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Direito do trabalho, legislação trabalhista e inspeção do trabalho (página 2)

Nildo Viana

Michel Miaille, por sua vez, afirma que o termo direito possui um duplo significado: "Ele significa simultaneamente o conjunto de regras (ditas jurídicas) que regem o comportamento dos homens em sociedade e o conhecimento que se pode ter dessas regras. Esta dualidade é apresentada habitualmente nos manuais e cadeiras sob a distinção elegante dos vocábulos: direito-arte, direitociência" (Miaille, 1989: 25).

Uma posição semelhante à de Stucka e Pachukanis é apresentada por Roberto Aguiar:

O direito é um termômetro das relações sociais em dada sociedade pois, se de um lado ele é um dever-ser, um conjunto normativo ideológico, de outro ele é um fenômeno observável que surge dos conflitos sociais e serve para controlar esses mesmos conflitos. Assim, o direito é ideológico, é interessado, é parcial e é uma ordem emanada do poder para controlar os destinatários segundo os interesses e a ideologia dos grupos que legislam. (Aguiar, 1987: 15).

Todas estas definições apresentam, a nosso ver, elementos constituintes do direito. Ele é normativo (Lévy-Bruhl, Aguiar, Miaille), ideológico (Aguiar, Pachukanis), expressão das relações sociais (Stucka, Pachukanis, Aguiar). Entretanto, do nosso ponto de vista, nenhuma destas concepções conseguem abarcar a totalidade do fenômeno do direito.

O que é o direito? Tal como Marx colocou (e muitos reconheceram, embora não tenham retirado todas as conseqüências desta constatação, tal como é o caso de Stucka e Pachukanis) o direito é uma forma de regularização das relações sociais, ou seja, um elemento da superestrutura. Portanto ele é, ao mesmo tempo, expressão das relações de produção e uma das formas existentes de regularização destas relações e não só destas como também de todas as relações sociais que lhe são derivadas2.

Isto quer dizer, entre outras coisas, que o direito é ao mesmo tempo derivado e determinado pelo modo de produção e é um elemento que atua e interfere neste mesmo modo de produção, o que significa dizer que o direito não é, como algumas abordagens pretensamente marxistas afirmam, apenas um epifenômeno e sim uma relação social atuante e influente no desenvolvimento histórico da sociedade. O caráter ativo da "superestrutura" (ou das formas de regularização, sendo que a idéia de regularização já pressupõe o seu caráter ativo) foi ressaltado várias vezes por Marx e Engels. Engels deixa isto claro em uma carta endereçada à Joseph Bloch, onde coloca em evidência o caráter ativo das "constituições estabelecidas", das "formas jurídicas" e das "ideologias jurídicas":

Segundo a concepção materialista da história, o elemento determinante da história é, em última instância, a produção e a reprodução da vida real.

Nem Marx, nem eu dissemos outra coisa a não ser isto. Portanto, se alguém distorce esta afirmação para dizer que o elemento econômico é o único determinante, transforma-a numa frase sem sentido, abstrata e absurda. A situação econômica é a base, mas os diversos elementos da superestrutura — as formas políticas da luta de classes e seus resultados, a saber, as constituições estabelecidas uma vez ganha a batalha pela classe vitoriosa; as formas jurídicas e mesmo os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos participantes, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as concepções religiosas e seu desenvolvimento ulterior em sistemas dogmáticos — exercem igualmente sua ação sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam de maneira preponderante sua forma. Há ação e reação de todos estes fatores, no seio dos quais o movimento econômico acaba por se impor como uma necessidade através da infinita multidão de acidentes (ou seja, de coisas e acontecimentos cujo vínculo interno é tão tênue ou tão difícil de demonstrar que podemos considerá-lo como inexistente e negligenciálo). Se assim não fosse, a aplicação da teoria a qualquer período histórico determinado seria, creio, mais fácil do que a resolução de uma simples equação de primeiro grau. (Engels apud Marx & Engels, 1987: 29).

Tal definição, entretanto, é insuficiente, pois existem várias outras formas de regularização das relações sociais, tais como a cultura, a sociabilidade, a educação, o Estado, etc. Por isso é necessário esclarecer a especificidade que assume o direito em relação com as outras formas de regularização.

O direito, como toda forma de regularização das relações sociais, é, ele mesmo, uma relação social. Uma relação social só pode existir através de indivíduos e grupos que se relacionam. Por conseguinte, para o direito existir é necessário que existam indivíduos que lhe dêem vida e movimento. O direito surge com a expansão da divisão social do trabalho e, conseqüentemente, a formação de especialistas que formam um grupo social que fornece materialidade a este fenômeno social. Estes especialistas são os juristas, advogados, promotores, professores da área de direito, etc.

O sociólogo Pierre Bourdieu, em sua "Sociologia do Campo Jurídico", conseguiu entrever este caráter do direito. Isto se deve à sua concepção de campo jurídico. Segundo ele:

Para romper com a ideologia da independência do direito e do corpo judicial, sem se cair na visão oposta, é preciso levar em linha de conta aquilo que as duas visões antagonistas, internalista e externalista, ignoram uma e outra, quer dizer, a existência de um universo social relativamente independente em relação às pressões externas, no interior do qual se produz e se exerce a autoridade jurídica, forma por excelência da violência simbólica legítima cujo monopólio pertence ao Estado e que se pode combinar com o exercício da força física. As práticas e discursos jurídicos são, com efeito, produto do funcionamento de um campo cuja lógica específica está duplamente determinada: por um lado, pelas relações de força específicas que lhe conferem sua estrutura e que orientam as lutas de concorrência ou, mais precisamente, os conflitos de competência que nele têm lugar e, por outro lado, pela lógica interna das obras jurídicas que delimitam em cada momento o espaço dos possíveis e, deste modo, o universos das soluções propriamente jurídicas. (Bourdieu, 1989: 211)3.

Karl Kautski e Friedrich Engels também já haviam notado o surgimento de uma profissão específica de cientistas do direito, juristas do direito privado, etc., que, inclusive, permite o surgimento da ideologia jurídica que toma o direito como esfera autônoma e auto-suficiente que possui um "desenvolvimento histórico independente" (Kautski & Engels: 1995). Isto também foi observado por Max Weber que considera que o "direito racional" (moderno) se formou por diversos motivos, entre os quais os interesses capitalistas, abrindo "caminho à predominância do direito e à administração de uma classe de juristas especialmente treinados na legislação racional" (Weber, 1987: 10).

