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Por um mundo onde caibam muitos mundos (página 2)

Alexander Maximilian Hilsenbeck Filho

Cabe ressaltar que esses elementos de homogeneização do Estado-nação, decorrentes do modo de produção capitalista, são importantes para demarcarmos a trajetória de exclusão e opressão sofrida pelos pueblos indígenas. Contudo, as novas configurações do capitalismo, bem como o papel do Estado e das empresas transnacionais, parecem se basear não tanto na homogeneização, mas na forma de exaltação da diferença, na ode ao multiculturalismo. A diversidade adquiriu novo status.

A denominada globalização do capital está mais complexa e funciona a partir de certos mecanismos que buscam aproveitar a diversidade sociocultural, procura a inclusão universal das identidades. Para tanto, recorre à dissolução das bases comunitárias da identidade, da sua expressão coletiva e a "substitui" por identidades individuais, por identificações de todo tipo, por "pseudo-identidades", sem substratos coletivos (DÍAZ-POLANCO, 2005).

Não se propaga mais uma "homogeneização cultural", ao contrário, se "exalta" a diversidade, sob a ideologia multiculturalista, mas se busca converter a pluralidade de culturas como meio de reprodução e expansão do capitalismo, pois se centra somente na "cultura", relegando ao ostracismo as diferenças econômicas e sociopolíticas. Esse processo de assimilação e devoração das identidades étnicas é denominado de "etnofagia" por Díaz-Polanco (2005), na qual se busca primeiro a "inclusão" cultural no sistema, desde que as diferenças sejam consideradas como não essenciais ou ignorada sua existência, o que possibilita um consenso coincidente. Em realidade, se extirpa o potencial conflitivo, contestatório das diversas subjetividades, se retira sua resistência substancial e se as assimila à organização capitalista, através de sua dissolução gradual, forjando ligações íntimas com o consumismo, pois limitam as opções de vida e enquadram o cotidiano a padrões similares de consumo de produtos, objetos e serviços.

A diversidade é exaltada, afirmada, defendida e aceita, desde que nos estritos marcos de tolerância do capitalismo, que em sua atual face procura uma "diversidade sem diferença". Daí a relevância de identidades com fortes laços comunitários e solidários, como os pueblos indígenas, que se encontram em resistência frente ao capital, pois diante de um quadro de mercantilização da reprodução da força de trabalho, a construção dessas identidades coletivas em rebeldia se converte em espaços de resistência ou de subversão (CECEÑA, 2005).

Parte significativa da população mexicana enxerga os indígenas como sujeitos inferiores; eles são alvos de racismo, gozação e menosprezo. Subestimam-se idiomas, religiões, culturas, direitos e ainda a condição humana dos povos índios (MUÑOZ, 2002). Esta visão contrasta imediatamente com outra, a de ostentação do passado pré-hispânico, no México existe uma tendência para entender a problemática indígena entre a assimilação e a segregação, como dois pólos de um pêndulo[4].

Dados estes fatos, faz-se compreensível que uma das grandes bandeiras de luta zapatista seja a de reconhecimento da dignidade indígena. Luta, aliás, em que os insurgentes têm conquistado grandes avanços, modificando, em boa medida, a percepção da sociedade mexicana (e mesmo mundial) sobre os pueblos indígenas e suas condições sociais e agregando diversos pueblos numa luta comum. Contudo, quando partimos de uma análise que busca compreender as contradições internas do movimento zapatista, percebe-se que se faz necessária uma crítica ao discurso e à concepção histórica dos insurgentes e, o que é pior, reproduzida por diversos analistas.

É comum no discurso zapatista a referência a uma história que remonta há mais de 500 anos, como forma de legitimar sua luta, incorporando-a na longa tradição de resistência indígena e mexicana, o que leva os insurgentes a realizarem uma reconstrução da própria história do país e, sobretudo dos indígenas, ressignificando valores e linguagens. Tal foco auto-referente levou muitos analistas, nos primeiros momentos do levante, a se equivocarem e enxergarem no EZLN uma tentativa de oposição à modernidade a partir da volta a um passado mítico, como se fosse uma rebelião milenarista. Transcorrido o tempo histórico e aclarados os objetivos e projetos zapatistas, percebe-se que a realidade é completamente outra. Apesar de sua composição social – majoritariamente indígena – o levante zapatista está longe de ser um movimento somente étnico, menos ainda que busque a instauração de uma sociedade puramente indígena e a separação do Estado mexicano. Muito pelo contrário, os insurgentes chiapanecos procuram se integrar efetivamente ao país, eles querem permanecer indígenas, mas também mexicanos, e como eles próprios afirmam, querem um "mundo onde caibam muitos mundos".

