Página anterior Voltar ao início do trabalhoPágina seguinte 


Democracia ao "estilo" dos EUA: uma história de intervenções e terrorismo de estado (página 2)

Dejalma Cremonese

El Salvador foi simplesmente "crucificado" pela intervenção dos EUA. Houve tortura e repressão aos movimentos populares, como associações camponesas, cooperativas, sindicatos e movimentos eclesiais de base que começavam se organizar democraticamente e, por isso, deveriam ser banidos, segundo o entendimento do governo americano. As atrocidades e a barbárie se instalaram em El Salvador. O dramático relato do padre católico Daniel Santiago evidencia tais atos: "As pessoas não são só assassinadas pelos esquadrões da morte em El Salvador. Elas são decapitadas e suas cabeças são postas em estacas e exibidas como parte da paisagem. Os homens não são só destripados pela polícia do Tesouro Salvadorenho; suas genitálias são decepadas e colocadas na boca. As mulheres salvadorenhas não são só violentadas pela Guarda Nacional, seus ventres são cortados e usados para cobrir o rosto. Não basta matar as crianças, elas são arrastadas sobre arames farpados até a carne soltar dos ossos, enquanto os pais são obrigados a assistir à cena" (Apud. CHOMSKY, 1999, 50-51).

O governo de Bill Clinton aprovou a liberação de 1,3 bilhão de dólares, de um total de 13 bilhões, para o "Plano Colômbia". Este pacote de "ajuda" tem como objetivo combater, de fachada, o narcotráfico e inclui 60 helicópteros para levar batalhões de militares treinados a uma ofensiva contra os traficantes de drogas e rebeldes que vigiam as plantações de drogas no Sul da Colômbia, onde é feita a maioria da cocaína e da heroína vendida nos Estados Unidos. Casualidade ou não, é no Sul da Colômbia que estão as duas províncias ocupadas e controladas pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, ou FARCs, a maior facção rebelde. O plano de combate ao narcotráfico, patrocinado pelo governo americano, consiste no uso de armas biológicas, isto é, agentes químicos, que atacariam o cultivo de coca, papoula e maconha. Porém, é importante ressaltar que essa guerra química é prejudicial ao meio ambiente e aos demais camponeses que vivem no país, já que estes agentes não atingem somente áreas com plantações de drogas e sim eliminam tudo o que vier pela frente. Os Estados Unidos já utilizaram armas similares em outras guerras, como a do Vietnã (1955-1979), onde patrocinou uma guerra militar e biológica utilizando o famoso agente laranja, que desfolhava a selva, e o agente azul, que dizimava as plantações de arroz, base da alimentação do povo vietkongs. Só para lembrar, os americanos apoiaram os sul-vietnamitas numa tentativa de impedir, sem sucesso, a formação de estado comunista. Morreram aproximadamente 1.800.000 vietkongs.

Nas publicações de 1993-94, dois dos maiores órgãos de Direitos Humanos, a American Watch e a Anistia Internacional, verificaram que a Colômbia tem um dos mais estarrecedores níveis de violência interna do hemisfério. Desde 1986, mais de vinte mil pessoas foram assassinadas por razões políticas, em sua maioria por militares e policiais colombianos e por forças paramilitares que estão unidas às forças militares, como o exército particular de fazendeiros, comerciantes de esmeraldas e o famoso negociante de drogas Victor Carranza, considerado o maior traficante do país. Essas organizações dedicam-se principalmente à destruição da oposição política de esquerda, a União Patriótica (UP). Mais de mil e quinhentos líderes, membros e simpatizantes da UP foram mortos desde que o partido foi fundado, em 1988. Essa eliminação sistemática da liderança da UP é a expressão mais dramática da intolerância política na Colômbia.

O pretexto para tanta violência é a guerra contra as guerrilhas e os narcotraficantes: a primeira, uma verdade parcial; a última, um mito, conclui a Anistia Internacional. Na realidade, as forças de segurança oficial e seus associados paramilitares trabalham de mãos dadas com os senhores da droga, o crime organizado, os proprietários de terras e outros interesses privados em um país onde os caminhos da ação social há muito foram eliminados. O alvo desses verdadeiros esquadrões da morte, que estão a serviço do Estado, são líderes comunitários, profissionais dos direitos humanos, funcionários da saúde, sindicalistas, estudantes e membros de organizações religiosas juvenis, jovens favelados e, principalmente, camponeses.

