os outros denominavam os Romanos de Imperialistas. Nem falo da diferença entre Benfica e Sporting e os debates que causam. Muito mais relevante que esse é o caso Casa Pia, e a pedofilia que tem acontecido, dizem, desde há vinte anos. Mas o que o senso comum nos leva a pensar e a saber é que os mais velhos procuram crianças para prazer físico dentro da linha definida por Charcot, Freud, Klein, Miller, Winnicott e outros que, tal como eu nos meus textos, representamos uma análise e um grito de protesto, um levantamento do protesto queria dizer, dando voz aos mais novos, que não têm epistemologia adequada para se defenderem dos abusos dos adultos. Levantamento de protesto perante as autoridades e os pais que não tiveram atenção com o que acontecia com as suas crianças

Quais destas ideias são as que os pais, na vida real, devem ensinar ao seu rebento? Será pensar antes de julgar, procurar antecedentes e factos, como na pesquisa que tem sido feita e que me tem levado a mim e a um grupo a entender os comportamentos eróticos e dar a voz aos pequenos para os pais entenderem que sentem desejo desde a nascença? Será que os pais, na vida real, debatem com os seus filhos o que acontece no mundo, com a dúvida natural que exprimem de não estarem certos sobre se deve ganhar o defensor da criança denominada abusada, ou se na circulação da criança há uma vantagem para a sua família, quanto ao dinheiro que ganham ao prostituir os mais novos? Freud, como Malinowski, ao falarem de Aberração Sexual, definem o conceito e não adjectivam os factos. Há a ética emotiva que pode fazer pensar que as fellatios referidas por mim são abusos de poder sobre as crianças. O pensamento contrário nunca tem sido ouvido por mim: se a criança gosta ou não da relação erótica com um adulto. No amamentar, por exemplo, estabelece-se, sabemos hoje, uma luta entre um embrião e um adulto que, sem saber, lhe está a tirar o seu alimento, quando o pai penetra a mãe grávida, de um ser humano de três meses. Até onde a rapariga deve ouvir dos seus pais esta realidade e qual a cronologia adequada para saber que amar é também fornicar? Ou, como entender que o conceito adultério não é apenas um facto criminoso, bem como uma rebelião maior do bebé dentro da mulher por ter entrado no liquido amniótico uma química desconhecida para quem não tem capacidade de entendimento, mas sim sempre muita fome e come pela passagem passiva de líquido da mãe ao bebé, por meio do cordão umbilical? Porque, como diz Malinowski nos Argonautas, ou Godelier para os Baruya, ou Iturra ao analisar os Picunche, não há relação carnal entre progenitores enquanto dura a gravidez? O motivo de tanta mulher a viver com ou o marido, se é Maori, ou o homem da mãe se são Melanésicos ou de Samoa, Silva Pereira nos Mapuche Rauco, não tem relação, como relatam pessoalmente os Hugh-Jones, meus colegas e amigos de Cambridge, para os Barasana da Amazónia Colombiana, se não é para evitar termos adultos de mau humor no crescimento, a seguir a luta com o mundo desde o ventre materno? Qual a opinião sobre incesto, a seguir á morte em Março de Keith Hopkins, ou o silêncio da televisão portuguesa sobre a minha defesa da sua existência em sítios de Portugal? O comportamento humano, a sua relação com a sexualidade, é apresentado como um romance dentro do lar e a intimidade, a libido dos pais, um segredo de portas fechadas ou incontinência enquanto se pensa que a criança dorme. Como mais uma narrativa desse outro meu amigo Christopher Hann, quem devia dormir na única cama dos camponeses polacos, por ordem de hierarquia: os pais numa ponta, a carreira de filhos a seguir e, no fim, o meu amigo, hoje catedrático de Antropologia na Universidade de Bona na Alemanha.

Um número inacreditável de questões brota na minha mente, ao pensar apenas na temática. A análise de Etnopsicologia da Infância, como diz Leopold Szondi na sua obra, trata de entender os elementos da cultura por meio dos quais a realidade é impulsionada - fala de pulsões. Mais um Húngaro a contribuir para o entendimento do comportamento das crianças por parte dos adultos e, especialmente dos eruditos, para desenvolver um comportamento que não retire esse novo ser da proximidade dos seus progenitores. Uma modalidade de entendimento usada por émile Durkheim, na base de testes, organizados pelo mal conhecido autor[36], salvo de um campo de concentração e que até aos 90 anos trabalhou com crianças. Este teste criado por ele foi usado e impulsionado por émile Durkheim para o seu texto sobre O Suicídio. Trata o autor de explicar, a seguir aos seus testes em crianças, que o introspectivo das pulsões nessa idade, não é apenas a transferência de factos do exterior para o interior mas, sim, uma interpretação do real que a criança é capaz de desenvolver. Tal como Durkheim prova no seu estudo do suicídio, denominado por ele anômico, causado pelo sentimento do delírio de perseguição que o baixo salário provoca no adulto e na sua família. "Le grand mérite du test de Szondi, c'est á nos yeux qu'il souléve des questions pertinentes davantage qu'il n'apporte de réponses "malheureuses" - "La réponse est le malheur de la question", comme l'a écrit Maurice BLANCHOT dans "L'Entretien infini" - dans le sens oú elles ferment les possibilités de dialogue. 