Entretanto, acreditamos que essa questão se torna problemática (com implicações práticas, mas nesse caso, especialmente, teóricas e analíticas), quando se idealizam os pueblos indígenas, suas práticas sociais e políticas passadas, como se o simples fato de ser indígena denotasse uma categoria moral superior. É recorrente nos discursos zapatistas (bem mais do que nos textos), uma perspectiva de que diversas categorias que o movimento maneja atualmente já estavam presentes nas comunidades antes da Conquista espanhola, como uma forma se não superior, ao menos harmônica de justiça, de democracia direta, distribuição igualitária dos bens e uma forma de vida mais idílica. Não é necessário muito para rechaçar essas idealizações, ainda que elementos dessas formas sociais pudessem estar presentes em tais comunidades[5].

Acreditamos que o movimento zapatista deva ser entendido como um movimento de "liberação" e não somente de "identidade", pois isto significa uma ampliação dos horizontes políticos, incorporando outras questões que transcendem – ainda que se entrelacem com – as étnicas, como a relação com o poder, a mudança de regimes políticos e mesmo a questão da emancipação humana em sua luta contra a mercantilização de cada vez mais aspectos da vida social.

Os indígenas estão integrados e se relacionam com uma estrutura política e econômica de matriz classista, por isso sua luta de resistência se dá no enfrentamento de classes sociais e seus representantes, e não com um mundo genérico não indígena, o ocidental. Portanto, a questão indígena não pode ser reduzida e restrita ao âmbito cultural, porque se trata de um fenômeno sóciopolítico e devem-se incorporar, em sua análise, todas as dimensões possíveis de uma perspectiva integral (GABRIEL; LÓPEZ y RIVAS, 2005). Sendo assim, pode-se depreender que os zapatistas, ao ampliarem sua luta a "todos os diferentes", a "todos os excluídos", aos "de baixo", estão a construir muito mais uma cultura anticapitalista do que a busca de inserção dentro desse sistema. Da mesma forma, essa cultura é construída sobre a base das culturas indígenas e de diversos outros elementos da cultura moderna do ocidente capitalista, com vistas a remodelar o funcionamento interno das próprias comunidades índias, através de uma síntese dialética entre as culturas capitalistas e pré-capitalistas. Busca-se, portanto, gerar uma forma de organização social qualitativamente superior, que auxilie na geração de práticas atuais da luta antisistêmica em todo o mundo.

Ainda assim, é certo que algumas expressões da luta do EZLN são, marcadamente, lutas por identificação, mas não se restringem a tal. No caso específico dos indígenas zapatistas de Chiapas, trata-se de uma identificação que nega a si mesma no processo de identificar. É um movimento antagônico de identidade e não-identidade, que está para além do processo de identificação enquanto indígenas. É a expressão de um movimento dialético que luta no âmbito do pensamento e da prática, busca no próprio processo de identificação a sua superação, não se limitando a uma identidade particular que pode ser mais facilmente absorvida e assimilada pelo capital, em um mundo repleto de identidades fragmentadas (HOLLOWAY, 2003).

Dado que não encontramos "ilhas utópicas", onde os indígenas possam desfrutar de uma situação de liberdade fora do sistema social, percebe-se que a luta indígena na América Latina, de forma mais ampla, em múltiplas de suas expressões, tem passado de reivindicações setoriais e demandas pontuais para uma luta de tipo político mais abrangente, impondo não apenas o respeito à diferença étnica, mas também demandas de caráter global e anti-sistêmico. Isto os leva a atuarem, política e socialmente, de forma também globalizada e transnacional[6].

É necessário que se coloque a urgência da superação radical desse modo de produção e organização social, que se destrua seus mecanismos centrais. Não se pode combater o capitalismo apenas de modo aparente, em pequenos aspectos que podem ser facilmente re-assimilados, pois, assim, se recolocaria a força da lógica sistêmica e totalizadora do capital, reproduzindo a submissão a um sistema produtor de exploração e desigualdades.

