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Revolução ou revolta? (Um retorno a Albert Camus em seis pontos) (página 2)

Raymundo de Lima

Portanto, não há como excluir a interpretação psicológica ou psicanalítica da análise da revolta insana do terrorismo (ENZENSBERGER, 2008). 

Porém, a revolta como concebe Camus, "ela se torna positiva quando o revoltado toma consciência da profundidade da sua afirmação ao dizer "não"" (BARRETO, ibid, p.71). A revolta camusiana é positiva porque não nega a vida, mas sim, clama por uma existência plena, digna e feliz.

Enquanto que o revolucionário projeta sua causa num movimento social, calculando "uma ruptura drástica e explosiva" (KONDER, 2005), e projetando um tempo futuro de transformação radical da sociedade onde todas as questões políticas e sociais seriam totalmente resolvidas; já o sujeito revoltado, no seu ceticismo, entende que as pessoas não melhoram sua subjetividade e nem se tornam virtuosas depois de uma revolução, ainda que esta consiga efetivar uma transformação radical na sociedade. Portanto, a tragédia das revoluções, por um lado, consiste na incapacidade de dar sentido a existência humana e de manter vivo o espírito revoltado; também elas não conseguem de evitar que os próprios revolucionários sejam devorados pela marcha ensandecida da pós revolução.

A história ensina que todas as revoluções "traíram fundamentalmente o sentido da re-volta..." (KRISTEVA, 1999, p.102), sobretudo, da revolta expressa em forma de crítica na literatura, na filosofia, e nas artes em geral. Ainda que o espírito de revolta não venha necessariamente se organizar em um movimento revolucionário, se o faz, corre sempre o risco que perder o sentido original da re-volta, isto é, "como retorno-virada-deslocamento-mudança...[isto é] a possibilidade de questionar seu próprio ser, de buscar-se a si mesmo (se quaerere; quaestio mihi factus sum) é dada por esta atitude ao "retorno", que é simultaneamente rememoração, interrogação e pensamento" (KRISTEVA, op.cit., p.101).

3. O sentido da revolução está associado ao messianismo religioso (estabelecer o Reino de Deus sobre a terra). Para alguns autores (LOWITH, apud LÖWY, p.395), o messianismo revolucionário, sobretudo o messianismo marxista, tem origem no "profetismo judaico" (sic). Não somente porque K. Marx, W. Benjamin, e tantos outros eram judeus; e não importa se eles diziam ser agnósticos ou ateus, mas sim, é fato que suas idéias foram influenciadas pelo profetismo judaico de um povo escolhido teria a missão histórica que salvar a humanidade[9]. O desejo revolucionário de realizar o Reino de Deus na terra extrapola a suposta concepção científica do sistema teórico que pretende orientar sua práxis e ser o início da história moderna. é curioso reconhecer que nesses escritos "teóricos" tudo aponta para que, após acontecer a revolução, cujo protagonista deve ser o povo escolhido pela história[10] - o "proletariado", a classe oprimida - será restaurada a harmonia originária do paraíso perdido. Assim, para além de ser uma utopia, o comunismo se faz uma teologia, porque vislumbra a restauração de um paraíso na terra, da crença do progresso permanente, do domínio da classe proletária ficcionada como unitária e genuinamente democrática tanto no pensamento como na ação de fornecer a felicidade para todos.

Desaparecerá o Estado na fase comunista, vaticina Althusser. Aqui se estabelece um contra-senso: com o comunismo extingue-se a política. Extinta a política, suprime o pluralismo das idéias, o diálogo livre, o debate sem medo, e o direito de revolta dos descontentes (ou será que o novo sistema será pródigo em atender a necessidade e o desejo de todos?). Continuará em movimento dialético uma sociedade que vive numa Sangri-lá, onde todos têm acesso ao pão e vinho, em que há unidade na totalidade, e a felicidade é de mão única? Deixariam de existir as contradições históricas? Seria o fim da dialética e da história?

No mínimo, parece ingenuidade imaginar que com o comunismo extingue-se a revolta. A revolta seria substituída pelo imperativo ético de "amor-ao-próximo", como parte significativa do "sentimento oceânico" [11]de viver plenamente o desejo coletivo. Nessa etapa, não haveria forças pulsionais dos sujeitos e dos pequenos grupos cada qual com sua parcela de revolta (dionisíaca) contra um sistema totalitário (apolíneo)? Que lugar teria nesse sistema os sujeitos inquietos, impulsionados pelo hedonismo, libertarismo, anarquismo, consumismo, sindicalismo, entre outros ismos; que fazer com os inconseqüentes, perversos, fundamentalistas, gays e simpatizantes, etc? Quem ousaria se levantar contra a traição da dialética, contra a passividade, contra a resignação e os privilegiados do poder escudados por discursos carregados de slogans triunfalistas e palavras de ordens que obrigam todos a pensar de acordo com a linha oficial do pensamento único, sem classes?