La structure du moi "primitif" peut trouver un éclairage utile á la lumiére de la théorie kleinienne du fonctionnement psychique.

On sait que Mélanie KLEIN confére un poids particulier au second dualisme pulsionnel de FREUD (Eros-Thanatos) et au mécanisme de clivage en tant qu'il aboutit á distinguer radicalement le bon (objet) du mauvais, premiers représentants représentations des pulsions érotiques et thanatiques comprises dans le sens strict de l'acception freudienne: est érotique ce qui lie, unit et rassemble, est thanatique ce qui sépare, détruit et morcelle.

Mélanie KLEIN prolonge et enrichit les développements de la pensée freudienne inaugurés avec l'introduction de la pulsion de mort dans "Au-delá du principe de plaisir".[37]

Em conjunto com os outros autores apresentados, Szondi é capaz de entrar pela capacidade de pensamento das crianças e as suas reacções perante o mundo que faz parte delas. O contexto da criança é salientado pelo autor, contexto que na realidade não é considerado pelos pais, o que permite, como diz em parte da sua obra, a existência de adultos narcísicos, psicóticos, ou, mais delicado ainda, omnipotentes como ele e Klein primeiro e Bion a seguir tinham estudado. Ser divindade passou a ser um dos problemas das crianças - já nem falo dos adolescentes que Daniel Sampaio analisa - que, nas minhas próprias palavras, criam aos pais um problema de não saber como agir. As crianças têm a pulsão da morte junto á da felicidade, mas a realidade, como relatava na sua analise o pequeno Richard com Mélanie Klein e Hans com Freud, eram e são capazes de não ouvir os seus pais, os seus progenitores ou adultos que, para eles, devem desaparecer das suas vidas, como refiro no capítulo 4 E, também nas minhas palavras, a partir da minha observação de campo, desejam ver desaparecer os seus adultos. Já longe da ideia de édipo, pelo problema de globalização que nasce em 1775, Adam Smith ao lançar essa ideia da divisão do trabalho e que toda a população deve participar de forma autónoma e individual na riqueza da nação. Sabemos, e tenho explicado em outros textos, que Durkheim rebate a ideia em 1893, porque a divisão do trabalho é social, não apenas porque um faz o que o outro não sabe, bem como porque depende das capacidades, habilitações, formas da economia dentro da vida política e social, que permite ás crianças, ultrapassar os ciúmes Edipianos, entrar nos ciúmes da concorrência, do consumo, das formas de vestir, do gasto para além das possibilidades e recursos. Situação que Szas tinha previsto com os seus estudos de teste e que Durkheim desenvolve para adultos e eruditos, em toda a sua obra, incluindo a que ajuda Lenine a derrubar o Império do Czar. Esta análise passa pela de Piaget, que experimenta apenas saber o conhecimento dos pequenos, porque entronca com a política contextual do objectivo de vida e de auto-estima. Se o leitor passar os olhos outra vez pelo texto que acabo de citar, será capaz de entender que a criançada coloca os adultos contra a parede: tenho estes meios, tenho este desejo, o meu grupo gasta em corridas, há quem passe droga e dinheiro, a minha inteligência e o meu corpo vão com eles. As pulsões tanáticas estão presentes dentro de um mundo que está sempre em guerra ou em debate entre classes sociais, pelo que procuram refúgio dentro das pulsões eróticas, organizadas dentro do comércio globalizado, facilitado pela queda do simbolismo que ajuda a entender hierarquias e formas de pensamentos que alimentam o saber erudito. A criança, desde a idade denominada do fim de édipo, acaba por entrar numa corrida que pára na falta de simpatia solidária entre seres humanos.

Bem entendido, não tenho percentagens para basear a minha hipótese, mas tenho essa percentagem do método qualitativo do trabalho de campo, da observação participante retirada da vida com gente miúda faz já mais de 25 anos. Eis porque as análises de Durkheim e de Zsas despertam em mim um grande entusiasmo. é impossível não juntar a estes autores as ideias de Bion sobre aceitar a dor para desenvolver o entendimento. Quase como uma ideia religiosa de mim para com os outros, dentro da qual o símbolo exogâmico acaba por ter um valor que me leva a afirmar, sem hesitação, que o objectivo da interacção social e da acção do inconsciente é não ferir bebés com adultérios, nem aceitar dois factos que acontecem facilmente nos lares: a pedofilia e o incesto. As etnias que tenho analisado têm resolvido o caso com rituais clãnicos e mitologia que apura a forma de agir.