A modificação da sociedade tem que englobar todos os aspectos da reconstrução da vida social através da crítica radical a tudo o que fundamenta essa sociedade (como o mundo da reificação, da ideologia, do Estado e suas cisões, do trabalhador-mercadoria, da hierarquia e burocracia, da dicotomia público X privado, indivíduo X sociedade, a objetificação do sujeito, a sujeição aos objetos, o racismo, as questões de gênero, étnicas).

O enfrentamento ao sistema capitalista se situa no plano da totalidade porque seja nos confins do México, nas ruas da Argentina, nos campos do Brasil, trata-se de um enfrentamento do ser humano em prol de uma existência humanizada.

Parece-nos que uma das grandes forças do zapatismo reside precisamente no fato de conseguir compreender como seus interesses não são distintos dos interesses e aspirações de todos os que sofrem a exploração e opressão generalizada desse sistema e, portanto, o problema não se encontra apenas – ele também se encontra, mas não tão somente – no estatuto dos indígenas no capitalismo, mas no próprio capitalismo, que é criticado hoje pelos indígenas.

VI Declaração da Selva Lacandona e a Outra Campanha: por um mundo desde baixo e à esquerda

Ao longo desses 14 e 24 anos (de insurreição pública e formação do EZLN) o seu projeto não esteve isento de contradições, retrocessos e ambigüidades – às vezes propositais – porém, se deve perceber suas continuidades, profundidade e universalidade. O zapatismo tem variado sua política, táticas, estratégias e mesmo algumas teorias, no decorrer desses anos, ainda que, em nossa opinião, não tenha chegado a romper uma continuidade essencial desde seu surgimento.

Dito isto, não pretendemos negar as transformações que ocorreram no interior do zapatismo, de suas categorias interpretativas e abertura a outras formas de pensamento e ação. Afinal, a historicidade do processo de luta aberta pelos zapatistas atravessa distintos momentos. Contudo, tampouco negamos o caráter marxista e das tradições de esquerda que se mantêm no EZLN, como apressadamente o fazem diversos analistas sociais do movimento. O conteúdo indígena no zapatismo é evidente (e não apenas físico, mas na concepção mesma de mundo), porém o que enfatizamos é que não necessariamente há um antagonismo fundamental, inconciliável, entre a concepção indígena-camponesa e a guerrilheira marxista, que formaram o EZLN. Aliás, o sincretismo na gênese do zapatismo é comumente aceito por quase todos os analistas. Contudo, não obstante essa constatação, muitos teóricos insistem no predomínio de uma ou outra perspectiva, ressaltando a vertente indígena em negação à marxista (compreendida muitas vezes de forma vulgar); ou dá-se ênfase na tradição política da esquerda e negam-se os avanços das lutas indígenas, no máximo limitando-as à concepção de inserção no sistema, de forma mais "justa" e "plural", através da luta pelo reconhecimento dos seus direitos e acesso a elementos da modernidade. Nos parece que uma das características centrais do zapatismo reside em sua capacidade de se reinventar, de se auto-questionar e, ao mesmo tempo, interrogar as experiências passadas e presentes de luta social, de saber aproveitar elementos da dupla vertente de seu sincretismo[7].

Na verdade, a própria práxis política dos insurgentes levou a uma síntese dialética integradora dessas duas vertentes, síntese das tradições indígenas e tradições de esquerda, inclusive com a sua renovação após 1968, e também das tradições de luta mexicanas. Neste sentido, para Aguirre Rojas (2006), o zapatismo é um movimento de novo tipo, que anuncia, de certa forma, como serão os movimentos antisistêmicos de oposição ao capitalismo num futuro breve, pois há no zapatismo aportes importantes para compreender quais as vias concretas pelas quais poderão transitar as lutas organizadas anticapitalistas. E para Raúl Zibechi (2004), o zapatismo é a expressão mais acabada de uma nova geração de movimentos sociais e populares, que vem amadurecendo e crescendo desde os fins dos anos 1960, caracterizados pela ruptura com velhas formas de fazer política (centradas exclusivamente na classe operária, nos partidos de esquerda e tendo por referência o Estado). Os "novos movimentos", como o zapatismo, representam, assim, uma dupla resposta ao esgotamento dos modelos clássicos e à reestruturação do processo de acumulação, sendo expressão das transformações do capitalismo.

