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Numerologia n' As minas de Salomão (página 2)

Maria Estela Guedes

Algo começa agora a ganhar volume na mente do leitor: entre mil e um números que anunciam sofrimento ou presidem á torturante travessia do deserto, o 3 e correlatos anunciam a água, isto é, a porta para sair do lance dramático, que pode ser água mesmo, ou qualquer outro facto ou elemento que lhes possibilita a sobrevivência e o avanço no percurso. é assim que os trinta metros do cômoro na página 93 anunciam a descoberta de quantidade imensa de melões na página 95. Os moribundos dessedentam-se e tornam á vida, depois de terem comido/bebido quantos melões? Trinta, exactamente.

Bem, seria maçador dar mais exemplos, por isso avancemos sobre os três mil homens que viviam na povoação kakouana, dos quais "Nenhum media menos de seis pés de altura" "e todos veteranos de quarenta anos" (p. 135), guerreiros munidos de azagaia e "três facas (uma no cinto, duas em presilhas no escudo)" (p.136). Estes guerreiros saudavam o chefe com três gritos "krum! krum! krum!" (p. 136). Sim, avancemos sobre a circunstância de a maior festividade kakouana ser em Junho, como o S. João, sobre as cubatas cobertas com ervas aromáticas, que reencontraremos mais longe, avancemos sobre este facto singular: John, cujo nome se traduz por João, de santo não tem nada, mas lembra Jano, o deus das portas, o que abre o ano pela janela de Janeiro. O capitão John andava sempre de colarinho engomado, dentes postiços e monóculo, todo aperaltado, nestas aventuras. Certa vez o grupo foi surpreendido pelos kakouanas junto de um regato onde John se banhava, lavava os colarinhos engomados, mais as calças. Tentava barbear-se mas ainda só rapara a cara de um lado. Surpreendidos, foram obrigados a acompanhar os kakouanas. O capitão John assim seguiu, sem calças, de cara rapada só de um lado, tal como Jano, o deus das duas caras.

Saltando tudo isto, chegamos á cidade de Lú (sob o signo da Lua, numa colina em forma de ferradura ou meia lua, aquática como a Atlântida, apesar de situada no interior africano e a dois passos do deserto) - "Para cidade d'Africa era enorme, - com seis milhas talvez de circumferencia, toda ella defendida por estacadas, e rodeada de pomares e de vastas aringas onde se aquartelavam tropas. Pelo centro corria um largo e claro rio, vadeado por pontes. Para o norte, a duas milhas, erguia-se uma collina, que offerecia a fórma singular d'uma ferradura; e, mais longe, a umas sessenta milhas, surgiam bruscamente da planicie, em triangulo, tres serras isoladas, escarpadas, todas cobertas de neve." (p. 141-142). Os heróis são muito bem recebidos na cidade, com direito cada um a sua cubata, feitos os leitos de peles estendidas sobre colchões de ervas aromáticas. "Tripeças pintadas alternavam com frescas vasilhas de água" (p. 144).

Eles hão-de chegar ás Minas de Salomão, e aí John revela-se um homem de têmpera ao recusar diamantes, porque um inglês não se vende por isso, e vê-los-emos nós enfrentar ainda enormes perigos, um deles a 3 de Julho, quase 4 e por um triz não era o 14, porém a 3 de Julho é necessário demonstrar que os três são homens das estrelas, fazendo qualquer milagre. Ora não se é marinheiro em vão: John traz com ele um almanaque marítimo que anuncia um eclipse total do Sol a 4 de Julho, data tão memorável como o 14 de Julho, de modo que se valem da ciência para enganar os negros, o que aliás não parece próprio dos ingleses. Datas memoráveis porque em qualquer delas a História ergueu ao alto um conjunto de princípios democráticos que os três implantarão no reino dos kakouanas, a saber "a nobre instituição do jury" (p. 185), os Direitos do Homem. Estes factos de linguagem ficcional têm um espelho na passagem do diário de Padre Duparquet (veja Viagens na Cimbebásia, no TriploV) relativa á morte do explorador Anderson nas margens do Rio Cunene: os dados biográficos estão errados apenas para em vez deles aparecerem as datas das revoluções americana e francesa: 4 e 14 de Julho.

Por isso a garantia do novo rei dos kakouanas, convertido ao republicanismo, de que sob a sua legislatura nunca mais haveria: "matanças de festa nem execuções sem julgamento". Essas matanças de festa rematavam cerimónias com danças durante as quais as donzelas agitavam nas mãos "uma palma verde e um lírio branco" (p. 187). Por falar em "branco", é extraordinário como nesses confins africanos um rei negro que poucos brancos devia ter visto injurie os ingleses á castelhana, a menos que se trate de uma forma queiroziana de ironia: "E quem és tu, perro branco, para vir latir contra o leão na sua caverna?" (p. 193).

