As relações sócioespacias sob a égide da memória



No começo, era o Topos. E o Topos indicava o mundo, pois era lugar; não estava em Deus, pois Deus não tem lugar e jamais o teve. E o Topos era o Logos, mas o Logos não era Deus, pois era o que tem lugar. O Topos, na verdade, era poucas coisas: a marca, a re-marca. Para marcar, houve traços, dos animais e de seus percursos; depois, sinais: um seixo, uma árvore, um galho quebrado, um cairn. As primeiras inscrições, os primeiros escritos. Por pouco que fosse, o Topos já era "o homem". Assim como o sílex seguro pela mão, como a vara erguida com boa ou má intenção. Ou a primeira palavra: o Topos era o Verbo; e algo mais: a ação, "Am Anfang war die tat". E algo menos: o lugar, dito e marcado, fixado. Assim, o verbo não se fez carne, mas lugar e não-lugar (Léfèbvre, 1991:34).

Analisar a construção socioespacial dos assentados no assentamento da fazenda Jupira, a partir de suas migrações, que se constituem na contradição social em que estes são inseridos, é de extrema relevância para compreendermos a nova sociabilidade, as práticas sociais e estratégias de luta e os conflitos daí advindos, em que as experiencias ganham relevância na constituição do espaço social do assentamento.

As migrações os colocam de lugar a lugar, sendo que o ponto de partida é o lugar de origem, onde outrora mantinham relações básicas de família, sexo, parentesco e outros, mas, com o fluxo do movimento migratório, por causa da territorialização do capital cultural, econômico e político e dos conflitos daí advindos forjam os deslocamentos em escalas espaciais diferenciadas.

Becker (1997), em seu estudo sobre mobilidade espacial da população, afirma:

Os deslocamentos de populações em contextos variados e envolvendo ao longo do tempo escalas espaciais diferenciadas conferiam complexibilidade crescente ao conceito de mobilidade como expressão de organizações sociais, situações conjunturais e relações de trabalho particulares. A cada nova ordem mundial correspondeu uma nova ordem econômica com a emergência de novos fluxos demográficos. (Becker, 1997:319)

Esses migrantes estão sempre ocupando o lugar do outro, estão quase chegando ao porto seguro, isto é, a um lugar definitivo em que possam fincar âncora e recomeçar sua vida com dignidade. Mas nunca chegam. As migrações forçadas impõem um momento sempre passageiro, em que os laços de sociabilidade tornam-se frágeis, em decorrência da permanência efêmera em cada lugar, por isso eles estão sempre em trânsito, sem parada, estão sempre em movimento em direção a lugar nenhum, pois o lugar é sempre o do outro, ou seja, já está marcado, ligado, alcançado. Nesse sentido, a memória que carregam de lugares outros entra em conflito quando chegam ao assentamento definitivo e vislumbram a possibilidade de construírem, por meio de suas representações de mundo, suas práticas sociais e estratégias de luta. As relações socioespaciais que passam a se concretizar no assentamento não são mais de estrangeiros do lugar, mas fruto de uma trajetória de conquistas em que a história desses sujeitos sociais, vivenciadas no cotidiano da nova sociabilidade que se apresenta, propõe a reconstrução das utopias e restabelece um novo sentido de pertencimento.

Assim, tais migrantes não eram mais trabalhadores rurais. Entraram em contato com uma nova ordem produtiva (a informatização, a comunicação, a robotização e a microeletrônica), marcada pela flexibilização do trabalho. O que os distancia dos sem- terra do Oeste e do Sudeste do Estado de São Paulo não é só a maneira de conseguir trabalho, mas de como viver e se organizar enquanto grupo. As relações de parentesco e de compadrio advindas do mundo rural esfacelam-se pelas migrações (a origem de vários assentados oriundos de lugares diferentes), ficando submersas nas formas urbanas objetivas e subjetivas que passam a influenciar o universo simbólico desees sujeitos, em que as várias relações sociais travadas nas trajetórias de vida e trábalo para sobreviverem marcam profundamente os valores do mundo rural, que, paulatinamente, vão sendo substituídos por valores urbanos.

Essa transformação não significa que não existam os gêneros tradicionais da vida pregressa, mas que não são utilizados devido aos espaços reduzidos de sociabilidade desse modo de vida, o qual perde sentido quando inserido no estilo de vida urbano. Segundo Silva (2001), esses gêneros de vida sofrem preconceitos, gerando conflitos e estranhamentos, ficando, então, submersos na subjetividade dos sujeitos, isto é, "protegidos" na memória individual e social, e constrangidos nos espaços reduzidos, como as periferias das cidades médias e cidades-dormitório, para, no momento oportuno, serem acionadas com outros contornos resignificados, seja na forma de rodeios, seja em festas promovidas pelas Companhias de Reis e outras.

Espaços reduzidos, sociabilidade, marcada, muitas vezes, por conflitos, violência, preconceitos, e, sobretudo, por sinais de estranhamento mútuo. A sociabilidade ancorada nas relações primárias, caracterizadas pelo reconhecimento interpessoal e auto-reconhecimento,cede lugar à sociabilidade individualizada e estranhada. Com o passar dos anos, a vida social foi sendo reconstruída nesses novos espaços. No entanto, as tradições, a cultura do mundo de antes, não couberam nos limites desses espaços. Foi necessária a construção dos lugares para protegê-las, para impedir sua morte. (Silva, 2001:103)


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