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Para compreender a Ontologia de Lukács (página 2)

Sergio Lessa

Em segundo lugar, porque demonstra a insuperável historicidade de todo o existente, desde o inorgânico, orgânico até o social. A historicidade comparece, ao final da Ontologia, como uma determinação ontológica universal por excelência.

Em terceiro lugar, e decorrente dos dois pontos anteriores, o confronto de Lukács com o pós-modernismo é radical porque demonstra que a essência é uma determinação da história, da qual é parte movida e movente, na feliz expressão do autor húngaro. A humanidade (ou, como prefere o "gênero humano") é um processo histórico no qual os atos singulares dos indivíduos se sintetizam em tendências históricas universais as quais, por sua vez, retroagem sobre a situação histórica em que vivem os indivíduos, articulando desse modo, em uma rica, contraditória e sempre dinâmica inter-relação os atos individuais com as tendências mais gerais do desenvolvimento humano. E, por fim, como a reação dos indivíduos à situação histórica concreta é sempre mediada pelas suas consciências, a subjetividade comparece como uma mediação insuperável de todos os processos históricos, sejam eles mais universais ou mais singulares.

A subjetividade, a personalidade de cada um de nós, é, portanto, uma mediação objetiva – isto é, que exerce efeitos objetivos, materiais -- da reprodução social. Apenas por ser subjetividade é que a idéia (e, por extensão, os complexos ideológicos) pode exercer uma ação efetiva, real, sobre o desenvolvimento dos processos sociais, sejam eles os mais singulares (a reprodução das personalidades dos indivíduos) ou as tendências históricas mais universais.

Cada um desses tópicos é uma questão fascinante e que tem merecido estudos aprofundados, na maior parte das vezes em pesquisas de pós-graduação. O que procuraremos argumentar, nesse artigo, é outro aspecto desse complexo de questões: toda essa articulação categorial apenas é possível porque tem o trabalho como a categoria fundante do mundo dos homens e, portanto, todos os outros complexos sociais são fundados pelo trabalho. De fato, sem a totalidade social ter seu momento fundante no trabalho, nenhuma das demonstrações que Lukács alega (até agora, pelo menos, com toda razão) haver retirado de Marx permaneceria de pé.

A razão de o trabalho ser a categoria fundante do mundo dos homens brota diretamente da história; ou seja, nem é uma dedução filosófica de qualquer tipo, nem sequer é um axioma. Ao menos não no pensamento de Lukács. Para o autor húngaro, como o ser social é precedido pelo desenvolvimento da vida, em particular pelo desenvolvimento dos hominídeos, herdamos a condição de que sem a transformação da natureza não há qualquer reprodução social possível na exata medida que não há qualquer reprodução biológica dos indivíduos. Portanto, converter a natureza nos meios de produção e de subsistência é a razão primeira da vida gregária dos humanos: vivemos em sociedade porque apenas assim podemos produzir o indispensável à nossa reprodução biológica e, portanto, para que o atendimento da condição primeira da reprodução social.

Em sendo assim, será nesse intercâmbio orgânico com a natureza que serão produzidas as necessidades e as possibilidades que tenderão a predominar ao longo da história (daqui o desenvolvimento das forças produtivas[2] ser o momento predominante do desenvolvimento das formações sociais). E é também aqui que tem seu fundamento o fato de ser o trabalho a categoria fundante do mundo dos homens. Será na transformação da natureza que serão produzidas as necessidades e possibilidades que tenderão a ser predominantes ao longo do tempo e que expressam o modo peculiar dos humanos converterem a natureza no que necessitam: apenas os humanos constroem na consciência antes de construírem objetivamente.

O fato de todo ato humano (e, portanto, não apenas o trabalho) ser a conversão em um ente objetivo de algo previamente idealizado (isto é, construído na consciência antes que na objetividade), faz com que a transformação do real favoreça o confronto entre o que pensamos acerca do mundo e o que de fato o mundo é. Ou seja, nossa concepção de mundo é colocada em xeque toda vez que agimos e, desse modo, é possível a produção de conhecimentos e habilidades que não se possuía antes.

Analogamente, ao produzir um novo ente (seja ele natureza transformada, como no caso do trabalho, ou uma nova relação social) a sociedade passa a contar com possibilidades e necessidades que não possuía antes. Portanto, ao produzir sua finalidade imediata, tanto o trabalho como os outros atos humanos geram necessidades e possibilidades, subjetivas e objetivas, que remetem para muito além das suas finalidades mais imediatas. É por isso que, em se tratando do trabalho, Lukács vai argumentar que ele remete sempre para além de si próprio, gera muito mais do que sua finalidade imediata, sendo por isso a origem de um processo de reprodução social que tende a ser muito mais amplo, rico e mediado que o próprio ato de trabalho.