Entretanto afastámo-nos algum tanto dos números, mas anote-se em como o 3 prenunciou de facto uma saída airosa para o que parece um rol de provas misteriosas que os três precisam de passar antes de amadurecerem o bastante para entenderem a moral da história. E de passagem diga-se que os kakouanas usam em combate a táctica do quadrado de três lados, o que não deixa de ser vanguarda, e que uma das suas armas é o machado de guerra. O machado lembra a enxó, apesar de esta pertencer ás artes da paz : "Meia hora depois os regimentos (a flôr do exercito dos Kakouanas) estavam em formatura nos tres lados d'um immenso quadrado"(p. 200); "Ignosi então recuou um passo erguendo no ar o seu formidavel machado de guerra" (p. 202). Já numa evocação do regimento dos Pardos da revolução baiana, escreve-se, a pp. 209: "Este regimento tinha por nome os Pardos, porque usava plumas pardas na cabeça. Era composto por tres mil praças", e outro algarismo não seria de esperar, pelo que o capítulo IX remata com esta consideração de alto teor estratégico: "- Bom, murmurou Infandós, vamos ser atacados por tres lados" (p. 210).

Neste ponto do meu ensaio, já o leitor certamente se interrogou: "Então e o 7, esse número mágico entre todos os números mágicos, não aparece?" O que aparece, logo á boca do capítulo X é o 3: "Devagar, em perfeita ordem, as tres columnas avançaram." (p. 211). Estamos num cenário de guerra, os ingleses suspiram por uma metralhadora e eis que: "O pobre commandante de pelle de leopardo avançára das fileiras uns trinta passos" (p. 212). Menos do que isso só podiam ser três e mais de trezentos ficava fora do alcance das carabinas.

No capítulo da descida aos infernos, isto é, da entrada na caverna do tesouro, deparam com "tres pequenas torres ou tres marcos colossaes". E é nesse momento que Quartelmar desvela o mistério do três, ao analisar o que poderiam ser aqueles ídolos ocultos no país dos zulus: Eu por mim, das minhas reminiscencias da Biblia, colligia que deviam ser talvez os falsos Deuses que adorou Salomão - "Asthoreth deusa dos Sidonios, Chemosh deus dos Moabitas, e Milcolm deus dos filhos de Amnon". Assim diz o Livro Santo (p. 241).

Os antepassados de Indiana Jones encontram os diamantes de Salomão, o problema é sair da caverna e levá-los para o mundo civilizado. Antes de isso acontecer, morrerão de fome e sede. E essa é a moral da história, a lição que aprendem e a velha feiticeira Gagula lhes ensina: os diamantes não se comem nem se bebem. Mas encontram os diamantes, sim, guardados em três cofres de pedra, dois selados e um aberto (p. 258).

Algo de registar ainda, embora em princípio não se relacione com a matemática, é a pedreira ou amontoado de pedras ainda não afeiçoadas que encontram nos labirintos da gruta: "E com effeito havia alli como umas obras interrompidas - pedras serradas e esquadradas, um monte de cimento, e uma picareta e uma trolha, semelhantes ás que ainda hoje usam os pedreiros. Contemplei com reverencia estas antiquissimas ferramentas" (p. 256-257). As aventuras na caverna são perigosas e envolvem mais números, entre eles o das terríveis trinta toneladas da porta de pedra que de repente baixa, deixando-os presos lá dentro (p. 262). Vão morrer de fome e frio os heróis, nas entranhas da terra, e nem palavras mágicas como "Sésamo" ou "Vitriol" dali os poderão arrancar. Não, não há milagres em tal agonia. Porém eis que á morrente luz da candeia o barão Curtis se lembra das horas e pergunta por elas, ao que Quartelmar responde que "Eram seis horas" (p. 266). Com uma tal palavra de passe, a seguir só poderiam aparecer trinta melões ou algo melhor ainda que os salvasse da morte certa, mas não. Não, vão sofrer muito nas entranhas da terra até que finalmente, por misericórdia dos deuses, no capítulo XV, "Nas entranhas da terra", Quartelmar se lembra de olhar para o relógio e pasme-se: "Eram sete horas!".

O desaparecido número da tabuada chega com a sua grinalda e plumas de pavão, imponente e orgulhoso, pronto a rematar a história com um formidável happy end. E assim foi. Um fio de ar guiou-os através das galerias da velha mina até ao exterior da montanha, e justamente lá fora Infandós interpretou correctamente o lance: "-Oh meus senhores! Sois vós! Sois vós! Voltaes do fundo dos mortos!... Voltaes do fundo dos mortos!..."

Concluindo, não será talvez correcto afirmar-se que a interferência de Eça de Queiroz neste livro o tornou melhor do que o original. Os fragmentos que lemos não são da ordem do retoque verbal, trata-se de algo essencial á narrativa em que um tradutor não pode interferir. E também não parece correcto apoucar a obra como sendo fruto de inspiração recebida de Stevenson. "As Minas de Salomão" são uma utopia que pertence á linhagem de "A Nova Atlântida" de Francis Bacon ou de "Erewon" de Samuel Butler, com forte componente esotérica e maçónica, integrada num género de grande sucesso como é o romance de aventuras. Com a vantagem de o esoterismo se revestir de ironia, quando nos apercebemos da máscara de comédia que vela a face da numerologia.

1. Primeira edição em 1891. Usei a oitava, Livraria Chardron, de Lello & Irmãos, L.da, Porto, 1928.

 

 

 

Autor:

Maria Estela Guedes
estela[arroba]triplov.com



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