Atualmente, uma das maiores tentativas do EZLN de romper o isolamento e a fragmentação das lutas sociais dos "de baixo" e superar o medo da construção de "outro mundo" está na VI Declaração da Selva Lacandona e na Outra Campanha[8]. Dentre as múltiplas leituras possíveis dessas propostas, queremos aqui destacar alguns pontos.

Com a Outra Campanha – que se constitui como frente operativa da VI Declaração – os rebeldes chiapanecos não recaem no mero pragmatismo; ao contrário, abrem a possibilidade de discutir com outros movimentos, organizações, coletivos e indivíduos as melhores vias para se combater o capitalismo. Os zapatistas já efetivam certa reconstrução do poder social desde baixo, em uma escala local, em seus 14 anos ininterruptos de exercício de autogoverno em Chiapas; com a VI Declaração e a Outra Campanha se coloca a questão de como fazê-lo em âmbito nacional, em conjunto com uma forte e ampla rede de setores subalternos em rebeldia, em uma estratégia com organizações sociais, movimentos, coletivos e indivíduos bem delimitados no campo da luta política e da luta de classes. Para tanto, os insurgentes têm utilizado uma série de meios: de viagens por todo país pelo Subcomandante Marcos, denominado de Delegado Zero, e a Delegação Zapatista (tendo por proposta viajar por todo o México, ouvindo e debatendo sobre os problemas e as formas de resistência de distintas organizações sociais); a debates públicos, variados encontros[9] e formas de participação, para apresentar propostas de como lutar contra o capitalismo e criar um programa nacional de lutas, num exemplo inédito, sobretudo por se tratar de um exército guerrilheiro, de tentativa de organização e criação de uma contra-hegemonia desde baixo e democraticamente para as lutas de esquerda nacional e globalmente.

Segundo Immanuel Wallerstein (2006), ao lançar a Outra Campanha os zapatistas relançaram também um debate maior sobre a estratégia da esquerda mundial. E ela teria duas expectativas em curto prazo, que as autonomias de fato se estabeleçam em outras regiões do país, e também que a força combinada das múltiplas autonomias seja capaz de criar uma imensa pressão sobre o Estado, para obrigá-lo a reconhecê-las juridicamente.

E, neste sentido, cabe perguntar-se, de que forma é possível converter diversas rebeldias incipientes, embrionárias formas civis de luta, em anticapitalistas? Em sua aposta, o EZLN pode acabar encontrando um eco reduzido na Outra Campanha, em paralelo ao que ocorreu em diferentes ocasiões, quando o movimento tentou construir amplas frentes de oposição. Essas experiências, de uma maneira ou outra, acabaram sendo frustradas e mostraram forte debilidade, seja por parte da – muitas vezes difusa – "sociedade civil", seja pela tentativa de cooptação e incapacidade de integração dos tradicionais partidos e movimentos de esquerda[10].

Ligada intimamente a essas questões está a problemática que se coloca para toda a luta emancipatória da classe trabalhadora hoje em dia, que procure acabar efetivamente com as relações de exploração. Atualmente o mundo se organiza por capitalistas – com extrema coesão transnacional, com mentalidade cosmopolita e supranacional, através da multiplicidade de organizações que atuam em distintos âmbitos (nacional, internacional e supranacional) em redes muito estreitas – e por trabalhadores (que apesar de serem dominados em conjunto pelos capitalistas como classe), fragmentam-se em sua luta e solidariedade, dividindo-se por nacionalismos, regionalismos, diferenças étnicas, culturais, raciais, sexuais (BERNARDO, 2005). Esta questão, como foi mostrado, o zapatismo parece ter entendido perfeitamente bem, e através da sua luta busca ultrapassar sua própria fragmentação e especificidade, com vistas a abarcar todos os setores "desde baixo", isto é, os explorados e oprimidos da sociedade.