Trabalho e reprodução social, desse modo, articulam-se de tal modo que um não pode existir fora da relação com o outro: todo trabalho é um momento da reprodução de uma dada formação social a qual, por sua vez, tem no padrão do intercâmbio orgânico que desdobra com a natureza (o trabalho), seu momento fundante. O trabalho escravo funda o escravismo mas, todavia, apenas pode existir no interior do modo de produção escravista; o mesmo para o trabalho servil e o feudalismo e o trabalho proletário e o capitalismo maduro, etc. Indivíduo e totalidade social, pessoa e história, estão, desse modo, ricamente articulados: não há ato individual (ou não há indivíduo) fora da reprodução social (ou, fora de uma formação social) pela mesma razão que sem indivíduos que agem cotidianamente não pode haver qualquer história.

Confrontada à densa e rica articulação categorial da Ontologia de Lukács, frente à sua demonstração do processo pelo qual os homens se fizeram humanos (ainda que alienadamente humanos), a debilidade das teses pós-modernas é tão palmar que apenas o fato de serem expressões ideológicas das misérias do presente confere a elas alguma aparência de verdade. Não é, por tudo isso, descabido dizer que encontramos na Ontologia de Lukács uma das obras que mais frontalmente se opõem à concepção de mundo pós-moderna.

Se a contribuição da obra póstuma de Lukács se limitasse a esse seu confronto com o pós-moderno, já seria de enorme monta. Todavia, há ainda outro aspecto no qual a Ontologia tem uma contribuição fundamental para o debate contemporâneo, agora mais especificamente no campo da esquerda. Ainda que seja uma questão bastante complexa, com vários aspectos muitas vezes indevidamente confundidos, é possível se resumir a questão nesses termos: o trabalho categoria fundante do mundo dos homens é sempre trabalho manual. Pois, no dizer de Marx,

"[...] como o homem precisa de um pulmão para respirar, ele precisa de uma 'criação da mão humana' para consumir produtivamente forças da natureza" (Marx, 1985: 17).

Não há qualquer sociabilidade que não tenha seu fundamento nessa relação com a natureza e, correlativamente, não há riqueza social que não seja produzida pelo trabalho manual. Os escravos produzem toda a riqueza do escravismo, os servos do feudalismo e os operários do capitalismo maduro. Essa é uma determinação ontológica decorrente de ser o trabalho fundante do mundo dos homens: é pelo trabalho das mãos (por mais complexo que ele se torne, por mais que tenha entre os dedos e a natureza toneladas de ferramentas, etc.) que a riqueza social é produzida. E daqui, também, que todo trabalho intelectual, momento de preparação, organização, coordenação, avaliação – de controle, enfim, do trabalho manual, não se confunde com a produção da riqueza das sociedades.

Essa tese causa, quase sempre, espanto: não seria hoje, com o desenvolvimento das novas tecnologias, a ciência (por exemplo) uma força produtiva? Para Habermas, certamente o seria. Para Lukács e para Marx, absolutamente não. Pois, tal como há uma enorme diferença ontológica entre o controle e organização do trabalho escravo pelo senhor de escravo (com o auxílio de seu empregado assalariado, o feitor ou o soldado) e a produção realizada pelo escravo, também há uma fundamental divisão de classe entre os indivíduos que realizam tais atividades. Os que realizam o controle do trabalho, o assim denominado trabalho intelectual, fazem parte da classe dominante ou de seus auxiliares assalariados.

Eles compõem a porção parasitária da sociedade que vive da riqueza produzida pelos escravos. Algo análogo (não semelhante porque há mediações inteiramente novas) ocorre no capitalismo contemporâneo: de um lado a burguesia e o que Marx denominou de "classes de transição", de outro lado os trabalhadores manuais que produzem o "conteúdo material da riqueza social" (Marx, 1983:46). Tanto na sociedade escravista, quanto na mais contemporânea, o caráter fundante do trabalho impõe, com rigor histórico, o peculiar caráter de classe de quem o realiza: escravos, servos e proletários.

Como se postulam marxistas uma boa parte das teses que afirmam o fim do proletariado, quer pela sua dissolução entre os assalariados, quer pela conversão da classe média em proletária, elas terminam enredas em um ecletismo sem remissão. Pois pretendem afirmar a tese marxiana do trabalho como categoria fundante do mundo dos homens e, ao mesmo tempo, postulam que há riqueza produzida fora do intercâmbio orgânico com a natureza, de tal modo que os assalariados em geral (e não apenas os proletários) seriam a gênese da riqueza capitalista. Se Lukács estiver correto, há uma contradição entre as teses da dissolução de classe (e, portanto, a dissolução da sua função na reprodução social) do proletariado e a tese do trabalho enquanto categoria fundante do mundo dos homens.