Não é outra, para nós próprios, que o mito da Génese, Capitulo 4, sobre Caim e Abel[38]. é apenas um exemplo de várias actividades: para começar, da existência de uma divindade que sabe punir conforme entende, essa que Feuerbach tinha analisado em 1841 e da qual quer Marx, quer Freud, retiram a teoria da alienação, como analiso mais á frente e noutros textos. E, em segundo lugar, estamos a falar duma actividade denominada sacrifício, oferenda, que significa derramar sangue, esse sangue derramado que faz parte do acreditar nas normas culturais dos cristãos, a maior parte da população que nos interessa para este texto, ideia de sangue que retira a ideia de pecado e de crime e facilita a corrida actual entre Eros e Thanatos, num processo religioso civil, sem importar se vive ou morre, se mata, rouba ou engana, como fez Caim na sua oferenda: retira bens não adequados para tamanha magnificência, como uma divindade sem nome, que tinha punido os seus pais. Não há o problema de édipo no caso do mito, mas sim de falta de cumprimento da lei de respeito á consanguinidade e ao parentesco. Caim é um Thanatos que Freud não usou, muito embora tenha usado o Tora em grande parte da sua teoria, como Klein e Bion os Evangelhos. No mito referido, Abel aparece apenas num verso, pelo facto de a sua conduta ser normal, a que corresponde: entregar o melhor do seu gado e sacrificá-lo, como acontece em todas as Bíblias, num prenúncio da morte de um outro mito ainda, Jesus, que é morto como cordeiro e é usado no caso pelos terapeutas franceses, como analiso mais á frente: um anti - édipo que ama o pai que o mata, mito acreditado por milhares de pessoas e comemorado, especialmente entre nós, todos os dias. Vivemos, como se depreende da Génese, dentro da sociedade do sangue, do sacrifício, da entrega, não para entender, mas para atingir á Massim, uma outra vida e fugir do conhecido Thanatos. Caim é o melhor exemplo do caso. O contexto cultural é a forma de entender o pensamento, desde que se leiam os textos, se comemore o ritual como tantos antropólogos fazem, se entendam os símbolos e os mitos sejam respeitados dentro da verdade que levam em si, como esta do pecado e do bem e do mal de Caim e Abel, útil para analisar o saber das crianças e o seu imaginário sem os pais terem que entrar pelas raivas e pelas formas de punição que Evangelhos e Bíblia definem com detalhe. é suficiente observar Fátima em Portugal e a Faixa de Gaza no Oriente, para sabermos que é muito diferente dos Baruya, a nossa relação de resiliência, definida por Boris Cyrulnik - como analiso no Capítulo 2-, para desenvolver o amor ás crianças que são "pequenos patos canalhas", e também para os pais entenderem o seu dever de amar com respeito esse bebé chorão que quase não lhe permite trabalhar no dia seguinte. Há uma excelente contradição entre o dever de amar e o de ser agasalho da descendência: na nossa sociedade, como no Jardim do Edén e fora do mesmo ainda mais, não é permitida essa definida capacidade de entender, que é denominada inaudita capacidade de amar apesar do peso da criança e da sua educação como filho e ser humano

É o mito que faz lembrar essa descendência de Bion, incrustada em Cyrulnik, analisada no Capítulo 2, de forma sintética: a resiliência precisa de muita análise e trabalho de campo com bebés e com os seus progenitores. E, da parte dos pais na realidade, de uma grande paciência para entender o produto da sua paixão e saber que um dia cresce e acaba por não ser a filiação á qual nos tínhamos habituado, como comento no Capítulo 3. Os filhos largam os pais e estes, devem ver, ouvir e calar e permitir que a geração seguinte, seja capaz de melhorar essa relação tão complexa, essa de sermos pais, sem entrarmos pelas ilusões, mas dando força ao real.