A partir desta concepção se concebe o direito como expressão e regularização das relações sociais que tem como materialidade os agentes concretos e os meios materiais para agir sobre a sociedade. Ele faz isto no sentido de reproduzir as relações de produção (capitalistas, no caso do direito moderno) e o conjunto das relações sociais derivadas delas através de normas obrigatórias e da sentença, no caso da transgressão da norma. Nesta definição encontramos reunidos todos os componentes do direito que foram erigidos como "o direito". Esta é uma visão da totalidade do direito e não uma visão parcial deste fenômeno, com todas as suas limitações.

Desta forma podemos observar que o direito se caracteriza por ser uma forma de regularização das relações sociais através de normas e sentenças e que por isso possui um caráter normativo que se fundamenta num código escrito4. Ele existe graças aos agentes e meios (tribunal, por exemplo) que lhe fornecem sua materialidade e criam as ideologias jurídicas, que são a autoconsciência (falsa, neste caso) de sua existência. Mas o direito é, também e principalmente, expressão das relações de produção, ou seja, das lutas de classes. A regularização que ele busca efetivar através das normas e sentenças é restringida e limitada pelo modo de produção dominante e por isso se pode dizer que o direito possui uma autonomia relativa e não uma autonomia absoluta. Mas o que interessa ressaltar aqui é que as características do direito (o caráter normativo, ideológico, relativamente autônomo e determinado pelas relações de produção) são consideradas aspectos componentes desta forma específica de relação social. O direito só existe através do Estado e é por isso que, tal como este, ele defende geralmente sua autonomia e neutralidade em relação aos conflitos de classe, buscando, assim, garantir sua legitimidade.

A realidade viva do direito é marcada pelo desenvolvimento histórico da sociedade que o engendra e o determina e por um conjunto de relações sociais que são externas (a ação recíproca entre o direito, isto é, os seus agentes, e a sociedade) e internas (a constituição dos agentes do direito, suas formas de procedimento e conflitos internos, a divisão social do trabalho no seu próprio interior). A partir desta definição do direito podemos prosseguir nosso estudo e focalizar o direito do trabalho de forma específica.

O direito do trabalho é um produto da dupla expansão da divisão social do trabalho: a que ocorre na sociedade como um todo e a que ocorre no interior do próprio direito. Sem dúvida, é a expansão da divisão social do trabalho na sociedade que gera a expansão da divisão social do trabalho no direito.

Segundo Carlos Simões:

O direito do trabalho, como criação imanente do regime de produção sob as leis do capital, inicia então (...) seu curso na direção da negociação das condições de trabalho, sob a teoria do contrato geral das obrigações. Com a generalização da relação de emprego emerge um padrão normativo entre as partes, de início baseado nos costumes. As normas gerais não emergem mecanicamente da estrutura capitalista; ao contrário, constituem-se historicamente, de acordo com a formação social a considerar, especialmente a natureza dos processos de trabalho e o nível de organização dos trabalhadores. Inicia-se com regularização do trabalho de mulheres e menores, o funcionamento dos sindicatos (...) a legislação de acidentes do trabalho e higiene, legislação do trabalho de mineiros, ferroviários e estivadores. Neste sentido a regulamentação do trabalho generaliza-se, inclusive internacionalmente, a partir do Tratado de Versalhes e a organização interna do trabalho, por abstração das particularidades originais e apreensão dos princípios gerais adequados às diversas formações sociais. (Simões, 1979: 169).

O que observamos a partir desta citação é que a legislação trabalhista vai se formando e desenvolvendo a partir da consolidação e expansão das relações de produção capitalistas e das lutas de classes e isto fornece o material social que irá ser trabalhado pelo direito do trabalho. Isto quer dizer, entre outras coisas, que, do nosso ponto de vista, direito do trabalho e legislação trabalhista não são a mesma coisa. O direito do trabalho, como o direito em geral, possui um caráter normativo (expresso na legislação trabalhista) mas também é uma ideologia e possui agentes especializados que lhe dá vida, entre outros aspectos. Em outras palavras, a legislação trabalhista faz parte do direito do trabalho mas este é mais amplo do que aquela, pois possui diversos aspectos não incluídos nela.

A expansão e generalização das relações de produção capitalistas e a ascensão do movimento operário produzem a legislação trabalhista, ou seja, o material para a existência do direito do trabalho. Mas só surge uma forma especializada do direito, o direito do trabalho, devido à expansão da divisão capitalista do trabalho e dos conflitos sociais, que produzem uma ampla divisão interna no próprio direito (o direito criminal, o direito tributário, o direito comercial, etc.). O processo de divisão social do trabalho na sociedade capitalista é tão amplo que produz divisões internas no próprio direito do trabalho, que se vê dividido em diversos campos de jurisdição específicos5.

O direito do trabalho passa a ser o espaço reservado para aqueles que irão se especializar (pois com a crescente complexificação e abrangência do direito se torna difícil para um indivíduo dominar todas as divisões do direito, com sua legislação específica, sua relações sociais abrangidas, suas ideologias, etc.) na interpretação, julgamento e organização (inclusive institucional) do direito do trabalho. Desta forma surge uma esfera especializada na área do direito, o direito do trabalho, que surge graças ao conflito capital-trabalho e das leis derivadas de tal conflito.

A legislação trabalhista é o conjunto de leis produzidas para regularizar as relações de trabalho existentes na sociedade capitalista. Ela nasce com a emergência do trabalhador "juridicamente" livre, isto é, com a instituição do contrato livre de trabalho6 e com seu desenvolvimento vai se tornando cada vez mais abrangente. Portanto, a legislação trabalhista tem sua origem nas relações de trabalho capitalistas. Ela é a expressão jurídica destas relações e, ao mesmo tempo, uma tentativa de sua regularização.

A partir disto temos que considerar algumas características da legislação em geral, a saber: a legislação é produto de um determinado contexto da luta de classes (correlação de forças); as leis devem ser adequadas às relações sociais reais, sob pena de se tornarem "leis mortas"; não só a existência mas sua aplicação é resultado de um determinado contexto da luta de classes; a legislação possui um caráter inercial e por isso sua alteração é mais lenta do que as transformações sociais.