A propósito, Löwy (1996) comenta o que Gershom Sholem escreve: "é preciso devolver o conceito de sociedade sem classes seu verdadeiro rosto messiânico, e isso no próprio interesse da política revolucionária do proletariado. é somente ao se dar conta dessa significação messiânica que este pode evitar as armadilhas da ideologia "progressista" e entender que a sociedade sem classes não é o objetivo final do progresso, mas a realização - tantas vezes tentada em vão - de sua interrupção definitiva" (LOWY, 1996, p.402 - grifo meu). (CONTINUA NO PRÓXIMO NÚMERO).

[1] HOBSBAWM, E. Tempos interessantes: uma vida no século XX. São Paulo: C. Letras, 2002, p. 288 e 290.

[2] Escreve Camus: "Tiro assim três conseqüências [da consciência angustiada sobre o absurdo] de são a minha revolta, a minha liberdade e a minha paixão. Pelo jogo da consciência, transformo em regra de vida o que era convite á morte - e recuso o suicídio" (CAMUS, s.d., 80). Vale aqui citar um pedaço da obra para melhor exemplificar: "Ao protestar contra a condição naquilo que tem de inacabado, pela morte, e de disperso, pelo mal, a revolta metafísica é a reivindicação motivada de uma unidade feliz contra o sofrimento de viver e morrer. (...) Ao mesmo tempo em que recusa sua condição mortal, o revoltado recusa-se a reconhecer o poder que o faria viver nesta condição. O revoltado metafísico, portanto, certamente não é ateu, como se poderia pensar, e sim obrigatoriamente blasfemo. Ele blasfema, simplesmente em nome da ordem, denunciando Deus como o pai da morte e o supremo escândalo" CAMUS, L'homme révolté - apud  http://pt.wikipedia.org/wiki/L%27homme_r%C3%A9volt%C3%A9 [negrito meu].

[3] O termo "revolução" é empregado inicialmente na astronomia, indicando o movimento circular dos corpos celestes que voltam assim a seu ponto de partida, p. ex., a revolução dos planetas em torno do Sol. Copérnico intitula sua obra mais importante de "Sobre a revolução das órbitas celestes". Posteriormente a palavra "revolução" é aplicada no contexto político significando reviravolta, uma alteração radical e profunda de uma sociedade em sua estrutura política, econômica, social, etc., geralmente por meios violentos e de forma súbita, representando um confronto entre uma ordem anterior e um novo projeto político-social. Ex.: a Revolução Francesa de 1789, a Revolução Russa de 1917. a Revolução Cultural de Mao Tse Tung. O termo é empregado também para designar uma ruptura de algum processo existente, uma mudança radical, ou o surgimento de um fato novo, ou uma nova forma de agir que altera a situação anterior. Ex.: a revolução industrial nos séculos 18 e 19, a revolução nos costumes, a revolução na pintura, a revolução na música, etc. (Cf.: JAPIASSU & MARCONDES, 1991, p. 214).  

[4] Segundo Konder (2005), haveria duas concepções de esquerda revolucionária: aquela de linha marxista-leninista, onde a revolução necessariamente é uma ruptura drástica e explosiva, marcada por derramamento de sangue, e a linha gramsciana que via o revolucionamento da sociedade capitalista como um processo histórico. Tomamos a primeira concepção como a mais "radical" e aquela que se efetivou, começando pela revolução francesa e terminando com a revolução bolchevique, de 1917. A visão deixada pelas revoluções pró marxistas ou socialistas, ocorridas no séc. 20, estão marcadas pela truculência de lideres "revolucionários" conduzindo uma massa talvez mais apaixonada pela idéia de revolução, da revolução concebida como um teatro proporcionador de catarse de uma massa revoltada com as injustiças históricas. Ainda que essa massa estivesse bem organizada para o ato de ruptura explosiva, raras vezes provou que estava verdadeiramente preparada para enfrentar os desafios da pós-revolução.

[5] Para Bernard Henry-Levy (entrevista ao Milênio/ Globo News-2007), é preciso reconhecer que a idéia de revolução não é privilégio da esquerda, especialmente da esquerda marxista, que entendemos ser fundadora de uma cultura revolucionária.  Observa esse autor que na Europa sempre houve duas direitas: a direita conservadora e direita revolucionária. O fascismo também prega a ruptura ou a revolução. Ou seja, a ruptura (revolução) nunca foi o diferencial entre direita e esquerda. A idéia de mudança para o futuro a partir da revolução redentora também fez parte da pregação da direita fascista italiana, por exemplo, com Marinetti, entre outros. Nesse artigo, privilegiamos a idéia de revolução como bandeira da esquerda auto denominada "revolucionária", ou seja, anti "reformista".  

[6] Hosbawm (2002) faz um breve levantamento dos movimentos revolucionários ocorridos no século 20. A maioria poderia ser tipificada de: "romantismo revolucionário" (Che Guevara/ Angola e Bolívia), "lunáticos extremistas do marxismo-leninismo" ("Sendero Luminoso/ Peru), "porralouquismo comunista" (Brigadas Vermelhas/ Itália), "Gangue de Baader-Meinhof" tipificação dada pelo historiador inglês a facção do Exército Vermelho (Alemanha), o "delírio comunista genocida" do Kmer Vermelho (de Pol Pot/ Camboja) e o "fanatismo de massa da Revolução Cultural de Mao".