Diante de tais fatos, pergunta-se: qual é o verdadeiro interesse dos EUA na Colômbia? A preocupação essencial seria o fim do narcotráfico? Mas quem são os maiores consumidores de drogas do mundo? Porventura o interesse não está em desmantelar os movimentos sociais, os partidos de esquerda e os grupos revolucionários?

A política interveniente dos EUA atingiu outras partes do mundo, como o Timor Leste. Washington aceitou tranqüilamente o roubo do petróleo do Timor (com a participação de uma companhia norte-americana), apesar da transgressão da legalidade que isso representava e em detrimento de qualquer interpretação razoável dos acordos internacionais.

Poderíamos também chamar de atos de terrorismo às sanções que os EUA vêm aplicando ao Iraque. Por tais medidas tem-se destruído a vida de aproximadamente meio milhão de crianças iraquianas. Por que não nos indignamos pelo assassinato de 17.500 civis na invasão do Líbano, por mãos de Israel (afilhado dos EUA), ocorrida em 1982? O que dizer da famosa "Nova Ordem Mundial" inaugurada por George Bush (pai), edificada sobre os escombros de Bagdá e os cadáveres de 300.000 civis iraquianos? Isso ocorreu após a invasão do Iraque ao Kuwait, em 2 de agosto de 1990, quando a OTAN e os EUA decidiram impor um embargo econômico ao país, seguido de uma coalizão anti-Iraque, que ganhou o título de "Operação Tempestade no Deserto". As hostilidades começaram em 16 de janeiro de 1991, um dia depois do fim do prazo dado ao Iraque para retirar tropas do Kuwait.

Milhares de pessoas morreram nos anos 90 graças aos bombardeios e aos efeitos colaterais do governo de Bill Clinton na ex-Iugoslávia. Como explicar as bombas atômicas jogadas em Hiroshima e Nagasaki, no Japão, onde 210.000 habitantes pereceram sob a malevolência implacável de Harry Truman?

"No mínimo, eu queria um local para levar flores", afirmou uma mãe argentina ao referir-se a seu filho desaparecido. Ele e quase 30 mil estudantes, intelectuais e sindicalistas foram eliminados entre 1976 e 1983, quando o governo militar argentino praticou uma guerra não-declarada contra supostos 'esquerdistas'. Quem foi levado nunca mais foi visto. Tudo com o aval da CIA e a responsabilidade do governo dos EUA.

Na Guerra da Coréia (1950) deu-se o início do conflito entre República Democrática da Coréia (Norte) e República da Coréia (Sul). Os EUA participaram do lado dos sul-coreanos. Cerca de três milhões de pessoas morreram.

No Haiti, em 1994, tropas norte-americanas fortemente armadas chegaram por ar e mar e, com um acordo firmado de última hora, o general Raul Cédras prometeu deixar o governo. Assim, o presidente eleito, o exilado Jean-Bertrand Aristide, pôde tomar posse.

Na Somália, em 1992, as forças militares dos EUA chegaram para intervir numa guerra entre facções do então presidente Ali Mahdi Muhammad e tropas do general rebelde Farah Aidib. Porém, o objetivo dos EUA era impor sua política de dominação à Somália, que controlava a entrada do Golfo de Áden, passagem para o Mar Vermelho e o Canal de Suez. Este, por sua vez, liga o Oceano Índico ao Mar Mediterrâneo. Era uma rota de importância mundial estratégica, por servir os petroleiros que abastecem o Japão, a Europa e os Estados Unidos. Com a invasão da Somália, os Estados Unidos completavam seu domínio sobre a região. A invasão da Somália teve também uma importância simbólica: ela consagrou o poder dos Estados Unidos de intervir em qualquer ponto do planeta, bastando que esse tipo de operação fosse de interesse da Casa Branca.

Os Estados Unidos está há mais de meio século semeando destruição e morte no mundo, além de derrubar governos democráticos, como aconteceu no Chile, onde Salvador Allende foi assassinado pelas tropas de Pinochet com o apoio dos EUA. Da mesma forma, os EUA vêm impondo selvagens tiranias - como as de Hussein no Iraque, e dos talibãs no Afeganistão, e de Suharto, na Indonésia.