A necessidade de se buscar realizar uma regularização das relações de trabalho surge dos conflitos oriundos daí. Marx analisa o processo de luta de classes que gera a legislação trabalhista, tal como se vê na seguinte afirmação:

"O estabelecimento de uma jornada normal de trabalho é o resultado de uma luta multissecular entre capitalista e trabalhador. Entretanto, a história dessa luta mostra duas tendências opostas. Compare-se, por exemplo, a legislação fabril inglesa de nosso tempo com os estatutos ingleses do trabalho do século XIV até bem na metade do século XVIII. Enquanto a moderna lei fabril reduz compulsoriamente a jornada de trabalho, aqueles estatutos procuravam compulsoriamente prolongá-la. Sem dúvida, as pretensões do capital, em seu estado embrionário, quando ele ainda virá a ser, portanto, em que ainda não assegura mediante a simples força das condições econômicas, mas também mediantes a ajuda do poder do Estado, seu direito de absorver um quantum suficiente de mais-trabalho parecem até modestas, se as comparam com as concessões que ele tem de fazer rosnando e resistindo, em sua idade adulta. Custou séculos para que o trabalhador "livre", como resultado do modo de produção capitalista desenvolvido, consentisse voluntariamente, isto é, socialmente coagido, em vender todo o seu tempo ativo de sua vida, até sua própria capacidade de trabalho, pelo preço de seus meios de subsistência habituais, e seu direito à primogenitura por um prato de lentilhas. É natural, portanto, que a prolongação da jornada de trabalho, que o capital procura impor aos trabalhadores adultos por meio da força do Estado, da metade do século XIV ao fim do século XVIII, coincida aproximadamente com a limitação do tempo de trabalho que, na segunda metade do século XIX, é imposta pelo Estado, aqui e acolá, à transformação de sangue infantil em capital. (Marx, 1988a: 206-207).

Esta "luta multissecular" entre capitalistas e trabalhadores possui duas tendências: por um lado, o capital busca aumentar a extração de mais-trabalho e por isso lança mão de diversos meios (incluindo a intervenção estatal em seu favor) e, por outro, a classe operária resiste e busca impor limites à exploração capitalista. Esta luta invade o espaço legal, atingindo a regularização das relações de trabalho através da legislação. A classe operária ao resistir e combater o capital conquista concessões através da legislação trabalhista. Porém, este é apenas um primeiro momento da luta. É preciso, após a criação das leis, efetivar uma luta intensa para conseguir sua aplicação. Historicamente, tal como Marx colocou, as primeiras conquistas da classe operária no plano legal não foram concretizadas na prática:

Logo que a classe trabalhadora, atordoada pelo barulho da produção, recobrou de algum modo os seus sentidos, começou sua resistência, primeira na terra natal da grande indústria, na Inglaterra. Contudo, durante três decênios, as concessões conquistadas por ela permaneceram puramente nominais. O parlamento promulgou, de 1802 até 1833, 5 leis sobre o trabalho, mas foi tão astuto que não voltou um tostão sequer para sua aplicação compulsória, para os funcionários necessários etc. Essas leis permaneceram letra morta. (Marx, 1988: 211).

Por conseguinte, podemos dizer que a aplicação efetiva das leis também deriva da correlação de forças entre as classes sociais. Entretanto, cumpre lembrar que as leis não podem ser totalmente dissonante com as relações sociais reais e com a correlação de forças num dado momento. Segundo Stucka:

Suponhamos que um monarca absoluto promulgue uma lei ordenando que seja detido o curso de um rio ou o nascimento de um herdeiro, etc. Semelhantes leis entram em vigor? É obvio que não. Elas nada ordenam. Por mais absoluto que seja o monarca, a sua "vontade" está limitada: leis desse tipo não são promulgadas, mas só lhe são atribuídas pelos humoristas. Ele próprio sabe que somente leis humanas que não se oponham às leis da natureza ou do movimento (do "desenvolvimento") das relações sociais podem influir efetivamente nos sistemas das relações sociais. Naturalmente, existem, por toda parte, exemplos de leis que já nasceram mortas, e, à primeira vista, pode parecer estranho que sejam tão poucas mesmo naqueles tempos em que ninguém imaginava ou conhecia a existência dessas leis do desenvolvimento. (Stucka, 1988: 73).

Dessa forma, podemos dizer que a legislação é, tal como o direito em geral, expressão e regularização das relações sociais. Como expressão ela deve estar adequada às relações sociais, que impõem limites e obstáculos a qualquer pretensão pouco realista7. Ao mesmo tempo, ela atua sobre estas relações sociais, buscando regularizá-las, o que significa dizer que ela também não ultrapassa e não pode ultrapassar estas relações (ela pode provocar alterações formais mas não pode realizar transformações radicais, tal como, por exemplo, substituir as relações de trabalho capitalistas por relações de trabalho de caráter socialista). Mas no interior destas relações é possível que a legislação possa atuar sobre diversos aspectos e assim favorecer, dentro dos seus limites, o capital ou o trabalho, o que, em última instância, sempre beneficia o primeiro.

Outra característica da legislação é o seu caráter inercial. A legislação nunca consegue acompanhar o desenvolvimento das mudanças sociais, estando sempre em atraso em relação a elas8. Isto se deve ao fato de que a legislação deve ser elaborada para regularizar relações sociais já existentes e ela não pode prever as mudanças que ocorrerão em tais relações e o processo de elaboração de leis (com certas exceções, tais como os "decretos" e "atos institucionais" promulgados pelo poder executivo, principalmente durante os regimes ditatoriais) é lento e deve passar por diversas instâncias e isto só ocorre dependendo da correlação de forças entre as classes sociais. Cabe lembrar aqui a posição de E. Erlich, segundo a qual, a mudança social não gera automática e imediatamente a mudança jurídica.

Portanto, a legislação é expressão e regularização das relações sociais e devido a estes aspectos ela é fundamentalmente conservadora, pois expressa as relações sociais existentes e quando atua sobre elas (demonstrando o seu caráter ativo) é para regularizá-las, ou seja, torná-las regular, manter sua permanência e regularidade. É claro que, dependendo do contexto da luta de classes, ela pode beneficiar a classe operária, porém dentro dos limites do modo de produção capitalista. O seu caráter conservador se expressa na sua impossibilidade de ultrapassar as relações sociais capitalistas. Mas a legislação não pode alterar ou criar relações sociais? Pode instaurar relações sociais específicas que correspondem às necessidades gerais de regularização legal das relações sociais e que estão de acordo com as relações de produção capitalistas, tal como uma nova lei de trânsito que altera a relação entre pedestre e motorista ou que cria uma nova instituição estatal, o que significa criar novas relações sociais, tanto internas que surgem na instituição estatal quanto externas que expressam as relações de tal instituição com a sociedade.