A Revolução Cultural Proletária empreendida na China entre 1966 e 1968, talvez seja o mais emblemático caso de fanatismo de massa do século 20. O Livrinho Vermelho era empunhado por multidões, em todos os cantos da China, pregando a palavra de Mao, com sua foto em todos os lugares, e os Guardas Vermelhos se encarregavam de publicamente estigmatizar, humilhar, e condenar á morte, promover os famosos expurgos dos chamados "inimigos do povo". Numa passagem, o Livrinho Vermelho do Presidente Mao, afirmava: "A revolução não é o convite para um jantar, a composição duma obra literária, a pintura dum quadro ou a confecção de um bordado; ela não pode ser assim tão refinada, tão branda, tão afável e cortês, comedida e generosa. A revolução, é uma insurreição, é um ato de violência pelo qual uma classe derruba a outra" (apud MONDAINI, 2004, p.212.; Tb: O LIVRO VERMELHO, São Paulo: Global, s.d., p. 12-3).

Fernando Gabeira comenta: "Talvez a repercussão mais profunda da Revolução Cultural no Ocidente foi a guinada de muitos intelectuais que resolveram reeducar-se pelo trabalho manual, abandonando suas tarefas e empregando-se em fábricas. Alguns relatos desse período sobreviveram. A idéia de mergulhar no trabalho manual e compartilhar o destino das massas exerceu um grande fascínio e representava, na verdade, uma opção que conferia status entre a esquerda (...) O sonho de purificar ideologicamente a China foi para o espaço. Sobrou para a extrema esquerda que pagou alto pela aventura e mais tarde foi estigmatizada como a Camarilha dos Quatro. De novo um número, mostrando que a Revolução Chinesa ainda espera um intérprete versado em numerologia. (GABEIRA, 1999).

[7] A psicanálise conceitua o acting out  [ato] como "um comportamento impulsivo [inconsciente] que se exprime sob a forma de uma ação" (Cf.: CHEMAMA, p. 8). Para Lacan, "um ato é sempre significante(...), permite ao sujeito se encontrar, no a posteriori, radicalmente transformado, diferente do que tinha sido antes desse ato"(Ibid., p. 8). Segundo Lacan, haveria uma diferente entre o acting out e a passagem ao ato. Enquanto que o acting out é uma conduta assumida por um sujeito, se dirige para alguém, querendo dizer algo em ato, logo, sendo passível de interpretação;  a  passagem ao ato "é um agir impulsivo inconsciente, e não um ato (...) e está situada do lado do irrecuperável, do irreversível, sobre o fundo de desespero, demanda feita por um sujeito que só consegue se vivenciar como um dejeto a evacuar " (CHEMAMA, p. 09); ela é sempre a ultrapassagem da cena, para além do real; é onde  o sujeito se exclui e recusa uma elaboração. A passagem ao ato "é a revolta apaixonada contra a incontornável divisão do sujeito. é a vitória da pulsão de morte, o triunfo do ódio e do sadismo. Também é um preço muito caro, sempre pago para sustentar o inconscientemente uma posição de domínio, na alienação mais radical, pois o sujeito está mesmo prestes a pagá-la com sua vida" (CHEMAMA, ibid., p. 9-10). Desse modo, o fanatismo decorrente de uma crença fundamentalista se recusa fazer contextualização com a realidade, também é uma recusa ao diálogo; nesse sentido, este poderia ser considerado um acting out, mas se for levado ao extremo de um ato terrorista, que como tal elege qualquer ser humano (crianças, mulheres, velhos) como culpados e vítimas, fazendo "a vitória da pulsão de morte, o triunfo do ódio e do sadismo", cairia [o fanatismo e o terrorismo] pelo lado da passagem ao ato.

[8] Lembrando o magistrado Daniel Schreber (1842-1911), caso que desafiou a psicanálise de Freud, Romano (ibid) considera-o "grande símile dos terroristas", porque "só ele, e só ele, [acha que] possui a chave da justiça e do "justiçamento"". Na verdade, "seu" justiçamento condena á morte todos indistintamente: militares e civis, crianças e velhos, mulheres e homens, bichos, a natureza. Schreber escreve: "Tudo o que ocorre refere-se a mim. Eu me converti para Deus no homem absoluto ou no único homem, em torno do qual tudo gira".