Então, a pergunta que há 14 anos reiteradamente se coloca aos zapatistas é: como construir um contra-poder, ou antipoder, a partir da resistência? Como construir a unidade de ação com vistas a acumulação de forças desde baixo, dos movimentos sociais, organizações indígenas, operários, camponeses, sindicatos, desempregados, estudantes? Um problema que os próprios zapatistas vêm se colocando, e não apenas de maneira retórica ou teórica, mas também na tentativa concreta de construção dessa resposta em distintos momentos e fases de sua estratégia e projeto político.

Esse nos parece o ponto central da VI Declaração da Selva Lacandona e da Outra

Campanha, a tentativa de superação da fragmentação das lutas sociais, como condição indispensável de luta contra o capitalismo, de forma autônoma e que respeite as identidades e formas de organização culturais e de luta próprias de cada movimento, a construção de um "mundo onde caibam vários mundos", "desde baixo e à esquerda", para que "Talvez cheguemos a um acordo entre nós que somos simples e humildes e, juntos, nos organizemos em todo o país e combinemos nossas lutas que agora estão sós, afastadas umas das outras, e encontremos algo parecido com um programa que tenha o que todos queremos" (EZLN-VI Declaração)[11].

Nesse sentido, a Outra Campanha busca promover certa reabsorção do político por parte do social, para que a política sirva ao social e se subordine a ele, em que as decisões fundamentais devam ser tomadas por toda a população e não pelos "representantes", pelos dirigentes. Estes devem servir a comunidade e não "servir-se" dela. Em que a política não seja entendida como esfera autônoma da vida social, meramente em busca de postos, vantagens ou micro-poderes diversos para os líderes em detrimento das massas populares de trabalhadores. Ao contrário, a exemplo dos municípios autônomos em rebeldia zapatistas, é uma política para que o eixo de toda estratégia e tática possíveis seja o fortalecimento do movimento e a conquista real das demandas populares, através da própria construção social do que se anseia. Isto é, uma forma de fazer outra política, radicalmente nova, alternativa e distinta, a partir do oximorón de "mandar-obedecendo" e a partir da lógica da construção de um contra-poder popular, que, paradoxalmente, se assemelha e se aproxima das formas de fazer política historicamente encontradas pela classe trabalhadora a partir de suas lutas autônomas e coletivas. Nessas lutas a classe trabalhadora se reapropria da força social, ou seja, da gestão e da condução não apenas de suas próprias lutas e combates atuais, mas de seu próprio destino e de todo o conjunto de suas ações em geral. Esse protagonismo direto e coletivamente participativo recoloca o vínculo entre a dimensão social e o âmbito político no próprio movimento (AGUIRRE ROJAS, 2006).

Desta forma, os zapatistas ressaltam a necessária subordinação da dimensão política à social. Eles desmistificam o fato de as tarefas e assuntos públicos necessitarem de uma parafernália burocrática e culta. Nas comunidades zapatistas a política é cotidiana e tem como protagonista o próprio povo. Trata-se, com efeito, de uma nova forma de fazer política através de um governo pautado no poder popular; numa democracia direta e local; na dissolução da polícia enquanto corpo burocrático separado e oposto à sociedade, substituída pelo próprio povo, que se encarrega da manutenção da ordem e da vigilância; na revogabilidade a qualquer momento do mandato e no não pagamento de quantias astronômicas para cumprir um dever com a comunidade; na construção de um modelo em que todos sejam governos, e que ser governo signifique uma postura de compromisso com a comunidade e não uma forma de distinção e de privilégios, que envolve uma cultura de identificação com o outro e de identificação entre os interesses individuais e coletivos com o bem comum.

Portanto, por meio da reinserção e subordinação do político ao social, efetivada em escala local em seus territórios liberados, os zapatistas exercem efetivamente o poder social. Ao mesmo tempo, ele se conforma enquanto movimento anti-sistêmico global, na medida em que não se reconhece somente como um movimento de um ator social e de seus eventuais aliados subordinados, nem como um movimento que investe em somente uma ou duas frentes de luta, mas como um movimento de múltiplos atores sociais e também de muitas frentes de luta simultâneas (AGUIRRE ROJAS, 2005). E o que está cada vez mais claro, estas várias vertentes se conjugam sem o abandono da perspectiva de fim do capitalismo, reforçam a necessidade de se expropriar os meios de produção e mantêm a centralidade da luta de classes. O zapatismo volta a nos recordar que as iniciativas e propostas dos movimentos anticapitalistas têm que ser pensadas e efetuadas em nível local, regional e nacional, mas igualmente em sua dimensão planetária global.