Normalmente, pensa-se que o que interessa para a Etnopsicologia é entender porque os pequenos não devem chorar, uma minha orientada de tese de doutoramento colocou-me no Seminário quatro questões que me fizeram pensar: a primeira uma frase já consagrada: "os meninos não choram", primeira ideia da repressão das emoções que sofre parte de humanidade que nos acompanha na vida. O pranto é o resultado dos sentimentos feridos ou frustrados e cura toda e qualquer pessoa que faz luto por uma actividade mal construída, ou, pior ainda, pela perca de um ser humano que ama. A seguir, a repressão dos pais na realidade, está consagrada ainda numa outra frase: "se te portas mal, apanhas". Por outras palavras, há uma vara de medida do que se deve e não deve fazer que, na sua sabedoria infinita, omnipotente, os progenitores conhecem: é o facto de se ser bem visto porque a nossa descendência é amável, gentil, atenciosa....conceitos distantes de uma epistemologia a crescer. Mas, para os pais, adultos que optam - e nem sempre bem - os seus mais novos devem fazer como eles e assim ganham a resiliência, moeda grátis, e não trinta denários de prata, sempre ao pé do pequeno que já sofre imensa raiva e a exprime á sua maneira. Um adulto tem uma ironia simpática suficiente para aceitar pulsões que podem ferir o ego e os outros. Esse outro tão importante de analisar na Antropologia, que converte a Etnopsicologia numa ciência de direito próprio, sem um método previsto para classificar o comportamento, como faz a psiquiatria. Daí que tenha escolhido Etnopsicologia: não tem clínica, observa e aprende e abstrai para propor mais compreensão na relação adulto criança. Como essa outra frase dita, a terceira, que pretende regulamentar a conduta rebaixando os pequenos: "meninos que não lavam as mãos são porcos", é dizer, uma metáfora dura, suja, que dita com zanga, acaba por deixar cair o pequeno dentro de uma grande melancolia a ser paga nas depressões do adulto. E digo assim tão forte, porque estas frases, com punições e gritos, são parte do quotidiano da criança que apenas deseja fugir dos pais: um édipo social, com libido emotiva ferida, a ser guardada para a vida adulta, queira ou não o indivíduo. Como a outra fatalidade que indica o desapreço de quem apenas sabe procurar carinho: "já viste esse menino tão sossegado e tu tão irrequieto, que mete nojo? Não sabes fazer como ele"?

Grande dor que nos acompanha desde a concepção até á morte e que tento analisar nas poucas páginas que hoje em dia uma editora permite.

Quais as crianças? Estão definidas mais em frente: essas que são pensadas, a mãe engravida e até os 4 anos, não sabem muito bem por onde andam, excepto que têm um conjunto de inimigos em casa, e talvez fora dela, se o seu alimento e carinho primário lhes forem retirados.

Terceira Lição

A ILUSÃO DE SERMOS PAIS

1.Sermos pais.

Devo reconhecer que não sei se este deve ser o primeiro ponto da matéria a tratar, esta de se ser autor da vida biológica, emotiva e intelectual de uma nova geração. Preciso reconhecer que o conceito de paternidade, me tem sido impingido pela cultura na qual vivo, a romana ocidental. Bem como, gosto dizer que paternidade, a meu ver, inclui os dois géneros, como hoje em dia se define. Definição criada na luta dos finais do Século XX e estes anos do Século XXI, começada com a luta denominada Sufragista de finais do Século XIX. épocas, todas elas, para definir uma igualdade entre seres humanos de genitais diferentes: falo e vagina, mamas que oferecem leite e amamentam, bem como mamas estéreis para criar. Talvez, ambas, para exibir de forma erótica e seduzir uma ou outra pessoa - do mesmo sexo ou de sexo diferente.

Complexo. é-me difícil falar da relação paternidade - filiação, por terem mudado dentro da nossa cultura as referências ao acasalamento. Mudança feita em curto espaço de tempo, em Portugal e em toda a Europa. Aliás, alguns países europeus definem a paternidade de forma diferente do nosso: os denominados países nórdicos como a Noruega, a Dinamarca, a Holanda, para casos determinados a Grã-bretanha, ou o Estado Catalão do Reino da Espanha, definem o acasalamento como a união entre duas pessoas capazes de organizar uma descendência, adoptiva ou descendente consanguíneo de um dos membros do casal.

Porque sermos pais permite, hoje em dia, uma outra actividade, já universalizada, o denominado divórcio, ou dissolução do contrato entre um homem e uma mulher que a nossa lei refere como "nubentes" ou pessoas comprometidas para casar[39]. Nubente é um conceito do primeiro Código Civil Português e foi ficando no que eu gosto denominar, a alergia ao saber comum que os eruditos têm do povo. Porque de facto, o conceito nubente, mencionado já nos Evangelhos cristãos, foi adoptado pelo Direito Canónico e pela lei civil e significa ser livre[40] para contrair compromisso de casamento, como manda o Artigo 1591 do Código Civil Português. Por outras palavras, as ideias religiosas desde a antiguidade da nossa era prescreviam liberdade para se ser pai. E a Concordata assinada em 1945 entre os estados Vaticano e Português e ratificada por convénio em 1995, dentro da lei positiva está presente no Código Civil Português, nomeadamente no seu Livro IV, Título II, Capítulo I, "Modalidades de Casamento", entre as quais se legisla o Matrimónio Católico[41].