[9] Nietzsche, em A genealogia da Moral, escreve: "A impotência faz crescer neles [judeus] um ódio monstruoso, sinistro, intelectual e venenoso. Os grandes vingativos, na história foram sempre sacerdotes (...). Os judeus, com uma lógica formidável, atiraram por terra a aristocrática equação dos valores "bom", "nobre", "poderoso", "formoso", "feliz", "amado de Deus". E, com o encarniçamento do ódio afirmaram: "Só os desgraçados são bons; os que sofrem, os necessitados, os enfermos, são piedosos, são os benditos de Deus; só a eles pertencerá a bem-aventurança; pelo contrário, vós, que sois nobres e poderosos, sereis por toda a eternidade os maus, os cruéis, os cobiçosos, os insaciáveis, os ímpios, os réprobos, os malditos, os condenados..." (GM, cap. VII).  

[10] Ao substituir "Deus" e "judeus" pela "História" e "proletariado", as teorias revolucionárias representam um grande avanço epistemológico. Contudo, no fundo, a "fantasia da eleição divina" (sic) é formada pela crença na revelação divina e incorporada ao imaginário dos povos. Suas conseqüências atualizam-se na contemporaneidade das religiões e das concepções teóricas mais ideológicas do que verdadeiramente científicas. Cf.: BECKER, S. A fantasia da eleição divina. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999.

[11] "Sentimento oceânico" é um termo usado por Freud em "O futuro de uma ilusão"(1927). Sobre o paradoxo do deve "amar o próximo" ver em "O mal-estar na civilização" (1929), cap. 5.

Parte II 

 

4. Um ex-revolucionário relembra um episódio. Trata-se do "professor Dennis", personagem de "As invasões bárbaras", que iluminado pela sabedoria de quem se encontra no estágio final de sua vida, diz ao seu amigo:

"Fim dos anos 70, [a linda chinesa], Guo Jin vem a Montreal em visita cultural (...). Querendo ser interessante digo: "é extraordinário o que acontece no seu país. Se soubesse como os invejamos. A Revolução Cultural de vocês é formidável!"" Imediatamente vejo seus belos olhos negros se encherem d´água. E imagino, horrorizado, que ela pensa: "Ou esse cara é um agente da CIA ou é o maior cretino do ocidente". Optou pela 2ª.hipótese. Ela havia limpado pocilgas por dois anos como reeducação pelo trabalho. Seu pai tinha sido assassinado e sua mãe se suicidado. E um imbecil franco-canadense, que tinha assistido aos filmes de Goddard e lido Philippe Solers achava a Revolução Cultural chinesa formidável! Não dá mais para ser cretino"

Quando o revolucionário é "privado do direito de dizer não, torna-se um escravo", alerta Camus. O revolucionário que diz apenas "sim", que não tem dúvidas quanto ao seu projeto político, já que o mundo pelo qual luta já está claramente definido numa teoria e na sua convicção, perdeu o juízo, literalmente. A revolução consiste no transplante da idéia para a experiência histórica. O revoltado camusiano é radicalmente cético. A revolta, induz um movimento que parte da experiência histórica á idéia, e desta ao ceticismo. A teoria da revolta vem depois da vivência de uma situação injusta, que lhe fornecerá os dados sobre os quais ela será construída (BARRETO, ibid, p.73).

Em O Homem Revoltado, Camus acentua as diferenças entre essas duas atitudes e suas conseqüências:

"Se se verificasse apenas uma revolução, a história acabaria. Haveria unidade feliz e morte satisfeita. Eis o motivo por que todos os revolucionários visam finalmente a unidade do mundo e agem como se acreditassem no fim da história. (...). Como o movimento de revolta desemboca no "tudo ou nada", (...), o movimento revolucionário do século XX, tendo atingido as conseqüências mais claras da sua lógica, exige, de armas na mão, a totalidade histórica. A revolta é, nessa altura, intimada, sob pena de acusação de fútil ou de desactualizada, a tornar-se revolucionária. Já não se trata, para o revoltado, de se deificar a si próprio como Stirner, ou de se salvar individualmente pela atitude. Trata-se de divinizar a espécie, como Nietzsche, e de realizar o seu ideal de super-humanidade, a fim de assegurar a salvação de todos(...). A maior parte das revoluções adquire a sua forma e a sua originalidade por meio do crime. Todas ou quase todas foram homicidas. Mas algumas praticaram, além disso o regicídio e o deicídio. (...)". (grifo meu).

5. As revoluções buscam ideais absolutos (justiça, igualdade, liberdade), e se afastam das atitudes verdadeiramente críticas. Acontece que para conquistar o absoluto e ir ao encontro da aspiração coletiva os agentes da revolução precisarão sacrificar o indivíduo. Daí a revolta dos sujeitos pensantes-críticos e criativos. "A revolução fracassa na medida em que o seu dinamismo interno elimina a crítica e quebra, por seus atos, os laços de solidariedade. A revolução ao realizar-se historicamente, diz Camus, perde-se no silêncio ou na mentira" (BARRETO, ibid,73).

Ou seja, "a tragédia da revolução consiste na incapacidade de manter o vivo espírito revoltado" que existiu e deu impulso ao próprio movimento revolucionário. A história das revoluções contemporâneas nos ensina que após conquistarem o poder, os revolucionários foram incapazes de serem fiéis a sua própria pulsão mobilizadora e também de cumprir com os princípios supostamente éticos divulgados nos discursos, panfletos, slogans, etc.