Isto que foi dito sobre a legislação em geral também vale para a legislação trabalhista em particular. O surgimento e a aplicação desta também é produto da correlação de forças, as leis trabalhistas devem ser adequadas às relações sociais reais, ela também possui um caráter inercial, pois é somente através da pressão da classe operária que as relações de trabalho são regularizadas, já que é de interesse do capital não haver nenhuma regularização, o que facilita a "livre exploração". A legislação trabalhista produz limitações para a efetivação de um domínio absoluto da classe capitalista sobre a classe operária (Korsch, 1980).

Portanto, é assim que podemos compreender a emergência histórica do direito, do direito do trabalho e da legislação trabalhista: como um resultado da luta de classes. Mas a existência da legislação trabalhista não garante sua aplicação e é por isso que ela é, ao mesmo tempo, condição de possibilidade da inspeção do trabalho e, em certo aspecto, depende, para sua efetivação, da luta operária e, decorrente disto, da própria inspeção do trabalho.

O Estado, segundo a tradição marxista, sempre foi considerado um instrumento da classe dominante. Tal idéia é derivada da famosa afirmação de Marx e Engels, segundo a qual, "o governo não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a burguesia" (Marx e Engels, 1988:78).

Esta idéia foi retomada por diversos seguidores de Marx (Lênin, 1987).O Estado aparece assim como um instrumento ou representante da classe dominante ou, segundo expressão de Engels, como "capitalista coletivo ideal". Sem dúvida, o Estado representa os interesses da classe dominante. Isto ocorre por diversos motivos. Em primeiro lugar, é o fato de que ele é absorvido pela dinâmica do movimento do capital. Tal idéia já se encontra em Marx e foi desenvolvida pela chamada "Escola Derivacionista" (Hirsch, 1990; Salama e Mathias, 1981), segundo a qual o Estado é derivado do modo de produção capitalista9.

O Estado tem que seguir a dinâmica da acumulação de capital e faz isto de formas diferentes em países capitalistas diferentes. Nos países capitalistas superdesenvolvidos (EUA, Europa Ocidental, Japão) seu principal objetivo é combater a tendência à queda da taxa de lucro médio e nos países capitalistas retardatários ("Terceiro Mundo") é criar uma infra-estrutura para o desenvolvimento capitalista. Por conseguinte, observamos que o Estado representa os interesses da classe dominante mas a ênfase aqui se coloca sobre seu intervencionismo no processo de produção (ou, como diriam alguns, seu "papel econômico"). Outros, tal como Lênin, irão enfatizar a ação repressiva do Estado através de sua intervenção direta nas lutas de classes (tal intervenção se dá através do exército, da força policial, etc. e atua reprimindo a mobilização da classe operária expressa em greves, manifestações, organização revolucionária, etc.). Alguns irão enfatizar que, ao lado do papel repressivo, o Estado também desempenha um papel ideológico, tal como coloca Louis Althusser com sua concepção dos "aparelhos ideológicos do Estado" (Althusser, 1989).

Entretanto, a nosso ver, esta distinção entre "papéis" do Estado é ilusória, pois o conflito capital-trabalho se forma e se fundamenta nas relações de produção mas se generaliza para todas as esferas da vida social e por isso atinge não só o processo de produção e reprodução do capital mas também o mundo das idéias, da ação política concreta, da vida social em geral e o Estado é a principal forma de regularização destas relações sociais e atua sob múltiplas formas: "econômica", "política", "repressiva", "ideológica", etc. Assim, a referência a papéis do Estado tem um valor ilustrativo destas formas de ação estatal e não um caráter de expressão da natureza ou essência do Estado (Viana, 2003).

O Estado, portanto, é expressão política da classe dominante e seu objetivo é reproduzir as relações de produção capitalistas sob as mais variadas formas. Mas como explicar a ação estatal fora da esfera da produção a partir da perspectiva de que o Estado é absorvido pela dinâmica do modo de produção capitalista? Podemos explicar isto lembrando que a dinâmica do capital é a determinação fundamental do Estado mas não a única, pois, como já dizia Marx, seguindo Hegel, "o concreto é o resultado de suas múltiplas determinações" (Marx, 1983) e para entender os outros aspectos da ação estatal é preciso reconhecer suas outras determinações.

Em primeiro lugar, podemos definir o Estado como uma relação social de dominação de classe cujo objetivo é reproduzir as relações de produção dominantes (Viana, 2003). A forma como ele busca concretizar este objetivo varia de acordo com o modo de produção e por isso nos limitaremos ao caso do Estado capitalista, que é derivado do modo de produção capitalista. Esta relação social de dominação de classe não é efetivada diretamente pela classe dominante pois ela é mediada por um conjunto de agentes especializados que possuem os meios materiais necessários para realizar seus objetivos.

Estes "agentes especializados" formam o que chamamos de burocracia estatal e estes "meios materiais" são as leis, as instituições, as instalações, os recursos, etc., pertencentes ao Estado. A burocracia é um elemento fundamental para se entender o caráter de classe do Estado capitalista. A burocracia é sempre conservadora, pois ela só mantém sua existência com a conservação da instituição que ela dirige. A burocracia estatal, por conseguinte, deve buscar conservar o Estado para continuar existindo. Para manter o Estado ela precisa manter a estabilidade social e evitar as crises e conflitos, ou seja, precisa buscar manter e regularizar as relações de classes existentes. Por conseguinte, a burocracia estatal, independentemente de sua vontade e intenção, representa o interesse geral da classe dominante.

Outro fator que garante a supremacia da burguesia na esfera estatal é a sua supremacia financeira na sociedade, o que garante maior possibilidade de fornecer membros para a burocracia estatal, conquistar o governo através do processo eleitoral, etc. Além disso, a burguesia possui um poder de pressão sobre o Estado incomparavelmente maior que qualquer outra classe social. Isto tudo é reforçado por sua hegemonia (cultural, ideológica, moral) na sociedade civil que tem uma influência direta sobre o Estado.

Estas determinações reforçam o caráter de classe do Estado capitalista. Neste sentido, o Estado representa os interesses da classe dominante. Mas a partir desta concepção não se torna impossível compreender a teoria da autonomia relativa do Estado? É o que buscaremos responder a partir de agora.