Obviamente que com isso, o zapatismo não se constitui como um modelo e método de ação que possa ser apropriado para qualquer realidade. Para apreender a real influência, ou ressonância, do zapatismo nos movimentos sociais, tem-se que ir para além dos aspectos visíveis e institucionais, dos programas e expressões públicas (tão caros a certa intelectualidade de esquerda), e adentrar nas práticas e relações sociais, bem como nas suas contradições, que são construídas no interior dos movimentos, que trazem consigo os germes de novas formas de fazer política e da própria sociedade almejada (ZIBECHI, 2004). Neste sentido, é importante observar, a partir da análise dessas experiências de resistência e rebeldia que deitam raízes no presente, as tendências embrionárias das possibilidades futuras, ainda que incertas, de construção desse "outro mundo, onde caibam muitos mundos".

Os zapatistas contribuíram para reacender a chama de dignidade e revolta em parcelas de uma nova geração de lutas sociais de esquerda e anticapitalistas. No processo de construção de sua dignidade e rebeldia, desnudaram velhos e construíram novos caminhos, teceram pontes entre as rebeldias, para que outros trilhassem com eles outras dignidades e rebeldias, que insistem em não se enquadrar no fim da pré-história e buscam o princípio da história da humanidade, livre e emancipada.

Referências:

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[1] Este artigo foi originalmente publicado na Revista Lutas Sociais n. 19-20, PUC-SP, 2008.

* Doutorando em Ciência Política na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e Professor Colaborador do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Esteve nas comunidades zapatistas entre dezembro de 2006 e janeiro de 2007 e participou do I Encontro dos Povos Zapatistas com os Povos do Mundo. Autor da dissertação "Abaixo e à esquerda: Uma análise histórico-social da práxis do EZLN", acessível em: http://www.marilia.unesp.br/Home/Pos-Graduacao/CienciasSociais/Dissertacoes/filho_amh_me_mar.pdf. E-mail: a.hilsenbeck[arroba]gmail.com

[2] Miséria essa que mescla dialeticamente elementos da pré-modernidade e da modernidade, que nega às populações indígenas chiapanecas elementos básicos do desenvolvimento social humano, como água potável, luz elétrica, sistema de saúde etc. Miséria que liga distintos tempos históricos e se torna bastante funcional ao sistema. Para análises sobre a interdependência orgânica em que se articulam o "moderno" e o "arcaico" em sociedades capitalistas, ver por exemplo, estudos de Chico de Oliveira, de Leon Trotsky e ainda Celso Furtado e Caio Prado Jr.

[3] Entretanto, não se trata de forma alguma de uma questão apenas quantitativa, pois a influência da cultura indígena é muito presente no país, e além disso, costuma-se falar de um "etnocídio estatístico" no tocante ao censo indígena, pela falta de uma metodologia adequada para mensurar a real presença étnica no país.

[4] Cf. informação oral com Gilberto López y Rivas, Cidade do México, 17/01/2007.

[5] Não nos estenderemos nesse assunto, pois ultrapassaria os limites e objetivos deste artigo. Para argumentos contrários a essa visão romantizada dos indígenas, recomendamos a leitura de (ALMEYRA; THIBANT, 2006) e nossa dissertação de mestrado (HILSENBECK FILHO, 2007), em especial o tópico "Que caso tienes quitarnos el pasamontañas si para ustedes todos los índios son iguales?".

[6] Faz-se importante aclarar que não existe "um movimento indígena", único ou homogêneo. Os diversos movimentos de distintas etnias indígenas orientam-se por perspectivas e horizontes diferentes, sejam culturais, econômicos, históricos ou políticos. Mesmo assim, é possível observar implicações e tendências comuns, ainda mais no atual estágio do cenário latino-americano. A "internacionalização" e certa estrutura global dos processos autonômicos são tendências crescentes (por certo não únicas) no seio destes movimentos, que têm sabido se agrupar com outros movimentos indígenas e setores sociais para levarem adiante suas lutas (VARESE, 2005); (GABRIEL, 2005).