6. Contra a pregação messiânica dos revolucionários, Camus (sd.) alerta que "um homem é mais homem pelas coisas que cala do que pelas coisas que diz" (p. 106). Esta idéia está no Mito de Sísifo e também em A peste. Sartre chame esse ato de "silêncio viril". Ao mesmo tempo que sustenta o sentimento de revolta o revoltado se recusa reproduzir slogans, palavras de ordens, participar de reuniões intermináveis com o propósito de fundar rupturas. Slogans e palavras de ordens[1] não estimulam o pensamento, mas sim, a ação automática, coletiva e submissa. Palavras, paixão e carisma de um líder compõem o teatro da revolução. Toda revolução é um movimento  sóciopsicodramatico. A revolta é um movimento subjetivo e moral de alguns indivíduos, que quando se expressam vivem a "vertigem da revolta" (MAIA, 2008). Principalmente os revolucionários burgueses se deixam ser  enfeitiçados pelas palavras, sobretudo os mais românticos e sem práxis. Pregar a revolução proletária junto aos alunos universitários e gozar uma vida burguesa, não configura práxis genuína. O revolucionário ideológico hoje se condena ao monólogo, que como tal se assemelha ao discurso da loucura. A luta proposta por Camus é da revolta não necessariamente verbalizada, mas permanente: "A revolta é o confronto perpétuo do homem e de sua prima a obscuridade...é a presença constante do homem em si próprio. ...era preciso lutar, desta ou daquela maneira, e não cair de joelhos" (1981).

7. No fundo, o ato de revolta parece ter origem inconsciente. Trata-se de um retorno do recalque que o sujeito não consegue administrar conscientemente, ainda que ele tente sustentá-la como um princípio moral. A revolta tende ser catártica, emotiva e até explosiva. "Um dia de fúria", por exemplo, é um filme que retrata um sujeito revoltado. Em "O prisioneiro da 2ª.avenida", o personagem torna-se um revoltado a partir do instante que perde o emprego, mas ele não tem consciência, nem autocontrole, apenas pulveriza sua revolta contra tudo e contra todos. No entanto, o sujeito escolhe se manter o estado de revolta, ainda que empregado, familiado, incluído, etc., ele se conduz segundo uma moral do homem revoltado. Para Camus, esta é a forma de aperfeiçoamento do homem, afastada da influência religiosa, da utopia ideológica, ambas messiânicas[2].

A psicanalista Julia Kristeva (1999) alerta que a revolta pode terminar num niilismo moral, sufocando assim tanto o ato criativo como o ato político. Para Barreto (ibid), se for incorporada á revolução ela termina justificando todos os tipos de crimes do "novo" sistema de valores. A revolta genuína - camusiana - comporta um grau pulsional mediado pelo logos-razão; indigna-se em protestos e mesmo em ações políticas (não  partidárias) organizadas contra: as ações de inspiração militar, o terrorismo fundamentalista, o narcotráfico, a violência urbana, a corrupção, as diversas injustiças, o cinismo, o orgulho da ignorância, enfim, é um ato de protesto contra todos os que não promovem o crescimento dos seres humanos ou engendram miséria e mortes. Torna-se imperativo em nossa época, ainda, denunciar aqueles que não defendem suficientemente a vida do ser humano, dos animais e do planeta, omitindo-se em nome de sua "causa" mítica ou de um "taticismo político" justificado ou não.

Desse modo, o espírito revoltado anima-se de uma atitude expressionista. No fundo, ele busca compartilhar sua revolta com os outros revoltados, num comprometimento ético em defesa da vida ex-sistente. Por isso mesmo, os revoltados camusianos se autorizam fundar algumas amizades verdadeiras e duradouras em vez das amizades instrumentais, guiadas por interesses políticos e ideológicos. Denegando o valor da amizade[3], os revolucionários buscam "militantes", "companheiros", "camaradas", que servirão aos quadros do seu projeto de transformação radical da sociedade. No seu livro "Le Cathecisme du Revolutionaire", Netchaiev[4] ensina que "Ele [o revolucionário] não deve ter relações pessoais nem coisas ou seres amados. Ele se deve despojar, inclusive, do seu nome. Tudo nele deve concentrar-se numa só paixão: "a revolução"" (BARRETO, ibid, 95).

Concluindo: "Eu penso, logo me revolto"

Até a queda do muro de Berlin, pode-se afirmar que estava em alta uma cultura revolucionária, com suas idéias de progresso, igualdade, fraternidade. O taticismo pró revolução socialista fazia de conta que as execuções - expurgos - levadas a cabo pelos revolucionários no poder contra os supostos "inimigos do povo", "burgueses", e outros bodes expiatórios, eram atos de "justiça popular". Nós que amávamos tanto a Revolução (com R maiúsculo) jamais poderíamos imaginar o revolucionário virando um genocida. Jamais poderíamos imaginar que a Revolução produzia ou acobertava personalidades perversas e criminosas. Defendíamos cegamente todos os atos justificados pela Revolução, em nome do amor á causa proletária ou do ódio de "ver o último capitalista enforcado nas tripas do último burocrata" traidor do socialismo. Passado o clima ideológico pró revolução, hoje, no mínimo, podemos reconhecer que, na prática, essa idéia tem se revelado totalitária e, por isso mesmo, barra o ânimo de revolta que inicialmente a engendrou.