Os maiores ditadores, terroristas e exércitos mercenários foram aliados dos EUA num primeiro momento. Quando os mesmos tornaram-se independentes, foram considerados como inimigos. Somoza e Saddam Hussein, ambos eram aliados e considerados bons pelos Estados Unidos, logo se tornaram demônios que deveriam ser banidos. Osama bin Laden, o homem mais procurado do mundo, também foi treinado pela CIA, amado e armado pelo governo americano inicialmente, pois interessava aos EUA a existência de tropas mercenárias e terroristas que expulsassem os russos - a ameaça socialista - do Afeganistão. É necessário afirmar que, com a vitória das tropas do Afeganistão sobre os russos, a "ajuda" norte-americana cessou no exato momento do fim da guerra, deixando aquele povo na mais absoluta miséria.

A Indonésia é outro exemplo: transformou-se de inimigo em amigo quando o general Suharto tomou o poder em 1965, após um banho de sangue muito aplaudido no Ocidente. Suharto iria, rapidamente, tornar-se "o nosso tipo de cara" (our kind of guy), para retomar uma fórmula do governo Clinton, enquanto cometia agressões mortais e atrocidades sem conta contra seu próprio povo. Somente nos anos 80, contam-se 10 mil indonésios mortos pelas forças da ordem, segundo o testemunho pessoal do ditador, que explica também que "deixamos os cadáveres espalhados, como uma espécie de terapia de choque" (Apud. Charles Grass, Prospect, Londres, 1998).

Manuel Noriega (Panamá) e Saddam Hussein (Iraque) eram os grandes aliados dos EUA: Não foram os crimes cometidos por Saddam Hussein contra seu próprio povo, nem, sobretudo, a utilização - perfeitamente conhecida pelos serviços secretos norte-americanos - de armas químicas contra civis que metamorfosearam o ditador em "Monstro de Bagdá". Antes da invasão do Kuwait, os Estados Unidos haviam lhe manifestado um apoio tão indefectível que até deixaram passar o ataque da força aérea iraquiana contra o navio de guerra USS Stark (que fez 37 vítimas entre os marinheiros norte-americanos), um privilégio restrito até então a Israel (no caso de seu ataque "por engano" ao USS Liberty, em junho de 1967, que deixou 34 mortos). Eles haviam coordenado com Saddam Hussein a campanha diplomática, militar e econômica que levou, em 1989, à capitulação do Irã "diante de Bagdá e Washington", como escreveu o historiador Dilip Hiro. Tinham até encomendado a Saddam Hussein os serviços habituais de Estado vassalo: por exemplo, treinar centenas de mercenários líbios recrutados por norte-americanos para derrubar o coronel Kadhafi, como revelou Howard Teicher, um ex-assessor de Reagan. Se Saddam Hussein caiu para o lado dos "Estados-bandidos", foi porque saiu da linha e se mostrou desobediente, do mesmo modo que o criminoso de menor envergadura, Manuel Noriega, do Panamá, cujos principais crimes foram cometidos enquanto estava a serviço - remunerado - de Washington.

Os EUA instituíram os "Estados-bandidos" para classificar os estados "fora-da-lei". Um estudo secreto, datado de 1995, e tornado público recentemente graças à lei sobre liberdade de informação, delineava em linhas gerais a abordagem estratégica na aurora do novo milênio. Feito pelo Strategic Command, responsável pelo arsenal nuclear estratégico, e intitulado Essentials of Post-Cold War Deterrence (Princípios básicos de dissuasão no pós-Guerra Fria), o estudo mostra, segundo a agência Associated Press, "como os Estados Unidos modificaram sua estratégia de dissuasão, substituindo a União Soviética pelos Estados ditos "bandidos" ou "fora-da-lei": Iraque, Irã, Líbia, Síria, Cuba e Coréia do Norte".

Da mesma forma, Cuba e Sudão foram classificados como "Estados-bandidos". Cuba foi classificada na categoria por sua presumida implicação no "terrorismo internacional", mas não os Estados Unidos, que, no entanto, durante quase 40 anos, fizeram múltiplos ataques terroristas à ilha caribenha e diversas tentativas de assassinar Fidel Castro. No Sudão, em 1998, os Estados Unidos bombardearam uma suposta fábrica de armas químicas, que depois foi provado tratar-se de uma indústria farmacêutica, como afirmavam as autoridades de Cartum...

Segundo estudos de Steven Aftergood, pesquisador da Federação dos Cientistas Americanos, o orçamento da CIA nos últimos anos é estimado em aproximadamente 30 bilhões de dólares. Todo este montante o governo norte-americano gasta na espionagem de movimentos políticos em todo o mundo.