A partir da tese de que o Estado é uma expressão política da classe dominante surgiram diversas interpretações simplistas da concepção de Estado de Marx. O Estado seria, segundo a interpretação dominante, tão-somente um instrumento da classe dominante.

Mas tal concepção foi contestada. Antônio Gramsci, por exemplo, apresentaria o que alguns chamam de "concepção ampliada do Estado". Segundo esta concepção, o Estado não é apenas a sociedade política (o aparelho de Estado) mas também a sociedade civil (igrejas, partidos, sindicatos, família, etc.). A partir desta concepção surge a idéia de que o Estado não é apenas um "instrumento" da classe dominante e sim o resultado de uma correlação de forças, cuja luta central tem como palco a sociedade civil, que é onde as classes sociais buscam conquistar a hegemonia (Gramsci, 1988; Coutinho, 1985)10.

O debate entre estas duas correntes interpretativas continua até dos dias atuais. Porém, julgamos que o próprio Marx já havia superado estas duas possibilidades de compreensão do Estado. Sem dúvida, para Marx, o Estado representa os interesses da classe dominante11, mas possui, ao mesmo tempo, uma autonomia relativa.

Em que consiste esta autonomia relativa? Consiste no fato de que o Estado não é dirigido diretamente pela classe dominante e que ele pode se voltar contra indivíduos ou frações pertencentes a esta classe e que pode realizar concessões para outras classes sociais. De onde vem esta capacidade do Estado? Esta capacidade de autonomização do Estado é produto da sua materialidade: a burocracia. Segundo Marx:

Esse poder executivo, com sua imensa organização burocrática e militar, com sua engenhosa máquina do Estado, abrangendo amplas camadas com um exército de funcionários totalizando meio milhão, além de mais meio milhão de tropas regulares, esse tremendo corpo de parasitas que envolve como uma teia o corpo da sociedade francesa e sufoca todos os seus poros, surgiu ao tempo da monarquia absoluta, com o declínio do sistema feudal, que contribuiu para apressar. (...). A primeira revolução francesa, em sua tarefa de quebrar todos os poderes independentes — locais, territoriais, urbanos e provinciais — a fim de estabelecer a unificação civil da nação, tinha forçosamente que desenvolver o que a monarquia absoluta começara: a centralização, mas ao mesmo tempo o âmbito, os atributos e os agentes do poder governamental. Napoleão aperfeiçoara essa máquina estatal. A monarquia legitimista e a monarquia de julho nada mais fizeram do que acrescentar maior divisão do trabalho, que crescia na mesma proporção em que a divisão do trabalho dentro da sociedade burguesa criava novos grupos de interesses e, por conseguinte, novo material para a administração do Estado. (...). finalmente, em sua luta contra a revolução, a república parlamentar viuse forçada a consolidar, juntamente com as medidas repressivas, os recursos e a centralização do poder governamental. (Marx, 1986:113114 – grifos meus).

O que Marx apresenta é a visão do crescimento, consolidação e importância crescente da burocracia estatal. Marx acrescenta que "sob a monarquia absoluta, durante a primeira revolução, a burocracia era apenas o meio de preparar o domínio de classe da burguesia. Sob a restauração, sob Luís Felipe, sob a República Parlamentar, era o instrumento da classe dominante, por muito que lutasse por estabelecer seu próprio domínio" (Marx, 1986:114).

Portanto, Marx coloca que a burocracia lutava para "estabelecer o seu próprio domínio", o que significa que ela possui interesses próprios. Ao buscar satisfazer seus próprios interesses (estabelecer seu próprio domínio) a burocracia estatal concretiza uma maior autonomização do Estado (Viana, 2003). O Estado capitalista, em qualquer período histórico, possui uma autonomia relativa, mas em certos momentos esta autonomia se torna ainda maior. É o caso do período bonapartista na França, analisado por Marx.

No caso do bonapartismo analisado por Marx, o que se vê é a busca da burocracia estatal em conseguir apoio de determinadas classes sociais para manter sua autonomia. Tal busca de autonomia provocava a aparência de uma autonomia absoluta, completa12. Mas devemos ressaltar que esta autonomia é relativa, pois, tal como Marx colocou, por mais que a burocracia buscasse implantar seu próprio domínio, continuava servindo aos interesses da classe dominante. Por conseguinte, podemos concluir que para Marx a autonomia relativa do Estado se manifesta através da burocracia estatal. Um elemento adicional para se compreender a burocracia estatal se encontra na distinção entre a burocracia permanente (exército, funcionários de carreira, etc.) e burocracia provisória (governo). Ambas compõem o bloco dominante ao lado da burguesia.

Como conceber as instituições estatais a partir da idéia de autonomia relativa do Estado? Podemos dizer que elas também possuem uma autonomia relativa e que esta autonomia se manifesta através dos agentes que lhes dão vida. Isto foi colocado, por exemplo, no caso do direito (aparelho judiciário).

Porém, cabe ressaltar que as instituições estatais possuem uma autonomia relativa mais ampla. Isto decorre do fato de que estas instituições (autarquias, fundações, escolas, etc.) possuem um contato mais direto com a população ou parte dela. Isto as tornam mais sensíveis à pressão social. Além disso, elas possuem uma certa autonomia em relação à burocracia do Estado, pois sua dinâmica de atuação está voltada para a instituição que elas dirigem diretamente.

No caso específico da inspeção do trabalho, podemos dizer que são os agentes responsáveis pela inspeção do trabalho que expressam sua autonomia relativa. No entanto, esta autonomia é relativa e não absoluta. Em primeiro lugar devemos colocar que a inspeção do trabalho possui um conjunto de agentes, os inspetores do trabalho, que assumem um determinado papel na divisão social do trabalho e derivado disso criam seus próprios interesses, ideologias, concepções, etc. É por isso que surge a divisão no interior da própria inspeção do trabalho. Os inspetores do trabalho, tal como todo corpo especializado em nossa sociedade, busca justificar sua existência e legitimar as suas atividades especializadas. Isto ocorre de forma quase sempre inintencional, ou seja, sem nenhuma intenção ou planejamento a priori.