Além de representar um estado de espírito necessário do sujeito frente a todos os sistemas políticos e ideologias, a revolta implica um plus em relação á revolução, tanto porque evita o totalitarismo como porque ela implica uma condição necessária (subjetiva) ao ato criativo. Evidentemente, existem diversos graus e tipos de revolta. A criação artística precisa de liberdade emanada do sistema político e pulsão anárquica do sujeito, sublimadas. Quanto mais for desvencilhada do interesse do Estado[5], mais genuína a obra será.

"A criação artística é a forma mais descomprometida da revolta, pois está fora da História. A arte recusa o mundo em virtude daquilo que lhe falta, e ás vezes, por causa daquilo que é. Os revolucionários sempre demonstram uma hostilidade acentuada em relação ás manifestações artísticas. Platão exila da sua República os poetas; Rousseau considera a arte uma corrupção feita pela sociedade na natureza; Saint-Just entende ser melhor uma arte virtuosa do que bela; Pisarev dizia preferir ser um sapateiro do que um Rafael; Nekrasov, o poeta, trocaria toda a obra de Puchkine por um pedaço de queijo. Em Marx essa condenação é mais radical. A única arte revolucionária é aquela colocada a serviço da revolução. A razão para isto está no fato de que a arte sem compromisso político impedirá que a História transforme-se no absoluto. Marx na dúvida de sua afirmação, pergunta como a arte grega ainda pode ser bela para nós e responde que essa beleza nada mais é do que a expressão que essa beleza nada mais é do que a expressão da nostalgia de uma infância inocente, que perdemos no mundo adulto em que vivemos" (BARRETO, 1970, p.105).

Parece que o espírito de revolta se sustenta e se expressa melhor nas artes. Ela seria mais uma exigência estética do que ética. O artista revoltado pode reconstruir o mundo que o cerca, seja o mundo dos regimes totalitários ou o mundo da natureza. Uma literatura ficcionada como "A peste" de Camus expressa sua revolta sobre uma epidemia e a displicência divina para contê-la. "A cidade do sol", do afegão Khaled Housseini, é uma revolta sublimada contra a opressão sobre as mulheres daquele país, e contribui para aproximar as mulheres dos homens. Um quadro como Guernica, que  Picasso, não expressa apenas a revolta de pintor, mas também causa-nos empatia com todos que denunciam os horrores da guerra. Por outro lado, o ato terrorista ultrapassa os limites da revolta metafísica, sendo uma produção de morte, indistinta, cruel. O terrorismo é o avesso tanto do dionisíaco como do apolíneo, elaborados por Nietzsche[6].  Porque é um ato de barbárie, que nada cria, só destrói. Por isso que o terrorismo não pode ser identificado com um simples ato de revolta, no sentido camusiano, mas sim, é um ato calculado, frio, investido somente de dor e morte.

A ficção camusiana é a tradução mais fiel no plano estético do espírito de revolta. A obra literária cria um mundo de imagens, amor, ódio, caminhando numa certa coerência proporciona aos leitores um meio de eles viverem outra situação de vida e mesmo comparar com a sua realidade concreta. Nesse sentido, a obra literária de estilo camusiano mais que inspira, eleva, e pode abrir um caminho para sermos sujeitos comprometidos em elaborar um pensamento e uma moral da revolta. Segundo Arendt, a tarefa fundamental de uma obra literária (ficção) ou "teórica" é descongelar as definições, é livrar o significado considerado como único tendo em vista a complexidade dos acontecimentos e as situações demasiadamente humanas. A revolta com consciência pode nos livrar da camisa-de-força dos conceitos e das teorias que nos obrigam soluções canônicas para assuntos complexos e emergenciais. Um pensamento da revolta, ainda que causado por uma ficção, tem o poder de dissolver doutrinas e regras aceitas, incondicionalmente, como também pode dar sentido a revolta emotiva ou explosiva. Por seu lado, a crítica revolucionária tende a condenar - ou menospreza - o romance, a  ficção, como sendo uma fuga, uma alienação do sujeito (ler notas 2 e 5). O revolucionário padrão leva muito a sério o seu projeto e, raramente, encontra espaço subjetivo para efetivamente "não perder a ternura".

Lembrando os mitos, Prometeu e Sísifo, a revolta atual precisa ser guiada por uma ética forjada pelo sujeito que vivencia um mundo onde somos cotidianamente devorados e condenados a um trabalho repetitivo, cujo sentido nos escapa e a esperança não se sustenta como caminho para ser feliz. Ainda que essa revolta supere os obstáculos de regramento, repetição, proibição[7], e ignorância[8], sua força e sua razão a faz encontrar caminhos de expressão no social. Porque a revolta é uma filosofia para enfrentarmos civilizadamente um mundo cada vez mais absurdo e sombrio.