Sermos pais acaba por ser uma definição escrita de costumes adquiridos ao longo do tempo. Até ao ponto de existir um conjunto de regras que definem o comportamento de vai e vem das emoções, do carinho, do cuidado, do olhar, do sentimento gratuito e recíproco que tinha na minha cabeça no minuto de pensar essa frase, já para mim, conceito. Sermos pais. Como diz Eduardo Sá no seu texto de 2003, ao falar de resiliência, conceito de Boris Cyrulnik[42], a ser definido mais á frente: "...o bebé nasce na cabeça dos pais..."[43]. Esta frase, retirada do contexto mencionado em nota de rodapé, diz respeito á minha procura emotiva da criança e por observar que o adulto entende que esse ser é resultado do amor, do desejo que nasce dos olhos, desse mirar sem pestanejar, profundo, calmo, seco, terno, da profundeza do amor que nasce da entrega de um ao outro - distante dos comentários da praça pública, esse fazer amor por erotismo. O erotismo permite sermos pais? é a frase que cunhei para um texto meu, como subtítulo[44]. Ou ainda, o poema de paternidade sabida por se ser pai, não por ser erudito, cuja quarta versão revista fala de forma tão determinada acerca da necessidade dos filhos para os pais crescerem[45]. Aí é preciso distinguir entre a paternidade e o ser humano adulto que o Código Civil, o de Direito Canónico, o Catecismo de Wojtila, definem. Na página 39, o capítulo praticamente abre com a ideia definida pelo autor: "Talvez a primeira função de uma pessoa seja ser mãe"[46]. O meu comentário é quase autobiográfico: na altura da minha primeira paternidade -maternidade, tinha "proibido " em casa os cor-de-rosa, estava certo de o meu primeiro descendente ser um rapaz e os pequenos, por costume, vestiam de branco ou azul faz já trinta anos...Quando vi sair a pequena que adoro, não precisei esperar ver os genitais, era tal e qual a minha sogra...e assim ficou linda até ao dia de hoje, como a sua mãe. Donde, sermos pais, é o conceito de ternura para com esse ser pequeno, de pés descalços, indefeso se não for pelos cuidados de ser amamentado pela mãe na companhia silenciosa e de mãos dadas, do pai. Essa ternura que nasceu na cabeça, das brincadeiras românticas da intimidade a dois, de se passar a ser um á espera do outro e continuar a ser esse um, até ao suspiro final que descansa a atenção de saber que de dois, há um no minuto da concepção ou no minuto de alimentar o desejo da paixão que permite solidificar o casal - com ou sem matrimónio - salvar-se dos conceitos de édipo impingidos entre nós desde 1906, de não sofrer por sentimentos nunca acordados do incesto, como Françoise Héritier, Boris Cyrulnik e outros, nos lembram em 1994[47]. Esse incesto universal como conceito, mas de diferente "textura", estrutura e processo, de exogâmia clãnica e não consanguínea, como entre nós. Como Bronislaw Malinowski[48] nos lembra e que vamos analisar a seu tempo.

Será que todos estes factos da relação adultos/criança são culturalmente entendidos? Será que, a relação paterna/materna é a de todo o adulto com toda a criança? A minha observação dos factos diz, não. As minhas conclusões de facto dizem sim, ou que, pelo menos, é preciso trabalhar forte e duro para criarmos grupos sociais, com ou sem recursos abundantes, não só por causa da afectividade simpática e serena, bem como pela necessidade de transferir essa outra parte que todo o adulto sabe: optar, decidir, distinguir. Estes três conceitos, retirados por mim das minhas análises económicas que fazem parte do real, são para expandir á Dante, á Erasmus, á Philippe Buonarroti, á Bento Espinoza, á Tomás de Aquino - o introdutor de Aristóteles via Averröes entre nós - a capacidade de filosofar e pensar com arte, sermos pais.

Sim, é verdade que a denomino ilusão de sermos pais. Por dois motivos: porque os mais novos em breve serão os adultos do grupo social e mudando na hierarquia por meio de vários processos rituais, formam a sua casa, o seu lar, a sua distância. Essa altura das nossas vidas quando, mais uma vez, ficamos pais sem filhos por perto: na nossa afectividade e, eventualmente, no cumprimento ou no pedido de conselho. Ideia a estudar mais á frente da forma simples com que sempre tenho analisado o facto que me parecia o mais importante: toda sociedade está dividida em duas culturas, a dos pequenos e a dos adultos[49]. Ideia que começara a defender em 1998 no meu texto sobre o imaginário infantil[50]. Mas, o facto de entrar com mais cuidado nas ideias de émile Durkheim, Marcel Mauss e de Georges Devereux, fez-me reparar que toda sociedade tem adultos e crianças, mas apenas uma cultura. Esta ideia apareceu ao lembrar os meus primeiros estudos e fui ao código e á lei. é o segundo assunto, que passo a estudar.