Postular pertencerem à mesma classe social os assalariados e os proletários apenas é possível, se Lukács estiver correto, pelo abandono do trabalho (do intercâmbio orgânico com a natureza) como a categoria fundante do mundo dos homens (por exemplo, Habermas), ou que adotemos uma definição de trabalho de modo a incluir nele outras atividades que não apenas o intercâmbio com a natureza (como ocorre com enorme freqüência nos dias de hoje).

Em outras palavras, as transformações técnicas e gerenciais contemporâneas, a crise estrutural do capital que é seu fundamento, por mais que alterem e modulem a relação entre as classes, não pode abolir o proletariado fabril e agrícola pela sua dissolução entre os assalariados. Sua existência decorre do caráter fundante do trabalho manual[3] que o proletariado realiza para a sociabilidade burguesa.  E, conseqüentemente, por ser a única classe que vive da riqueza que ela própria produz, é a classe revolucionária por excelência, pois a única classe que nada tem a perder com a superação da propriedade privada, das classes sociais, do Estado e do casamento monogâmico senão seus grilhões.

É isso, a nosso ver, que torna a obra de Lukács tão importante a ponto de se difundir entre nós -- e propiciar o surgimento de um corpo de pesquisadores não desprezível -- mesmo antes de ter sido traduzida. E é ao redor dessas questões que nos parecem centrais que organizamos o texto de introdução que agora vem a público.

__________

[1] A Ontologia de Lukács são os manuscritos deixados incompletos pelo autor húngaro quando de seu falecimento em 1971. Depois da edição italiana e alemã dos mesmos, ficaram organizados em dois textos. Um maior, corriqueiramente chamado de Ontologia ou Ontologia do Ser Social, contém o manuscrito intitulado Para uma ontologia do ser social. Este se divide em duas grandes partes, a primeira, histórica, que faz um balanço da situação da ontologia no século XX e, a segunda, dita sistemática, que contém os quatro capítulos intitulados Trabalho, Reprodução, Ideologia e Alienação. O segundo manuscrito, bem menor, contém os Prolegômenos, cujo nome completo é Prolegômenos a uma ontologia hoje tornada possível. Os direitos autorais desses manuscritos já foram diversas vezes adquiridos por editoras brasileiras. A última delas é a Boitempo, que detém os direitos de publicação em nosso país e que anunciou a intenção de publicar os Prolegômenos seguidos pelo texto da Ontologia. Para uma introdução acerca da relação entre os dois manuscritos de Lukács, o texto mais interessante é a introdução de Nicolas Tertulian à edição italiana dos Prolegômenos, publicado no Brasil, na revista Crítica Marxista n. 3, com o título de "Uma apresentação à Ontologia do ser social, de Lukács" (Tertulian, 1996).

[2] E não da técnica, é bom se assinalar dado o fetichismo da técnica tão comum em época de reestruturação produtiva.

[3] Desnecessário acrescentar que nem toda atividade manual é trabalho, como por exemplo a do escultor, do médico, etc.

Bibliografia

Anderson, P. (1998) The origins of Postmodernism. Verso, Londres.

Callinicos, A. (1989) Against Postmodernism. St. Martin Press, Nova Iorque.  

Harvey, D. (1992) Condição pós-moderna. Ed. Loyola, São Paulo.

Jameson, F. (1997) Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio. Editora Ática, São Paulo.

Lukács, G. (1990) Prolegomini all' Ontologia dell' Essere Sociale. Ed. Guerini e Associati, Milão.

Lukács, G. (Vol I, 1976, Vol II, 1981) Per una Ontologia dell'Essere Sociale. Ed. Rinuti, Roma.  

Marx, K. (1983, Tomo I, 1985, Tomo II) O Capital. Vol I, Ed. Abril Cultural, São Paulo.

Mészáros, I. (2002) Para além do capital, Boitempo, São Paulo.

Tertulian, N. (1996). Uma apresentação à Ontologia do ser social, de Lukács. Crítica Marxista, n. 3. Brasiliense, São Paulo

 

Autor:

Sergio Lessa

sergio_lessa[arroba]yahoo.com.br

Doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, docente da Universidade Federal de Alagoas e autor, dentre outros, de Para compreender a Ontologia de Lukács (Ijuí: Ed. Unijuí, 2007)

www.sergiolessa.com



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