Ainda que o escritor, pintor ou governante possam ter um certo poder de transformação, há que ele sustentar sua revolta. Lembrando Calígula, com todo o seu poder diz: "...E de que me serve ter as rédeas na mão, de que me serve o meu espantoso poder, se não posso alterar a ordem das coisas, se não posso fazer com que o sol se ponha ao nascente, com que o sofrimento diminua e os homens não morram?... (CAMUS, 1963, p. 33).

*          *          *

O problema que se coloca em nossa época "pós paixão revolucionária" não é mais da Revolução, mas sim, a atitude permanente de revolta, inquietação e indignação. Duas atitudes identificamos em nossa época. Por um lado, sobressai a apatia, o desinteresse pela política, a descrença na democracia, o consumismo, a rebeldia difusa, o mal-estar pós moderno, e, por outro, a revolta "apolítica", que precisamos sistematizar, senão vira barbárie. Sistematizar a revolta não implica investigá-la numa tese de doutorado, mas sim, pensar uma forma de atualizá-la conforme a complexidade do mundo e o nosso mal-estar.

Superando a fórmula moderna cartesiana do "penso, logo existo", Camus inspira a nova geração para: "Eu me revolto, logo existo, e penso que fazer". O homem camusiano se libertou da ilusão de ser possível um paraíso na terra[9] e do encantamento do discurso e de um futuro tornado paraíso; cabe-lhes sentir os instantes da vida,  descrever, e fazer o que for possível para denunciar o absurdo da existência. 

O ser humano afirma-se melhor como ser-emancipado quando sabe o que dizer e quando sabe se calar. A revolta deve ser permanente, mas guiando-a com razoabilidade e sabedoria. O exercício pleno da liberdade está no espírito de revolta - sempre - e não na cultura revolucionária, diz a história. Lembrando a epígrafe do texto do historiador Hobsbawm: a revolução que valeu a pena ser vivida ocorreu na década de 1960, porque seu lema era "Paz e Amor".

Referências

ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972.

BARRETO, Vicente. Camus: vida e obra. Rio de Janeiro: José Álvaro, 1970.

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo: ensaio do absurdo. Brasil-Portugal: Livros do Brasil-Lisboa, sd.

CAMUS, A. A peste. Rio de Janeiro: Record, 1981.

CAMUS, A. Calígula. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.

CAMUS, A. O homem revoltado (ensaio).Lisboa: Livros do Brasil, sd. 

CARVALHO, J. M. Os bestializados. São Paulo: C. Letras, 1987.

CARVALHO, J. M. Razões que se opõem. Folha de S. Paulo-Cad.Mais! 07/11/2004.

CORREIA, Adriano. O pensamento pode evitar o mal? Rev. Educação Especial. São Paulo: Segmento, 2006, p. 46-55.

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[1] Cf.: REBOUL, O. O slogan. São Paulo: Cultrix, 1984. Tb. nosso ensaio: LIMA, R. O poder hipnótico do slogan. Disponível em: <http://www.espacoacademico.com.br/029/29ray.htm>

[2] Para entender o messianismo revolucionário, sugiro ler o ensaio-conferência "Messianismo e revolução", de Lowy (1996).

[3] Ver meu artigo "A amizade em tempos sombrios". Disponível em: www.espacoacademico.com.br/056/56rea.htm

[4] Netchaiev teria criado uma moral dos líderes revolucionários do século XX, que em nome da revolução se autorizavam matar os seus camaradas, denunciar pais e professores, sempre justificando sua suposta traição. Segundo Barretto (op,cit.) a grande originalidade de Netchaiev foi a de ter trazido para as atividades revolucionárias a lei da submissão dos revolucionários ao detentor do poder, e nele permanecer o defensor da verdade revolucionária. 

[5] Não confundimos "público" com o "estatal".

[6] Nietzsche observa que, originalmente, a arte grega era centrada no espírito dionisíaco. No entanto, particularmente com Eurípedes, foi invadida ou envenenada pelo espírito apolíneo. Isto aconteceu quando Eurípedes retirou a importância do coro dos sátiros e bacantes da tragédia. Na tragédia antiga - de Sófocles ou de ésquilo, por exemplo -, Dioniso era o verdadeiro herói e seus sentimentos eram cantados pelo coro. é o caso de édipo, de Sófocles, ou do Prometeu, de ésquilo. Ainda que de forma mascarada, estes heróis personificam o deus Sátiro. Seus dramas, que encerravam a essência da natureza, transportavam os espectadores para um mundo de "irrealidade sobrenatural"" (apud HRYNIEWICZ, S. 2001, p. 462). Seria fácil afirmar: contra o espírito apolíneo da revolução, o espírito dionisíaco da revolta. Creio que o diálogo entre revolta e revolução ainda são necessários para os novos tempos.