[7] Segundo Carlos Aguirre Rojas (2006), ocorreram três fases principais do zapatismo: a do fogo, de 1983 a 12 de janeiro de 1994, data em que se encerra oficialmente o conflito armado; a da palavra, que remete até a V Declaração da Selva Lacandona e prossegue nos anos seguintes, em que havia o objetivo de convocar a "sociedade civil" para formar um movimento forte e permanente de solidariedade com sua luta; e a do ouvido, que principia com o lançamento da VI Declaração (que demorou quatro anos para ser gestada) e a Outra Campanha. Outras importantes referências para o estudo das transformações das estratégias e projetos do EZLN ver (PAREDES, 2002) e (FIGUEIREDO, 2006).

[8] Os zapatistas insistem na necessidade de outra política, organizada pelos e para os "de baixo" a partir da organização autônoma das comunidades, dos pueblos, dos trabalhadores, uma política que se oriente pelo oximorón de "mandar obedecendo". Dessa forma, a VI e a Outra se constituem também como críticas à forma de sistema político das democracias representativas parlamentares, e concomitantemente, crítica aos movimentos e forças sociais que depositam esperança neste modelo (esvaziado de programas e de efetivos mecanismos de participação social), que partem de uma perspectiva quase exclusiva no sistema eleitoral e no Estado para a transformação da realidade social.

[9] Como os Encontros dos Povos Zapatistas com os Povos do Mundo, realizados em território rebelde zapatista, que tem por propósito realizar um debate aberto e amplo, com pessoas e organizações de várias partes do mundo, sobre as experiências de cada movimento, de cada sujeito. Discutindo inclusive os avanços e as limitações da experiência de autogoverno zapatista. O III Encontro se destinou a debater especificamente a condição das mulheres zapatistas e das mulheres no mundo. O conteúdo e o áudio dos debates e das mesas de discussões, bem como fotos dos Encontros, podem ser acessados através dos sites: http://zeztainternazional.ezln.org.mx/  e http://chiapas.indymedia.org/

[10] Foram vários os momentos e as tentativas em que o EZLN buscou criar um movimento nacional de resistência, modificando suas táticas, como nos primórdios do conflito (em que ainda se pautava pela perspectiva da luta armada), passando pela tentativa da Convenção Nacional Democrática ou o Movimento pela Libertação Nacional, nos quais pretendia construir frentes nacionais "por cima dos partidos políticos, das armas, das divisões" para a instauração de um governo de transição (entendido não como governo transitório e sim como governo com programa político de democratização da nação, que tinha como expoente o candidato oposicionista Cárdenas), ou ainda a Frente Zapatista de Libertação Nacional, força política e civil, composta por diversos setores sociais e níveis de participação e que não aspirava a postos no poder instituído, entre outras iniciativas. Para uma exposição dessas experiências, permitam-nos recomendar, mais uma vez, nossa dissertação, especialmente o tópico: Implicações teórico-práticas para a apreensão da "sociedade civil", do Estado e do poder: nos passos das Declarações da Selva Lacandona (HILSENBECK FILHO, 2007) e (RAMÍREZ PAREDES, 2002).

[11] Contudo, são vários os desafios colocados e que podem impossibilitar, uma vez mais, a tão ansiada "unidade na diversidade" dos movimentos de esquerda mexicanos. Pois, apesar de a Outra Campanha ser proposta como espaço de aglutinação das forças anticapitalistas, esse programa é bastante indefinido e genérico em muitos aspectos, como, por exemplo, sua estrutura organizativa, suas formas decisórias e suas políticas de alianças. Essas indefinições podem acarretar percalços para a construção efetiva de um programa nacional de luta, sobretudo, ao ganhar força as práticas políticas sectárias em seu seio. Outro elemento a ser considerado é que parece haver, atualmente, uma escassa participação nacional – comparada a outras épocas – em torno das convocações e chamados do EZLN e isso em um momento muito delicado, no qual se prenuncia uma nova escalada da violência, oficial e paramilitar, contra as comunidades que conformam a base de apoio dos zapatistas.

 

Autor:

Alexander Maximilian Hilsenbeck Filho

a.hilsenbeck[arroba]gmail.com

Doutorando em Ciência Política na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e Professor Colaborador do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá (UEM).

Revista Espaço Acadêmico Nº 89, Outubro de 2008.



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