A divisão da sociedade em classes sociais antagônicas se reflete no mundo da inspeção do trabalho e daí surge as duas visões que buscam justificá-la e legitimá-la. As ideologias e concepções que surgem neste contexto acabam influenciando os inspetores e suas atividades. A primeira concepção que busca legitimar e justificar a inspeção do trabalho é a que defende a neutralidade da inspeção do trabalho, pois ela seria "neutra", tal como o Estado capitalista. A segunda concepção defende a tese de que a inspeção do trabalho tem como objetivo realizar a "proteção dos trabalhadores". A ideologia da neutralidade justifica e legitima a inspeção do trabalho através da idéia de que ela está acima dos conflitos de classes e de que sua missão é conquistar o bem comum. A concepção da "proteção dos trabalhadores" justifica e legitima a inspeção do trabalho através da idéia de que ela deve proteger os oprimidos dos abusos dos empregadores. Porém, a ideologia da neutralidade apresenta implicitamente a idéia de uma suposta autonomia (absoluta) da inspeção do trabalho enquanto que a outra reconhece sua ligação com as lutas sociais13.

De qualquer forma, a inspeção do trabalho busca se autonomizar e possui um elemento importante que lhe facilita realizar este processo: a legislação. A legislação e a função da inspeção do trabalho em assegurar o seu cumprimento amplia o seu campo de ação e sua autonomia. Porém, ela precisa dos recursos necessários para efetivar isto e estes são distribuídos pelo Estado. Isto significa que o maior ou menor grau de autonomização da inspeção do trabalho (em relação ao Estado) depende das lutas sociais e da pressão social. Isto pode deixar entrever que a inspeção do trabalho tem interesse no desenvolvimento das lutas operárias e na sua divulgação junto ao movimento dos trabalhadores, pois, com a pressão deste, ela pode se fortalecer.

A compreensão da relação entre inspeção do trabalho e luta de classes é fundamental. A inspeção do trabalho é instituída pelo Estado e tem sua base de atuação fundamentada na legislação, na política do Estado e nas lutas de classes. A legislação e a política estatal também estão envolvidas pela luta de classes. Por conseguinte, a determinação fundamental da inspeção do trabalho é a luta de classes.

A força ou fraqueza da inspeção do trabalho está relacionada com a força ou fraqueza do movimento operário. A existência de uma legislação trabalhista favorável aos trabalhadores depende fundamentalmente da luta operária e o mesmo ocorre com a política estatal referente à inspeção do trabalho (Viana, 1999), tal como colocamos anteriormente.

Porém, o que nos interessa aqui é a relação direta entre inspeção do trabalho e luta de classes. Em primeiro lugar, devemos lembrar que existe uma luta de classes na produção (Magaline, 1977; Barsted, 1982; Cleaver, 1981; Viana, 2003) e que a legislação trabalhista pode interferir nela, desde que seja efetivamente aplicada. A inspeção do trabalho interfere no sentido de assegurar a aplicação da lei e quando ela concretiza isto ocorre a manutenção da exploração capitalista dentro dos limites legais. Mas a inspeção do trabalho nem sempre cumpre com sua função, seja pela falta de meios materiais, seja pela própria posição assumida pela inspeção do trabalho. No segundo caso, entra a questão de qual classe social possui hegemonia no interior da inspeção do trabalho.

Ocorre, assim, uma cisão no interior da inspeção do trabalho: de um lado, um segmento submetido pela hegemonia burguesa, de outro, um segmento que busca, dentro de determinados limites, defender os interesses do proletariado.

O setor submetido à hegemonia burguesa apresenta uma ideologia bem definida: a inspeção do trabalho deve ser neutra e seu papel deve ser fundamentalmente de aconselhamento e não de repressão. Este setor apresenta uma interpretação das normas da OIT – Organização Internacional do Trabalho – num sentido bastante conservador. Ele, das três funções principais da inspeção do trabalho (assegurar a aplicação da lei, fornecer informações e conselhos técnicos, chamar a atenção da autoridade competente sobre deficiências da legislação), presentes nas Normas Internacionais do Trabalho da OIT, enfatiza a segunda, ou seja, a função de fornecer informações e conselhos técnicos. Daí a sua visão de que a tarefa da inspeção do trabalho é fundamentalmente o aconselhamento. Quando toca na função de assegurar a aplicação da lei a desvia para a mera fiscalização das empresas (sendo que na verdade, tal fiscalização é apenas uma etapa preliminar que deve desembocar na repressão daqueles que infringiram as leis). A terceira função nunca é lembrada e isto reforça a idéia de que o inspetor deve ser neutro e seguir o que diz a lei.

Esta perspectiva da inspeção do trabalho não só se submete à hegemonia burguesa como, na prática, beneficia a classe capitalista, pois, ao evitar em assegurar o cumprimento da lei e proteger os trabalhadores, permite a expansão da exploração capitalista para além dos limites legais.

O setor da inspeção do trabalho que busca a "proteção dos trabalhadores" possui uma concepção diferente. Tal setor não aceita a ideologia da neutralidade e assume explicitamente a posição de que inspeção do trabalho deve ter como papel a "proteção dos trabalhadores". Este setor também apresenta uma interpretação própria das funções da inspeção do trabalho contidas nas normas da OIT. Das três funções principais da OIT, ela enfatiza a de assegurar a aplicação da legislação. Neste sentido, este setor enfatiza o aspecto repressivo da inspeção do trabalho em contraposição ao aspecto conciliador contido na segunda função (fornecer informações e conselhos técnicos) enfatizada pelo outro setor. As outras duas funções são relegadas a um segundo plano.

Assim, observamos que para haver inspeção do trabalho é preciso, além do surgimento do conflito capital-trabalho, que é sua razão de ser, uma legislação trabalhista, um corpo especializado de inspetores do trabalho com poderes e condições adequadas de trabalho, uma pressão social para a efetiva aplicação da legislação trabalhista. Também observamos que no decorrer do processo histórico marcado por lutas sociais vai se constituindo a inspeção do trabalho em diversos países.

No interior do corpo de inspeção do trabalho existem duas posições principais a respeito do papel da inspeção do trabalho. Segundo um determinado ponto de vista, a inspeção do trabalho deve se limitar a fiscalização da lei a ao aconselhamento das partes em conflito, mantendo uma posição de neutralidade. Segundo um outro ponto de vista, a inspeção do trabalho deve se posicionar a favor da classe trabalhadora, pois sua função seria a de proteção dos trabalhadores assegurando a aplicação da legislação trabalhista.

