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O que os quadrinhos dizem? (página 2)

Nildo Viana

Produção social das Histórias em Quadrinhos

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O caráter axiológico dos quadrinhos é mais visível em determinados momentos, tal como no período da Segunda Guerra Mundial, onde diversos heróis e super-heróis foram "recrutados" para a guerra contra o nazi-fascismo (Viana, 2005).

Porém, após a guerra e dificuldades financeiras, mudanças geradas pelo novo período, os quadrinhos passaram a ser condenados pelos setores mais conservadores. É desta época que surge o livro A Sedução dos Inocentes, de Frederich Wertham, uma crítica conservadora aos quadrinhos, e a legislação que busca controlar mais amplamente os quadrinhos. Por detrás da condenação e da censura há a disputa entre tipos de idéias e valores dominantes, mas também certa percepção de que as HQ manifestam não apenas as mensagens intencionais de seus criadores e financiadores, mas outras que são intencionais e é neste processo que se abre espaço para o inconsciente coletivo e a crítica social. Assim, os super-heróis são conservadores, mas abrem espaço para se pensar o extraordinário, a imaginação ultrapassar o realismo cotidiano e permitir o sonho com a liberdade (Viana, 2005). E a forte intervenção estatal irá ser abrandada em 1971, mas não deixará de existir. No entanto, apesar dela, uma produção marcada por elementos "censuráveis" irá continuar sendo produzido, tal como o caso da violência excessiva que se vê em personagens como Badger, o Texugo. Este personagem exerce agressão física o tempo todo, até mesmo por motivos banais, e seu criador, Mike Baron, justifica isso da seguinte forma: "vestir um uniforme e enfrentar o crime? Só mesmo sendo louco! Foi a partir desse pensamento que surgiu Badger, para dar voz ao fascista e ao psicopata que existem dentro de mim".

Também há a manifestação de valores divergentes, tval como os que se opõem aos valores religiosos, como em Authority, no qual um grupo de super-heróis combate além de ditadores e terroristas, o próprio Deus.

São os primeiros super-heróis a apresentar explicitamente a necessidade de mudar o mundo. Aliás, Deus também aparece como vilão em Preacher, história que conta que ele abandonou a humanidade e um pastor - com poderes sobrenaturais - vai atrás dele tomar satisfações. Em ambas as histórias, temas raramente presentes nas HQ são abordados. Para os religiosos, que já começam a reclamar destas produções, já que elas tornam Deus um vilão e inimigo da humanidade, isto pode ser interpretado como "o sinal dos tempos". Porém, para a Sociologia, é expressão das mudanças sociais, que é o que explica os novos quadrinhos deste tipo, no qual o movimento antiglobalização, entre outras manifestações, gera um mercado consumidor e permitem romper parcialmente com a censura moral e política.

As HQ são produtos constituídos por empresas e criadores que geram determinado contexto social e histórico. Com seus recursos (balão de diálogo, imagens, palavras que expressam sons, etc.) e seqüência expressam uma determinada ficção produzida por indivíduos que são seres sociais que realizam um trabalho coletivo (e neste sentido as HQ tem certa semelhança com o cinema e se distancia de outras formas de arte cuja produção é mais individual), cuja base só pode ser histórica e social. Os primeiros experimentos em quadrinhos foram as tiras cômicas e somente em determinado estágio de seu desenvolvimento que os argumentos se tornaram não apenas cômicos, mas também ligados à aventura e outros gêneros. É a partir de 1920 que os temas familiares e infantis e os desenhos caricaturais são substituídos por desenhos mais realistas e o tema da aventura emerge. O novo gênero produz a renovação dos desenhos. Os caricaturais combinam com a comicidade e com a simplicidade dos temas familiares e infantis, o que não ocorre no caso do novo gênero, que exige, devido suas características próprias, um traço mais realista (Viana, 2005).

Por não poder revelar as razões dos conflitos, dos crimes, etc., a consciência burguesa produz o maniqueísmo

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Personagens como The Yelow Kid, foram as primeiras experiências de hoje conta com obras que deixaram de ser apenas infanto-juvenis para atingir o público adulto

A HEGEMONIA DAS tiras cômicas é explicada pelo processo de surgimento das HQ como tiras diárias em jornais, o que fazia com que elas devessem ser curtas. O gênero da aventura já marca a necessidade de ampliar o espaço para os quadrinhos e isto ocorre no interior do próprio espaço das tiras em jornais, por meio das continuações em números subseqüentes. O herói precisa cumprir uma missão e apenas três ou quatro quadros não são suficientes para apresentar uma história completa. A seriação em vários números dos jornais foi a solução que, mais tarde, seria substituído pelas Revistas em Quadrinhos. Isto vai se efetivar apenas em 1937, quando surge um novo gênero, o da superaventura, que passa a ter hegemonia, embora os demais gêneros continuem existindo e outros tenham surgindo.