3- CONCLUSÃO

É necessário afirmar que o conceito de "terrorismo" não está ligado unicamente aos atentados à bomba, seqüestros de aviões, ou de outras ações violentas praticadas por extremistas ou fundamentalistas e que, conseqüentemente, pensamos nas vítimas inocentes que padecem sob tais atos. É preciso analisar o conceito de "terrorismo" de uma forma mais ampla, e perceber que seu método básico é a destruição da vida humana, em nome de certos princípios ideológicos, políticos ou religiosos e para isso é utilizada a própria estrutura do Estado para esse fim, pois todo ato de guerra é de terrorismo legalizado.

4- FONTES CONSULTADAS

ADIB, Jorge (ed.). Guerra e paz. Rio de Janeiro: Rio Gráfica, 1984 (7 volumes).

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

________. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1954.

BORON, Atilio A. "La guerra es terrorismo institucionalizado". Disponível em < http://www.pagina12.com.ar/2001/index.htm> (Argentina, 16 de setembro) acessado em 16 de setembro de 2001.

BOUTHOUL, Gaston. O desafio da guerra. Rio de Janeiro: BibliEx, 1979.

CHOMSKY, A. Noam. E se o "bandido" fosse os EUA? Publicado no Le Monde Diplomatique em agosto de 2000, disponível em acessado em 16 de setembro de 2001.

______. A luta de classes. Porto Alegre: Artmed, 1999.

______. A minoria próspera e a multidão inquieta. Brasília: Edunb, 1999.

______. Ano 501: a conquista continua. São Paulo: Scritta, 1993.

______. Camelot, os anos Kennedy. São Paulo: Scritta. 1993.

______. Diálogos com Mitsou Ronat. São Paulo: Cultrix, 1977.

______. Fue uma respuesta atroz a atrocidades de EE.UU. In. La Jornada. Disponível em

______. Globalização e educação. Blumenau: Efurb, 1999.

______. Linguagem e pensamento. Petrópolis: Vozes, 1977.

______. Novas e velhas ordens mundiais. São Paulo: Scritta, 1996.

______. O que o Tio Sam realmente quer. Brasília: Edunb, 1999.

______. Os caminhos do poder. Porto Alegre: Artmed, 1999.

______. Segredos, mentiras e democracia. Brasília: Edunb, 1999.

______. Sobre politica y linguistica. Barcelona: Anagrama, 1970.

______; ______. Os EUA contra os direitos humanos no Terceiro Mundo. In: ASSMANN, Hugo (ed.). A Trilateral: nova fase do capitalismo mundial. Petrópolis: Vozes, p.185-207, 1978.

______; HERMAN, Edward. Banhos de sangue. São Paulo: Difel, 1976.

Conflitos mundiais. Disponível em acessado dia 16 de setembro de 2001.

COTRIM, Gilberto. Fundamentos da Filosofia: ser, saber e fazer. São Paulo: Saraiva, 1995.

FISK, ROBERT. The Nation. Estados Unidos, septiembre del 2001. Disponível em acessado dia 15 de setembro de 2001.

Folha de São Paulo. Disponível em domingo 16 de setembro de 2001.

Instituto Internacional de Estudos Estratégicos. Military Balance, Londres, anuários.

Exército dos EUA. Military Review. Kansas City, mensal.

PETRAS, James. El "efecto boomerang". Disponível em acessado dia 17 de setembro de 2001.

PLATÃO. A República: obras completas. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993.

REDHEAD, Brian. O pensamento político, de Platão à OTAN. Rio de Janeiro:. Imago, 1989.

SADER, Emir. "Soberania e democracia na era de hegemonia Norte-americana". In. Fórum Social Mundial. Disponível em acessado dia 20 de setembro de 2001.

 

Autor:

Dejalma Cremonese

dcremo[arroba]hotmail.com

dcremo[arroba]uol.com.br

Professor do Departamento de Ciências Sociais da UNIJUÍ (RS). Doutorando em Ciência Política da UFRGS (Brasil)

Website: www.capitalsocialsul.com.br



 Página anterior Voltar ao início do trabalhoPágina seguinte 



As opiniões expressas em todos os documentos publicados aqui neste site são de responsabilidade exclusiva dos autores e não de Monografias.com. O objetivo de Monografias.com é disponibilizar o conhecimento para toda a sua comunidade. É de responsabilidade de cada leitor o eventual uso que venha a fazer desta informação. Em qualquer caso é obrigatória a citação bibliográfica completa, incluindo o autor e o site Monografias.com.