O primeiro ponto de vista assume uma postura nitidamente conservadora, pois não só postula uma neutralidade impossível como também retrocede em relação às próprias Convenções da OIT. O segundo ponto de vista pode ser contestado a partir de uma perspectiva revolucionária, pois, a partir desta perspectiva, a função da inspeção do trabalho seria a de proteger os trabalhadores dentro dos limites da legislação trabalhista, que regulariza e torna lei as relações de trabalho instituídas pelo capital e que são marcadas pela exploração. Neste sentido, a inspeção do trabalho possuiria um papel conservador, já que não ultrapassaria as relações jurídicas instituídas pelo capital e ao realizar a proteção dos trabalhadores dentro dos limites legais reforçaria a ideologia da neutralidade do Estado, contribuindo, assim, com a legitimação das relações sociais existentes.

Entretanto, um terceiro ponto de vista pode ser apresentado. O conflito entre capital-trabalho gera a necessidade de regularização das relações de trabalho através da legislação trabalhista instituída pelo Estado. A inspeção do trabalho também é instituída pelo Estado para assegurar a aplicação desta legislação. O conflito capital-trabalho ocorre tanto na esfera das relações de trabalho (que se trata da luta em torno do mais-valor que provoca uma disputa em torno do tempo de trabalho e da produtividade, o que significa uma luta cotidiana no interior das fábricas e empresas) quanto em outras esferas, tal como na esfera jurídica, que é, por exemplo, onde se regulariza a jornada de trabalho. Por conseguinte, podemos observar que a intervenção da inspeção do trabalho nos locais de trabalho é uma interferência no conflito cotidiano entre capital e trabalho no interesse dos trabalhadores, pois quem infringe as leis é a classe capitalista visando aumentar seu lucro e não a classe trabalhadora que não tem força suficiente para infringir a lei em seu favor (o que ocorre somente em períodos revolucionários, quando há greve de ocupação ativa, etc.).

Assim, a inspeção do trabalho não ultrapassa os marcos das relações de trabalho da sociedade capitalista, mas pode, no interior deste limite, expressar os interesses imediatos da classe trabalhadora. Porém, não pode expressar imediatamente seus interesses históricos (a transformação social). Determinados interesses imediatos da classe trabalhadora entram em contradição com seus interesses históricos. Por exemplo, o aumento salarial é um interesse imediato da classe trabalhadora, mas não ultrapassa os marcos da sociedade capitalista, pois isto só tem sentido no interior de relações salariais. Tal interesse imediato, no entanto, caso se concretize, significando aumento de salário real, não entra em contradição com seus interesses históricos, pois cria dificuldades para a reprodução do capital (diminuição da taxa de lucro) e assim beneficia uma luta mais profunda ao acirrar as contradições da sociedade capitalista.

Na esfera jurídica, por sua vez, predominam os interesses da classe capitalista mas a classe trabalhadora também pode conquistar concessões nesta esfera e o exemplo da redução da jornada de trabalho confirma isto (Marx, 1988a). Por conseguinte, se a classe trabalhadora consegue arrancar concessões nesta esfera, ela precisa, num segundo momento, fazer com que tais concessões sejam efetivadas na prática. Para conseguir isto ela precisa de um amplo movimento e assim pressionar o Estado neste sentido. Desta forma podemos dizer que foi o desenvolvimento das lutas sociais dos trabalhadores que produziu a legislação trabalhista e posteriormente a inspeção do trabalho.

Apesar disso, a legislação trabalhista e a inspeção do trabalho nem sempre beneficiam a classe trabalhadora, pois isso depende da correlação de forças num dado momento histórico. Em determinado período histórico, dependendo da correlação de forças, a legislação trabalhista e a inspeção do trabalho podem estar mais ou menos favorável aos interesses da classe trabalhadora. Na atualidade, por exemplo, há um processo de desregulamentação das relações de trabalho, o que significa um solapamento tanto da legislação trabalhista quanto da inspeção do trabalho.

Esta correlação de forças também atinge o próprio corpo dos inspetores do trabalho, pois ele não está imune aos conflitos sociais. A inspeção do trabalho, por possuir, tal como já colocamos, uma autonomia relativa mais ampla que o Estado e ter uma maior proximidade e ligação com a sociedade civil, pode se autonomizar e defender sua função de proteção dos trabalhadores, mesmo porque sua sobrevivência depende desta proteção, a não ser que ela se descaracterize por completo e deixe de ser inspeção do trabalho.

A inspeção do trabalho possui um corpo de inspetores do trabalho que, ao se desenvolver, criam interesses e ideologias próprias. Como ela é perpassada pelos conflitos de classes e realiza sua atuação no coração da luta de classes – nas relações de trabalho –, então ela acaba se dividindo internamente, entre os que tomam partido da classe capitalista e os que tomam partido da classe operária.

Essa divisão interna da inspeção do trabalho possui diversas causas e varia de país para país. Entre as principais causas desta divisão podemos citar a origem social dos inspetores, os interesses próprios derivados da própria organização e objetivo da inspeção do trabalho, da relação da inspeção do trabalho com o Estado, os conflitos sociais e a sociedade civil como um todo, a dinâmica da própria inspeção do trabalho e suas organizações sindicais, etc. Mas todos esses aspectos podem ser derivados das lutas de classes que os constituem.

Dessa forma, a definição de inspeção do trabalho, segundo a qual a inspeção do trabalho é resultado do conflito e correlação de forças entre capital e trabalho e consiste em ser um serviço estatal que tem como objetivo assegurar o cumprimento da legislação trabalhista, ou seja, que busca efetivar a regularização das relações de trabalho imposta pela legislação trabalhista, deve ser complementada. Podemos acrescentar colocando que este é um serviço estatal relativamente autônomo realizado por um grupo social específico que possui interesses particulares e ideologias próprias. É assim que a inspeção do trabalho se insere na dinâmica da luta de classes. O objetivo do presente texto foi abordar as relações entre direito do trabalho, legislação trabalhista e inspeção do trabalho visando entender a inspeção do trabalho e suas determinações e assim pudemos observar que a dinâmica da luta de classes fornece tanto o material quanto a razão de ser da inspeção do trabalho.