A cultura tem formas de comportamento denominadas costumeiras. No entanto, elas estão codificadas e poucos conhecem essa prescrição. Estamos, no entanto, na altura de a incorporar no nosso quotidiano.

2.Amor de colo.

Amar, amo, e tomo conta dos meus adultos porque nasce da minha alma, da mesma forma que aprendi a tomar conta dos meus descendentes, ainda que á distância. O direito tirou-nos a alegria de amar, as penas de prisão estão ao pé de nós se não cumprirmos o que a lei manda e que, em Portugal, o Catecismo apoia. Textos normalmente ignorados pelos estudiosos de seres humanos e, especialmente, de crianças. Debate esse que tenho tido com uma imensidão de eruditos e pessoas da rua, para sermos capazes de nos governar e assim proteger melhor os mais novos: é dizer, ensinar melhor os mais novos dentro da racionalidade da sociedade em que vivemos. Racionalidade nascida do cálculo económico que permite a existência de recursos e reprodução biológica e afectiva. Se falei de dar colo no início do parágrafo, foi para definir o conceito introduzido por Cyrulnik especialmente no texto de 2003[51]: quanto mais pais somos, mais damos ideias aos mais novos, mais liberdade para aprenderem a proteger-se na interacção social. O livro abre com perguntas endereçadas aos mais novos, através dos seus adultos que entendem. Uma das questões chamou a minha atenção: "que violência traumatizante é essa que dilacera a bolha protectora de uma pessoa?", para se responder com a frase de abertura do texto, na mesma página:  "Só se pode falar de resiliência se tiver existido um traumatismo seguido da retomada de um tipo de desenvolvimento, uma fenda reparada"[52].

É esta ideia que me permite saltar para a lei. Os processos emotivos espontâneos devem ser como a lei manda. Essa letra conhecida pelos que sabem regulamentar o comportamento da população e que a populaça ignora: donde, resiliência do povo ou da maior parte dos habitantes de um país. Se pensamos na paternidade, que definiria como o melhor papel de educador, ela é definida assim: ARTIGO 1871º

(Presunção)

1. A paternidade presume-se:

a) Quando o filho houver sido reputado e tratado como tal pelo pretenso pai, é reputado como filho também pelo público;

b) Quando exista carta ou outro escrito no qual o pretenso pai declare inequivocamente a sua paternidade;

c) Quando, durante o período legal da concepção, tenha existido comunhão duradoura de vida em condições análogas ás dos cônjuges ou concubinato duradouro entre a mãe e o pretenso pai;

d) Quando o pretenso pai tenha seduzido a mãe, no período legal da concepção, se esta era virgem e menor no momento em que foi seduzida, ou se o consentimento dela foi obtido por meio de promessa de casamento, abuso de confiança ou abuso de autoridade.

2. A presunção considera-se iludida quando existam dúvidas sérias sobre a paternidade do investigado.

(Redacção do Decreto - Lei 496/77, de 25-11)[53].

A primeira frase é definidora e fria, não dá lugar a emotividade. A paternidade está longe de ser as ideias que comentava páginas atrás, no nascer da paixão. Não digo que não exista paixão na "feitura" de um filho. Queria apenas dizer que a interacção social não tem por base o acarinhamento, mas sim a prova. Será que, homem da minha cultura, eu posso dizer que a prova não é necessária? E a inteligência humana, a sua racionalidade e o conhecimento existente entre vizinhos do mesmo grupo? Não consigo deixar de mencionar uma história, já publicada a e analisada por mim no meu Jornal A Página: Conceição, a Sardinheira, como era denominada, foi abandonada pelo marido que emigrou para a Argentina. Os anos foram passando e ela criou o filho vendendo sardinhas e limpando casas. Um dia, oito anos depois do marido ter saído e nada se saber dele, aparece na Conservatória do Registo Civil da Vila para declarar o nascimento da sua filha. O Oficial, conhecedor da senhora e da lei, solicitou provas de paternidade e perguntando de forma arrogante: "o teu marido voltou?". Ela nada respondeu e ele, no cumprimento da lei, retorquiu: "mas, onde é que ele está, para inscrever a pequena?" Então ela diz: "Oiça, meu senhor, não tem aí o Livro de Casamentos?" E lêem juntos com quem está ela casada, concluem que sim, esse é o marido e, é evidente que é o pai da filha porque não se sabia de outro homem da senhora. E, como bom vizinho, aceita a resiliência de Conceição e inscreve a pequena com o nome do marido, sendo a prova a certidão de matrimónio. Por outras palavras, a vida dura anterior de Conceição Lopes e o conhecimento que da mesma tinha o Oficial do Registo Civil, desenvolve uma nova situação. Como diz Cyrulnik, a ferida faz parte da vida de Conceição - o marido ausente - e com essa ferida retoma o seu caminho em ruptura com a vida anterior de mulher pobre e abandonada, e ninguém na Vila nem na aldeia faz comentário nenhum e a pequena é aceite, comemorada, cresce, um dia casa e vai andando: a prova da paternidade foi feita...de outra maneira....com resiliência mutua e recíproca.