A produção social das HQ está ligada às determinações sociais e às grandes empresas produtoras. A competição entre os grandes jornais para atrair leitores-consumidores motivou o avanço das HQ, posteriormente, os Syndicates, e, por fim, as grandes produtoras, tal como as fábricas de super-heróis, DC Comics e Marvel Comics. A dinâmica do mercado consumidor, as mudanças sociais e históricas promovem alterações no processo de produção das HQ. Os heróis e super-heróis dos quadrinhos foram mobilizados para combater o nazismo durante a Segunda Guerra Mundial, tal como Tarzan, Agente Secreto X-9, Dick Tracy e vários outros. Outros foram criados justamente neste contexto e com este objetivo, tal como o Capitão América.

O conteúdo das HQ também são produtos históricos e sociais. Isto pode ser exemplificado pelo gênero da aventura que é realizada por um herói e isto é explicado pelo individualismo da sociedade capitalista que vai gerar uma literatura e produção cultural centrada no indivíduo e a figura do herói passa a ser proeminente. A crise de 1929 traz a necessidade de um indivíduo forte para suportá-la. O Superman, por exemplo, surge no contexto desta crise e da necessidade de uma resposta fictícia ao nazismo por parte dos EUA e foi por isso que os nazistas afirmaram que ele era "judeu" (Viana, 2005b).

As características do herói é outra produção social. O maniqueísmo é uma constante, pois opõe o bem e o mal, e o herói é a personificação do bem. A razão de ser do maniqueísmo reside nos limites da consciência burguesa, que, tal como já dizia Marx, possui "limites intransponíveis" (Marx, 1988). Por não poder revelar as razões dos conflitos, dos crimes, etc., a consciência burguesa produz o maniqueísmo, Este não abole os conflitos e crimes, mas oculta suas raízes, suas determinações. É por isso que Marny poderá afirmar que o herói é o guardião do bem, o restaurador da ordem, e até mesmo o "policial dos cosmos" (Marny, 1970). Porém, esta é uma característica do herói conservador e não de todos os heróis (Kothe, 1988). E é por isso que neste tipo de construção há uma relação indissolúvel entre ordem e justiça e cabe aos heróis defender ambas.

A glorificação do herói é outra característica marcante. Porém, a fonte social de tal glorificação reside no individualismo da sociedade capitalista, por um lado, e na identificação entre produtor e personagem, por outro. No que se refere à glorificação do herói pelo leitor, isto se deve ao fato dele representar a ordem e a justiça, o que agrada grande parte da população, e, por expressar um substituto imaginário para os leitores que são oprimidos e não conseguem se enxergar como agentes de sua própria libertação.

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O Superman, por exemplo, surge no contexto desta crise e da necessidade de uma resposta fictícia ao nazismo por parte dos EUA e foi por isso que os nazistas afirmaram que ele era "judeu"

AS MUDANÇAS DOS personagens, temas, gêneros também são produzidas socialmente. No bojo dos anos 1960 e da contracultura surgem os quadrinhos intelectualizados e underground. Este é o caso de Trashman, um guerrilheiro revolucionário; Fritz, Th e Cat; Mr. Natural, etc. Os quadrinhos eróticos e outros voltados para o público adulto tornam-se possíveis a partir dos anos 1960, quando a expansão da produção capitalista produz a necessidade de expansão do mercado consumidor, e, com isso, a produção de "necessidades fabricadas" e novas opções de consumo. Esta era a época do que o sociólogo Henri Lefebvre (1990) denominou "sociedade burocrática de consumo dirigido", mais conhecida como "sociedade de consumo".

A partir de 1970 a censura estatal é abrandada em vários países e as exigências de recuperação de temas e reivindicações das rebeliões estudantis e lutas operárias do final dos anos 1960 e início da década seguinte são realizadas, visando proporcionar oferta para uma demanda existente e, ao mesmo tempo, desvinculá- la da totalidade das relações sociais visando despolitizar seu conteúdo. Nos anos 1980 surgem novas produções, nas quais o público- adulto é privilegiado, diversos personagens já existentes ganham mais complexidade e, além de meras aventuras de lutas e ações heróicas, ganham uma personalidade mais complexa e problemática, tal como Batman, cujo objetivo é manter o público jovem que se tornou adulto e iria querer algo mais do que as eternas histórias repetitivas de lutas contra os mesmos vilões. Neste momento, também aparecem obras mais politizadas, tal como V de Vingança, que apresenta a história de um herói anarquista que luta contra um regime fascista, que é, na verdade, como afirma o seu criador, Alan Moore, uma metáfora da sociedade inglesa sob o governo neoliberal de Margareth Thatcher.