[7] A história registrou dois exemplos emblemáticos de regramento oficial das expressões humanas: O Código Hays, nos EUA, e o "jdanovismo". (a) O Código Hays (também conhecido como Código de Produção) foi implantado em 1930 e limitou drasticamente a liberdade de expressão dos filmes produzidos nos Estados Unidos. O código consistia em uma série de restrições de caráter moralista impostas aos filmes de Hollywood e foi implantado por uma comissão de censura presidida na época pelo diretor da Motion Picture Producers and Distributors of América (MPPDA), Will H. Hays. A desobediência ao código gerava a perda automática dos canais de distribuição do filme e uma multa de 25 mil dólares (uma fortuna para a época). Com a implantação do Código Hays não era permitido, entre outras coisas, que os filmes exibissem cenas evocadoras de sensualidade: nudez total ou parcial, o beijo "profundo", as carícias sugestivas, o estupro, as relações inter-raciais, as ligações extraconjugais, a homossexualidade. Eram proibidos os diálogos que contivesse palavrões ou xingamentos e os filmes que mostrassem temas como o aborto, a eutanásia e os viciados em drogas. Não era permitida a apologia ao gangsterismo e ao terrorismo revolucionário. O crime sempre tinha que ser castigado e o final feliz deveria ser moralista. Os artigos do código permaneceram inalterados por cerca de 17 anos, mas, sob a pressão de alguns criadores corajosos, a censura começou a cair a partir dos anos 50. Diante da concorrência da TV e da necessidade dos estúdios de Hollywood trazerem de volta o público aos cinemas americanos, vários artigos foram reformulados em 1955 e depois uma última vez em 1963, antes de ser extinto em 1968 (cf.:http://www.somese.com.br/site/revista/101/P20_cinema.pdf).    (b) O jdanovismo (criado por Andrei Aleksandrovich Jdanov, 1896-1948) se constituía num rígido código ideológico, contribuindo para a implantação do chamado "realismo socialista" cujo propósito era a "educação dos trabalhadores para a formação do espírito socialista entre as massas a pintura exaltava as virtudes do novo regime, e a força do proletário russo, os heróis dos romances eram paradigmas do conformismo, as manifestações culturais dos povos não-russos eliminados como expressões de chauvinismo nacionalista e as correntes de vanguarda das ciências combatidas como ideologias burguesas (entre elas, a biologia de Morgan, a mecânica ondulatória, a física nuclear, a cibernética e a psicanálise).  Jdanov também foi o promotor da "genética proletária" de Lyssenko. Os artistas e cientistas que não se enquadravam na linha ideológica codificada foram depurados.  Os reflexos do jvadovismo foram sentidos no PCF, PCB, entre outros. Reagindo, o escritor Jorge Amado declarou:  "Atrevo-me a dizer que as ditaduras de esquerda são piores, pois contra as de direita pode-se lutar de peito aberto: quem o fizer contra  as de esquerdas acaba acusado[queimado]"  (Cf.: http://pt.wikipedia.org/wiki/Andrei_Jdanov).

[8] Exemplo de revolta movida pela ignorância da massa, foi a revolta popular contra a vacinação obrigatória antivariólica, ocorrida no Rio de Janeiro em novembro de 1904. Na análise de José Murilo de Carvalho (1987; 2004), seu aspecto mais interessante é que não teve um lado errado e um lado certo, bons e maus. Os dois lados estavam certos, ou os dois estavam errados, dependendo do ponto de vista. "[...] paralelepípedos revolvidos, que serviam de projéteis para essas depredações, coalhavam a via pública; em todos os pontos destroços de bondes quebrados e incendiados, portas arrancadas, colchões, latas, montes de pedras, mostravam os vestígios das barricadas feitas pela multidão agitada". A "multidão agitada" combatia a polícia atirando, jogando pedras, ou o que tivesse á mão, atacava delegacias, quartéis, casas de armas, postos de saúde, destruía bondes e postes de iluminação. Assustado, o governo convocou batalhões sediados em Niterói, Lorena e São João del Rei (CARVALHO, J. M. Razões que se opõem). Ver cap. 4 "Cidadãos ativos: a revolta da vacina". In: CARVALHO, J. M. Os bestializados. São Paulo: C. Letras, 1987.

[9] Mais precisamente em "O homem revoltado", Camus declara que: "o socialismo é um empreendimento de divinização do homem e adquiriu certas características das religiões tradicionais (...). "O marxismo pode ser entendido como uma espécie de religião que anuncia um amanhã longínquo".

Artigo publicado na Revista Espaço Acadêmico www.espacoacademico.com.br

 

 

 

Autor:

Raymundo de Lima

ray_lima[arroba]uol.com.br

Formado em Psicologia, Mestre em Psicologia Escolar (UGF) e Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é professor do Depto. Fundamentos da Educação, na área de Metodologia da Pesquisa, da Universidade Estadual de Maringá (UEM)



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