Continua o Código, tal e qual o Catecismo de Wojtila, ao debruçar-se sobre direitos e deveres da filiação. Diz o Código Civil:

ARTIGO 1874º

(Deveres de pais e filhos)

1. Pais e filhos devem-se mutuamente respeito, auxílio e assistência.

2. O dever de assistência compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir, durante a vida em comum, de acordo com os recursos próprios, para os encargos da vida familiar.

(Redacção do Decreto - Lei 496/77, de 25-11)[54]

            Estas palavras não apenas incluem direitos económicos, bem como comportamentos que hoje em dia denominamos de não-violência doméstica: a punição sem motivo ao mais novo, a luta entre os pais quando a mãe defende um filho injustiçado pelo seu marido, e, especialmente, relações que tenho referido noutros textos, denominadas de abuso sexual dos mais novos pelos seus progenitores, que vou referir no Capítulo correspondente. é mais claro neste sentido, o Catecismo de 1992 de Karol Wojtila, ao falar de que honrar pai e mãe não é apenas o amor - nem sempre possível diria eu - mas uma situação de interacção social difícil por causa do crescimento e autonomia dos pequenos[55]

            Como acontece com os códigos denominados positivos, o catecismo fala da Sociedade Civil na sua versão geral e manda os cidadãos submeterem-se aos seus superiores como representantes de Deus: "O amor e o serviço da pátria derivam do dever de reconhecimento e da ordem da caridade. A submissão ás autoridades legítimas e ao serviço do bem comum exigem dos cidadãos que cumpram o seu papel na vida política...pagamento de impostos, o exercício do direito de voto, a defesa do país..."[56]. O que dizem estes catecismos, tal como os códigos é para evitar surpresas que podem danificar a população e causar um não desenvolvimento na interacção doméstica e dentro dos indivíduos. Só que, o conteúdo destes textos, diz respeito apenas aos grupos sociais que não estão dentro das hierarquias dominantes. Mais uma vez essa ilusão de sermos pais, porque devemos entender estes textos e ensiná-los aos nossos descendentes, com a denominada democracia e as formas globalizadas de partilhar uma economia altamente dividida entre países e grupos. A guerra recente do Golfo para libertar a um povo que não parecia estar oprimido, é um indicador da nossa dificuldade como adultos, de indicar aos mais novos quem tem a razão e quem está a enganar-se ao enganar-nos. O próprio Código Português, como os Códigos Latinos ou Napoleónicos do Ocidente, têm um título derivado do poder paternal. Pelo que sermos pais acaba por ser um derivado de formas patriarcais e cheias de masculinizações de comportamentos. Formas de masculinidade entendidas como poder patriarcal. Eis a divisão do trabalho entre um pai que chega a casa para ser servido por mulheres que hoje em dia trabalham, como tenho referido nos meus textos de 1998 e de 2002 a) e b)[57]. O artigo 1877 do Código Civil Português diz que, os filhos estão sujeitos ao poder paternal até a maior idade ou emancipação, enquanto o artigo seguinte, de forma lata, define a obediência que devem os filhos aos pais: "ARTIGO 1878º·

(Conteúdo do poder paternal)

1. Compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens.

2. Os filhos devem obediência aos pais; estes, porém, de acordo com a maturidade dos filhos, devem ter em conta a sua opinião nos assuntos familiares importantes e reconhecer-lhes autonomia na organização da própria vida.

(Redacção do Dec.-Lei 496/77, de 25-11)[58].

De entre a comprida legislação sobre a filiação e o poder paternal - entenda-se dos pais em conjunto - a seguir á reforma do Código, escolhi este número apenas para salientar as formas de autoridade que, com conhecimento ou sem ele, a cidadania age como se o poder paternal fosse ainda maior e á antiga.Com efeito, nos factos observados, é possível apreciar essa forma de aceitar a condição de autoridade suprema de chefe de família, do marido. E, no entanto, a lei civil actual, tem tentado diminuir esse poder que fica muito mais lato nas formas culturais de comportamento ou, como eu defino a Etnopsicologia, os parâmetros culturais que orientam os sentimentos, como vou referir mais á frente, No Catecismo Católico, como noutros, a procura de sermos pais experimenta universalizar a ideia da autoridade sobre os mais novos, bem como a da emotividade dentro do grupo familiar, como fez o Imperador Justiniano no seu Código de 535. De facto, pode sintetizar-se a procura de harmonia e paz dentro do grupo familiar e diz assim ao longo dos 12 Livros do Código e das Sete Partidas do Digesto ou texto para entender a interacção social que define o Código:

1.2. LA FAMILIA COMO PRESUPUESTO DEL DERECHO HEREDITARIO.

La família se distingue de las demás organizaciones por su sentido patriarcal, siendo el pueblo romano una comunidad de familias representadas cada una por un pater familias. La persona más importante de la familia es el pater familias, que tiene que ser un hombre y no una mujer, siendo la única persona que es sui iuris (persona independiente), mientras que los demás miembros de la familia son alieni iuris (personas sometidas al pater familias). El pater familias ejerce 3 tipos de patria potestad:

- Domenica potestas: sobre los esclavos:

- Manus potestas: sobre la mujer.