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O principal veículo de desseminação das HQ passou a ser as Revistas em Quadrinhos, que no Brasil também são chamadas "Gibis", que significa, "moleque", e foi o nome da primeira Revista em Quadrinhos lançada no Brasil

UMA DAS GRANDES questões dos quadrinhos está nas mensagens que eles repassam. As HQ, desde o seu nascimento, são uma forma de comunicação e, portanto, uma forma de enviar mensagem. Por meio das imagens desenhadas, das palavras e diálogos, da representação pictórica, os quadrinhos manifestam valores, sentimentos, concepções, etc. Neste processo, o papel proeminente dos quadrinhos é repassar as idéias e valores dominantes. Isto é explícito na análise que Ariel Dorfman faz do Zorro, O Cavaleiro Solitário, um cowboy que ao lado do seu subordinado índio Tonto e seu doméstico cavalo Silver, é expressão das idéias e valores dominantes. Ao analisar uma das histórias de Zorro, O Vale do Potro Selvagem, os autores demonstram a manifestação de algumas idéias dominantes, tal como a idéia do caráter inquestionável das leis, realizando seu processo de legitimação e naturalização. Isto se revela na impotência de Zorro em evitar que Bruno, comerciante de cavalos, possa entrar no vale: "não há lei que o impeça de entrar no vale. Acabarão com todos os potros que lá vivem felizes". Também há a naturalização da hierarquia, liderança, força, subserviência, ou seja, reproduz as relações sociais de dominação como naturais, estando inclusive na natureza, tal como ocorre com o cavalo Silver, que derrota um adversário que queria lhe usurpar o reinado, um cavalo negro (o que é bastante sugestivo, tendo em vista o racismo existente nos EUA) e recoloca a ordem. Depois disso, Silver abandona seu reinado para voltar ao seu dono, Zorro, manifestando sua subserviência e servidão voluntária. A propriedade privada é um valor (a da terra, a dos cavalos do comerciante e, por fim, a do próprio Silver, propriedade viva que se reconhece como tal e o aceita, passando por cima até de sua vontade de permanecer com os demais de sua espécie, ou, como diz Zorro, a tentação provocada pelo "orgulho de ser chefe"). Assim, valores e idéias dominantes se mesclam e se reforçam mutuamente (Dorfman e Jofré, 1978).

Isto também é visível nas mensagens repassadas pelas HQ de heróis e super-heróis (Viana, 2005) e sua expressão é ainda mais visível no caso dos personagens de Walt Disney. O principal valor relacionado com o Tio Patinhas é, sem dúvida, o dinheiro. As histórias do Tio Patinhas apenas mostram a paranóia com a proteção de sua riqueza diante de seus inimigos (Maga Patalógica, Irmãos Metralha) ou então a vontade de enriquecer ainda mais, características comuns dos grandes capitalistas. Já Mickey revela os valores da esperteza e inteligência, inclusive ajudando o Tio Patinhas em alguns casos. O combate ao crime e o heroísmo individualista também estão presentes neste personagem.

Isto revela uma hierarquia social no interior dos grupos privilegiados (burguesia e classes privilegiadas), já que os trabalhadores estão praticamente ausentes nesse mundo "patológico", e cada cumprindo bem o seu papel para evitar que o mal (Mancha Negra, Irmãos Metralha, etc.) desequilibre a ordem, que é a ordem capitalista.

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Os heróis e super-heróis dos quadrinhos foram mobilizados para combater o nazismo durante a Segunda Guerra Mundial, tal como Tarzan, Agente Secreto X-9, Dick Tracy e vários outros. Outros foram criados justamente neste contexto e com este objetivo, tal como o Capitão América.

AQUI A SOCIABILIDADE capitalista fundada na competição e na luta por status, riqueza e poder é transformada em valores únicos, ou seja, "são tudo na vida", já que não existe mais nada além disso. Os valores dominantes reinam absolutos e nada existe além deles. A competição é a mola mestra da história e Dorfman e Mattelart não perceberam que a reação do Pato Donald ("responde acertadamente") contra tais valores ocorre num contexto de competição, pois ele, por inveja de outro tio de seus sobrinhos, queria apresentar algo com o qual ele pudesse ter vantagem competitiva, mas não encontrou. Não foi uma reação de discordância autêntica com os valores apresentados e isto fica comprovado pelo fato de não ter conseguido apresentar nenhuma alternativa.