NOTAS

1. Também existem divergências entre estes dois autores (por exemplo: para Pachukanis o direito só existe de forma plena na sociedade capitalista com seu caráter mercantil enquanto que para Stucka ele existiu também em sociedades pré-capitalistas, tais como a sociedade escravista e feudal) convivendo com convergências, o que se nota não só na polêmica entre eles, mas também nas críticas que eles endereçam a outros (cf. Stucka, 1988; Pachukanis, 1988); para uma análise e contextualização histórica da obra destes e de outros pretensos marxistas russos que se debruçaram sobre a questão do direito, veja-se: Cerroni, 1976.

2. Sobre as formas de regularização das relações sociais, veja: Viana, 1997.

3. Karl Kautski e Friedrich Engels também já haviam notado o surgimento de uma profissão específica de cientistas do direito, juristas do direito privado, etc., que, inclusive, permite o surgimento da ideologia jurídica que toma o direito como esfera autônoma e auto-suficiente que possui um "desenvolvimento histórico independente" (Kautski & Engels, 1995). Isto também foi observado por Max Weber que considera que o "direito racional" (moderno) se formou por diversos motivos, entre os quais os interesses capitalistas, abrindo "caminho à predominância do direito e à administração de uma classe de juristas especialmente treinados na legislação racional" (Weber, 1987: 10).

4. Existe um amplo debate sobre a universalidade ou não do direito. Para alguns, o direito é universal, ou seja, se encontra em todas as sociedades (o direito não estaria, neste caso, relacionado com códigos escritos e onde não existe esta organização judicial se pode falar em "direito consuetudinário" instaurado pelo costume). Para outros, o direito propriamente dito só existe na sociedade moderna, enquanto que alguns limitam sua existência à algumas sociedades de classes (o que incluiria o modo de produção escravista e tributário, além, é claro, do capitalismo). O antropólogo Jack Goody afirma o seguinte: "o próprio fato de a lei existir na forma escrita traz uma profunda diferença, em primeiro lugar relativamente à natureza de suas fontes, em segundo lugar aos modos de modificar as regras, em terceiro lugar ao processo judicial, e em quarto à organização do tribunal. Com efeito, toca a natureza das próprias regras" (Goody, 1987: 156). A posição de que o direito só existe em sociedades complexas também é defendida por Engels (cf. Engels, 1975) e Pachukanis (cf. Pachukanis, 1988) enquanto que a outra posição é defendida por, entre outros, Stucka (1988) e Shelton Davis, Max Glucksman e outros antropólogos (cf. Davis, 1973).

5. "Ao desenvolvimento da divisão social do trabalho vai correspondendo a divisão do direito social como desdobramento específico de uma seção do velho direito civil. A jurisdição sobre as relações de trabalho passa a articular-se de acordo com tensões sociais específicas, que adquirem colorações distintas, como a da relação privada frente à relação pública de emprego (...); relação urbana frente à relação agrária de emprego (...); relação trabalhista no sentido estrito frente à relação previdenciária, ou seja, direito dos trabalhadores ativos em relação com o trabalho suspenso ou encerrado (...); direito individual frente ao direito coletivo ou sindical; e finalmente como direito nacional distinto do direito internacional do trabalho" (Simões, 1979: 170).

6. Segundo Korsch, "comparado com as formas servis de trabalho da Idade Média, o "contrato livre de trabalho" constitui um progresso real não só da perspectiva da classe burguesa mas também da classe trabalhadora" (1980, p. 8). "Apesar disso, na sociedade burguesa a classe dos assalariados não é livre e não possui os mesmos direitos que a classe capitalista, e portanto, cada um dos trabalhadores pertencentes à classe assalariada não goza na sociedade burguesa de verdadeira liberdade nem de uma verdadeira igualdade de direitos com os membros da classe capitalista dominante. Isto se mostra tanto em sua posição social geral (sua condição de vida geral) como especialmente em sua posição na empresa (sua relação de trabalho) (Korsch, 1980: 09).

7. É o que Rosa Luxemburgo quis dizer quando afirmou que não se pode realizar o socialismo por decreto: "esta transformação e esta mudança [a instauração do socialismo – NV] não podem ser decretadas por nenhuma autoridade, comissão ou Parlamento: só a própria massa pode empreendê-las e realizá-las" (Cf. Luxemburgo, 1991:101).

8. Esta relação entre mudança jurídica e mudança social é tratada por muitos autores, entre os quais Erlich e Renner. Sobre estes dois autores, veja-se um comentário em: Lopes, 1988. Juan Rámon Capella chega mesmo a afirmar que o direito atual é tão inercial que é, na verdade, um "direito pré-industrial", pois o conceito fundamental do direito, segundo este autor, é o de propriedade, mas "a propriedade que o código civil se refere – e isto é mais que evidente – é pura e simplesmente a propriedade da terra. Com o código na mão, qualquer pessoa saberá o que deve fazer à árvore do vizinho que lhe cair em cima, à terra arrastada pelo regato, ou se pode apoiar uma viga em muro alheio; porém, nada saberá responder aos problemas em que se pensa quando se fala de propriedade em sentido mais moderno. A propriedade escapa ao código" (Capella , 1977:15).

9. Isto é visível em Marx quando ele trata da acumulação primitiva e do movimento do capital comercial que engendra o movimento do capital industrial e faz como que o Estado absolutista siga a dinâmica deste movimento (cf. Marx, 1988b; Viana, 2003). Sobre a concepção da Escola Derivacionista, veja-se: Salama & Mathias (1981); Hirsch, (1990).

10. Mais recentemente esta idéia do Estado como "correlação de forças" foi retomada por Poulantzas (1990), o que entra em contradição com sua concepção anterior inspirada no althusserianismo (cf. Poulantzas, 1977; Poulantzas, 1981).

11. Cabe lembrar que Marx utilizou a expressão instrumento e tal expressão dá margem a diversas interpretações equivocadas.

12. "Unicamente sob o segundo Bonaparte o Estado parece tornar-se completamente autônomo" (Marx, 1986:114).

13. Pierre Bourdieu ressaltou que no interior de um "campo" sempre existem disputas. No campo artístico, por exemplo, existem os artistas que defendem a ilusão da autonomia da arte (illusio ou fetichismo da arte, segundo linguagem de Bourdieu) e outros que propõem uma arte engajada (Cf. Bourdieu, Pierre. As Regras da Arte. São Paulo, Companhia das Letras, 1996).

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Autor:

Nildo Viana

nildoviana[arroba]terra.com.br

Professor da UEG – Universidade Estadual de Goiás e Doutor em Sociologia/UnB. Disponível em http://www.faculdadeanicuns.edu.br



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