- Patria potestas: sobre los hijos.[59]

É verdade que estava a referir o Catecismo Romano, mas o catecismo Romano é a base de todos os textos que orientam a nossa interacção e, especialmente, as relações pessoais dentro do que é denominado grupo familiar. De facto, as ideias retiradas por Justiniano para a sua recompilação de Editos, decretos e leis, são já derivadas do Código Gregoriano que, por sua vez, deriva dos debates de vários Códigos que legislam sobre a família, sendo o Código Gregoriano, compilado pelo rei dos Visigóticos, Alarico II em 506[60], após o seu pai ter entrado em Roma em 410, saqueado e tentado apagar a memória já cristã, sendo-lhe, contudo, impossível retirar o denominado direito eclesiástico, cuja memória governara Roma até Tibério. As ideias estavam compiladas em textos góticos e cristãos, retirados da Bíblia e dos Evangelhos. A compilação feita por Justiniano foi capaz de juntar uma memória romana e outra cristã, as duas patrísticas, especialmente com os textos de Agostinho de Hipona e as suas homilias que levara a interacção á base da solidariedade e da caridade, da hierarquia e da obediência á Divindade, representada pelo Pater Famílias. As ideias romanas desde o Século IV até hoje e espalhadas por outros povos ao longo dos séculos da nossa era, formam a memória de sermos pais, uma resiliência de grupos sociais em luta, unidos por apenas uma ideia que Hipona sintetizou no seu livro Confissões - que inaugura uma estrutura de comportamento público de culpa e arrependimento - a capacidade de optar entre o bem e o mal para se ser bondoso e específico na interacção, ou Livre Arbítrio. O seu texto político, A Cidade de Deus, defende ideias de governo interno e externo, baseadas na caridade e o amor ao outro, especialmente á cidade que é da família[61]. Ideias derivadas do denominado Código da Bíblia, ou, por outras palavras, estrutura de relações baseada na ideia de Patriarcados ou supremacia do pai sobre os descendentes, a mulher e as pessoas da casa. Este é o facto emotivo que organiza o conceito de sermos pais, como passamos a analisar. Com esta breve nota de comentário: mais de dois mil anos de vida patriarcal, incluindo a cultura grega de 400 anos antes da nossa era, acumula na memória uma ideia difícil para a ilusão de sermos pais, com uma forte resiliência da parte do povo para entender as formas reais de uma interacção hierárquica de subordinação. O Pai de Família tem, maioritariamente, direito sobre os bens. As potestades enumeradas mais acima compiladas por Justiniano I - o segundo Justiniano I por o seu ancestral se ter aborrecido de ser Imperador passando o número a Flávio Anício Justiniano Magno seu sobrinho, o do Código. A enumeração sintética começa por falar dos que não têm direito á sua pessoa, aos seus bens, á sua liberdade e á disposição de movimentos ou de opinião. Ainda menos, a manipular recursos. Se repararmos na definição da sociedade romana, lemos já que é um conjunto de pater famílias: por outras palavras, a obrigação de se ser pai, ou o conjunto de pais, serem representantes de todos os que o não são. Ser pai poderia definir-se como o símbolo reprodutor de um grupo social, o ser humano do falo, o ser humano do esperma que transfere a outros, ou em pessoa e faz filhos, ou em gestão, e toma conta de recursos que permitam continuar dentro de História, com posses suficientes para fundar um outro grupo social de patriarcado. Da listagem, poderíamos apreciar que existe "muito colo", muito pai e falta de capacidade para ser livre e pensar por si próprio. No Livro II, Título XXIII do Corpo do Direito Civil Romano de Justiniano, podemos ler: " Si tu hermano estaba bajo la potestad de su padre cuando recibió una cantidad en mutuo, y el contrato no se hizo ni por mandato de él, ni contra el tenor del senado consulto, pudo a causa de la fragilidad de la edad pedir la restitución de la cantidad por entero....No se le prohibirá al hijo de familia, si siendo menor de veinticinco años salió fiador por un extraño, pedir la restitución por entero....Emperador Jordiano Augusto, Calendas de Julho[62].

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