Dorfman e Mattelart discutem a estrutura familiar da família Disney, composta por apenas tios e sobrinhos (há muitos tios - Patinhas, Donald, Mickey, Pateta - e muitos sobrinhos de cada, mas não aparecem pais e mães). É um mundo assexuado e repressor da sexualidade. Porém, a falta da figura paterna não elimina a autoridade. Ao contrário, é uma vida "muito mais vertical e autoritária", e isto é visível na relação entre Tio Patinhas e Pato Donald e entre este e seus sobrinhos (Dorfman e Mattelart, 1980).

Sociologia dos leitores

Além da abordagem sociológica da produção social dos quadrinhos e das mensagens, também há Sociologia dos leitores e da recepção dos quadrinhos. O foco da análise e pesquisa, neste caso, é o do "público dos quadrinhos". Marny, por exemplo, realiza uma classificação do público em consumidores habituais, que lêem as tiras em jornais; consumidores esclarecidos, que são amadores reunidos em clubes especializados; os hostis, que menosprezam as HQ por vários motivos (baixa cultura, antipedagógica, violenta, etc.); os colecionadores, que são aqueles que se dedicam a colecionar as revistas em quadrinhos de determinada época ou personagem; o público infantil. Há também estudos que focalizam a faixa etária (Renard, 1981), sobre a diversificação do público (Gubern, 1979) ou as classes sociais, ou mesmo o atrativo explicado pelo inconsciente coletivo (Viana, 2005). Assim, o encontro da Sociologia com as HQ já apresenta uma história e uma tradição que vem apresentar uma nova visão dos quadrinhos, superando a história internalista ou descritiva.

Neste contexto de análise das mensagens realizadas pelas HQ, também são analisados diversos elementos culturais presentes nos super-heróis, até mesmo o seu caráter de mito (Reblin, 2008). O mesmo ocorre com os quadrinhos brasileiros, nos quais o personagem de Ziraldo, o Saci Pererê é considerado "populista" (Pimentel, 1989; Cirne, 1982). O que estes estudos mostram é que as HQ, desde as mais simples e superficiais, nada possuem de "inocentes" e "neutras".

Os valores e idéias repassadas são tendenciosos e refletem uma determinada época histórica

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Os quadrinhos eróticos e outros voltados para o público adulto tornam-se possíveis a partir dos anos 1960, quando a expansão da produção capitalista produz a necessidade de expansão do mercado consumidor, e, com isso, a produção de "necessidades fabricadas" e novas opções de consumo

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No bojo dos anos 1960 e da contracultura surgem os quadrinhos intelectualizados e underground. Este é o caso de Trashman, um guerrilheiro revolucionário; Fritz, The Cat; Mr. Natural

Obviamente que, como a sociedade moderna é perpassada por conflitos, também manifesta idéias e valores opostos, mas de forma marginal, pois a estrutura oligopolista da produção cultural é um processo poderoso de veto e controle. Além disso, a intervenção estatal também sempre se manifesta. Não existe homogeneidade no interior das idéias e valores dominantes e as variações, bem como interesses, produzem conflitos internos neste âmbito.

O que predomina, no entanto, são os quadrinhos que manifestam as idéias e valores dominantes. Este é o caso da nova fábrica de super-heróis Image Comics (Spawn, Dragon, Angélica, etc.). A nova safra assume o papel de defesa da lei e da ordem, sendo geralmente policiais, anticomunistas e com outras características conservadoras. A época de surgimento, a partir da hegemonia neoliberal, expressa a razão de ser da nova safra de super-heróis produzida por alguns desenhistas e roteiristas que saíram da Marvel Comics (Homem-Aranha, Th or, Namor, Hulk, Homem de Ferro, Capitão América, X-Men) e passou a competir com ela e com a DC Comics (Super-Homem, Batman, Mulher-Maravilha, Lanterna Verde). Desta forma, os valores e idéias repassadas são altamente tendenciosos e refletem uma determinada época histórica, a partir das posições de determinado grupo de realizadores.

A consolidação da Sociologia das HQ ainda está por ocorrer, mas a tendência é sua realização em um curto período de tempo.

 

Autor:

Nildo Viana

nildoviana[arroba]terra.com.br

Professor da UEG – Universidade Estadual de Goiás; Doutor em Sociologia/UnB.

Fonte: Sociologia. Ciência & Vida, v.17, p. 53-62, 2008  www.portalcienciaevida.com.br



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